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ILDA E RAMON - Sussurros de Liberdade - Romance

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ILDA E RAMON

- Sussurros de Liberdade -

Romance

Mírian Cintra

São Paulo 2010

ILDA E RAMON

- Sussurros de Liberdade -

Romance

Copyright © 2010 by Editora Baraúna SE Ltda

Capa André Cintra

Projeto GráficoAlline Benitez

Revisão Priscila Loiola

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

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C518I Cintra, Mirian Ilda e Ramon : sussurros de liberdade: romance / Mirian Cintra. - São Paulo: Baraúna, 2010. ISBN 978-85-7923-119-3 1. Romance brasileiro. I. Título.

10-1711. CDD: 869.93 CDU: 821.134.3(81)-3

20.04.10 03.05.10 018727

______________________________________________________________

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIÇÃO À EDITORA BARAÚNA www.EditoraBarauna.com.br

Rua João Cachoeira, 632, cj.11CEP 04535-002 Itaim Bibi São Paulo SP

Tel.: 11 3167.4261

www.editorabarauna.com.br

Ao Juquinha Cintra, meu pai, por me ensinar ca-minhos, sobretudo os do livro;

À Meiri, minha irmã-amiga, sobretudo por ter pré–visto um livro das minhas mãos, estimulando-me a escrevê-lo;

Ao André, meu filho, sobretudo por ter me leva-do à Xury;

Ao Tânio, minha tardia retribuição.

Meus agradecimentos à querida Arlete Moysés,

que generosamente fez uma leitura crítica dos originais,

muito me ajudando com suas observações.

Sumário

A vida visceral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91. A Chegada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112. O Inferno é Aqui Mesmo, o Céu Também . . . . . . 273. Mina e Tatá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 734. Paris Manda Recado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 915. A Briga pela Vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1216. A Vida Ganha Espaço e a Morte Também . . . . . 1477. Minha Direita Não Está Vaga . . . . . . . . . . . . . . . 1718. A Escolha da Velha Senhora . . . . . . . . . . . . . . . . 1999. Estácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21710. E a Velha Senhora... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23911. O Condão de Elisabete . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25512. Da Chácara Xury à Ibyxury . . . . . . . . . . . . . . . 279

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A vida visceral

[...] Escrevo porque sou um desespera-do e estou cansando, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.A Hora da Estrela,Clarice Lispector

Não faz muito tempo Mírian comentou comigo: “estou escrevendo um livro”. Apesar da novidade, não foi uma surpresa. Pareceu-me natural que assim fosse. Dos muitos anos que nos conhecemos, mesmo com breves en-contros, sempre imaginei que ela um dia seguiria o rumo da literatura. E eis a primeira cria. Primeira, certamente.

Ilda e Ramon – sussurros de liberdade é na verdade um grito visceral. Não é um sussurro. Aqui, a vida pulsa com a intensidade das tempestades: a vida da autora e a vida da narradora. Mírian e Mariana são um amálgama. Mulheres que carregam em si rebeldia, questionamento, paixão, dor e muita ternura. São mulheres que jamais saberiam viver no raso. É nas profundezas que elas se encontram.

E a vida profunda é dilacerante tanto quanto as do-res físicas vividas por Mariana. Com Ilda, Ramon ou com

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Bei (seus bichos-companheiros) Mariana sangra corpo e alma. Parecem acidentes, mas não. Não existem acidentes nas vidas dessas mulheres.

Elas fazem escolhas, abrem caminhos. Em meio ao quase-nada, fincaram seu lugar no mundo: a chácara Xury. Tudo por fazer. Construíram. Tudo por plantar. Semearam. O que era um refúgio do eu, se transforma em aconchego de muitos. Pois para elas, mesmo a mais íntima solidão é um exercício de solidariedade com o outro. A vida é para ser compartilhada, comungada... A vida é para ser profunda.

Talvez toda a intensidade das vidas aqui narradas tenha nascido da junção de duas grandes paixões dessas mulheres: pela terra e pela liberdade. A paixão pela terra é algo que quase brota com elas. Oriundas dos rincões, criadas em fazendas e educadas ao sabor dos ventos im-possível seria que não despertassem a outra paixão fun-dante em seus seres: a liberdade. Uma paixão finca raízes e alimenta o cotidiano. A outra paixão dá asas e alimenta a alma. Parecem caminhos contraditórios, mas não.

São reveladores da beleza do humano ser. Quando essas mulheres trilham seus caminhos elas o fazem abrin-do mata fechada. É uma lida dura, muitas vezes solitária, mas somente as gentes que têm os pés no chão e a cabeça nas nuvens conseguem.

É caminhada de gigantes.É caminhada de mulheres ousadas.É a vida visceral. Com café e afeto,Jaqueline Lemos

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1. A Chegada

Ilda e Ramon chegaram à Chácara Xury alguns dias depois de Ernesto e por isso tiveram certa dificuldade em serem recebidos para uma permanência definitiva. Ernes-to havia sido procurado, eles não. Chegaram sem qual-quer chamado e tive alguma resistência em aceitá-los. Permaneceram em frente ao portão desde manhã, numa insistência sábia.

Lembrei-me de que também comigo fora assim. Era quase noite, o mato sujo, alto, sem sequer uma trilha para se chegar à casa e intui que aquele era o meu lugar. Acaba-ra a busca de mais de um mês por uma chácara, nas cerca-nias de São Paulo. A desculpa para a decisão foi o corretor ter afirmado existir uma nascente no terreno. Quis ver. O rapaz, com uma deficiência na perna, tinha dificulda-de de descer até o tubo que indicava o olho d’água. Fui, vi o tubo e comprei a chácara. Era urgente. Meu coração doía muito com a ausência do filhão que fora estudar em Londres, ali... depois do Atlântico. Minhas angústias, há muito, aprendera amenizá-las no colo da Terra.

A chácara, já no próximo final de semana, foi bati-zada de Xury, apelido escolar do homenageado, o ausente tão presente André. A partir de então, iniciei um trabalho duro de preparar minha morada, sonho de muitos anos. Enquanto isso, continuei trabalhando em São Paulo, três

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dias por semana, numa jornada que perfazia 40 horas, para manter as despesas que aumentaram bastante devi-do às exigências da chácara. Os quatro dias na Xury me alimentaram de energia durante todo o período londrino do meu filho, que expandiu os seis meses para dois anos. A dor da ausência era superada pelo trabalho que a Xury eficientemente sempre trouxe.

Quando vim ver a chácara, pensei que a construção de um caminho, que permitisse o carro chegar até o pe-queno chalé, seria a primeira coisa a fazer. O terreno era delimitado por uma cerca bastante precária. Na entrada, uma porteira, que logo pediria sua substituição, separava as árvores de um pequeno horto que fazia uma bela bar-reira encobrindo, com a ajuda da declividade, a casa, bem mais distante. Esta, construída por um artesão da madei-ra que soube localizá-la com perfeição, recebe Sol o dia todo. Após o portão, só havia um matagal, mas dava para perceber dois pés de limão, onde decidi plantar o pomar. Um pouco mais abaixo, o contorno de três canteiros me inspirou uma horta. No primeiro dia como dona do peda-ço, descobri que havia algo ainda mais urgente, a troca da bomba que levava a água do poço precaríssimo até a caixa d’água, localizada perto do que seria a horta e bem acima da casa. Esta localização era necessária para dar um pouco mais de pressão à água utilizada, sobretudo no chuveiro. A chácara não tinha energia elétrica ou qualquer outra infra-estrutura básica. Achei que havia uma promessa inequívo-ca de beleza no lugar. A primeira noite, apesar da sujeira de meu próprio corpo e do chão-colchão, dividido com algumas aranhas, foi dormida graças à exaustão.

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Mateus e Valéria, os dois garotos da Morada do Buda, a chácara vizinha, continuaram gritando:

- Mariana, os gatinhos ainda estão aqui, no portão. Eles estão miando de fome.

- Não posso ficar com mais dois. Não moro o tempo todo aqui e teria que carregá-los pra cá e pra lá. Já tenho o Ernesto – que carinhosamente eu chamava de Nesto -. De-pois de várias vezes, os garotos insistindo, acabei dizendo:

- Tudo bem. Vou dar comida pra eles e pronto. Vo-cês podem trazê-los e me ajudar? Mateus, um lindo me-nino com seus 12 anos, pegou os gatinhos e empurrando Valéria, sua irmãzinha, desceu correndo para me entregar os novos moradores da Xury.

Como a casa fica bem distante da entrada, cerca de 400 metros, foi quando os gatinhos chegaram perto que vi as pulgas pulando como se fossem enxame de mosquitinhos.

- Teremos que dar banho neles, passar o pente fino, enxugá-los e depois dar a comida. Ainda bem que temos a ração do Nesto.

O banho foi, rápido, no chuveiro com água mor-na. Os gatinhos, apesar de muito assustados, não cau-saram maiores estragos além de esparramarem água pelo banheiro todo.

À época, lia uma biografia de Ernesto Che Guevara e o gatinho macho amarelo passou a ser chamado de Ra-mon, enquanto a fêmea, rajada de preto e branco, Ilda.

Ramon e Ilda comeram com muito apetite e os garotos ficaram maravilhados pela grande vitória, pois perceberam que os gatinhos não mais sairiam da Xury e, assim, teriam muito tempo para brincar com eles.

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Que belo problema! Nada entendia de gatos, em-bora já tivesse tido a primeira e dolorosa lição com o Er-nesto, que chegou quase morto, depois de ser separado da mãe antes da hora. Teve que ficar dias dentro de uma incubadora improvisada, causando-me momentos de an-gústia. Não podia deixar os gatos dentro da casa que fi-cava fechada três dias por semana, não conseguiria viajar com os três e, agora, já não podia ignorá-los.

Foi meu pai quem resolveu pregar, no alto de uma parede de fora da casa, numa área coberta, uma grande caixa de madeira, com acesso por um pau grosso que os conduzia até o buraco lateral, porta da “casa”. O refeitó-rio foi montado sobre a caixa: três vasilhas com a ração e a água. Ramon e Ilda descobriram, rapidinho, o caminho de sua nova casa. Nos meus dias paulistanos, o refeitório era abastecido por Acácio que substituiu o sr. Pedro nos trabalhos da chácara.

A mulher do sr. Pedro já havia feito o escândalo quan-do da chegada de Ilda e Ramon. Ela descobrira que a dona da chácara era mulher. Seu marido - um homem que chega-va aos 60 anos, alto, magro, caladão, de quem a vida preferiu exigir muito e dar pouco – recebeu sua visita inesperada, na chácara. Na minha ausência, veio até o portão e cometeu alguns gritos que pareciam recados para o mundo saber que “marido meu num trabaia pra ninhuma otra muié”. Quan-do, na 6ª feira, cheguei, o sr. Pedro me disse:

- Tô indo imbora. Num guento a vergonha.Ele me contou o que havia acontecido.- Seu Pedro, eu não quero que o senhor vá. Quem

deu o vexame não foi o Senhor.

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- Vou. Tenho vergonha na cara.Insisti até quase à imprudência. Agradei, elogiei,

nada o demoveu de sua decisão. Ele não me olhava, com os olhos pesquisando o chão, contou-me um caso com-plicado, de difícil entendimento. Parece ter agredido um dos homens da família, o sogro ou o cunhado. Algo que, se denunciado, poderia, segundo sua crença na chanta-gem da mulher, levá-lo para trás das grades ou apenas servia de justificativa para permanecer com uma esposa que lhe causava tanta vergonha. Lá se foi o homem que, no enxadão, em menos de uma semana, fez a estrada por onde, ainda hoje, a Preta – uma caminhonete S10 que me carrega há um bocado de tempo – me traz até a casa. Depois de algum tempo, o sr. Pedro apareceu por duas vezes. Uma para me trazer um presente, duas mudas de paineiras que foram plantadas no primeiro platô, logo na entrada da chácara. Após alguns anos ficaram altas e bo-nitas, mas ainda não floriram. Na outra vez, veio me pe-dir permissão para fazer, no terreno da Xury, um barraco para ele e a família morarem. Não pude atendê-lo, mas parece que o episódio que tanto o envergonhou estava esquecido. Ou aquele seu momento era ainda pior.

Desta última vez, o sr. Pedro me contou que Ângelo, o rapaz que trabalhou apenas no primeiro dia quando cheguei à chácara, estava hospitalizado.

- Hoje em dia, os moços gosta de vivê no perigo – co-meçou o sr. Pedro - O Ângelo mais aquele um que mora no quartinho, atrás da imobiliária do Km 60, usa muita coisa ruim, as droga que a polícia diz. Daí, devia uma grana, diz que era uma grana grossa, pros cara que vendia pra eles.

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Foi lá buscá mais coisa sem um tostão. Num deu outra, o fulano lá da droga ficou fulo da vida e chamou os capanga pra batê neles. O Ângelo, quando viu os baita purrete dos home, saiu correndo, entrou no meio do mato, tropeçou num toco que não era toco nada, era um uriço-cachero. O moço ficô caído e o bichinho tacando espinho nele. Como caiu de cara no chão, os espinho ficou tudo naquele lugar. Também é mesmo um lugar macizinho, bom de pegá es-pinho. Ele gritou tanto que os home dos porrete largou o outro e foi vê o que era aquela gritaria.

- Mais, não é que achei uma armofada de custurera cá no mato!

- Ô Mané, ocê imbirutô?- Vem vê, João.- João e Mané se divertiu, rindo do coitado, de bunda

furada. Com perdão da má palavra, né, Dona Mariana.- E o Ângelo está no hospital por causa dos espi-

nhos? – Pude, então, perguntar.- Puis num tá? Aquele lugar macizinho ficô furado

e inchado, diz que até parece um travissero. É, dona, a senhora num sabe do que se livrou. - O sr. Pedro é que não sabia o que eu iria viver por culpa de um ouriço.

Acácio veio substituir o sr. Pedro. Foi um desastre. Hoje sei o porquê. Era um empregado preguiçoso, não aceitava qualquer reclamação, mas me trouxe um presen-te que acabou sendo muito querido.

Como a casa estava habitada por muitos bichinhos sob o império das aranhas, comecei a procurar um gato. Acácio me trouxe, dentro de um saco, um gatinho que mais parecia um rato, pequenininho, magérrimo e quase

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morrendo. Para lhe inspirar o espírito de luta, mesmo aquela que parecia já perdida, dei-lhe o nome de Ernesto. Valeu, foi meu companheiro por cinco anos. Já morá-vamos em Guarulhos há mais de um ano quando Nesto sumiu. Passamos dias procurando por ele. Andava pelas calçadas, perto da casa, gritando Nesto, Nesto. Nesto foi um gato muito especial. Ele me acompanhava nas via-gens e uma vez, na estrada da chácara para São Paulo, achei que ele queria fazer xixi. Parei o carro, abri a porta e Nesto saiu exatamente no momento em que uma carreta passava, fazendo o maior barulho, ele se assustou e correu para o mato e se escondeu, morrendo de medo do baru-lho da estrada. Tive de entrar num brejo para pegá-lo.

Outro episódio difícil foi quando Ilda entrou no cio e Ramon brigou com um gato do mato. Depois de três dias, apareceu com a perna muito ferida e cheia de bichos. Dei-xei Nesto na Xury e levei Ramon para São Paulo. Ao retor-nar, entrei na casa com o Ramon, ainda convalescente, no colo, Ernesto rosnou, pulou para atacar Ramon e minha mão foi a vítima. Passei a noite urrando de dor, sem cora-gem de sair àquela hora da noite, dirigindo na estrada com chuva. No dia seguinte, voltamos Ramon e eu para São Paulo e foi bastante doloroso o processo de cura. Aprendi que mordida de gato é uma das mais doídas e perigosas, mesmo que o animalzinho seja sadio e vacinado. Posso, agora, afirmar que dói muito mais que a de cachorro.

Acácio já entrou na Xury em desvantagem, pois o sr. Pedro foi um empregado eficiente, honesto, dava conta do recado e ainda esbanjava a sabedoria da experiência. Acácio, bem mais jovem, magro, nervoso, não era amigo

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da enxada, da foice ou de qualquer ferramenta agrícola. Casou-se com Joana, uma jovem do bairro rural vizinho e construiu uma casinha no terreno da família da noi-va, cuja aparência era contrastante à do marido. Joana era calma, quase apática, cabelos longos presos na nuca, saias abaixo dos joelhos, pouco esbelta. O casal demorou um pouco para se decidir se moraria perto da família dele ou da dela. Após mudar para lá e para cá, vendeu a casa e foi morar numa chácara perto da família dele. Joana teve uma batalha silenciosa. Queria ficar perto da mãe que lhe dava a segurança que o marido ainda não conseguia lhe passar. Venceu apenas o primeiro round . Após o parto da segunda filha, ficou muito fragilizada, a criança nasceu com um problema cardíaco e a ajuda da avó materna foi um alívio para a jovem família. No en-tanto, a avó tinha suas próprias crianças, marido e casa, e logo teve de retornar. No momento de sua saída, vendo filha e neta na cama, começou a chorar e pediu para que a filha e o netos fossem com ela.

Voltaram todos. Joana se fortaleceu para, em segui-da, engravidar novamente. Dessa vez, a gravidez foi tra-balhosa, muitas visitas ao hospital e o parto, uma cesaria-na. A situação financeira ficou difícil com mais um filho e Joana com a saúde abalada.

Acácio, indo visitar o irmão, viu uma tabuleta no muro de uma chácara “precisa-se de caseiro”. De volta à casa, falou para Joana:

- Vou vendê esta casa e vamo morá de caseiro. Vi uma chácara que tá precisando. No domingo, vou lá con-versá com o patrão.

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Joana meio assustada tentou protestar:- Pai fala que a gente num deve de vendê casa de morá.- É preciso. As criança têm de comê.No domingo, ele foi ver o emprego que não era bem

o que esperava. Ficou acertado que Joana tomaria conta da pequena chácara e Acácio ficaria livre para procurar outros serviços. Ele, por falta de dinheiro para pagar o conserto de sua velha moto, desmontou-a, descobriu o defeito, consertou-a e tomou gosto. Hoje, tem uma pe-quena oficina, lá mesmo ao lado da morada da caseira. É o mecânico que conserta nossas máquinas. Descobriu as ferramentas suas amigas.

Meus pais vieram passar uma temporada comigo. Na realidade por pouco tempo, porque Mamãe já não suportava ficar muitos dias fora da sua casa. Papai, como sempre em todas as chácaras onde morei, me ajudou a transformar o terreno sujo no lugar de onde não quero sair. Também, como sempre, me chamou a atenção:

- Para de plantar árvore, já são mais do que precisa. Você vai ficar sem Sol.

Como ele tinha razão! Já tive que podar algumas árvores para permitir que outras tivessem acesso ao Sol. Um ipê, que plantei muito perto de outras, consegui-mos levá-lo para a matinha da frente, num vazio feito pelo corte de cipós e folhagens. Agora estamos vendo a briga de uma jaqueira com um pinheiro-do-paraná e de um outro pé de pinhão com um abacateiro. A ja-queira vai perder porque a Xury não tem clima para as frutas tropicais. Já desisti de tentar ter manga, mamão, maracujá e caju, mas ainda estou insistindo com a cajá-

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manga, cuja muda trouxe de Minas Gerais. É uma fruta ácida, cheia de fribras, difícil de comer, mas deliciosa, originária da Oceania.

Papai resolveu limpar o terreno do outro lado do buracão. A chácara tem a marca de onde havia um cór-rego, cuja nascente era no terreno do vizinho que des-matou tudo, secando a nascente e todo o riacho. Acácio ficou, então, encarregado de trazer um auxiliar para roçar o mato. Trouxe seu sobrinho torto, Valdir, casado com Cecília, filha de um irmão de Acácio. Depois de uns 10 dias, Papai me disse:

- O serviço para os dois já acabou. Manda embora o tio e fica com o auxiliar que é duas vezes melhor.

Assim, lá se foi um péssimo lavrador que se trans-formou num bom mecânico e ficou um pedreiro que se tornou um excelente lavrador. Na realidade, Valdir foi aprendendo com as orientações de Papai e com alguns cursos - que eu propus e ele nunca rejeitou. Chegou a cuidar quase que sozinho da horta e do pomar orgâni-cos, do minhocário, das ervas medicinais, do apiário e da compostagem, além de resolver problemas de bombas e encanamento, fios elétricos e tantas outras complicações que uma chácara sabe apresentar.

Valdir é sem dúvida uma pessoa especial. Mulato, magro, estatura média, calmo, honesto, muito responsá-vel, gosta de aprender e descobrir as coisas, muito religio-so, sendo o segundo na hierarquia de sua igreja evangé-lica. É de Iguape, litoral Sul paulista. Filho de pescador, tornou-se auxiliar de pedreiro após a morte do pai e veio ajudar a construir uma casa, aqui, em Ibiúna. No terreno,

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onde a casa seria erguida, havia uma moradia tosca, de dois cômodos: uma sala-quarto-cozinha e um banheiro com chuveiro, vaso sanitário e uma torneira com uma balde à guisa de pia. Lá ficaram o pedreiro e seu auxiliar que também era o cozinheiro. A jornada de trabalho era puxada porque o “patrão tá com pressa de se mudar”. Uma semana após sua chegada, Valdir estava deitado, de-pois de lavar os teréns da janta, quando ouviu uma alga-zarra: gritos, risadas. Curioso saiu para ver o que era, uma menina, magrinha, com cerca de 1,50m, tentava ajudar uma senhora enorme, muito gorda a se levantar de uma poça de água. Lá estava caída, esparramada, toda suja de lama e um garotinho que parecia assustado, mas ria mui-to e, querendo auxiliar, deu a mão à menina e escorregou, levando os dois para junto da senhora, no chão, na lama. Valdir achou o quadro cômico, porém sentiu que devia ir lá e tirar aquelas pessoas da poça.

- Primeiro eu tenho de ficar sério senão vai ficar é danado de ruim – pensou alto.

Tomou um copo de água e saiu correndo. Ao ver a menina que se levantava para, em seguida, ser levada de volta para a lama pela força da mulher caída, uma puxava para cima e o outra para baixo, não se controlou e deu uma bela gargalhada. A garota ficou muito brava e começou a bater na água suja. Valdir conseguiu levantar a gorda e elas saíram para um lugar seco da estrada. Ele ofereceu um pano para limparem o rosto e percebeu que havia uns olhos muito verdes e medrosos naquele rosti-nho aonde o marrom da lama ia cedendo lugar a uma pele muito branca. A zanga da garota fazia seus olhos

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faiscarem de luz, lindos de morrer. A senhora agradeceu e pegou a mão das duas crianças e se foi andando o mais depressa que suas pernas podiam. Valdir viu que a garota não era assim tão criança.

Entrou na casa e encontrou o pedreiro que quis logo saber da barulhada.

- Ela deve ter uns 16 anos – Valdir falou como se esta fala respondesse à pergunta do pedreiro.

- Quem?- A moça que foi ajudar a avó e caiu também. Ele percebeu que havia ficado fascinado pelos olhos

da branquinha. - Não sei o nome, então, é Branquinha.

Hoje, 10 anos depois da chegada de Valdir à Xury, estávamos trocando a capota da Preta quando fui lhe en-tregar uma ferramenta, ele me disse:

- Tenho companhia. Achei que havia chegado alguém e falei, rindo:- Este cachorro gosta muito de você.- Um bocado – Valdir concordou orgulhoso.Bei estava deitado, ao lado dele, dentro da carroceria

e lá ficou até que Bia latiu e os dois saíram na disparada para perto do portão de entrada.

- A senhora já reparou que Bei não aceita que a Bia passe na frente dele?

- É um machista, ciumento, egoísta, coisas próprias de macho! – provoquei.

Valdir sorriu não muito à vontade, como quem con-corda, sem gostar.

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- Está havendo um problema entre os dois que apa-rece à noite. Bei é o líder e não abre mão disso nem por um instante, mas, nas últimas noites, Bia tem deitado na cama dele, enquanto ele fica emburrado do lado de fora. Como se à noite ela é quem mandasse.

- Deve ser coisa de marido e mulher - Valdir disse meio encabulado, pegando a chave de roda para continu-ar a briga com um parafuso teimoso.

- Gostaria de entender a cabeça desses cachorros. Eles parecem entender mais a nossa do que nós a deles.

- A senhora lembra? Quando fomos lá pra comprar eles e a senhora falou que o macho ia chamar Bei, que nem o cachorro de quando a senhora era menina, e eu dei o nome dela de Bia? - Valdir sempre lembra, vaidoso, que foi ele quem deu o nome à cadela.

- É verdade. Eu não queria porque passou uma Bia ruim pela minha vida e... uma hora lhe conto. Eles nos têm dado muito trabalho, mas são a própria viabilidade da minha permanência na Xury. Enfim, depois de todas as cercas que me vi obrigada a fazer para eles não fugirem, para não pegarem os espinhos do demônio do ouriço, agora me sinto segura.

- Com a cerca na casa e Bei e Bia, os caras não vol-tam não.

- Pelo menos aqueles que entraram aqui, não mesmo. A gente sabe que foram jovens conhecidos que queriam qual-quer coisa para vender por quase nada para comprar o seu craque. Acho que esses não vão mais querer enfrentar B&B.

- É uma dupla boa. Parece mentira, mas os ladrões tão quase tudo morto. Nessa vida deles não duram mui-

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to. Uns matam os outros, os que sobram morrem na mão da polícia.

- Prefiro falar dos meus bichinhos.Valdir começou a rir e disse:- Bichinhos, heim?!- De inhos, eles não têm nada, não é? São muito efi-

cientes. Bia com seu faro excepcional e Bei com toda a fe-rocidade... Você tem razão, formam uma dupla e tanto!

Olhei para os cachorros e senti algo gostoso, pare-cido com gratidão. E Valdir, com o parafuso teimoso na mão, completou:

- O pessoal morre de medo deles. Depois que Bei mordeu a orelha da senhora, aí é que o povo fala que o Bei é mais bravo que um petibu.

Sempre que este assunto vem à tona, sinto um vazio no estômago.

- Não gosto nem de me lembrar. Fiquei tão desespe-rada quando vi o Bei coberto de espinhos que só pensava em livrá-lo deles. Ele bem que me avisou, muitas vezes, que era para eu parar. Ele me empurrava, depois rosnou. Imagino a dor que o coitado sofreu antes de me morder! O veterinário me falou que só com anestesia para tirar o tal espinho e pela quantidade que foi teve mesmo que levá-lo para a clínica.

- Diz que espinho de ouriço parece anzol, quando a gente puxa, ele sai rasgando e que anda no corpo.

- Ai, nem fala, Valdir, morro de remorso, mas isso de espinho andar no corpo é crença errada. O corpo tem a tendência natural de expelir o que lhe é estranho, então, o espinho que entrou pode procurar um lugar para sair

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e aparecer furando a pele. Você se lembra que depois de uma semana saíram dois espinhos da cabeça da Bia? E eu acho que o Bei ainda tem um espinho na perna.

- É. Também acho. A veterinária tinha dado anes-tesia neles e tirado um monte. Pensou que tinha tirado tudo. Ó eles aí. Voltaram, estão cansados de tanto correr. A Bia é que nem a senhora fala, um doce.

- O Bei também é carinhoso, mas só com os seus amigos de infância.

Sentindo que falávamos deles, Bei veio me lamber a mão, enquanto Bia quase me derruba passando no meio de minhas pernas, a sua forma de pedir carinho.

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2. O Inferno é Aqui Mesmo, o Céu Também

Fui a São Paulo levar a Preta para a vistoria de se-gurança do kit do gás. Ainda bem que o abastecimento desse combustível parece normalizado, pois teria proble-mas para manter minha companheira de tantas estradas se tivesse de suportar o preço da gasolina. Os Governos do nosso País e da Bolívia devem chegar logo a um acor-do quanto ao fornecimento do gás boliviano e à atuação da Petrobrás naquele país vizinho.

Quando retornei da viagem e parei em frente ao portão da entrada, Bei e Bia já me esperavam. A sensa-ção de que cheguei ao meu ponto, meu lugar, é algo tão pleno, certo, gostoso! Ver a chácara tão bonita, trans-formada para me acolher, dá a sensação do acerto. Colo-quei-me numa situação financeira bastante precária ao decidir me afastar do mercado de trabalho formal, devi-do a enormes contradições de valores ético-ideológicos com os meus superiores hierárquicos. Essa minha deci-são trouxe algumas consequências dolorosas que foram se avolumando até envolver quase todos os aspectos de minha vida. Tive um tempo longo demais de total tris-teza. Mais uma vez corri para me aninhar na mãe-terra, a minha Chácara Xury.

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Aqui vivo com Ilda, Ramon, Bia, Bei e, durante os dias úteis, conto com o apoio do Valdir. Longe estou de me sentir só, bem ao contrário, sinto-me uma privilegia-da por ter percebido o que era bom para mim no mo-mento e lugar certos. Acabei, então, descobrindo que a sensação deliciosa de liberdade, de lugar adequado vem do simples fato do pensar, do sentir, do fazer começarem dentro de mim. Estou dizendo que o estar bem é possível e sua busca só pode começar com a nossa certeza de que o que queremos é nosso. Nossos sonhos começam em nós, mas, às vezes, são mascarados por valores alheios e demoramos muito para descobrir que algo nos dá mais prazer que outra coisa.

O coletivo sempre foi e é relevante para mim, o que me levou a militar seriamente em causas exigentes do meu tempo, da minha dedicação e do meu partido político. Meus valores socialistas não mudaram. Entretanto, dói muito a percepção de que um partido político é apenas uma fração do todo que queremos mudar. Mesmo essa parte não é homogênea, como um todo, mas formada de pessoas diferentes, que nem sempre conseguem suportar a chamada intimidade com o poder. A falta de perspecti-va é a dor maior. Um amigo me presenteou com o livro Marxismo sem Utopia do Jacob Gorender, onde encontrei, na sua atualização do marxismo, novo ponto de partida. Na medida em que fui entendendo a proposta do mestre, fiquei mais leve. Posso até voltar a ver uma nova forma de luta coletiva, porém percebi a importância da reflexão sobre as minhas causas e os métodos empregados. Dou a mim o direito de ter prazeres trazidos por todos os meus

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sentidos, acariciados pelas flores do jardim, pelos passa-rinhos que, ao meu café da manhã, vêm me oferecer sua música, pelos bichinhos que, ao procurarem comida no pomar, me emprestam sua graça, como os esquilos que vêm apreciar as castanhas.

Ai! Na última safra, a castanheira foi generosa. Co-lhemos uma quantidade enorme de castanha portuguesa e resolvi, numa inspiração pouco minha, criar algumas receitas culinárias. Tive dificuldade de sensibilizar meus amigos portugueses para uma ajuda efetiva com algumas receitas de marrom glacê. Como sou mais do sal, acabei conseguindo fazer um delicioso patê de castanha com be-rinjela. Até ofereci para algumas pessoas que aprovaram com honesto entusiasmo. Não dispondo de muitas be-rinjelas, pedi ao Valdir para semeá-las e, na minha santa ignorância, coloquei as castanhas para secar ao Sol, por vários dias, tendo o cuidado de recolhê-las ao final da tarde, mexê-las, virando-as para que secassem por igual, como se fossem grãos de café. Quando considerei que estavam prontas, as armazenei em um lugar fresco e seco. Algum tempo depois, enquanto aguardava as berinjelas, resolvi cozinhar algumas castanhas e ai, ai, ai que decep-ção! Todas secas, emborrachadas. Prontas para a compos-tagem! E eu não tive outra saída a não ser me preparar para a próxima safra. Os esquilos foram os que mais apro-veitaram as castanhas da Xury.

Valdir abriu o portão, parei o carro perto da casa, desci e o cumprimentei:

- Tudo bem aqui, Valdir?

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Ele, sempre atencioso, veio me ajudar com os inevitáveis pacotes de compras e respondeu do seu jeito tranquilizador:

- Tudo. - Alguém ligou?- Só um seu João. - João?!- Ele disse que ligará outra vez, amanhã.- João do quê? – perguntei esperançosa de não ser

quem poderia me tirar do meu canto.- Seu João Oliveira. Anotei o telefone na agenda. Ele

disse que está em São Paulo.- Está bem. Obrigada. Entrei em casa com uma sensação esquisita. Parecia

que o meu lugar estava sendo invadido. Empurrei para longe as lembranças e chamei:

- Ilda, Ramon.Eles vieram receber meu carinho e me puxar para

longe das inquietações. Em seguida, fui dar comida para Bia e Bei. Valdir me perguntou:

- Quando a senhora chegou, buzinou muitas vezes?- Duas e depois desci e toquei o cincerro.Para fazer o papel de campainha, colocamos um antigo

cincerro no portão. Como tenho dificuldade de abri-lo, Val-dir o faz para mim. Com muita seriedade Valdir me disse:

- Bei achou que eu tava demorando e veio me bus-car. Parecia que queria dizer “ocê tá demorando, anda logo, vai abri o portão”.

Achei graça, Valdir chama os cachorros de meninos e, pelas brincadeiras dos dois, parece achar que Bei é um

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moleque. Temos os meninos e eu a maior confiança na integridade de Valdir. Ele é do bem.

- Até amanhã, Dona Mariana – disse se despedindo.Ele mora distante e foi complicado convencê-lo a

negociar uma velha moto que lhe financiei para que me pagasse em horas extras quando de minhas viagens. Este é o esquema que achamos para algumas despesas extras que aparecem, como a reforma de sua casa, as peças da moto e outras absolutamente necessárias.

- Até amanhã – respondi.Peguei um livro e me sentei na varanda, onde os ca-

chorros comem e passam a noite, vigilantes. Comecei a ler e logo desisti. Dei boa noite a eles, fui fazer meu lan-che e percebi que deveria responder a algumas perguntas. O que o aparecimento do João estava aprontando comi-go? Não queria ser perturbada porque não gostaria de vê-lo novamente ou, por comodismo, queria ficar quieta no meu canto? Quando comprei a chácara, logo iniciei um trabalho com a comunidade do entorno, pequenos olericultores. Tentei ajudar em sua organização, mas mi-nha ausência por mais de dois anos desestimulou-os e a associação não vingou. Quando me mudei para cá, trou-xe tanta mágoa e nenhum estímulo para qualquer socia-lização. Vim para meu retiro.

O telefone tocou, tirando-me das lembranças.- Sim?- Mariana? É o João.- Como vai?- Bem. Não consegui esperar até amanhã. Estou per-

turbando você neste horário?

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- O horário está tudo bem – saiu mais frio do que eu tinha a intenção.

- Fiquei torcendo para que você continuasse dor-mindo tarde.

- Continuo. Está de volta ao Brasil? Morando em São Paulo? – precisava perguntar alguma coisa e a vonta-de de brigar com ele já ameaçava chegar.

- Estou de volta e ainda sem saber se ficarei em São Paulo. E você? Gostaria muito de vê-la.

- Tudo bem. Podemos combinar um dia.- Tenho urgência – sua voz confirmava a pressa.- Algum problema? Posso ajudá-lo? – já conseguia

me dominar.- Acho que sim, mas preciso vê-la. Posso ir até aí?

Você está morando numa chácara?- Estou, mas receio que seja complicado para você

chegar até aqui.O que eu pretendia querendo adiar o encontro que

já sabia que iria acontecer? O que eu não sabia era o como, nem o quanto esse encontro mudaria, mais uma vez, os rumos de minha vida.

- Posso tentar. Já andei por maus caminhos – uma pausa, mas não aceitei a provocação. - Basta você me di-tar um mapa.

- Você me liga amanhã e a gente combina. Está bem?

- A que horas? – Perguntou, cuidadoso.- Estarei aqui. A qualquer hora.- Após as 11h?- Sim.

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- Boa noite.- Boa noite.

João e eu nos conhecemos numa palestra que Mar-cos, um amigo comum, deu na faculdade, onde eu entre-tinha meus alunos de filosofia. Nessa época eu já residia em São Paulo.

Marcos faz parte de uma pequena e tradicional fa-mília de portugueses. Seus pais viveram, durante muitos anos, em sua fazenda de café, no interior de São Paulo. Tiveram dois filhos: Marcos e Mirna. Ele sempre foi um charme só. Moreno claro, estatura mediana, peso compatí-vel, introspectivo, muito sério, sorriso difícil, porém largo e honesto, íntegro, exigentíssimo, sobretudo consigo, in-teligente, curioso intelectualmente, busca a racionalidade, mantendo a fé nos princípios do espiritismo, solidário e careta. Tem a convicção de que o descontrole é algo proibi-do. Fez engenharia sem completar o curso e se formou em economia que pratica com muita competência, atualidade e, às vezes, bastante desgosto. Faz parte de uma escola de planejadores apaixonados que não conseguiram transferir seus valores para a geração substituta. Tem uma estória in-teressante com Isa, com quem teve dois filhos. Pode existir, mas desconheço quem não o aprecie.

Após a palestra, fomos comer em uma cantina, em Santa Cecília. Marcos nos apresentou e, com um sorri-so, disse:

- Cuidado vocês dois. É claro que ficamos curiosos.– Por quê? – perguntamos ao mesmo tempo.

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- Vocês são tão parecidos que pode ser um perigo. Pode nascer um amor odioso ou um ódio amoroso.

João era, então, um homem bonito, por volta dos 39 anos, alto, moreno, com cabelos compridos, quase nos ombros, dando-lhe um ar de moleque descuidado, em contraste com a fisionomia meio sisuda, barba cerra-da, mas bem feita, nariz mais para grande, boca carnuda com dentes branquíssimos que só apareciam quando ele se permitia um sorriso. Vestia-se muito de acordo com seu tipo, elegantemente despretensioso.

Durante o jantar, João e eu percebemos que, de fato, tínhamos gostos bem semelhantes. Dividimos o mesmo vinho, a mesma massa, recusamos sobremesa e pedimos café sem açúcar.

No dia seguinte, minha agenda estava corridíssima e precisava passar por uma livraria para pegar uma enco-menda. Lá estava João, naquela seriedade que depois eu iria perceber ser sua marca, folheando Guimarães Rosa.

- Sagarana? - perguntei. - Morei numa rua com esse nome.

- Em Belo Horizonte? - É. - Perto da antiga faculdade de filosofia da UFMG?- É!- Morei na Rua Santo Antônio do Monte. No mes-

mo bairro. Já meio espantada, completei:- Uma rua acima. No Bairro Santo Antônio. Meus

pais moraram lá.- Fiz o curso de filosofia lá.

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- Eu também!Olhamos um para o outro, na dúvida se alguém

estaria brincando. Pensei: Marcos deve ter lhe contado sobre o meu curso e...

- Marcos – falou João – contou que estudei lá?- Não. Marcos nunca me falou de você. Por que será

se ele acha que somos tão parecidos? Desculpe-me, tenho um compromisso e me atrasarei se não sair agora. Tchau – falei, com uma pressa sincera.

- Você não acha que devemos conversar? – não me pareceu uma pergunta. Seu tom era mais de uma ordem e me olhava quase espantado, demonstrando uma dúvida ou era uma acusação?

- Acho, mas preciso sair, agora. - Quando você entrou na faculdade? – perguntou,

ignorando minha frase.- 1964. Um mês antes do golpe militar.- Eu me formei em 1964. Como não nos conhece-

mos? – ele também estava intrigado.- Fiz o primeiro ano na PUC. Um colega não conse-

guia continuar pagando a mensalidade, resolvemos, toda a grande classe de cinco alunos, pedir transferência para a Federal. Naquela época, ninguém fazia filosofia, ficamos com uma turma de nove.

- A minha era de quatro. Vamos sentar para to-mar um café e descobrir por que nos encontramos só agora depois de tantos quase? – mais uma vez não me pareceu ouvir uma interrogação e fiquei entre a curiosidade e a antipatia de um cara querendo tomar decisões por mim.

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- Também quero entender essa estória, mas preciso, pelo menos, telefonar para que não fiquem me esperando.

A curiosidade ganhara. Na verdade o charme de João contribuiu um bocado para eu me decidir. Telefo-nei e fomos para um bar onde ficamos conversando seis horas. Descobrimos que o que tínhamos em comum ia das preferências de comida e bebida até livros, músicas e valores. Rimos muito, pois o garçom não entendia que a cada pedido um começava a fazer e o outro completava. O clima foi mudando, a intimidade chegando. Como não poderia deixar de ser, fomos para um motel e fize-mos amor como se conhecêssemos o corpo do outro, as carícias prediletas, o ritmo, a sequência e a intensidade. Já quase não falávamos, pelo menos não com palavras orais. Ao final da manhã seguinte, sentíamos que a vida seria impossível sem o outro. Decidimos passar uma semana na casa de praia de uma amiga. Precisei, e ele também, de um dia para refazer minha agenda e, em alguns casos, op-tei por perder compromissos importantes. Depois soube que João fez o mesmo.

Fomos para o Litoral. Uma viagem que poderia ser de duas horas, gastamos quatro. Parávamos para nos olhar e de repente um perguntava:

- Você leu “Pergunte ao Pó”? - Jonh Fante? Faz bastante tempo e gostei muito.

Mas não gostei de “1933 foi um Ano Ruim” E você?- Também. Também.Ficamos numa casa em frente ao mar, com um pe-

queno jardim nas laterais e uma grande varanda mobilia-da apenas com redes. A casa era pequena com um quarto

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confortável, banheiro privativo todo em verde claríssimo. A sala era grande, dividida em dois ambientes, um ser-vindo para as refeições. A cozinha bem montada e práti-ca, porém pouco espaçosa. No quintal, além do tanque, apenas areia. Fora de temporada, ninguém à vista, éramos donos do mundo, seus únicos habitantes.

A semana passou como o tempo invejoso passa para os amantes. Na última noite, depois do amor, João me disse, bem baixinho, no ouvido, todo o poema Le Lac, de Lamartine, repetindo os versos em que o poeta pede para o tempo correr apenas para os infelizes, esquecendo-se dos amantes. A angústia que sentimos ao deixar a praia foi bem compartilhada até que percebemos que podía-mos continuar nossa vida juntos. Ele se mostrou sensível, companheiro, preocupado com as injustiças sociais, com os mesmos problemas filosóficos que me perturbavam, solidário, de difícil riso. Depois de dois dias, mal havia visto um arremedo de sorriso, eu estava à beira do fogão, com o propósito bastante firme de fazer um senhor café da manhã, pois no dia anterior fora surpreendida, ainda na cama, com uma bandeja cheia de delícias. A água es-tava quase fervendo, pus o café no coador sobre a garrafa térmica e, ao despejar a água no pó, com a outra mão, esbarrei no coador que caiu, derrubando a garrafa. Ao tentar socorrê-la, virou sujando toda a mesa que estava maravilhosamente bem posta.

- Puta merda! – gritei ao mesmo tempo em que ouvia uma gostosíssima gargalhada! João estava me observan-do, junto à porta. De imediato, não fui capaz de esconder minha raiva e frustração. Num gesto automático passei a

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mão pelo rosto sem me lembrar de que, na tentativa do salvamento, havia limpado o pó que caíra na mesa com a mão. João que tinha se controlado ao me ver furiosa, olhou para mim e deu outra risada, gaguejando:

- O-lhe, o-lhe no es-pe-lho, Olhe no espelho! A porta do micro-ondas me mostrou um rosto co-

micamente pintado de preto. Também comecei a rir, en-quanto o abraçava e roçava o rosto no dele. Acabamos os dois debaixo do chuveiro, ficando à mostra minhas inabilidades culinárias.

Tivemos alguns problemas para acertar com outras pessoas, mas em três dias João estava morando em mi-nha casa, apesar de os dois sempre termos evitado divi-dir uma morada. A grande dificuldade estava na divisão das tarefas. Detestávamos as mesmas coisas e tínhamos facilidades iguais, embora eu tenha tentado tirar provei-to daquela deliciosa bandeja, dizendo-lhe o quanto ele era mais habilidoso que eu na cozinha. Depois de muita procura para a solução, decidimos arrumar uma empre-gada que desse conta do recado. Realmente foi uma óti-ma ideia. Não queríamos ninguém para nos perturbar e Dona Lourdes foi discretíssima.

Vivemos uma paixão intensa, que foi ficando con-fortável, sem mistérios. Passamos a nos preocupar mais um com o outro e uma aliança solidária foi crescendo. Poderíamos ter sido grandes amigos. Sabíamos todas as reações do outro – acho que devo dizer quase todas – o que acabou por levar a relação para o caminho da mono-tonia. A cumplicidade de amantes se modificou e, numa

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noite, percebi que queria sair sem o João. Já me habitua-ra a seu conhecimento de mim por isto, quando lhe disse que iria ao teatro ver a peça de um amigo, tive um grande susto com sua reação quase violenta.

- Você vai se encontrar com alguém? - João me per-guntou com um olhar severo, um tom duro.

- Não. Vou sozinha. Depois vou jantar com o Milo e, provavelmente, mais alguns atores do elenco – tentei ignorar o anúncio da tempestade.

- Você está tendo um caso com esse Milo?- João! Ficou louco? Milo é meu amigo há nem sei

quanto tempo!- E daí? Isto não significa nada.- João, o que está acontecendo? É claro que se eu

estivesse tendo um caso você seria o primeiro a saber. Não combinamos que seremos sempre leais?

- Esta fala é minha. Eu é que pergunto o que está acontecendo com você?

- Apenas quero ir ao teatro sozinha e depois jantar com um amigo. Até parece que você está com necessida-de de desviar minha atenção! O que há?

- Faz dois anos que estamos juntos e agora você me vem com esta!

Fui me vestir, sem conseguir escolher uma roupa, me troquei duas vezes, acabando por optar por um vesti-do de seda amarelo com complementos pretos e um colar de pedras. Tive certa dificuldade com o que me pareceu uma reação inexplicável do meu companheiro. Saí sem que ele se acalmasse. Virou o rosto quando tentei beijá-lo. Ainda quis brincar e ele se fechou no banheiro.

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Chegando ao teatro, me concentrei na peça. Depois fomos jantar e, como fazia um bocado de tempo que não via Milo, foi muito gostoso pôr a conversa em dia. Quan-do abri a porta de casa, me lembrei da cena antes de mi-nha saída e fiquei entre curiosa e divertida. João parecia uma criança ou... (lembrei-me de sua mãe contando que quando fazia algo errado ele colocava defeito em alguma coisa dela). João não estava, nem sequer havia deixado um bilhete. Quando me deitei eram quatro horas. Uma ponta de preocupação não me deixou apagar a luz. Peguei um livro que li até as seis quando ele chegou.

- O que aconteceu?- Nada – respondeu com uma careta de mau humor

e um olhar esquivo, desconhecido de mim.Após uma semana, descobri que ele estava tendo um

caso com a mulher de um amigo. João negou. Passei a me sentir estranha, pois tinha certeza de que havia o caso amoroso e ele negava. Como para mim não havia motivo para mentiras, imaginei que o problema estava comigo e cheguei a comentar com o Marcos:

- Vou voltar para a terapia.- Por quê? Você não está bem?- Imagine você que não sei o que acontece com a mi-

nha cabeça. Estou inventando coisas que acabo achando muito concretas. Agora, tenho certeza de que não só João está tendo um caso, como “sei” que é com a Regina, mu-lher do Paulo Camargo – Marcos, sempre muito discreto, não conseguiu esconder seu espanto e me pareceu uma certa raiva ao me perguntar:

- E por que você acha que está inventando?

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- Porque João me disse que não tem caso nenhum. Temos uma relação de lealdade e não de fidelidade.

- Você de fato conversou com ele nesse sentido? – Marcos insistiu.

- Claro, mais de duas vezes.- Ah! Isto é sacanagem do João! Eles estão tendo um

caso sim.Daí, entendi a raiva que era do João. Marcos, na sua

honestidade, não aprovava a deslealdade e menos ainda a mentira.

- Paulo sabe? – Perguntei como se isto modificasse a situação, o meu sofrimento.

- Todo mundo sabe. Só você que não. Nem sempre as palavras ditas exprimem a verdade. Um dia você vai aprender isto, espero!

Marcos sabia o quanto esse comportamento do meu companheiro me mortificava, mas também me achava demasiadamente confiante, sofria comigo.

- Obrigada, amigo. Fiz algumas economias, não só de grana! É uma pena, não precisava ser tão feia essa separação.

Tomei a decisão sem consultar nenhuma parte de mim, mas era irrevogável. O caso não era importante, mas a mentira, o esconder eram imperdoáveis.

Estávamos na sala de casa. Marcos me deu um beijo, perguntou se eu estava bem, se queria que ficasse comigo até João chegar. Eu lhe assegurei que estava bem e que preferia ficar só. Não conseguia entender o porquê da mentira, conseguia entender o caso dele, o final do nosso, mas a mentira! Estava me separando do meu companhei-ro e justo ele tão parecido comigo lá vem com algo tão

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diferente, tão inexplicável. O companheirismo murchou. Eu também, mas precisava agir. Não tinha tempo para lágrimas por quem não as merecia.

Escrevi um bilhete para o João: Nossas semelhanças não chegam à ética. Estarei fora da casa até às 23h, quan-do você deverá não estar mais. Se precisar de mais tempo para arrumar as malas, volte amanhã no período de 10 às 18hs. Por favor, não se esqueça de deixar as chaves. Ele entenderia o irrevogável.

Acabava de tomar meu lanche quando novamente o telefone tocou.

- Sim?- Mariana, é Jaime. Teresa e eu estamos aqui, no seu

portão.- Aqui?! Na Chácara? – fiquei, é claro, surpresa, qua-

se assustada.- É._ Bem, vocês vão ter que esperar eu colocar os ca-

chorros no canil e subir para abrir o portão.- Tudo bem. Fique tranquila e nos perdoe a incon-

veniência – disse Jaime, numa voz de quem está bem des-confortável.

Depois da pequena confusão dos cachorros que se sentiam injuriados, sobretudo à noite, quando presos, meus amigos puderam entrar com o carro e me deram carona até a casa.

- Desculpe-nos, Mariana, por vir sem avisar.- Tudo bem, Teresa, só espero que seja uma visita e

que tudo esteja bem com vocês. Entrem, sentem. Acabei

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de tomar um lanche. Vocês querem comer alguma coisa? Um chá com pão, queijo...?

Estávamos na sala, mobiliada com uma cadeira de balanço fazendo conjunto com a namoradeira de sucupi-ra e uma rede vermelha cheia de almofadas. Nas paredes, quase vazias, apenas duas xilogravuras de artistas minei-ras. A cozinha era ligada à sala por uma abertura enqua-drada por madeiras escuras, como as portas, uma para o jardim, outra para a varanda, a terceira para o banheiro social e a última para um pequeno quarto. No segundo ambiente da sala, havia um sofá-cama marrom e laranja sobre o qual se via um panô peruano das mesmas cores. Fotos de amigos e da família estavam espalhadas por me-sinhas, cobertas por mantas com longas franjas.

- Chá está ótimo – Teresa respondeu.- Um momento, vou apanhar algumas folhas de me-

lissa e hortelã. Ou preferem outra coisa?- Chá de melissa, maravilha! Estamos precisando

relaxar um pouco. Completou Jaime, muito simpático, como sempre. Em seguida, Teresa, precisando fazer algu-ma coisa, enquanto esperava o chá, perguntou:

- Posso pôr uma musiquinha? - Claro. Fique à vontade. Os discos, você sabe, estão

na caixa de madeira ao lado do som – eu disse já a cami-nho do canteirinho das ervas.

Teresa é agrônoma, dedica-se a pesquisas ligadas à agricultura familiar, e Jaime, jornalista ligado à arte, es-pecialmente ao cinema e teatro. Estão juntos há bastan-te tempo e têm um filho, Estácio que, apesar de já ter se

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casado, continua tendo dos pais a mesma dedicação que teve – e foi muita – na infância. Ela é uma pessoa cheia de vida, passa sempre uma energia boa. Não é bonita, mas chega a ser charmosa pela simpatia e inteligência. Devia estar na faixa dos cinquenta anos bem vividos. Jaime também estava com a mesma idade, é divertido e possui uma comovente delicadeza de postura frente aos sentimentos alheios. Isto, às vezes, e injustamente, me deixava com certa reserva, na dúvida quanto a sua transparência. Formam um casal meio diferente. Ela toda agitada, bem alta e magra, cabelo curto, grisalho, usa roupas largas, despojadas, gosta de colares compri-dos. Ele calmo, baixo, quase gordo, loiro, suas roupas são impecáveis. Odeia terno e gravata, porém está sem-pre com um colete de dois bolsos, onde aparecem uma caneta e uma lapiseira.

Depois que servi o chá, perguntei:- Parece que vocês vieram por algum motivo meio

preocupante. O que é?- O João chegou ontem.- Ele me ligou – falei apressada e Jaime se mostrou

bastante surpreso: - Já? Há quanto tempo vocês não se veem?- Muito tempo, mas não gostaria de continuar com

esse assunto – minha voz saiu bem antipática. - Está certo. Não queremos incomodá-la. A ideia de

falar com você foi do Marcos. Você sabe que nosso filho, Estácio, se casou com a neta do João?

- Não. Nem sabia que ele tinha netos, aliás, nem filhos – tentei dominar minha impaciência.

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- Bem, parece que ele soube da filha quando retor-nou à Europa, após a separação de vocês. A versão dele é que se encontrara numa noite em Montmartre com uma garota e passaram a noite juntos. Ele voltou ao Brasil e não soube mais nada dela até retornar, quando foi pro-curado por ela, uma pintora, que lhe explicou que na tal noite quis engravidar e o escolhera exatamente porque ele estava saindo da França e, com certeza, não se veriam mais. Queria um filho, mas não um marido.

Enquanto Teresa falava, Jaime se mostrou incomo-dado e, na primeira oportunidade, cortou a esposa:

- Os detalhes depois ele lhe conta.- Sim, é claro - Teresa anuiu e continuou -, mas o

que houve é que ele ficou louco da vida por ter sido usa-do e disse que queria ver o filho. A pintora explicou que era filha e estava cobrando da mãe o conhecimento do pai. Ela conseguiu, enfim, achá-lo por um artigo publi-cado em uma revista de cinema.

- Teresa, me desculpe, não tenho muito interesse nessa estória e não estou entendendo porque estamos fa-lando sobre isto – eu já não queria ouvir mais nada.

- Claro, Mariana. Estamos invadindo suas lembran-ças... – olhando para o marido, ela completou: - Se João já ligou para a Mariana, talvez seja melhor irmos embora e deixar que ele a procure.

- Está certo, você tem razão. Estamos muito ansio-sos, com receio de João não lhe pedir ajuda.

- Ajuda? João está em alguma situação ruim? Lá vou eu de novo, pensei.- Sim – fez Teresa apressada, querendo continuar.

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- Então, vamos lá, me digam do que se trata. No que posso ajudar? – perguntei e Jaime achou melhor tomar a palavra. Os dois estavam bastante apreensivos, mas ela não parava quieta, mexia as mãos, levantava-se, trocava o disco, antes de seu término.

- Vou tentar ser o mais objetivo possível. A filha do João teve uma filha, nossa nora. Ela está com uma doença que precisa ser tratada em uma clínica que exige uma condição...

- Que você pode ajudar o João a obtê-la – foi a vez de Teresa completar, demonstrando uma ansiedade in-controlada.

- Como?!- Na realidade, nos adiantamos sem razão. De um lado,

o sofrimento do Estácio tem nos deixado tensos e tristes, e de outro, não sabíamos se você sequer ouviria o João...

- Então, vimos - novamente, Teresa atropelou o ma-rido, deixando-me um pouco aflita -, lhe pedir para aju-dar nosso filho.

- Se, de fato, e não tenho a mínima noção de como seria, posso ajudar em algo, é claro que o farei. Não quero pôr o carro na frente dos bois – como se diz em minha terra -, mas acho que deveriam me dizer logo o que posso fazer.

- Aqui paramos nós. O João disse que veio ao Brasil para lhe pedir que o ajude a conseguir o tal tratamento. É só o que sabemos. Agora temos de esperar pelo João.

- Estácio e... qual é o nome de sua nora? –perguntei.- Elisabete.- Eles estão no Brasil?

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- Sim. Moram em São Paulo, na Pompéia. Estão muito assustados. Ela está grávida e somente após os exa-mes que serão feitos na tal clínica...

- Jaime, parece que não é uma clínica – Teresa corrigiu.- É um Instituto de pesquisas, acho que foi o que

ouvi o Estácio falando. O médico poderá avaliar as con-sequências para a gravidez só depois. São tão jovens!

- É muito angustiante, mas, como você disse, são tão jovens! Vão aguentar firmes.

E você, Teresa? Terminou a pesquisa com a agricul-tura familiar? – com grande alívio me pareceu que pode-ria mudar o rumo da conversa.

- A primeira etapa. Estou pleiteando uma bolsa para continuar.

Embora respondendo, Teresa, ao contrário de mim, estava com a cabeça no assunto anterior

- Boa sorte. Jaime, você continua no jornal? Nossa! Faz tempo que a gente não se vê, heim?

- Eu continuo no jornal. Estou como editor de artes – Jaime também não conseguia esconder sua indisponi-bilidade para qualquer outro tema.

- Que bom! O jornal saiu lucrando por vocês fica-rem em São Paulo.

Logo eles se foram me deixando angustiada e per-plexa. O que será?

Quando cheguei, vi João sentado à uma mesa perto de um grande aquário. Havia envelhecido sem perder o charme. Parecia cansado, sem brilho e quase sem motiva-ção, mas continuava se vestindo com aquele gosto impe-

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cável e despretensioso. Eu acertara ao me vestir com mais cuidado; vaidosa, não queria parecer muito mais velha. Nosso olhar foi de ternura, em seguida, alívio. Logo que me sentei, ele falou:

- Será que terei de lhe perguntar qual o vinho ou posso pedir um bom Cabernet?

- Você esteve fora alguns anos. Vou lhe dar uma boa notícia: já temos bons vinhos nacionais – consegui lhe oferecer meu sorriso que não foi correspondido, mas, para compensar, João pegou minha mão, acariciou-a, beijou-a e só então disse:

- Quer, então, pedir? Vou me iniciando na produção nacional em boas mãos. Você pede o vinho e permite que eu escolha a comida. Confia?

- Plenamente – pelo menos para escolher comida, pensei, e imediatamente percebi minha maldade.

Após o garçom nos servir um Cabernet de Bento Gonçalves, plenamente aprovado, falei:

- João, ontem, à noite Teresa e Jaime estiveram na chácara.

- Na sua casa?- Sim. Pode ser melhor esclarecermos se poderei aju-

dá-lo antes de mais nada. Depois matamos nossa curiosi-dade quanto ao outro.

- É. Preciso de sua ajuda para localizar um livro. Pri-meiro quero muito saber de você. Está morando numa chácara, definitivamente?

- O que você quer dizer com definitivamente?! Até a morte? – ele riu, enquanto o reconhecimento chegava quase gostoso.

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- Que bom! Você está tão você! Quero beijá-la!- João! Por favor, eu diria que você sempre foi muito

cavalheiro! Eu perguntei se o definitivamente era até a morte? – ele ficou sério e eu me arrependi da repressão, acabava de perder aquele precioso sorriso.

- Não necessariamente – respondeu. - Na sua cabe-ça, foi uma mudança para ficar?

- Ah! Sim! A Chácara Xury é o meu lugar.- Opa! É mesmo! Seus olhos parecem falar de um

amante!- A terra é uma amante exigentíssima! Sedutora! Sá-

bia e compensadora. Que livro você quer localizar e por que eu poderia ajudá-lo?

- Acho que nunca vou conseguir falar a vontade de nos-sa separação. - falou entre encabulado e irônico ou provocan-te. Parecia querer testar se ainda viria alguma tempestade.

- João, até onde sei sua neta está com um proble-ma de saúde...

- Nem sei se problema é o nome, acho que é mais que isto. Ela pode morrer se não houver o tratamento e este só é garantido em um único lugar.

- Que lugar é esse? E o que podemos fazer?- Complicado.- Complicado, trabalhoso, mas estou entendendo

que existe uma saída – falei já impaciente. Todos os mis-térios iriam aparecer depois de tantos anos?!

- Uma única. Bem, vamos lá. Vou tentar lhe expli-car. Antes de nos conhecer fui correspondente de uma revista de cinema lá na França. Eu havia conseguido uma bolsa para o meu doutorado e fiquei conhecendo

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um grupo de jovens pesquisadores também bolsistas da mesma instituição. Fiquei muito amigo de dois deles. Quando tive uma dificuldade para arrumar uma mora-dia por ter de entregar a que eu alugara por três meses, eles me convidaram para ficar na vaga de um deles que iria passar um ano na Alemanha. Fiquei no apartamento com eles até voltar para o Brasil, quatro anos. O rapaz voltou da Alemanha, indo para outro apartamento. Che-gou com uma proposta para montarem um Instituto de pesquisa na área de seu doutorado. Todos eles pesquisa-vam na mesma área, com teses e pesquisas complemen-tares e seus orientadores eram do mesmo departamento que estimulou bastante esses jovens na tarefa da criação do Instituto. Um dos professores, entusiasmado com a possibilidade de chegarem a um resultado positivo, trazendo grandes benefícios, como a cura para algumas doenças, se dispôs a sair com eles numa campanha de arrecadação de fundos. Alguém deu a ideia de criar um livro de sócios beneméritos. Quem fizesse uma doação, ficaria inscrito e poderia, no futuro, utilizar o Instituto caso necessitasse e as pesquisas obtivessem os resulta-dos esperados. Como não se tratava, isto é, não se trata de um hospital, não há tratamentos de doentes. Seus resultados são repassados a entidades – laboratórios in-dustriais, hospitais e clínicas especializadas - com quem mantêm convênios. Quando soube da doença de minha neta, eu estava em Paris e contei para os meus amigos, aqueles, então, jovens pesquisadores que continuam com o Instituto, hoje um grande centro de pesquisas. Eles se lembraram do tal livro, que na realidade era um

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caderno de capa vermelha, e de que eu era um SB (sócio benemérito). Depois de algum tempo, os resultados das pesquisas foram bastante positivos e muitos são os con-vênios que, atualmente, bancam seus trabalhos, além do fato de meus amigos terem se tornado famosos por suas descobertas. A minha doação foi mais simbólica do que real. Daí, fiquei meio constrangido quando lembraram da tal doação, mas o fato de eu ter dado uma grande ajuda no processo de sensibilização de muita gente boa foi também logo lembrado. Abriu uma esperança para minha neta, pois nesse Instituto descobriram um trata-mento capaz de curá-la. A pesquisa ainda está nos testes finais, mas já podem aplicar o tratamento com a auto-rização do doente. Se formos esperar as vias normais, Elisabete não sobreviverá. Preciso, agora, de provar que sou um SB do Instituto. Haveria duas formas: o registro no livro ou o certificado de SB. Quando foram procurar o caderno de capa vermelha, ninguém se lembrava dele e não conseguiram achar. O Instituto passou por várias mudanças e todos teriam jurado que o caderno estaria na biblioteca, no entanto, a bibliotecária nunca sequer ouviu falar nisso. Então, resta o certificado que deixei dentro de um livro na sua casa.

- Caraca! Depois de todos esses anos! Você, por aca-so, se lembra de que livro estamos falando?

- Com certeza, porque o autor é um ex-colega do meu curso de filosofia na UFMG.

- Luiz Vilela?- Isto aí.- E o título?

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- Aí já não tenho tanta certeza, mas o livro era seu e eu não havia lido ainda quando o encontrei na sua estante.

- Vamos fazer um belo exercício de memória. Acho que não tive mais que três livros do Luiz Vilela. Lindas Pernas?

- Não. Não era de contos, mas um romance.- Melhorou muito. O Inferno é aqui mesmo ou Os

Novos – perguntei esperançosa.- É isto aí: O Inferno ... – os olhos do João quase sal-

taram, acompanhando suas pernas no pulo que ele dele.- Calma. Agora, vamos ao problema seguinte. Ad-

quiri algumas alergias e uma delas é por poeira. A poeira guardada dos livros é a pior. Resolvi me desfazer de todos os livros que posso encontrar facilmente em bibliotecas. Ficção tem sido assim: se compro, leio e passo para fren-te, sem devolução. Então, não sei onde está O Inferno do Luiz - João ficou ainda mais macambúzio e eu já me enterneci. Tenho que ter cuidado.

- Você vê alguma possibilidade de achar? - ele per-guntou, com um raio de esperança no olhar.

- Vou tentar me lembrar das pessoas para quem an-dei passando os romances. Farei uma lista. Como é esse certificado? Algum papel diferente?

- Não. É papel branco, comum, tamanho A4, do-brado ao meio. Não me lembro direito e ninguém dos conhecidos se lembrava de onde havia guardado o seu. Ninguém, até agora, fez uso dos direitos de SB.

- João, vamos achar - afirmei com uma convicção destinada a me convencer.

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- Agora, preciso ir, ainda tenho mais de 60 km pela frente – sabia que estava mais do que na hora de me afas-tar daquele homem.

- Você vai agora para a chácara?- É lá onde moro.- Quer companhia?- Agora não – respondi com total honestidade.

Enquanto me concentrava em elaborar uma lista das pessoas destinatárias dos livros que passei adiante, Estácio tentava se preparar financeiramente para a viagem a Paris. Havia se formado há cinco anos na Faculdade de Direito São Francisco, o que o ajudou a ser aceito em um procurado escritório de advocacia. Passou a trabalhar 10 horas por dia e ainda levava para casa trabalho dos colegas, ganhando uma parte da percentagem deles. Elisabete estava bem, o único sintoma foi a perda de peso, mas levava sua vida aparente-mente normal. Os dois queriam muito o filho e o médico que a assistia não conseguiu dar um parecer que lhes trou-xesse um pouco de tranquilidade. Tereza, preocupada com o casal, procurou sua amiga Marta, uma psicodramatista. Contou a situação toda e recebeu a indicação de uma psicó-loga que poderia atendê-los individualmente ou como casal. A dificuldade foi para convencer seu filho, mas o argumento de que ajudaria Elisabete a enfrentar o tratamento o conven-ceu. Elisabete ficou preocupada com mais uma despesa. Ela já imaginou o marido varando noites no trabalho, aí entrou o Jaime fazendo questão de arcar com essa conta. Com o apoio psicológico, a família ficou um pouco mais tranquila para as tarefas concretas rumo ao tratamento.

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Jaime me telefonou, contando como estavam evo-luindo os preparativos para a viagem e delicadamente me fez ver o quanto estavam aflitos, na dependência de minhas ações. Precisava localizar uma pessoa, um livro e um papel e sequer sabia a quem procurava. Minha lista estava no número 40. Jaime sugeriu que eu a dividisse em três, passando uma para ele, outra à esposa e a terceira ao João. Distribui 10 nomes para cada e me incluí. No dia seguinte, as listas haviam se esgotado e O Inferno não apareceu. Um tio da Elisabete, quando soube o título do livro, mostrou-se bastante supersticioso, escrevendo uma carta que Estácio censurou, rasgou e não permitiu que Elisabete tomasse conhecimento. Ele próprio se amargu-rou e, nesse estado de ânimo, me ligou perguntando da busca. Ao lhe informar que estava terminando a tercei-ra lista, pude sentir seu desespero me contaminando. A pressão estava ficando insuportável e imaginei o quanto aquelas pessoas estavam sofrendo.

- Mariana, o Jaime não conseguiu falar com uma pessoa da segunda lista, chamada Bernardo Viana – Tere-sa me diz, ao telefone. - As suas dicas de localização não funcionaram, mas no antigo endereço que você deu, uma vizinha se lembrou de um amigo do Bernardo. Jaime foi, então, procurá-lo e acabou conseguindo seu telefone. Acabamos de localizá-lo, manda-lhe um beijo. Foi para ele que você deu o livro.

- Viva! E o livro ainda está com o papel?- Ele não está mais com o livro – a voz dela saiu lon-

ge, rouca, quase engasgada. - Caraca!

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- Ele vai começar a fazer o que você fez, listas.- Você tem o telefone do Bernardo?- Sim. Por sorte é daqui de São Paulo. - Estarei aí daqui umas três horas – comecei a passar

mentalmente minhas tarefas antes de sair da chácara. - João quer falar com você.- Oi, Mariana.- Boa tarde, João – Detestei meu tom. Idiotamen-

te continuo tratando João como em minhas fantasias de muitos anos atrás.

- Estou hospedado na casa do Marcos. Você não quer ir direto para lá?

- Tudo bem. João... - Hum...- Pense que a primeira etapa foi vencida. Daqui a

pouco estarei com você – Amenizei o meu boa tarde. Quase ouço seu pensamento e quase pergunto se ele es-tava sorrindo. Nessa situação, Mariana?! Você é mesmo uma grande presunçosa! Ele não diria isto para mim, mas eu acabava de lhe dar este direito.

Quando cheguei, outra notícia preocupante. Mar-cos me avisou que João havia acabado de ligar do hospital para onde foram levar Elisabete, com um sangramento.

- E o telefone do Bernardo? – quis logo saber.- Está anotado ali, ao lado do aparelho. Fique à von-

tade e depois me diga como posso ajudar – olhei para Marcos e lhe agradeci com um olhar por estar ali tão dis-ponível, como sempre que preciso.

A casa de Marcos era igual a ele: simples, limpíssima, prática e charmosa. Como era nosso costume, estávamos

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à mesa da ampla cozinha, encostada a um enorme vitrô que dava para o quintal-jardim. Liguei para Bernardo e lhe contei como havíamos chegado até ele. Sugeri que viesse se encontrar comigo para juntos listarmos as possi-bilidades. Desliguei e lá estava meu amigo:

- Um vinho ou um chá? Não tenho suas ervinhas, diga que prefere o vinho para que eu possa me esnobar – Marcos disse isto com seu sorriso charmoso.

- Hum! Isto quer dizer algo especial? Então vamos ao vinho. Aliás, chá só mesmo na Xury, pois vocês não cultivam as boas ervas.

- Essas suas frases de sentido duplo continuam iguais às do João.

- Sabe, Marcos, apesar das circunstâncias, foi bom revê-lo. Ainda não conversamos sobre nós, mas acho que João pode ser um amigo de muitas ferramentas.

- Ferramentas?! Anh!- Quando nos separamos, do meu lado havia a má-

goa, sobretudo pela mentira e pela perplexidade. Acho que houve burrice da parte dele. A tendência era mudar-mos os vínculos.

- Falei logo que vocês dois não iriam dar certo. - Acho que você errou. Foi muito bom e poderia ter

continuado numa confortável amizade. Tínhamos tudo para uma cumplicidade honesta. Sabe, ainda tenho espe-rança de que ele consiga me explicar.

- Explicar o que, Mariana? – lembrei-me da expres-são de Marcos no dia em que me contou sobre João e Re-gina. Era uma raiva por eu permitir ser ferida, acreditan-do demais nas pessoas e ele, confirmando, continuou:

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- Quer retomar a relação, retome, mas tenha a pa-ciência, aprenda! É cultural. O homem da nossa geração é um pobre sem companheira. As jovenzinhas – estou falando da época da separação de vocês – tinham corpo e ainda quase nada na cabeça e procurávamos amantes, não filhas. As mulheres de nossa geração são independentes, batalharam muito pela liberdade.

- Em todos os sentidos e níveis – completei.- Sim. Deixaram os homens para trás. Enquanto nós

corríamos para alcançá-las, éramos tratados sem nenhu-ma piedade.

- Piedade!? Marcos!- Compreensão, então. O que quero dizer é que vo-

cês, ao obterem sua liberdade, não quiseram nem saber que nós, os bobos, não estávamos preparados para lidar com essa mulher-total. Daí não conseguir a honestidade que vocês exigiam, exigem.

- Necessidade de mentir, de esconder, de mascarar? Acho que esse homem se achava feio e queria ser belo. Está aí o preconceito, acreditar que para o homem a in-fidelidade é permitida desde que a mulher não saiba. E o que é fidelidade? É não ir pra cama com outra? Desejar, querer, fantasiar pode? Fidelidade é para com seus senti-mentos, suas crenças e convicções. Para com os outros o importante é a lealdade, a honestidade, a transparência. E aquela esnobação? – cobrei.

Ele se levantou dizendo:- Vou buscar o vinho. Estou guardando para to-

marmos juntos. Adoro ver sua cara quando gosta de um vinho.

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Degustávamos o vinho, que era tudo o que se espe-ra de um Bordeaux, quando Bernardo se juntou a nós. Marcos perguntou-nos se queríamos ir para seu escritório, montado num quarto ao lado. Logo respondi que, naquela casa, sempre iria preferir a cozinha. Bernardo, que até já se sentara a meu lado e lançava um olhar pidão à minha taça de vinho, concordou incontinente. Assim, começamos a montar as listas e já estávamos fechando a primeira sem qualquer notícia de Elisabete. Começamos pelas pessoas que o Marcos, Bernardo e/ou eu conhecíamos. Essa loca-lização foi bem fácil, mas nada sabiam do livro. Bernardo deixou a lista conosco e foi embora, colocando-se à dis-posição para o caso de necessitarmos de mais dicas para a localização das pessoas que não conhecemos. Ele estava se preparando para um Congresso na Holanda.

Enfim, João chegou trazendo notícias da neta: havia sido liberada e passava bem, a gravidez ainda era uma esperança.

- João, pode ser que ainda tenha um cálice de vinho e veja a garrafa.

- Hum! É especial! – Marcos e eu começamos a rir.- Posso abrir outra garrafa de outro vinho. Esta eu

guardei para tomar com a Mariana e não tenho mais dele.- Se posso tomar o que ainda está aqui – disse mos-

trando a garrafa – pra mim é o bastante. Estou exausto e preciso dormir. Mariana, você não vai para a estrada, não é? – João olhou-me com uma ternura comovente, sobre-tudo porque seu cansaço era óbvio.

- Acho que ficarei, pois amanhã devemos continuar logo cedo.

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- Você pode dormir no quarto, onde João está e ele dor-me no sofá no meu quarto – Marcos apressou-se a dizer.

- Por mim, tudo bem, mas prefiro dormir no sofá da sala.

- Será que eu ronco? – perguntou Marcos.- Ando muito tenso. Vou ouvir música e tentar relaxar.- Então, vou aceitar e dormir na cama do João -

concordei.- Quer companhia? – João me olhou sorrindo e pen-

sei que fosse pedir uma massagem.- Ainda não – respondi, percebendo que era a segun-

da vez que eu lhe dizia um ainda.- Tudo bem, vocês dois têm mesmo frases ricas em

sentidos.João veio até mim, quis dar um sorriso e me acari-

ciou o rosto:- Obrigado. Morena.Fechei os olhos e sorri. Marcos que havia interrom-

pido algo que começara a falar, esperou mais um segundo e, então, disse:

- Mariana, veja lá se precisa de alguma coisa. - Gostaria de um banho. Preciso de toalhas – Mar-

cos sempre atencioso:- Estão sobre a cama.Eu já conhecia o quarto muito aconchegante, com

um pequeno banheiro. O único problema era o barulho, ou melhor, os meus ouvidos que eram acostumados ao silêncio da Xury, onde apenas se ouvem os passarinhos e, muito de vez em quando, os latidos da Bia.

- Obrigada. Boa noite.

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Fui para o meu banho. Estava exausta e preocupada por não ter ligado para a casa. Quando me lembrei, o tempo havia passado e não quis tirar Valdir do seu con-forto. Lá ainda é mais frio que em São Paulo. Quando não estou, ele fica na chácara e dorme na casinha, onde faz seu café e almoço. O telefone tem uma campainha do lado de fora da casa, mas para ele chegar ao aparelho são uns 300 metros. Tenho a pretensão de achar que meus bichinhos sentem a minha falta e fico preocupada.

João e Marcos continuaram conversando. - A minha filha, Irina, mãe de Elisabete – João co-

meçou a contar - decidiu ficar em Paris para tomar as providências necessárias ao tratamento e à estada do ca-sal, mas o pai chega amanhã.

- Como é o seu relacionamento com ele?- Genro e sogro. - Você não gosta dele?- É claro que eu preferia que minha filha viesse, mas

ela é mais prática e quer cuidar para que Elisabete seja bem recebida. Você soube da carta do tio que o Estácio não deixou, com razão, a minha neta ver? Os dois irmãos são iguais, trágicos, supersticiosos. Parecem não querer que as coisas aconteçam no sentido positivo, mas Charles é muito dedicado à filha e tem seus problemas com Irina. É mais um trabalho contrabalançar esse pessimismo. Há, ainda, os pais do Estácio fazendo pressão sobre a Mariana.

- Fique tranquilo. Mariana não absorve pressões. Tem know how, além disto os três se conhecem há muito e se entendem. Acho é que você e Mariana

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precisam arrumar tempo e disposição para a conversa que não tiveram.

- Ela não quis.- Cara, nada de culpas ou não vão conseguir e será

uma pena.- Ela é a mulher da minha vida.- Não é isto que ela acha – Marcos percebeu que

havia se excedido.- Não perdoou minha traição?- Está ficando difícil essa tal conversa. Você não en-

tendeu ainda o que Mariana não perdoou.- O quê?- Pergunte a ela. Lembra da teoria daquele psiquia-

tra? Os semelhantes se atraem numa idade e os não-pare-cidos em outra?

- Flávio Gikovate? O que tem a teoria dele conosco?- A conversa não é comigo. Agora vamos, pelo me-

nos, descansar para a próxima. Boa noite.- Boa noite.No dia seguinte, pude ficar ao telefone na tentativa

de localizar a pessoa e o livro até às 11 horas, quando peguei a estrada para a chácara. Deixei a lista com o João que iria repassá-la aos amigos de Estácio e Elisabete. Ela e João foram buscar o Senhor Pessimismo no Aeroporto, em Guarulhos.

Na Chácara, Valdir estava abrindo o portão para eu entrar quando vi, a uns 100 metros, um rapaz descendo a estrada. Gritei:

-Cuidado! – Valdir não entendeu e os cachorros saí-ram e foram para atacar o desavisado jovem.

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- Bei! Bia! – berrei, enquanto Valdir corria para segurá-los. Os cachorros atenderam e entraram atrás da Preta. O pobre rapaz se sentou no chão, Valdir estava descolorido e eu tive dificuldade de manter meus joelhos separados, pois tremiam tanto que precisei parar o carro e dar um tempo para depois guardá-lo.

- Dona Mariana! Que susto! - Pois é! Temos as correntes já fixadas nas árvores

perto do portão para prendê-los. Como quase nunca há alguém passando, ficamos descuidados.

- Ainda bem que eles me atenderam. Essa mania do Bei com pneu acabou ajudando. A senhora tocou o carro e ele voltou correndo, acho que preferiu o pneu.

Bei não pode ver pneu rodando que vai atrás queren-do morder. Não consegui curá-lo dessa obsessão. Muitas vezes, temos que prendê-lo para Valdir poder trabalhar com o carrinho de mão. Fomos preparar as ferramentas para iniciar, no outro dia, a poda das árvores. Neste ano, temos muito trabalho, pois, no ano passado, estive fora quase todo o período de poda, os meses sem r, como en-sina meu pai.

Pela manhã seguinte, começamos a poda das árvores frutíferas. Depois do almoço, Valdir foi para a horta e eu para o computador. Normalmente, começo meu dia dan-do uma volta pela chácara com Ilda e Ramon, a manhã é deles, enquanto Bia e Bei dormem, no canil. Trabalho um pouco na horta, com Valdir para ajudá-lo a ver o que precisa ser feito. A produção orgânica exige muita aten-ção com as pragas e doenças. À hora do almoço, os gatos entram, a casa é deles e o terreno dos cachorros até o iní-

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cio da noite, quando vêm comer e o portão de perto da casa é fechado. Eu, cuja maior fantasia é um mundo sem chaves, fui obrigada a cercar toda a chácara com tela for-te, presa com concreto, para os cachorros não fugirem.

Na Morada do Buda, há um brejo que era o seu pas-seio predileto, puxavam a tela e iam se enlamear, volta-vam com cheiro de carniça. Cheguei a dar banho na Bia às oito horas da noite e, depois, devido ao frio, secá-la com secador de cabelo. A última cerca, a que mais resisti em fazer, deixou a casa num terreno de 600 m², o que, pela reação dos dois cachorros – recomeçaram a cavar bu-racos, a brincar com os cobertores de suas camas – foi considerado um pedaço pequeno. Bei, além de muito ciumento, é turrão demais e acabaria morrendo devido às suas brigas com os ouriços.

Num domingo, pela manhã, abri a porta da casa e Bia chegou com um espinho na testa, tirei e a levei para o canil, sabendo que me esperava um dia ruim, embora não pudesse imaginar o quanto. Sai chamando o Bei, que estava caminhando com dificuldade devido a estar todo coberto de espinhos. Era a quinta vez e a pior. Entrei em desespero, peguei um alicate e comecei a tirar os espinhos. Após o décimo, Bei começou a me empurrar e depois a ganir e eu, querendo livrá-lo daquele sofrimento, não pa-rei. Ele rosnou, pulou em mim e mordeu minha orelha. Levei a mão e percebi que havia um peço dependurado. Levei o cachorro para o canil e, conforme recomendação de minha irmã médica, a quem recorro nesses meus desas-tres, coloquei a orelha debaixo de uma torneira e lavei com sabonete antisséptico. Lembrei-me do que já vi Bei comer,

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voltei para a torneira e lavei mais um pouco, tomando o cuidado de não deixar o pedaço se separar completamen-te. Não doía tanto quanto as mordidas de gatos, mas saiu muito sangue e, como não sou boa nisto, não fiquei olhan-do. Só pensava que não era hora para desmaios. Coloquei uma gaze de forma a segurar e fui para o telefone chamar o veterinário, que em meia hora já estava me dizendo do perigo que corri. O diabo do espinho é como um anzol, sai rasgando, daí a necessidade de anestesia.

Realmente, a aflição de ver o cão sofrendo me levou a cometer o absurdo de tirar aqueles espinhos. Coloquei o Bei no carro do veterinário que o levou para a clíni-ca, enquanto fui procurar um hospital. Tive um grande susto e o aborrecimento de passar 10 dias indo ao Posto de Saúde para a enfermeira fazer o curativo e, sobretu-do, muito remorso. Bei e Bia ainda sofreram mais uma vez com esse demônio espinhento para eu me convencer a fazer a tal cerca. Dizem que os animais de estimação “pegam” as características dos donos. Terei alguma coisa parecida com teimosice?

Havia uma semana que eu acompanhava por tele-fone as frustrações advindas das pessoas encontradas da lista do Bernardo. A tarefa de localizá-las não era fácil. Alguns telefones haviam mudado, endereços já caducos e quando localizadas o momento de agudíssima tensão:

- Você recebeu do Bernardo Vieira, há alguns anos, o livro O Inferno é aqui mesmo, do Luiz Vilela?

A resposta desejada não vinha. O clima na família deveria estar sensível, muito sofrimento no presente pelo

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que virá no futuro bem próximo. Estávamos sofrendo du-plamente por antecipação. É o sofrimento do conhecer. Tomou conhecimento, a reação já chega. Somos guiados pelo que a nossa cabeça conhece.

Eu havia terminado as podas, chamei Valdir e per-guntei se ele poderia dormir a partir do dia seguinte na chácara, pois pretendia ficar fora alguns dias. Resolvida essa questão, fui para o telefone procurar pelo João. De repente passei a me sentir ansiosa, com urgência. Liguei para vários lugares e não o encontrei. Fui para a casa do Jaime e da Teresa. Minha ansiedade encontrou eco, ha-via um clima torto. Teresa, muito nervosa, começou a me contar que o pai de Elisabete veio buscá-la, comprou as passagens e disse que levará a filha para o tratamento que os melhores médicos sugerirem. Essa história de livro com o nome absurdo de O Inferno é aqui...

- Só faltou – interveio o Jaime – ele falar que é coisa de país subdesenvolvido.

- O que Elisabete e Estácio acham? - inquiri.- Elisabete está constrangida e Estácio, a qualquer

hora, parte para a agressão física ao sogro. Desde que ele chegou, estão vivendo um horror. Elisabete já disse que não vai sem o marido e que só irá se submeter ao trata-mento descoberto pelo Instituto. A relação de pai e filha não é nada tranquila. Percebe-se que ele, apesar de desas-trado, é louco com ela que, por sua vez, não o respeita muito – explicou-me Teresa. Jaime se dirigiu a mim:

- Não sei, Mariana, se você está informada, mas os médicos já disseram que ainda não conhecem a cura, o que podem é prolongar a vida e como o mais grave é a

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paralisia dos rins, há necessidade de hemodiálise diária, além de outras consequências.

- Elisabete – foi a vez de Teresa – afirma que não fará qualquer tratamento que não tenha a cura, não apenas o controle, como possibilidade. Fez Estácio prometer que não permitirá que a obriguem a isso. A grande chance está no instituto de pesquisa dos amigos do João

- E vocês têm notícias do livro?- Uma garota se lembrou de ter recebido de presente

do Bernardo um livro, mas não se lembrava o título. Ex-plicaram do que se tratava e pediram a colaboração dela devido à urgência. O livro foi encontrado, o papel, não.

- Caraca!- Que inferno!- Jaime, não diga essa palavra! Imagine se Charles

entra aqui e escuta! – Teresa falou e eu, inoportunamen-te, achei graça. Em seguida, o marido a repreendeu:

- Ora, Teresa, era só o que nos faltava!- Charles, então, é o nome do sogro? – tentei ameni-

zar meu riso inconveniente.- É. Vejam só! A Mariana podia ter dito do pai, mas

falou do sogro.- Bem, depois do que já ouvi dele, fica difícil ima-

giná-lo pai. E o papel? – perguntei, louca para tirar o “sogro” da conversa.

- A garota acabou se lembrando de tudo a respeito. Quando estava lendo o livro, viu o papel, leu e achou que deveria devolvê-lo ao Bernardo para que este o en-viasse ao João já que era o nome que constava no “Cer-tificado de Sócio Benemérito”. Como vê o papel, agora,

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já tem nome. Bem, a garota guardou o certificado e se esqueceu dele.

- Tenho de arrumar outra interjeição! - Caraca é interjeição?- Claro. - Sim. Barrabás!- Aí está a interjeição preferida da Teresa.- Barrabás! Dá para vocês me contarem onde está o

papel? Não aguento de aflição!- Guardado.- Onde?- Ninguém sabe. A garota está procurando. A mãe

pode ter jogado fora numa daquelas arrumações de mãe.- Pronto, Mariana, já sobrou “pras mães” – Teresa

não perdoou.- Vamos fazer uma faxina na casa da garota? Depois

de ler o livro a garota continua na mesma casa? – propus com a intenção de ir logo.

- Acho que ninguém fez essa pergunta. Estamos esperando que ela nos ligue – Tentando desanuviar o clima, eu retomei:

- Não sou Pedro pedreiro e vou me meter naquela faxina – e numa marotagem. - Quem lembra da simpa-tia de São Longuinho? A gente diz: São Longuinho (três vezes, para dar ênfase), me ajude a achar o certificado que eu lhe dou três gritinhos e três pulinhos. No nosso caso, temos de convencer o Senhor Pessimismo a fazer a promessa - consegui que todos rissem e completei: - Acho que João vai achar a ideia excelente!

- E ele está aborrecidíssimo com o Charles e vigian-

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do o Estácio - disse Jaime.- Acho – disse Teresa – que João está naquela de se

Estácio perder a paciência ele vai primeiro.- Está na casa da neta? Poderíamos chamá-lo?- É uma ótima ideia. E vamos todos para a casa da

garota do livro.Jaime foi ligar para o João e Teresa me falou:- Estamos envolvidos demais e tenho tido medo de

nos descontrolarmos, não só o Estácio. Todos queremos dar uns tabefes no belga.

- Ah! Ele é belga? Que bom que não é francês! Pode-ria pedir ajuda ao Monsieur Poirot.

- O detetive? - Sim - concordei, rindo.- Senhoras, João topou e vai nos encontrar na

casa da garota. Vou ligar agora para ela avisando que estamos a caminho.

- E se fôssemos sem aviso? – falou Teresa - Para pres-sionar mesmo?

- Acho que deveríamos adotar a tática contrária para a garota não ficar nervosa.

- É, liga lá, Jaime.Teresa foi ao quarto e Jaime ficou ao telefone. Fi-

quei pensando na terrível situação que meus amigos estavam vivendo e lembrei-me de Estácio entrando no meu carro no rodízio da escola. Éramos cinco pais com os filhos na escola Pirâmide e cada dia da sema-na um de nós levava as crianças. Ele era bem levado e adorava fazer todos rirem. Depois foi um aluno quase despercebido para na faculdade se tornar brilhante.

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Percebe-se de longe sua paixão por Elisabete. Deve estar sofrendo muito.

Ouço Jaime dizendo:- Foi para a praia?! – Teresa e eu ficamos atentas. Jai-

me desligou o telefone e em seguida, sem nos dizer nada, discou um número:

- Vou ligar para o João e vocês já ficam sabendo.- João, é Jaime. A garota foi para a praia, mas cal-

ma aí. Ela tem certeza de que colocou o certificado num porta-joias que a irmã, por engano, levou para a casa de praia da família, onde foi passar uns dias de férias. É que as duas têm os porta-joias iguais.

- Vocês sabem o nome da garota? - perguntei à Teresa.- Sibile.- Vamos pedir uma pizza? Estou com fome e João

está vindo. Ele parecia disposto a ir a qualquer lugar para sair de onde está.

- Perto do Senhor Pessimismo? - perguntou numa afirmação Teresa.

- Vocês se encarregam da pizza e eu vou servir as bebi-das que estamos mais é precisando - disse Jaime já saindo.

Era madrugada, ninguém conseguia dormir. Fica-mos conversando, ouvindo música e o assunto da viagem do Senhor Charles voltava sempre à baila. João afirmara que a neta estava decidida a não ir com o pai e não sa-biam o que poderia ocorrer já que a personalidade do belga não era propriamente repleta de gentilezas. João deu uma dica:

- Elisabete, ao invés de ficar brigando com o pai, pode ligar para Irina e lhe pedir para ela acalmar o marido.

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A campainha do telefone nos fez dar pulos de susto. - Sibile?- Não estávamos dormindo. Tínhamos esperança de

que você ligasse.Tive a impressão de que o ar me faltava. Olhei para

os outros e parecia que todos precisavam de um balão de oxigênio. O Jaime, ao telefone, estava de boca aberta e não saia som nenhum. Pensei que estávamos num filme mudo. Tinho que quebrar este silêncio e repeti o Jaime: abria a boca e o som nada. Depois de um espaço de tempo que mais podia ser a eternidade, Jaime conseguiu dizer:

- Achou! João ficou em pé, sentou-se e virou estátua. Jaime

serviu vinho para si e bebeu uma taça como se fosse água com açúcar. Eu continuava com dificuldade de qualquer reação. Teresa chorava e pegou o telefone:

- Filho, a garota achou! – desligou e começou a an-dar pela casa. João conseguiu movimentos para me dar um abraço e dizer baixinho:

- Obrigado, Morena – desta vez, me aninhei em seu peito e fiquei quietinha, era muito bom!

O fato de o certificado ter chegado às mãos de João, provando que ele é Sócio Benemérito de um dos mais renomados institutos de pesquisa da Europa, mudou a atitude do Sr. Pessimismo que até conseguiu formular al-gumas frases quase gentis. Felizmente, foi nesse momen-to que o conheci. Estava em dúvida se mudava a sua passagem para viajar com a filha e o marido. Elisabete rapidamente usou o argumento que a mãe estava sozinha

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e assoberbada com muitas tarefas, enquanto ela, Elisabe-te, tinha o apoio de muitos. Foi tiro e queda. O Senhor Pessimismo, abrandado, se foi. Fiquei um pouco inco-modada, todos nós não nos primamos por gestos simpá-ticos com ele que, por sua vez, vivia momentos de muita angústia. Era sua filha que corria risco. Lembrei-me de que João sempre dava um jeito de amenizar suas atitudes, enfatizando o quanto ele é louco pela filha. Como brasi-leiros nos faltou hospitalidade.

Convidei os cinco para um passeio no campo, como uma pausa para relaxamento, antes de terminarem as malas. O único que colocou obstáculo foi Estácio que precisava terminar uma petição. Era uma sexta-feira e ele havia se comprometido com um colega de estuda-rem juntos o caso. Insistimos com ele para negociar e marcar a reunião para domingo. Tudo acertado, saímos apressados para que João pudesse, ainda com a luz do dia, conhecer melhor o caminho para a volta já que fi-caria até segunda-feira, enquanto os outros voltariam no dia seguinte. Saímos, então, em caravana: João e eu na Preta, Elisabete e Estácio no carro do João e Jaime e Teresa no terceiro carro, o deles.

A chegada à Xury foi a alegre confusão de sempre. Bia e Bei fazendo a festa e ao mesmo tempo estranhando tanta gente. Tiveram que ir para o canil. Meus cachorros foram criados para me proteger contra os ladrões, que in-sistiam em comparecer de vez em quando e levarem o que bem entendessem, por isso são bem antissociais. Bei, ainda por cima, é dominador e ciumento ao último grau, nem o tratamento com florais amenizou essa característica. Tomo

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muito cuidado com ele e Bia quando há outras pessoas na chácara. Por outro lado, são extremamente carinhosos, doces mesmo com seus amigos. Por minha vez, enquanto não participo de sua festa não sinto que cheguei.

Entretanto, ninguém parecia querer chegar à casa. Estacionaram os carros e foram andar. A chácara tem três pequeninas reservas com árvores, folhagens – samam-baias, orquídeas, bromélias -, cipós e trepadeiras. Há algumas trilhas que permitem uma gostosa caminhada. Os dois casais chegaram e o Jaime, conforme prometido, foi preparar o fondue. O filho solidariamente também se infiltrou na cozinha que, pelo tamanho – nunca tive uma cozinha grande -, não aceitava mais ninguém. Um gritava: - onde fica uma colher de pau? – e eu respondia no mesmo tom: - Na primeira gaveta da pia.

João demorou muito no seu reconhecimento do ter-reno. Já estava escuro, fui acender as luzes do portão e a da horta, que fica no meio do caminho até a casa, e o encon-trei sentado em um tronco de árvore, no meio do pomar.

- Morena - chamou me puxando para seu colo -, você conseguiu fazer deste lugar uma Pasárgada.

- No escuro, como você está vendo?- Não preciso dos olhos, sinto que tudo é você, o

ar suave, com mensagens da Terra: sussurros das folhas, dos insetos, perfumes diferentes das flores, das árvores, das frutas. Que bom estarmos aqui. Esta energia vai nos fortalecer para as próximas batalhas.

- A Xury está à sua disposição, se é tudo isto que você vê.

- Tudo isto... e o Céu também.

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3. Mina e Tatá

Marcos e sua irmã Mirna vieram passar uns dias comigo. Ele é meu amigo há tanto tempo que a amiza-de acabou incorporando quase toda a família e Mirna é particularmente muito querida. Botânica, dedicada a pesquisas na área de fitopatologia, ao se aposentar, passou a se dedicar a rosas. Montou sua floricultura em uma an-tiga garagem. Ao invés de comprar a garagem, comprou o terreno vizinho e começou a plantar flores. Depois, cons-truiu uma bela estufa, lugar de suas pesquisas com cruza-mentos que já lhe renderam duas rosas premiadas: Mina e Tatá, respectivamente os apelidos de infância dela e de seu amigo predileto. Foi casada três vezes, tem um filho do primeiro companheiro. Há alguns anos vive só, com suas flores, como gosta de dizer. É uma pessoa bastante exigente com o que faz, rigorosa principalmente com ela mesma, fecha em si suas mágoas. Tem uma voz delicio-sa que todos gostamos de ouvir quando nos oferece seu canto, o que quase nunca acontece. Anda sempre vestida com umas calças compridas largas que parecem alongar ainda mais suas longas pernas. Seus cabelos estão curtos e, como seus olhos, são castanhos. É alta, bonita nos seus cinquenta e nove anos, tem um nariz muito bem feito, num rosto quadrado de maçãs salientes. É magra com o

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busto cheio, os quadris e ombros largos. É uma grande mulher grande.

- Vamos tomar o café da manhã na varanda, desci os toldos e podemos apreciar os beija-flores no jardim. Está bem para você, Mirna?

- Acho adorável a ideia e Marcos mandou avisar para não esperar por ele. Não me canso de olhar seu jardim, sua horta, suas árvores. A gente chega à chácara e não vê a bele-za que ela tem dentro. A mata, que faz a divisa com a estra-da, esconde tudo. Quando descemos, depois da porteira, pela alameda dos sansões do campo, vemos o pomar e, logo, a horta. Nunca vi tantas cores assim! Você tem, além das hortaliças, ervas e até flores, isto antes de chegarmos ao jardim! E quando você comprou não havia nem caminho até o chalé! Sabe que você fez um belíssimo trabalho?

- Na realidade, tive muita ajuda. Marcos deve ter ficado lendo até tarde o romance que estou escrevendo. Não deveria ter dito a ele que faltava apenas reescrever o último parágrafo. Sabe, ele é a única pessoa que decide muita coisa que me diz respeito.

- E você permite? - Pior que isto. Ele sempre tem razão. Em uma das

vezes que me mudei de São Paulo, deixei uma procura-ção com ele que, embora fosse daquele tipo universal, era para a venda da minha casa. Dois meses depois, me avisou que estava me enviando o dinheiro do aluguel.

- E você ?- Foi a minha salvação, pois naquele confinamento

do Collor fiquei sem dinheiro para nada. Eu havia vendi-do carro e outras coisas e colocado a grana toda no ban-

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co. A grande parte nem estava aplicada, pois era para as despesas que teria de fazer assim que chegasse ao meu destino. E depois de dois anos, retornei. Teria passado muito mais aperto, sem a casa.

- Você não se sente invadida? – Ela estava mesmo surpresa.

- Por ele não. Quando eu estava procurando a chá-cara para comprar, vi uma em Mogi-Guaçu. Havia um rio que passava no terreno, fiquei encantada. Marcos foi lá comigo. Enquanto via o rio, ele anotava as inconveni-ências. Quando voltávamos, me disse:

- Antes de fechar o negócio venha dois dias seguidos para testar a distância e o caminho - desisti e achei a Xury.

- Você trouxe Marcos para ver a Xury antes de fechar o negócio?

Não pude deixar de achar engraçada a forma de Mirna me pegar, mas lhe respondi honestamente:

- Não.Ela foi discreta com as palavras, entretanto não me

poupou de uma boa risada. - Ma, você tinha um projeto de construir uns peque-

nos chalés para uma pousada?- Na verdade, foi uma fantasia inspirada em uma

ideia genial de um médico que tem um sítio em Cotia. A Chácara Xury acolheria algumas pessoas que tivessem interesse em construir pequenas moradias, objetivando a socialização de algumas atividades, como horta, pomar, jardins, artesanato, dança e outras. A ideia é envelhecer sem perder a criatividade. Buscar na socialização uma convivência sadia, com a preservação da liberdade e priva-

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cidade. Poderia diminuir custos até da assistência médica porque a ideia é para aposentados, mas gente do bem. É absolutamente necessário que sejam pessoas amantes da natureza com tudo que isto implica, inclusive gostar de por a mão na terra.

- É um belo projeto. Pode viabilizar uma qualidade de vida que não se tem em São Paulo.

- Seria, mas desisti da ideia. Como eu disse era uma fantasia.

- Por quê? Acho que é a primeira vez que ouço você dizer desisti.

- Mirna, você tem razão. Não sabia desistir. Isto já me deu muita dor de cabeça, inclusive financeira. Sou insistente demais, porém desde que me mudei para cá já desisti de muitos projetos por não dar conta. Alguns, como foi o caso das ervas medicinais, devido a proble-mas causados por terceiros. Um vizinho usou o trator na vertical do terreno aí, ao lado, com alta declividade, sem fazer curva de nível, ou qualquer outro cuidado para evitar a erosão. Além disso, jogava agrotóxico duas vezes por semana. A terra, com as chuvas, desceu até o meu lado, onde eu havia preparado para as ervas, contaminou o solo e ainda fez verdadeiras crateras.

- E os chalés? Por que desistiu?- Aí fui eu. Fiquei sem energia para socializações.

Acho que não quero mais projetos coletivos. Quero conti-nuar morando só, recebendo os amigos muito queridos.

- Acho difícil acreditar nisto. Você precisa de um tem-po para você, o que é bom até para seus livros, mas ainda acho que você acabará retomando o projeto dos chalés.

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- Você vem morar aqui?- Pode apostar.

Terminávamos nosso café quando João ligou de Paris. Mirna saiu para ver meu jardim, o que me deixou bas-tante incomodada, pois ela é especialista em flores, mas acabei por prestar atenção ao que acontecia do outro lado do Oceano. A filha de João parecia conseguir neutralizar o Senhor Pessimismo com grandes vantagens. Segundo o que ouvi, ele até estava facilitando a vida de Elisabete e Estácio, com algumas providências sugeridas pela esposa. Ainda não sabiam se Elisabete poderia levar adiante a gra-videz, o que era motivo para a tensão ainda ser forte.

Por outro lado, o seu tratamento estava, de fato, ga-rantido e os pesquisadores da equipe responsável eram unânimes em seu otimismo quanto à cura. Não estabele-ceram ainda o tempo de permanência em Paris, embora já tenham dito que poderá, a partir de um determinado resultado, vir terminar o tratamento no Brasil.

Fui me encontrar com Mirna que, muito gentil-mente, falou do perfume de minhas rosas. Minhas é um vício de linguagem ou vontade escapando, porque as ro-sas foram trazidas, plantadas e cuidadas por Valdir e eu, em sua presença, até lhe digo suas rosas. Mirna e Valdir têm o talento que só consigo invejar para o cultivo das rosas. Fomos caminhar e achamos um bom lugar para uma parada: embaixo de um ipê, com direito a uma rede e um banco.

- Mirna, você uma vez me prometeu contar a histó-ria de Mina e Tatá.

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- Acho que é uma estória tão particular de duas crianças...

- Por favor, me desculpe, não imaginei que estaria sendo impertinente.

- Não, de forma alguma. Falo no sentido do inte-resse. Deixe-me lhe contar. Tatá era meu primo, pré-adolescente, quatro anos mais velho que eu. Em criança era loiro, depois ficou com os cabelos castanhos. Usava óculos, tinha a boca grande, olhos castanhos esverdeados, a pele bem mais clara que a minha. Muito sensível, fazia coisas que a família não gostava, todos implicavam muito com ele, mas éramos os dois os queridinhos de nossa avó materna, que o protegia. Desde bem criança gostava de me fazer poesia. Dizia que eu era sua musa “... e musa, querida, só existe uma de tantos quanto forem os poetas” – ela riu quase entre lágrimas, explicando que esse era um verso do Tatá adulto -. Ele teria feito uma poesia para uma outra garota e Mirna ficou brava. Em resposta, ele lhe fez outra poesia, cujo título era “Ciúme” .

Depois de uma pequena pausa, que, é claro, respei-tei em silêncio, continuou:

- Morava na cidade e eu na fazenda, onde passáva-mos as férias. Levantávamos de madrugada, íamos buscar os cavalos no pasto, os arriávamos e íamos tomar leite no curral da fazenda de um tio. Um dia, nas férias de julho, encontramos com um menino que andava tiritando de frio. Com pena dele, resolvemos lhe dar carona na garupa do cavalo do Tatá. O menino, morto de medo, tremia mais que vara de marmelo e sem perceber ou por não saber as malícias do cavalo colocou o pé na virilha do ani-

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mal que, imediatamente, começou a dar-de-bunda. Você sabe o que é essa expressão?

- O cavalo joga a parte traseira para cima, ficando só com as patas da frente - respondi, lembrando de minha própria infância.

- O menino caiu e ficou chorando. Ficamos apavo-rados. Ele tremia, chorava e Tatá desceu do seu cavalo e ficou muito sério contando as costelas do garoto. Eu, em cima do meu cavalo, sem saber o que fazer. Tatá, com toda uma seriedade médica, disse:

- As costelas não quebraram, estão todas aqui. - Como você sabe? – perguntei.- Contei as costelas deles e sei quantas nós temos de ter.- Quantas?Enquanto conversávamos o menino se levantou e

saiu correndo.- Agora ele vai a pé e com frio.- Quantas costelas nós temos de ter? – insisti, curiosa.- Vamos embora senão quando chegarmos lá o leite

já acabou.- Não fiquei sabendo quantas costelas nós tínhamos

de ter, mas meu pai já sabia do ocorrido, quando chega-mos de volta à fazenda. Ficamos de castigo, cada um no seu quarto. Havia uma porta de comunicação que nunca era aberta e ninguém se lembrava dela, mas Tatá já havia conseguido achar a chave - chamávamos a chave de São Pedro, por ser enorme. Durante a noite, a porta ficava aberta e, pela manhã, antes de sairmos do quarto, tínha-mos dois cuidados, o de desarrumar a cama de quem havia dormido no outro quarto e o de fechar a porta e

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esconder a chave. Nesse dia, em sinal de protesto não aceitamos a comida. Greve de fome. O guarda-comida ficava perto da porta do meu quarto: bolo, queijo, leite com farinha de milho e goiabada. O mais difícil foi levar os pratos – tarefa do Tatá -, pois ficavam na cozinha e sempre havia uma empregada lá. Acho que ele passou a lábia na Ditinha e ela ficou calada. Comemos também muitos sonhos de valsa que roubávamos do tio Gordo. Ele guardava sempre algumas caixas para levar para sua noiva. Foi um dia e tanto. Nada soubemos do menino, pois nunca mais o vimos. Muitas vezes nos casamos. O padre era qualquer um que passasse por onde estávamos. Em não havendo uma pessoa, escolhíamos uma árvore e fazíamos de conta. Após a cerimônia, havia a lua-de-mel. Era o momento em que ele me chamava de sua mulher, dizia que me amava, me beijava a boca e me dava pre-sentes: uma flor, um bombom. Depois íamos morar na casa de um de nós, pois, nas outras brincadeiras, cada um tinha sua casa, uma árvore, cujos galhos eram a sala, o quarto, a cozinha e a varanda. Esta tinha que ser livre e desimpedida para que pudéssemos pular sobre o cavalo na brincadeira de Tarzan. Era quando discordava de Tatá. Não gostava de ser Jane. Eu me achava melhor que ele quando se tratava de cavalos. O jeito era Tatá deixar que o pulo fosse da Jane. Na verdade, era a brincadeira de que eu mais gostava. Uma vez, a lua-de-mel foi no tronco, onde o gado era vacinado.

- Sei como é - entrei na explicação -, no meio do curral, onde lidam com o gado, fazem com madeira um corredor estreito para os animais entrarem em fila india-

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na, sem possibilidade de se mexer, facilitando a aplicação de vacinas, inseminação ou até marcação. Vocês tiveram uma viagem de núpcias nesse tronco?

- Isto mesmo. Imagino que deveria ser um domin-go, pois não havia ninguém. Tatá me abraçou, me acari-ciou o rosto, o cabelo e desabotoou minha calça, enquan-to sussurrava no meu ouvido palavras que não entendi, achei danado de gostoso e levei muito a sério. Era assim que marido e mulher faziam. Posteriormente, Tatá de-dicou uma poesia à lua-de-mel no tronco. Essa poesia me contou que a seriedade com que ele encarou aqueles momentos era de adulto.

- Mirna - intempestivamente perguntei -, onde está o Tatá?

- Ah! Agora que comecei, vou contar toda a estória. Você ficará sabendo no devido momento.

- Promete que vai, então, até o final.- Vou. Sabe, por várias ocasiões me pediram para

falar dele e nunca consegui, mas não está difícil, acho que vai até me fazer bem – ela falava com muita emoção.

- Conta. Estou curiosa para saber por que vocês não estão juntos.

- Você para de fazer estes comentários. Este é um assunto que ficou guardado tempo demais e pode me derrubar. Ao final você vai me entender.

- Perdão.Por que não fico de boca fechada?!- A família de Tatá se mudou para uma outra cidade,

onde fui estudar num internato para moças, desses ad-ministrados por freiras, onde minha avó materna, todas

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as tias e minha mãe estudaram. Eu odiava. Perdi minha liberdade e, de quebra, a fé. Tatá entendia isto e tenta-va me ajudar, sempre conseguia burlar a vigilância das freiras e me passava romances para eu ler escondido. Ele pedia a alguma menina que estudava no externato para me entregar os livros. Dentro deles sempre havia alguma poesia para mim. Depois nos mudamos cada qual para outra cidade. Estivemos praticamente nas mesmas cida-des, mas em períodos diferentes. Apenas uma vez mora-mos na mesma cidade e no mesmo período. Ele estava fazendo o serviço militar, o CPOR. Eu morava em uma casa que tinha um quarto sobre a lavanderia e foi onde eu fiz uma espécie de escritório. Todos os dias me levan-tava e corria para lá. Sobre a minha mesa, havia uma rosa vermelha. Ele passava de madrugada, antes de ir para o quartel, e deixava o seu bom dia. Nessa época, eu namo-rava um rapaz que me ensinava a nadar. Após a saída do quartel, Tatá ia se encontrar conosco no clube onde na-dávamos e sempre foi de uma gentileza própria comigo, cuidava de mim. Eu tinha a certeza de que se escorregasse não iria para o chão, porque suas mãos me segurariam, independente de estarmos perto um do outro. Todos os milagres vindos dele me eram normais, naturais. Não sei falar dele numa sequência cronológica e tão pouco consi-go passar para alguém sua importância, seu tamanho. Ele é uma presença.

Ela continuou:- Terminado o curso secundário, Tatá foi para Belo

Horizonte fazer seu primeiro curso superior. Papai havia me dado um anel, cujo brilhante tinha uma pequenina

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ranhura. Fizemos uma troca. Dei-lhe o anel para ele usar e ganhei uma poesia que lembrava aquela ranhura. Sua mãe quando viu que ele iria com o meu anel ficou muito brava e lhe disse: - “Devolva o anel de sua prima, senão você vai colocá-lo no prego assim que chegar em Belo Horizonte e ela fica sem”. - Não houve como demovê-la. Lembro-me de ter sentido muita raiva de minha tia que se intrometia e de uma forma tão humilhante para ele. Minha tia não sabia que estava fazendo uma previsão ao contrário. Quando eu, após alguns anos, fui estudar em BH, perdi o anel no penhor da Caixa Econômica. Na família, Tatá era tido como sem juízo, irresponsável, por-que nada tinha dos valores de uma tradicional família ori-ginária da oligarquia rural mineira. Ele era, a seu modo, comunista, poeta, gostava da noite e das pessoas e exercia sua liberdade, bom orador, sedutor, conquistava e lidera-va naturalmente. Fez várias faculdades: direito, história, economia. Lia e escrevia muito. Tenho uma carta que ele me mandou, escrita num rolo de dois metros de papel de padaria. Teve uma fase de Augusto dos Anjos e ganhei uma poesia, cuja influência desse poeta é bem explícita e, claro, negada. Houve um carnaval em que não aceitei o convite dele e fui para outro lugar com uns amigos. De-pois de algum tempo, soube que seus pais o obrigaram a se casar com a garota com quem ele passara aquele carna-val, ela estava grávida. Eles foram morar em um conjunto habitacional na periferia de uma cidade média, próxima à que residia minha família. Eu ainda estudava em BH e quando ia visitar meus pais passava a tarde e a noite na casa de Tatá. Conversávamos, trocávamos impressões

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sobre livros lidos, filmes e peças vistos e sempre havia al-gumas poesias feitas para mim. Numa dessas noites, sen-tados no sofá de uma sala, eu senti Tatá particularmente carinhoso e calado, pegou em minhas mãos e as acariciou durante muito tempo, me olhou, sorriu de uma forma tão triste. Fui ficando incomodada, com um sentimento que foi me apertando. Retirei minhas mãos e lhe disse o que estava sentindo e ele continuou sorrindo.

De repente, algo interrompeu a história:- Dona Mariana – ouvi Valdir gritar.- Deve ser o Marcos nos procurando – Mirna logo

disse. - Depois eu termino. - Estou aqui, Valdir – respondi quase com raiva.- Posso soltar os cachorros?- Por favor, deixe a gente chegar até a varanda, você

solta Bia e Bei, mas fecha o portão da casa. Assim, pode-mos ficar na varanda um pouco.

Passamos pelo pomar, pegamos algumas laranjas, limas da Pérsia e limão e nos encontramos com Marcos que acabara de se levantar.

- Bom dia, Marcos. Dormiu bem? Vou lhe preparar um café.

- Bom dia. Acho que tomarei apenas um cafezinho para acertarmos o horário do almoço – falou o moço preguiçoso.

- Podemos enganar nosso estômago com as fru-tas que acabamos de apanhar e esperamos você fazer a digestão do café da manhã. Mariana tem um pão delicioso e um kefir com cereais. Vale a pena esse café aqui na varanda.

- Se Ma concorda, acho bom, apetite não me falta.

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- Em um minuto seu café estará pronto. Podem se sentar.

Fui para a cozinha e mal havia colocado a panela no fogo quando ouço um som esquisito. Seria uma risada?

- Você está muito engraçada: chapéu e avental! – Marcos debochava de mim.

- O que você quer? – fingi braveza. - Quando o café estiver pronto, eu levo. O chapéu porque eu estava passe-ando sob as árvores e o avental é para proteger a barriga no fogão. Quer você fazer o café?

- Calma! Já estou à mesa. Só vim saber se precisa de ajuda. Adorei seu livro!

- Ah! Isto é chantagem! Pode ficar na cozinha en-quanto me diz o que achou da trama, do desenho das personagens e dos diálogos – ele deu uma gargalhada tão estrondosa que Mirna gritou da varanda:

- Quero ouvir a piada! Marcos voltou à mesa sem me responder. Servi o café

para nós três e, embora Mirna não tivesse explicitado, sus-peitei que não queria continuar sua estória com mais de um ouvinte. Era algo muito íntimo e pessoal, mas eu estava an-siosa para continuar ouvindo e saber onde estava Tatá. Fi-quei, portanto, contente quando Marcos disse que estava a fim de uma caminhada. Providenciei para que ele não tives-se problema com os cachorros e, tão logo saiu, pedi:

- Continue, Mirna.Ela também precisava continuar sua viagem por

aquelas lembranças que lhe traziam tanta emoção.- Tatá, ainda segurando minhas mãos, se levan-

tou e me puxando foi para seu escritório. Abriu uma

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gaveta de onde retirou um grande envelope e me en-tregou, dizendo:

- Acho que você pode ficar com isto. São coisas que escrevi para você. Quando a saudade batia pesado, escre-via alguma coisa, são poesias e também o início de um romance sobre a fazenda. Não sei por que acho que está na hora de você ler. Não agora. Quando estiver de novo longe de mim. Há também algumas outras coisas que talvez você tenha algumas discordâncias táticas. Soube que você entrou para a Ação Popular e, como sou comu-nista, vamos sempre ter algumas discordâncias secundá-rias. Quero também lhe pedir uma coisa.

- Fale.- Tenha cuidado. Depois do AI 5 tenho tido muito

medo por você. Prometa que não entrará nas ingenui-dades dos seus companheiros de AP? – Ele falava de um modo meio profético e me assustava.

- Tatá, não vamos ser mais de esquerda do que já somos. Às vezes, acho mesmo que você tem razão, somos todos muito ingênuos em nossas defesas e aprendemos com a prática que tem sido tão cruel. - Ainda discutimos muito sobre nossas militâncias e divergências. Tínhamos os mesmos receios um pelo outro. Eu achava que ele era obviamente comunista e que corria riscos demais. Nosso País se encontrava num dos seus piores momentos. A di-tadura militar era cada vez mais repressiva e cruel.

Ela suspirou:- Tatá e sua esposa tiveram seis filhos, mas um não

é dele, é bem parecido com seu irmão. Não foi surpresa para o meu poeta, porque um dia, ao chegar em casa, em

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seu quarto, em sua cama, encontrou os dois. Ele nunca me contou, mas me disse que eu era a culpada de seu casamento por não ter querido ser a sua noiva. Acho que foi a única maldade que me fez. Um dia, ao abrir a porta de minha casa, encontro um bilhete escrito numa letra forçada: aquele que sabe contar as costelas precisa de ajuda, no ponto de ônibus, em frente ao Cine Belas Artes, esteja com alguma roupa amarela e leia a Folha de hoje, às 21 h. Sabia que era alguma emergência ruim com Tatá, mas pelo menos ele estava vivo. Eram 19 horas, dizendo-me que deveria ficar calma, tomei um banho e fui pegar o ônibus que me deixaria já no ponto do encontro. Che-guei adiantada cinco minutos. Fiquei vendo os cartazes dos filmes até que ouvi: “Você se incomoda de me deixar consultar seu jornal? Quero saber onde está passando o filme Os Pássaros”. Era um jovem de aparência comum e olhar vivo, que pegou meu jornal, abriu, consultou e, no momento da devolução, deixou uma parte cair, ficando segurando outras partes numa pequena confusão de for-ma a me ver obrigada a pegar a que havia caído. Junto ao jornal estava um envelope pequeno. Quando me levantei, o rapaz me entregou o restante do jornal, agradeceu e se mandou. Eu, mesmo acostumada a esses encontros, esta-va com as pernas bambas, o coração bombeando todo o sangue de uma só vez, num tum, tum que todos deviam estar ouvindo. Esforçava-me ao máximo para manter meu controle. Atravessei a rua e peguei o primeiro ônibus que passou. Abri o envelope, num papel estava escrito um en-dereço e uma data, 12 de janeiro. Imaginei logo que devia ser uma senha, esse era o dia do aniversário de Tatá. O

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endereço era num bairro não muito longe, mas eu estava indo no sentido contrário. Desci, novamente, atravessei a rua e fiquei aguardando a condução que deveria me levar para a tal emergência. Quando lá cheguei, era um prédio de apartamentos com porteiro eletrônico. Apertei o nú-mero indicado e uma voz de mulher atendeu perguntan-do quem era, respondi 12 de janeiro, o portão abriu. Subi dois lances de escada e à porta estava uma garota loira de uns 25 anos. Ela me disse: “Não fale alto que os vizinhos escutam tudo”. Tatá estava no único quarto, deitado numa cama com uma perna entre duas tábuas bem amarradas, mais magro que nunca, olheiras e cabelos precocemente grisalhos. Recebeu-me com seu delicioso sorriso:

- Menina, acho que ainda vou lhe dar trabalho. Corri até ele e quis pegá-lo no colo. Ele percebeu e

brincou:- Sou grandinho, mas é muito gostoso ficar juntinho

de você, menina. Ele quase fora pego numa batida que a polícia deu

na gráfica do Partidão. Teve que pular um muro e que-brou a perna. Conseguiu se arrastar até atrás de um cami-nhão estacionado e lá ficou por algumas horas. Quando o motorista veio pegar o veículo, Tatá começou a contou uma estória, o cara foi logo perguntando:

- Me diz aí, meu irmão, você é ladrão, estava que-rendo comer a mulher do outro ou é comunista? - Tatá resolveu jogar com a sorte e respondeu:

- A terceira.O homem, que tinha um filho preso pelos militares

e sequer sabia onde estava, pegou o Tatá, perguntou para

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onde ele queria ir e o levou para aquele endereço. No apartamento, morava um casal, cuja função era dar cober-tura à atividade da gráfica, mas ainda não sabia das con-sequências da invasão da polícia e estava buscando ajuda para os que haviam caído. Era preciso avisar as famílias para localizar o lugar onde estavam, na tentativa de evitar execuções. Ele havia preferido pedir ajuda para mim, exa-tamente porque já estava com sua saúde bastante debili-tada e sua célula havia sofrido muitas baixas. Consegui levá-lo para minha casa, passando peripécias que nem sei mais descrever. Um amigo ortopedista conseguiu, depois de algumas manobras, engessar a perna do Tatá que ficou escondido comigo mais de dois meses. Nessa época, eu estava na função de cobertura, com emprego e endere-ço razoavelmente seguros. Foi um período de emoções intensas, da alegria de estarmos juntos ao medo tétrico da polícia, sobretudo devido a pouca mobilidade de uma perna quebrada. O tempo todo Tatá, preocupado com seus companheiros, me deixava muita aflita, receosa com sua segurança e saúde. O médico me alertara sobre a ne-cessidade de uma dieta que ajudasse na recuperação de uma pneumonia mal curada. Deixei toda a atividade que pude passar para alguém e me pus de enfermeira. Quan-do o médico veio retirar o gesso, achou o paciente mais corado e alguns gramas mais gordinho. Foi o bastante para Tatá retomar suas atividades. Briguei, chorei e nada consegui, ele se foi e fiquei com a sensação de algo ruim, o estômago não digeriu o medo e doía muito.

Em um outro carnaval, um senhor, com aparência de 80 anos, magérrimo, um ombro mais alto que o outro,

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de uma clavícula quebrada e não-cuidada, o olho direi-to tampado por uma bandagem suja de sangue, bateu à minha porta e me entregou um pedaço de papel pardo dobrado, dizendo que deveria ter vindo no dia anterior, mas, por segurança, não pôde. Abri o papel, a letra do Tatá dizia: Não brigue pelo meu corpo, ele já é nada. O meu amor por você me manteve forte e em paz.

O velho olhou bem nos meus olhos, com a ponta dos dedos limpou minhas lágrimas, pôs a mão trêmula nos meus ombros e falou: “O companheiro do bilhete morreu esta manhã, no pau de arara da Rua Tutóia”.

- Mirna, minha querida, que pesadelo! – Eu só pude abraçá-la, acariciá-la e chorar com ela. Não sabia o que fazer, o que falar!

- Não se preocupe, esta é a primeira vez que falo so-bre isto e foi como se eu tivesse limpado algo sujo e ficado só com o que ele me mandou. Obrigada por me ajudar nessa faxina. Com licença, vou lavar meu rosto.

Quando voltou estava refeita e Marcos já pensava no almoço.

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4. Paris Manda Recado

João e eu trocamos e-mails diariamente, permitindo-me acompanhar a evolução do tratamento de Elisabete e um pouco das aflições e esperanças da família. O casal ficou em um pequeno apartamento próximo do Institu-to, onde passa a maior parte do dia. João se hospedou em casa de um amigo. Tomou a si a missão de levantar o as-tral de todos. Considerando seu jeito fechadão, imagino que fez um esforço enorme. Passou alguns dias tentando me convencer a tomar um avião para Paris. Minha resis-tência se referia apenas às dificuldades financeiras, cuja solução eu estava providenciando. O advogado me avisa-ra que a empresa que me devia uma soma razoável, havia feito uma proposta de acordo, com pagamento imediato. Autorizei a aceitá-la.

Teresa pediu-me para passar por sua casa, pareceu-me, ao telefone, mais angustiada e queria discutir algo sobre seu filho. Recebeu-me em sua sala de trabalho, um pequeno quarto transformado em charmoso escritório. Mobiliado com uma grande mesa retangular, de madeira clara, onde fica, numa ponta mais baixa, o computador e no espaço mais alto lugares para uma reunião de até quatro pessoas. Do lado da mesa e sob uma janela envidraçada, por onde entra muita claridade, um sofá azul anil, de dois

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lugares e uma poltrona da mesma cor, pequena e bastante confortável. Depois de duas xícaras de chá e várias fatias de um delicioso bolo de chocolate, ela me disse:

- Estácio está com problema.- Sim. Consigo imaginar como está difícil pra ele.- É outro tipo de problema – ela quase fez uma careta.- Como assim?- Não sei. Apenas sinto que ele não está bem.- Teresa, é claro que ele está balançado. Tentei acalmá-la, já sabendo que não teria sucesso,

pois tudo nela mostrava tensão e ansiedade, até a roupa que vestia era escura, marrom, cor pouco apropriada para sua pele morena.

- Sinto pela voz dele que há ainda mais coisa do que a doença da Elisabete. Pode ser o medo de perder o ne-ném e a impossibilidade de outra gravidez.

- É claro. Toda a situação está pesando, sobretudo para ele.

- Há ainda o fato de ter surgido a oportunidade de um trabalho, na realidade, é uma bolsa, no Canadá. Ele batalhou muito para conseguir. Agora, precisa dar uma resposta dentro de 10 dias.

- Pobre Estácio! A vida está mesmo mostrando não ter nenhuma paixão pela justiça.

- Você chegou no ponto. Acho que ele quer e deve ficar com a esposa neste momento, mas também estão precisando de dinheiro e foi tão trabalhoso para conse-guir essa oportunidade. O pior é que tenho certeza de que ficará a mágoa que não é contra a Elisabete, mas, até inconsciente e injustamente, poderá vir a ser.

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- Entendo. Não sei nem o que lhe sugerir. - João nos disse que você irá a Paris.- Não é bem assim. Gostaria de ir, mas ainda não

tenho condições e se eu demorar a consegui-las não terá sentido a viagem.

- Mariana, Jaime e eu não podemos sair de São Pau-lo neste momento. Até porque prometemos ao Estácio que cobriríamos as despesas assim que ele desse o grito.

Teresa nitidamente fazia um esforço para ser obje-tiva. Sua expressão buscava a calma traída pelos olhos, tristes e assustados.

- Estamos trabalhando – ela continuou - em dois projetos fora de nossas atividades normais, com prazos curtos. O projeto do Jaime é a implantação de uma revis-ta mensal e eu estou, com um grupo de agricultores, tes-tando novas tecnologias de produção orgânica em estufas com total controle das condições de produção.

- Imagino que deve estar muito interessante – disse e me senti meio ridícula por querer que a conversa fosse sobre o trabalho.

- Ainda bem que estamos com esta demanda que nos faz trabalhar 12 horas por dia. Não dá nem pra lem-brar de problemas pessoais. Eu gostaria muito que você se decidisse ir a Paris, porque sei que poderia ajudar o Estácio. Ele está precisando de ajuda de uma cabeça boa e com menor envolvimento. João é avô da Elisabete, não pode ter o distanciamento para ajudar a pensar.

- Teresa, prometo que vou me empenhar para con-seguir a grana e chegar até Paris. No entanto, só poderei dar o meu ombro ao Estácio, pois além de ser algo que

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só ele pode decidir, eu mesma, se estivesse enfrentando o que ele está, não saberia o que fazer.

Eu já começava a me sentir angustiada, me parecia uma situação sem saída e, claro, não podia dizer isto à Teresa, menos ainda ao Estácio. Forcei um sorriso amare-linho, me levantei e disse:

- Ligarei para você tão logo tenha alguma notícia do meu advogado.

- Sim. Também podemos discutir um adiantamento para você agilizar sua ida. Como vamos mesmo ter que en-viar um dinheiro para nosso filho, a gente pensa formas.

- Está bem. Quando eu tiver as informações, con-versaremos.

Saí de lá meio tonta, minha cabeça parecia se negar a pensar. Tive muita vontade de ajudar o Estácio, mas sem nenhuma esperança de conseguir. Dirigir na estrada sempre me acalma e ao chegar em casa já tinha o plano das providências a tomar. Liguei para o advogado e tive a notícia que esperava: minha proposta havia sido aceita e o dinheiro estaria na minha conta dentro de uma sema-na. A segunda chamada foi para Teresa e a 3ª para o João. Elisabete ainda não estava respondendo ao tratamento, conforme as expectativas dos médicos-pesquisadores.

Nos dias seguintes, trabalhei muito acertando as pendências com o advogado, o editor – entreguei meu li-vro recém-terminado, mas sem revisão -, a veterinária, os fornecedores e Marcos, meu eterno procurador. Como sempre que viajo, Valdir e família vêm se instalar na chá-cara. Mandei construir uma pequena casa para essas oca-

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siões e, no dia a dia, Valdir faz seu café, alguma comida e descansa na hora do almoço. Felizmente todos gostam muito dessa mudança. As crianças têm mais espaço para suas brincadeiras, embora tenham, como os gatos, que di-vidir o desfrutar da chácara com os cachorros. A questão da segurança, lamentavelmente muito presente também na nossa região, me obrigou a optar por animais bravos e pouco sociais com os estranhos.

Jaime, Teresa e Marcos foram me levar ao aeroporto. Passei pela casa de Marcos, onde deixei meu carro, e o casal já estava me aguardando, na sala. Era minha intenção con-versar um pouco com meu amigo, pois sabia que ele tam-bém não estava vivendo o melhor de seus dias. Apenas pude lhe dar um abraço um pouco mais carinhoso, passei meus dedos pelo seu cabelo e ele me sorriu, entendendo e colhen-do. Tereza, meio envergonhada, perguntou se era possível eu levar uns pacotes e mostrou uma montanha de embrulhos.

- Jaime, por favor, pegue essa mala que está aí a seu lado - eu disse.

- Esta?- Abra-a.- Está vazia!- Esperando os pacotes da Teresa.Sorri com ares de quem sabe das coisas, o que trouxe

um certo relaxamento a tanta tensão.- Já imaginava que haveria muitos presentes e comi-

das. Só não dá pra ter problemas com a vigilância sanitá-ria francesa. Será que eles ainda procuram os “pertences” para feijoada nas malas dos brasileiros? – perguntei me lembrando da época da ditadura, quando cada conhecido

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que conseguia ir visitar os refugiados se defrontava com os pedidos de “coisas do Brasil”. Nisto estavam incluídos desde orelha de porco até as fatídicas listas dos “caídos”.

- Com os preços na Europa – ouvi Marcos falar - o pessoal tenta mesmo levar daqui.

- Não há nada in natura e, na realidade, são mais presentes para os médicos, amigos do João. Estácio pediu para eu comprar coisas bem brasileiras, como forma de retribuição pelas gentilezas com que tem acumulado Eli-sabete – desculpou-se Teresa.

Quando levantamos voo em Madri, a única escala da viagem, alguns homens se levantaram e seguiram em dire-ção à cabine de comando. Pelo alto falante ouvimos uma voz grave, firme e estranhamente com um quê de suave:

- Senhoras e senhores, acabamos de dominar o avião. Permaneçam sentados e, sobretudo, calmos. Temos inte-resse em apenas um passageiro, um espião da CIA que está indo a Paris assassinar nosso líder. Sabemos que ele se encontra neste voo, disfarçado, portanto, examinar seus passaportes seria apenas perda de tempo. Se ele se identificar, nada acontecerá aos outros passageiros e à tri-pulação e o avião pousará em Paris, conforme o plano de voo. Como não temos muito tempo, vou lhes dizer o que vai acontecer. Primeira hipótese pouco provável: o espião assassino se identifica e o problema deixa de ser de todos vocês que farão o resto da viagem tranquilamente. Segunda hipótese: o espião covarde não se identifica e nós matamos um de vocês a cada três minutos. Estou começando a contar.

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Um pânico mudo tomou conta do avião. Pude per-ceber que havia quatro homens na frente - dois de frente para nós da classe econômica e dois olhavam em direção à primeira classe -, quatro no meio do avião – também dois virados para frente, às nossas costas, e dois de cos-tas, virados para as últimas fileiras de poltronas – e ainda mais dois no fundo do avião. Todos com aparência muito normal, vestidos com ternos europeus, munidos com pis-tolas automáticas e com uns pequenos vidros pendurados ao pescoço. Imaginei que havia alguns na primeira classe e outros na cabine. Como entraram com aquelas armas será um mistério para a polícia resolver. Um senhor gri-salho, com cerca de 70 anos, pediu para falar. O homem que estava com o microfone lhe perguntou:

- O senhor vai identificar o espião?- Não. Quero fazer um apelo.- O senhor, por favor, sente-se e fique em silêncio.Uma senhora gorda, com cabelos bem ralos, sem

pintura exceto pelo batom rosa claro, que estava numa poltrona à minha frente, tombou no corredor. Uma aero-moça quis socorrê-la e foi impedida. O homem do alto-falante era o líder, pois só ele falava e dava ordens que eram imediatamente obedecidas. Ele perguntou:

- Há algum médico entre os passageiros?- Uma jovem loira, magra, estatura mediana, vestin-

do um conjunto de calças compridas e blazer verde claro e sapatos de salto baixo, levantou o braço.

- A senhora quer socorrer essa pessoa?- Claro – levantou-se, foi até a mulher que estava

no chão e imediatamente disse: - Por favor, preciso que

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me ajudem a colocá-la em algum lugar onde eu possa socorrê-la. Ela está tendo um infarto.

O líder fez um sinal e dois passageiros que, como ficou claro, pertenciam ao bando, se levantaram e foram ajudar a carregar a doente. Levaram-na para a primeira classe. Falando novamente ao microfone, ele disse:

- Os três minutos se passaram. Lobo, mate, com um tiro na nuca, o primeiro. Já estou começando a contar os novos três minutos.

Lobo, um dos que estavam ao final do avião, cuja cara explicava o apelido, levantou a pistola e, enquanto gritos pareciam sair da boca de todos nós, o tiro soou abafado pelo silenciador e um passageiro, que tentara fi-car de pé, caiu morto no colo do companheiro ao lado. Em seguida, novo e terrível silêncio. A médica, escoltada pelos dois, voltou à sua poltrona e seus olhos nos conta-ram que já eram dois mortos. De repente, ouvimos gritos e choros de pessoas descontroladas e a voz do líder:

- Vamos adotar o critério do descontrole para esco-lher os próximos que irão morrer.

- As pessoas que gritavam e choravam tiveram o apoio dos vizinhos para se acalmarem, mas uma moça não parava de gritar e a um novo sinal Lobo a silenciou com outro tiro. Um homem veio da cabine e disse ao líder que o comandante queria lhe falar. Quando vol-tou, ele nos disse:

- O comandante fez uma sugestão que estamos acei-tando. Sabemos que o espião é um homem, no entanto pode estar bem disfarçado. Os homens da primeira classe vão se levantar um a um, começando pela primeira fileira

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e da esquerda para a direita, e irão ficar em pé no fundo do avião. As mulheres da classe econômica vão se levantar uma a uma, na mesma ordem, mas aguardando o meu sinal. Os homens da primeira classe, já.

A troca de lugares ocorreu sob grande tensão, mas sem incidentes. Quando já estávamos sentadas na primei-ra classe, um dos homens mandou a senhora que estava na poltrona à esquerda da primeira fila se levantar e tirar a roupa. Com todo o constrangimento fomos examina-das minuciosamente, com a maioria chorando baixinho de revolta e vergonha. Ninguém disse uma palavra. Uma senhora bem idosa tremia tanto que não conseguiu desa-botoar sua blusa. Levantei o braço e só abri a boca quando o homem me perguntou o que eu queria. Pedi permissão para ajudá-la e a obtive com a condição de que fôssemos para o corredor para que ele nos enxergasse melhor. Não consegui mais saber o que se passava na classe econômica. A cabina estava fechada. Ouvimos mais um tiro e quase todas as mulheres soltaram gritos e choros, sem que os homens que nos vigiavam esboçassem qualquer reação. Ouvimos, então, o líder dizer:

- O sacana imperialista foi identificado e executado. Peço-lhes a atenção para as ordens que vou dar agora. Se todos as seguirem vão terminar a viagem sem mais problemas. Viajamos muito para não despertar suspeitas e entramos no avião no Brasil sem as armas que vieram com uma ajuda de fora. Vamos descer em primeiro lugar, um de nós que já foi sorteado ficará na cabine com todos os tripulantes, dando tempo para deixarmos o aeropor-to. Vocês todos vão agir normalmente, sem comentários,

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sem uma palavra sobre o que ocorreu. Se houver qual-quer reação de qualquer pessoa nos comunicamos com o companheiro a bordo e a tripulação vai pelos ares. Não se esqueçam de que nosso companheiro está preparado para morrer, portanto pode levar alguns com ele. Agora, o comandante manda avisar que já estamos prontos para a aterrissagem em Paris. Coloquem os cintos e as poltro-nas na posição correta. Os comissários que vão abrir a porta do avião venham ficar sentadinhos perto da porta. Quando eles abrirem a porta, nós vamos sair e vocês per-maneçam sentados até nosso companheiro dar a ordem pelo microfone do comandante.

Tudo aconteceu como ele havia ordenado. Desem-barcamos no maior silêncio, pegamos nossa bagagem, passamos pela alfândega como se fôssemos mudos. Está-vamos em pânico. João me esperava e, quando me abra-çou, desencadeou uma tremedeira que o deixou muito assustado. Tive dificuldade de explicar e só consegui dizer que queria sair rapidamente do aeroporto. Quando en-tramos na cidade eu pedi:

- João, por favor, pare em um café, vamos tomar um vinho antes de chegarmos. Preciso de um tempo para me refazer do que ocorreu no avião - e desatei a chorar. Percebendo o absurdo da situação, consegui me controlar e contei sucintamente o ocorrido. João, assim que conse-guiu uma vaga, parou o carro, me abraçou e falou:

- Você não prefere ir para o apartamento? Meu amigo ainda está viajando e podemos, com toda a tran-quilidade, tomar nosso vinho e comer a massa que pre-parei para você.

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Depois da primeira taça do vinho, pude respirar mais aliviada e apreciar a deliciosa comida que João havia capri-chado. Soubemos, pelo rádio, que as autoridades já haviam entrado no avião, encontrado os cadáveres, inclusive o da-quele que ficara na cabine. Ele deu um tiro na própria ca-beça assim que liberou a tripulação. Não soubemos a iden-tidade do grupo. Contei ao João com detalhes os terríveis momentos que passamos no avião e lhe pedi:

- Você me faz um grande favor? Conte para todos os que quiserem saber do ocorrido. Não quero ficar repetin-do. Quero mais é esquecer.

- Claro. Fique tranquila, não deixarei ninguém ficar perturbando você.

- Agora vou tomar um banho, pode ser?João foi gentil e me deixou ir para a cama logo após

o banho. Na manhã seguinte, após o café, quis ir ver Eli-sabete e, embora já estivesse informada sobre seu estado, tive um choque; ela estava muito magra, só se via a bar-riga. A criança, segundo os exames, estava bem. Parecia que tirava da mãe toda a energia. Soube, então, que hou-ve até a proposta dos médicos de um aborto, pois con-sideram essa gravidez como um fator de altíssimo risco para a mãe. Ela não quis. Sabe que será quase impossível uma outra vez e preferiu correr o risco. Todos foram con-tra, mas ela continuou irredutível, o que me pareceu ser mais um sofrimento para o marido.

Depois da visita, como João tinha um compromis-so, deixou-me no apartamento. Resolvi me preparar para a missão nada fácil de substituir a Teresa na conversa que ela gostaria de ter com o filho. Ele chegou quando eu

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tomava um chá e aceitou me acompanhar. Falei sobre a preocupação de seus pais e do pedido que sua mãe me havia feito e, com muito carinho, lhe ofereci o ombro. Senti que Teresa tinha razão... Estácio estava angustiado com a doença da mulher, mas havia algo que lhe causava um sentimento do qual ele se negava a falar.

- Estácio, você está com raiva?- Raiva!? Claro que tenho raiva dessa doença infer-

nal que veio atrapalhar nossa vida. Não é justo! Só quero viver com Elisabete, curtir nossa vida. Nem conseguimos retomar uma rotina depois do casamento e da lua-de-mel e estoura essa bomba em cima da gente. Tínhamos planejado trabalhar duro e viajar nas férias. Imagine que chegamos a fazer roteiros para cinco férias. Iríamos co-nhecer o Brasil e somente depois, no sexto ano, é que pensaríamos em sair do país. Agora estamos aqui, em Paris, nesse pesadelo.

- Belos planos! - Sonhos irrealizáveis!- Vocês viajariam com um bebê?- Não haveria filhos antes do décimo ano.- Estácio, vocês fizeram planos de curto e longo pra-

zos! Tem razão de todo esse sentimento de revolta, mas então a gravidez de Elisabete não foi planejada?

- Não por mim.- Meu querido, você está me dizendo que sua mu-

lher lhe omitiu alguma coisa?

Estácio se levantou, quase derrubou a xícara que es-tava em sua mão, foi até a janela, balbuciou algo que não

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entendi e ficou de costas para mim um bocado de tempo. Tive vontade de ir abraçá-lo, senti sua dor imensa e o chamei:

- Vem aqui. Sei que não posso substituir sua mãe neste seu momento de tanto peso, mas você sabe que lhe quero um bem enorme. Fale comigo, chore, xingue, gri-te, mas ponha para fora esse sentimento que o está tortu-rando. Acha que Elisabete...

- Ela fez de propósito. Quando percebeu que algo estava errado quis engravidar e sabia que qualquer um seria contra. Me enganou! Por isto não quer abortar!

- Ela lhe confirmou isto?- Sim. Ela disse que quer ter um filho e depois do

tratamento vai ficar estéril. Prefere morrer a pensar que não será mãe.

- Não! – Murmurei. Eu estava assustada com o quadro.- Tenho feito tudo que posso para me controlar, mas

estou mesmo com ódio de minha mulher! Se não fosse sua doença eu a teria deixado com seu maldito bebê!

- Veja lá, se não fosse a doença, o perigo que Eli-sabete está correndo, ou seja, o medo de perdê-la, você jamais falaria isto do bebê. Vocês estavam felizes com a gravidez!

- Não sabia que Elisabete havia me enganado e nem que optaria por correr o risco de me deixar viúvo!

- Você tem mais que motivos para se sentir assim, mas lembre-se de que existe o lado dela. Para muitas mulheres a maternidade tem uma relevância primordial na vida.

- Ela está aumentando as chances de morte e não de vida. Os médicos já disseram que essa opção dela não tem

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o aval deles. Corro o risco de perder a mulher e ficar com um filho que não quis e cada vez quero menos.

Ele falava com dificuldade, a respiração curta, ten-tando, com muita valentia, segurar suas emoções.

- Estácio, vamos ter calma e buscar uma solução. Uma coisa precisa ser feita imediatamente. Você precisa trabalhar esse sentimento de raiva. Isto só faz mal para você e se essa criança nascer, você é o seu pai.

- Não posso nem pensar nisto.- Quem sabe dessa atitude de Elisabete?- Ninguém mais.- Ela está com algum acompanhamento psicológico?- Sim. O tratamento está na primeira fase que ainda não

faz uso da droga principal que pode ser abortiva. Elisabete é a primeira mulher grávida a receber esse tratamento. Os mé-dicos estão preocupados com o emocional dela se ocorrer o aborto e com a vida se não ocorrer. Não é um pesadelo?

- É. Veja lá, primeiro você precisa falar com o tera-peuta que está apoiando a Elisabete. Marque uma con-sulta e reproduza esta nossa conversa e suas emoções com toda a honestidade. Consulte-o sobre a possibilidade de você autorizar o aborto.

- Não. Não vou fazer com ela o que ela me fez. Seria muito desrespeito.

- É preciso saber a opinião do terapeuta. A decisão você vai tomar no sentido a ou x depois. Estamos falando da vida de sua mulher! – Quase gritei.

- Sei que você tem razão. Quando penso que Bete prefere morrer, me deixar, a não ter um filho... não vou perdoá-la nunca.

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- Não viva emoções futuras. Ainda não aconteceu nada.- Como não!? – Ele me interrompeu furioso. - Ela

está doente e grávida. Ela me traiu!- Desculpe. Você tem razão, mas continua não ven-

do o lado dela.- Se eu não visse, não estaria nesta porra desta cidade!- Estácio, não permita que seu sofrimento lhe en-

venene assim! Esta situação dolorosa vai passar e você vai conviver com você o resto de sua vida. Cuidado com você, meu querido. Vamos tentar ver o que pode ser feito. Concorda em ir depressinha falar com o terapeuta?

- É, acho que sim. - Então vamos combinar: você fala com ele e, em segui-

da, vem pra cá para acertarmos os próximos passos. Certo?- Tá bom.- Tenho outros assuntos para conversar com você. Fiz um movimento com a mão indicando o depois

como resposta à inclinação de cabeça dele que queria me estimular a falar.

- Agora, só preciso lhe dizer, meu querido, o quanto estou admirada de sua resistência, solidariedade e digni-dade. – Quando olhei para Estácio, vi que, enfim, ele chorava. Aí, pude abraçá-lo e acarinhá-lo.

Após a saída de Estácio, senti que precisava andar. Fui ao lugar onde, em outros tempos, elegi como meu ponto. Andei por todo o Jardim de Luxemburgo, en-tregando-me a lembranças quando minha vida era tão diferente. Em alguns cantos, os canteiros me pareciam tão familiares que as flores de anos atrás deviam ter sido

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replantadas no mesmo lugar. Procurei pelo vendedor de crèpes e, embora até sentisse o aroma do recheio de cho-colate, não o achei. Será que morreu, ficou bem de vida e abriu um restaurante ou perdeu a licença para vender no espaço público? Escolhi a segunda alternativa e fui procu-rar algo para comer com a fantasia de que o encontraria. Encontrá-lo não foi possível, mas me dei ao luxo de mais um retorno: comi crèpe de roquefort e, como sobremesa, de chocolate com amêndoas.

Na volta ao apartamento, fiz uma associação bas-tante desagradável: a desonestidade de Elisabete no pre-sente e a do João, no passado. Assim que cheguei, liguei para o Estácio que não estava, o que me salvou de co-meter uma grande tolice, pois acho que eu teria contado pra ele o quanto Elisabete se parece com o avô. Deveria tomar mais cuidado. Cabia a mim, naquele momento, ter a calma de que todos estávamos precisando para me-lhorar a situação.

Percebi, no entanto, como seria difícil estar com o João naquela noite. Liguei para Salete, amiga que morava em Massis – uma cidade ligada a Paris pelo metrô - a quem eu iria visitar na próxima semana. Sugeri anteci-par minha ida e fui para lá, onde passei a noite. Salete é uma jornalista que saiu do Brasil à época da ditadura e não retornou mais. Casou-se com outro refugiado, com quem teve dois filhos. Adotaram a França e optaram por morar fora de Paris, porém num apartamento grande com espaço e jardim para as crianças. Elas, hoje, já lhes deram netos que sempre conseguem uma desculpa para ficar com os avós. É uma família pouco ortodoxa e me

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deixa sempre muito à vontade. São todos alegres, descon-traídos, gostam de rir e não permitem tristezas. São tudo de que eu precisava.

No dia seguinte, ao me dar o bom dia, Salete disse que estava esperando alguém para o café da manhã. Foi uma grande surpresa quando o alguém entrou. Era Isa, a mulher do Marcos. Foi uma inspiração minha ida a Mas-sis, porém fiquei bastante dividida entre estar um pouco mais com Isa e voltar rapidamente para ver Estácio. Sabia da situação dela e de Marcos e podia deduzir o quanto gos-taria de saber mais dele. Há sete anos estavam separados. Embora me pareça uma separação bem fajuta, trouxe sofri-mentos inerentes a qualquer separação. Ela e eu trocamos os telefones e combinamos de nos encontrar assim que me fosse possível um pouco mais de tranquilidade.

Em minha volta, já mais fortalecida, encontrei João me esperando para o almoço. Seu olhar era um interroga-tório silencioso que ignorei com certa satisfação e me des-cobri má, vingativa, transferindo a dor de Estácio para meu coração e, envergonhada, soube que era uma boa desculpa para descontar em João algo que nunca consegui perdoar. Avô e neta, farinha do mesmo saco. Pobre e honesto Estácio ou seria pobre e honesta Mariana? Em nome dessa hones-tidade não tive a grandeza do perdão, expulsei o amante e estava prestes a fazer o mesmo pela segunda vez, perdendo também o amigo e fracassando na ajuda ao Estácio. Entrei no apartamento, me sentindo forte e apaziguada, e ao ver João um mar de conflitos me dominou.

- Ma - ele não usava este apelido há tanto tempo –, você está tão estranha. Não sei o que estou vendo em seus

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olhos: raiva, mágoa, tristeza, indiferença. A cada instante fico mais confuso. Fale comigo, por favor.

- João, me perdoe, estou mesmo bem insegura e quero muito conversar com você, mas com tempo e só nós dois.

- Estamos a sós.- Não em nossa cabeça.- Fale por você.- Ah! Não vou brigar, não tenho energia para isso.

Preciso procurar o Estácio.Enquanto falava, me levantei e fui me sentar perto

dele que me puxou para si. Eu tinha ternura para lhe dar. Ele ficou imóvel, expectante. Procurei seus lábios e aí depositei um levíssimo beijo. João me olhou, perple-xo. Pegou minha cabeça em suas mãos e, olho no olho, devagar, interrogativamente, foi aproximando sua boca da minha. Seus lábios fechados encostaram nos meus e, numa dúvida, foram se abrindo, buscando caminhos tão conhecidos, esquecidos e, agora, conquistados. Quando orquestradamente suas mãos levantaram minha blusa, meu corpo reconhecia a batuta e, com a liberdade de que é capaz, exprimiu a paixão que nenhum conflito pode inibir. Senti-me levantada, com os olhos fechados, não fiz questão de saber se era levitação ou estava sendo carrega-da e depositada numa cama quente, flutuante. As mãos, as bocas, as pernas se misturaram, perderam a identidade, na busca da complementação. O sentir dos cheiros, dos sabores, das texturas foi a condução dos prazeres dados, tomados, no crescer sábio das chaves escondidas, achadas. Os movimentos de uma dança de corpos se transforman-

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do em um único conduziram ao momento maior. Ele se afastou, buscando meus olhos e nossas lágrimas lavaram nossos sorrisos que, finalmente, explodiram num gemido do amor vitorioso.

Estácio teve dificuldades com a terapeuta, cuja pos-tura ética não lhe permitiu interferir no problema do casal, alegando que sua cliente era a Elisabete. No entan-to, abriu a possibilidade, caso os dois quisessem e com o objetivo explicitado, de atender o casal conjuntamente. Marquei, com o Estácio, um encontro num café perto do Instituto, onde Elisabete estava fazendo o tratamento. Ela ficaria lá duas horas. Era tempo suficiente para eu contar a ele a minha estória com o avô de sua mulher. Foi o que fiz com grande despudor, mostrando o que o sofrimento dele havia descoberto em mim e a minha vitória que, enfim, possibilitou a nós João e eu vivermos nosso momento de glorioso retorno e, eu esperava, novas construções. Sua reação não foi tranquila.

- Não acho que uma relação primária possa viver com a deslealdade – disse num tom angustiado.

- Também eu. Concordo com você e não mudei mi-nha forma de pensar e meus valores quanto a isto. Só acho, agora, depois do que vivi e do que você me mos-trou, que não vi o outro lado, aliás, até este instante não permiti ao João uma palavra de defesa. Sei que não há defesa para a deslealdade, porém, saberemos nós de toda a verdade? No seu caso, há um outro lado muito forte, instintivo. A maternidade não pode ser conflitante com qualquer forma de amor.

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- Não sou santo.- Ainda bem - respondi sorrindo, mas ele não es-

tava dando lugar para nada ameno, então, continuei. – Queria passar para você minha experiência e, depois de tanto sofrimento, meu alívio. Você não tem que esperar anos para isso.

- Elisabete não me dá essa chance. Ela vai embora antes. Ela vai morrer! – ele desabafou.

- Gostaria muito, muito mesmo que você se abrisse para outras possibilidades. A de Elisabete, na terapia de casal, perceber o absurdo de sua posição e concordar com o aborto ou este vir espontaneamente.

- Ela é cabeçuda. Vou falar com ela ainda hoje sobre a terapia de casal. É minha esperança para que ela perceba o quanto foi desleal, resolvendo sozinha engravidar agora.

- Você me permite contar ao João o que vocês estão de fato vivendo?

- Pode, com a condição de ele não falar com os pais dela. A mãe acabaria contando para o pai e pronto. Aí Bete teria também o seu motivo para me despachar.

- Entendo e farei João prometer cumprir essa cláusula.- Mariana, vou indo. Bete pode terminar antes que

eu chegue lá. - E daí?- Como e daí!?- Percebe? Na realidade, você está cuidando dela com

muito amor – falei provocando um quase sorriso que me deu grande esperança de aquela tempestade passar logo.

Foi delicioso entrar no apartamento e encontrar o João. Estávamos mais leves. Busquei e encontrei o amigo-

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amante que completava as minhas frases e pude contar-lhe o drama que Estácio estava vivendo. Sua reação, um misto de angústia e impotência, foi se abrandando na medida em que percebia a possibilidade de a terapia de casal mudar a situação.

- Você não acha – eu lhe perguntei, quase com timi-dez – que é a pessoa que pode ajudar a Elisabete?

- Como? Por experiência? Vou dizer a ela: tal avó, tal neta?

Não pude evitar meu espanto, pois eu havia pensado nele como exemplo de deslealdade, me esquecendo da estória da filha que ele fez sem saber. Não fiz qualquer comentário e busquei sair logo daquela armadilha.

- Imagino que, com o pai meio esquisito que ela tem, o colo do avô deve ser sempre um bom aconchego e acho que, se a terapia ajudar a desanuviar o cenário, Elisabete vai precisar mais ainda de carinho e estímulo para dar conta do recado e consertar sua relação com o marido.

- Bete é minha única neta de uma filha que só conhe-ci quando já era adulta. Sempre estivemos muito juntos. Você tem razão. Amanhã, vou dar um jeito de colocá-la no meu colo e tentar uma boa conversa.

- Ainda há outra coisa que nem discuti com o Está-cio, mas que Teresa me contou. Ele recebeu o convite que tanto esperava do Canadá e tem parece que apenas três meses para estar lá.

- Meu deus! Como esses meninos vão aguentar?! - Vamos, agora, nos concentrar na questão da gravi-

dez e das consequências que ela trouxe para o casal. Con-corda que se eles estiverem bem facilitará todo o resto?

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- Sim, claro.- Estou com fome. Ontem, comi crepe. Sabe o que

eu queria agora? Pizza.- Ah! Aquela pizza que você dizia que era melhor

que a de Roma?- A melhor do mundo, com aquele queijo que derre-

te por inteiro e as bordas tostadas, a massa fina, Ah! Não me diga que a pizza modernizou!

- Vamos procurar a melhor pizza do mundo. Que al-guma boa entidade tenha compaixão de mim. Você hoje resolveu me dar as tarefas mais difíceis.

- Antes, diga-me uma coisa, João, você se converteu a alguma religião?

- Não. Continuo ateu. Por quê?- Bem, foi, então, força de expressão? Você invocou deus

e alguma entidade – ele sorriu meio tristemente e disse:- Antes fosse. Sabe o quanto invejo quem tem esse

tipo de fé.- Ah! Sabe quem está aqui, em Paris? A Isa.- É mesmo? Não a vejo há tanto tempo! Você esteve

com ela? - Muito rapidamente, na casa da Salete. Ficamos de

nos encontrar. Vou ligar pra ela. Está hospedada na casa de uma amiga.

- Ela está bem? Casou-se novamente?- Com o Marcos? - Como assim? Estivemos com o Marcos em São Pau-

lo e ele estava solteiro. Bem, pelo menos foi o que pensei.- Sim. Você tem razão até certo ponto.- Mistério no pedaço!

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- É que cada vez sinto que eles estão menos separados.- Faz um bocado de tempo que Marcos está moran-

do sozinho.- Sete anos! Pode ser que eu esteja enganada! Você já

ouviu alguma vez Marcos dizer minha casa e casa da Isa? Ele fala “lá na Raposo” e “lá no apartamento”.

- Na Raposo é a casa onde eles moraram antes de se mudarem para o apartamento da Pompéia e pra onde ele foi depois da separação? – João quis confirmar.

- Isto mesmo. Agora, por questão de logística, ele está indo “lá na Raposo” somente aos sábados. Fica mais fácil para dar assistência a seu pai que demanda sua pre-sença toda noite. Nunca vi uma desculpa mais esfarra-pada! Até parece que a casa fica longe! É verdade que meus parâmetros são outros, moro no rural, mas... não me convenceu. O que você acha?

- Você os conhece bem melhor que eu. Acho Isa uma mulher que sabe o que quer. Determinada, pronta para a briga justa, muito religiosa e dedicada à família e a seu espiritismo. Será que ela é de câncer? Muito mãezona.

Ele a descreveu e depois perguntou:- Terá mudado?- Não. Concordo com o seu perfil. No espiritismo,

ela tem um trabalho social bastante amplo e permanente. Os sábados lhe são sagrados. Acho que ela vai conseguir tirar Marcos “lá da Raposo”, logo que voltar ao Brasil. E – elevei a voz em dois tons - minha pizza?

- Vamos lá.

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Fomos visitar Estácio e Elisabete que estava, como sempre, pajeada pelos pais. A mãe, Irina, é sensata, forte e, felizmente, a líder do casal, mas há algo de cruel em seu olhar. O relacionamento dela com o marido me dei-xava constrangida. Ele parece contaminado pela forma de ser do irmão, preconceituoso quase sempre achando que sabe bem mais do que é verdade. Gosta de tomar decisões que quase nunca dá conta de cumprir. Irina domina uma relação deprimente, porém demonstra saber onde pisa, não entra na discussão, apenas age e ele, por maior ênfase que tenha dado numa decisão, faz ao contrário se é o que a esposa quer e, o mais interessante, parece acreditar que foi ele quem escolheu o caminho contrário. Nos momen-tos mais duros, não há indícios de desprezo nas atitudes dela. Aceita o marido e o maneja. Foi difícil, porém João deu um jeito de ficar a sós com a neta e Estácio me con-vidou para uma caminhada. Acabamos entrando no café que já conhecíamos e ele pôde me dar a boa notícia de que Elisabete concordara com a terapia de grupo, mas acrescentou melancolicamente:

- Nosso casamento foi pro espaço! Ela não me vê. Não quero mais ficar com ela.

- Calma. Você precisa de tempo para absorver o que ela fez e não está encontrando ambiente favorável à paz de que está precisando – tentei desviar um pouco a ten-são. – João vai ajudar. Elisabete vai perceber o quanto sua vida é importante para as pessoas que a amam.

- Aí que está: não a amo mais. Morreu o que eu sentia. Ela fez seus planos, quero fazer os meus. Tenho tido uma luta ferrenha para pensar no tratamento e tudo

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o que significa, mas só penso no Canadá.- Teresa me contou da bolsa que recebeu. Você tem

três meses para decidir, não é?- Só não sei como, mas que vou... já fui!- Veja, você está entrando numa terapia de casal.- Com o objetivo explícito de salvar a vida da Elisabete,

convencendo-a a interromper essa gravidez de altíssimo ris-co, enquanto ainda é tempo. Não vamos para a terapia para salvar a relação. Não tenho vontade nem de discutir isso.

Ele falava com um sofrimento avassalador. Sua ju-ventude estava contaminada. Olhos tristes, olheiras pro-fundas, lábios para baixo, parecia ter vivido muitos anos nestes dois meses desde que saiu do Brasil.

- Estácio, se você ainda pode esperar três meses para dar sua resposta, use todo esse prazo. Não importa que já tomou a decisão. Você pode ficar com ela sem espalhá-la. Não pode?

- Posso, mas não vou mudá-la. Preciso saber como vou deixar Elisabete no meio desse horrível tratamento, com tudo o mais, pai, despesas, cuidados e sei lá mais o quê – ele mostrava toda a contradição de sentimentos em que vivia.

- Quando você estiver menos preocupado com tudo isso, poderá encarar o Canadá mais tranquilamente. En-tão, vamos dar mais tempo para estudar o como.

- Ma, eu teria enlouquecido se não tivesse você aqui.- Sua mãe queria muito vir, como não conseguiu,

insistiu para eu antecipar minha vinda. Sabíamos que você não podia discutir Canadá com a família de Elisa-bete. Acho que, agora, João já poderá entender seja qual for sua decisão.

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Quando João me contou a reação de sua neta, tive muita pena dos dois jovens e fiquei torcendo para Estácio conseguir recuperar seus bons sentimentos em relação à mulher. Quando entrou no quarto de Elisabete, João não deu sequer meia volta, foi diretíssimo, embora num tom ameno, amoroso, com o braço em seu ombro e olhando-a bem nos olhos, perguntou:

- Você resolveu sozinha ficar grávida?- Sim – ela estava deitada na cama. O avô continuou:- Ama seu marido?- É claro! - Não, não é claro. Você precisou dele para colocar

em prática uma decisão só sua. Você continua achando que tem este direito, com a agravante de saber que se trata de alto risco? Já se colocou no lugar dele?

Meio raivosa, meio encabulada e bem sofrida, ela respondeu:

- Não sei o que se passa na cabeça dele. Quando lhe contei que minha gravidez não foi um acidente e não vou interrompê-la tive medo do seu olhar, sua boca se fechou num risco só.

- Pois, então, eu vou lhe dizer o que ele deve estar pensando e sentindo. Você sabe que sua avó também me usou para o que ela chamou de “produção independen-te”. A sensação é de muita raiva pelo desrespeito. E, no meu caso, não havia uma relação de amor, de confiança, de construção conjunta de caminhos, como imagino que tenha sido o seu casamento.

- Vô, você está falando como se o casamento já não existisse, como se eu já tivesse morrido!

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- Oh! Nada disso, minha menina. Você vai sarar e viver muitos anos. Estou é achando que sua doença não vai salvar seu casamento se você não perceber o que fez com ele. Seu ato foi muito, muito grave. Sua doença está sendo tratada da melhor forma possível. Está mais do que na hora de você ajudar seu marido a perdoá-la.

- Perdoar-me por querer ser mãe?!João lhe pegou as duas mãos, beijou-as com ternura, co-

locando toda sua capacidade de amar naquele gesto e disse:- Você fez uso de seu marido como um objeto e corre

o risco, se não interromper essa gravidez, de deixar o filho para ele criar. Onde foi parar seu bom senso? E, agora, acha que o problema está em querer ser mãe?! Seu gesto é de amor? A quem? A um filho que você, por escolha, vai deixar órfão? Perdoe seu avô, minha queridinha, não vou permitir que você me deixe dessa forma.

Ele sabia o quanto estava sendo duro e até cruel e ela demonstrou isto, caindo num choro quieto, quase silen-cioso, o choro do inexorável.

– Tenho certeza de sua cura, por isto estou lhe falan-do desta forma. E vou ser ainda mais terrível porque você precisa saber o que fez e para quem. Legalmente, Estácio pode dar a autorização de que os médicos precisam para interromper a gravidez e ele está respeitando sua decisão com todo o sofrimento nas costas dele.

- Ele quer fazer terapia de casal para discutirmos a gravidez.

- Então aproveite, é a sua chance. João terminou a conversa com um abraço, sabendo

que não havia dado o colo que ela esperava. Seu instinto lhe

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dizia que a neta precisava mais era de uma boa sacudidela por mais que doesse. Elisabete não estava vendo as propor-ções reais da situação que vivia. Antes de temer pela vida da neta, temia por uma grande desilusão. Suas experiências lhe mostravam que ela iria perder o marido e, em sua fragilida-de e egocentrismo de menina mimada – sabia também de sua grande participação nessa parte -, nada percebia. Como reagiria se perdesse ao mesmo tempo o filho e o marido?

Na primeira sessão da terapia do casal não se discu-tiu a gravidez porque Elisabete começou a falar do medo de morrer, descontrolou-se e a psiquiatra se viu obrigada a lhe aplicar um sedativo. Foi levada para uma sala de repouso, onde dormiu por mais de duas horas. Estácio chegou ao apartamento onde estávamos transtornado, dizendo que não aguentava mais. Interpretou a atitude da esposa como mais uma cena desonesta para evitar a discussão sobre a gravidez. João nos surpreendeu lhe dando razão. Penso que ele está se sentindo culpado pe-los mimos excessivos que sempre dispensou à neta. Deu uma sugestão que avalizei e Estácio acabou por aceitar até com certo alívio: os dois trocariam de lugar. João iria buscar Elisabete e passaria a noite com ela, dizendo-lhe que Estácio estava comigo por se sentir muito cansado. O estratagema deu bons resultados. João soube lidar com a situação. Os pais de Elisabete não interferiram, pois só tinham conhecimento da doença da filha, nada sabendo dos dramas periféricos tão dolorosos.

Pela manhã um novo enfrentamento esperava neta e avô. Elisabete deveria estar bem cedo no Instituto para

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nova sessão. O médico – Dr. Paul Capri, um dos amigos de João - os recebeu e lhes disse que após a sessão Elisa-bete ficaria em observação pelo menos por quatro horas, pois iriam entrar na segunda etapa do tratamento. Já ha-viam melhorado o quarto destinado a ela. Montaram-no com os móveis e toda a parafernália de equipamentos de uma UTI, mas havia uma poltrona perto da cama, com luz de leitura para um acompanhante. Também lembrou que, como já haviam explicado, os medicamentos pode-riam provocar o aborto. Não estavam preocupados com o risco para a paciente, uma vez que a gravidez ainda estava no início. Elisabete teve outra crise de choro, pediu para adiar a sessão e, quando o médico não concordou esclare-cendo ser prejudicial ao tratamento, João interveio,:

- Minha filha, já é tempo de você ser responsável. Quer ou não quer viver?

- Quero ter meu filho! – ela berrou. João virou-lhe as costas e saiu da sala fazendo um

sinal para que o médico o acompanhasse. No corredor, ele explicou:

- Paul, vamos dar um tempo para ela de 20 minu-tos, pode ser? Você me oferece um café ou vai adiantar alguma atividade e eu fico quieto por aqui. O que quero é deixá-la sozinha um pouco.

- Tudo bem, Você me dá licença, estou mesmo pre-cisando dar um telefonema. Volto daqui a 20 minutos.

Algo bateu na cabeça da garota. João a encontrou sen-tada, de olhos ainda úmidos, porém refeita, e foi dizendo:

- Você tem razão, vozinho. Vou fazer o tratamento comme il faut.

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- Grande menina! Pense no seguinte: a medicina está numa evolução rapidíssima, poderá haver meios de outra gravidez.

- Não. Agora só vou pensar no que você vem me martelando: vou viver.

O médico, como que adivinhando, entrou em seu so-corro e João pôde disfarçadamente enxugar suas lágrimas. Ficou segurando a mão de Elisabete durante toda a sessão, enquanto os medicamentos pingavam no soro intravenoso.

João chegou quando Estácio e eu tomávamos o café. Foi para o bar e se serviu de uma boa dose de conhaque e suas mãos tremiam. Cheguei perto, ele me abraçou e desa-bou, chorou e ainda chorando sorriu para Estácio e disse:

- Nossa menina fez a primeira sessão da segunda eta-pa do tratamento.

Foi a vez do Estácio se manifestar: pulou e gritou viva! Antes de completar as quatro horas, Dr. Paul ligou para avisar que Elisabete estava bem, mas a equipe deci-dira mantê-la em observação até o dia seguinte. Justificou pela expectativa do aborto. Ainda avisou que a terapeuta estava de sobreaviso para qualquer necessidade. Convidei os dois para um passeio que foi imediatamente recusado. Queriam dormir. Haviam passado a noite em claro e es-tavam mais relaxados e exaustos. Enquanto João se pre-parava para seu sono reparador, me troquei, liguei para a Isa e fui me encontrar com ela.

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5. A Briga pela Vida

Elisabete só foi liberada 24 horas após a medicação. Sentia-se, às vezes, um pouco tonta, o que, segundo os médicos, era esperado. O que não estava bem era o in-chaço e a cor. A pobrezinha parecia inchar a cada minuto e seu rosto tinha um tom cinzento. À noite, ela começou a sentir uma tontura mais forte a ponto de impedi-la de se levantar e, então, disse que não se lembrava da última vez que urinara. Irina ligou para o pai que imediatamen-te falou com o pesquisador-plantonista do Instituto e, seguindo sua orientação, levou a neta para lá. Ficamos sabendo a gravidade da situação, alguma coisa saíra do controle, os resultados deveriam ser exatamente o contrá-rio. O grande perigo da doença era a parada dos rins, o que podia estar ocorrendo.

A equipe do Dr. Paul foi chamada. Os exames, feitos naquela emergência, indicaram o colapso dos rins, com a necessidade urgente da hemodiálise e de uma boa trans-fusão de sangue. Como a transfusão já fora prevista para uma outra etapa do tratamento, os pais de Elisabete ha-viam doado o suficiente para duas transfusões. Iniciou-se o processo de hemodiálise e, em seguida, a paciente começou a sofrer uma hemorragia; estava sendo inter-rompida a gravidez. Suspenderam o processo e iniciaram

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a transfusão ao mesmo tempo que faziam a curetagem. Pediram mais sangue e várias pessoas da família vieram, inclusive o irmão do Charles que, ao contrário do que todos esperavam, não abriu a boca. Entrou e assim que pôde, foi embora para alívio geral.

Como não podíamos ficar no Instituto, ficamos aguardando no apartamento alugado por Estácio, bem perto. Pela manhã, a pressão e a temperatura de Elisabete já muito baixas, continuavam caindo, colocando a equi-pe médica num alerta total. Depois da curetagem prati-camente não havia mais sangramento, porém nada de os rins reagirem. A paciente permanecia recebendo trans-fusão. Num determinado momento, Dr. Paul chamou João e, sem qualquer rodeio, disse:

- Preciso de uma autorização para um procedimento demasiado arriscado.

- Se não for feito? – João perguntou sabendo que não iria gostar da resposta

- Ela sobrevive por apenas algumas horas.- Preciso falar com o marido e os pais. - Então, faça isto já.- Qual é o procedimento?- Repetir a sessão feita ontem.- Não foi o medicamento que provocou o colapso

dos rins?- Não. Esse é o pior sintoma da doença. Avaliamos

que a dose foi baixa. Os rins não chegaram a ser bene-ficiados, mas o medicamento abortivo fez o seu ataque, desencadeou a perda do sangue. Isto pode ser positivo se conseguirmos vencer a preguiça dos rins.

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Paris estava no meio da estação doirada, o outono. As folhas das árvores amarelavam, algumas já começavam a cair forrando o chão de cores entre o marrom e o ouro. A temperatura ainda era bem agradável. João saiu do Institu-to e, apesar de toda a pressa, precisava se preparar para en-frentar a dor dos outros, escolher o tom dando esperança e não fatalidade. Resolveu andar até uma pequena praça, onde ficou dando voltas embaixo das árvores. Sentindo-se mais seguro, reuniu a família e depois de alguma discussão tensa e dolorosa, Irina decidiu dar total liberdade à equipe do Dr. Paul e ninguém falou nada mais.

João e Estácio foram para o Instituto e ficamos aguar-dando sem saber o que fazer numa tensão que tive receio de o ar se liquefazer. Após um tempo que nos pareceu de muitas horas, voltaram contando que Elisabete já estava tomando a segunda dose, com algumas modificações. To-mava soro e sangue e estava sendo monitorada por uma quantidade de aparelhos que nenhum de nós conseguia entender direito do que se tratava. Iniciou-se novo proces-so de hemodiálise. Mais 24 horas e a situação não mudou. No 3º dia, o rim direito resolveu voltar de suas férias e algumas horas depois Elisabete recuperou a consciência. Os médicos decidiram não sedá-la mais. Estácio teve per-missão para falar com ela, mas estava tão fraca que mal conseguiu piscar sinalizando que o ouvia. Entretanto, com todo esse quadro, o Dr Paul estava eufórico e toda a equipe parecia em festa. Todos com olheiras, correndo, fazendo análises e alegres. Era um clima de vitória no Instituto de tal forma que ficamos mesmo achando que Elisabete esta-va fora de perigo. De repente, Charles falou:

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- Não podemos nos esquecer de que eles são pes-quisadores e estão comemorando o resultado da pesquisa deles e não a possibilidade de cura da Bete – Irina e o pai se mostraram irritados e ele falou rispidamente:

- Qual a diferença? Estão lutando pela pesquisa e, consequentemente, pela vida da paciente.

- Não é a mesma coisa. Para a pesquisa basta que os medicamentos não tenham matado a paciente.

Irina levantou-se com o braço para cima, temi que fosse dar uns tabefes no marido. Apenas apontava para o Instituto, dizendo:

- Charles, talvez seja a hora de você descansar um pouco e aprender a respeitar quem está sem dormir há algumas noites para salvar a vida da nossa filha.

Estácio, com muito domínio, salvou a situação nos chamando para ver um guarda correndo atrás de um jovem negro. Fomos para a janela e pudemos ver um rapaz, deveria ser africano, desses que vêm ao Brasil ga-nhar a Corrida de São Silvestre. O rapaz estava numa verdadeira maratona de obstáculos, com umas bananas na mão e um policial atrás. O da frente corria com agili-dade e graça. O policial devia apreciar a comida italiana e a cerveja belga, preferência demonstrada por sua barri-ga que tomava a dianteira. Percebia-se certa dificuldade de acompanhar o perseguido, mas não desistia, pulava e resfolegava. Irina disse:

- Ele vai perder a barriga!Numa sincronia estranha, mas divertida, algum

gaiato lá da rua gritou:- Cuidado com a barriga, seu guarda!

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Neste instante, o policial saltou uma caixa de pape-lão, pisou justo numa das bananas que o jovem deixara cair ao chão. Vimos o pé calçado com uma bota preta ir para cima como se estivesse numa marcha forçada, a ou-tra bota subir mais alto e o corpo todo tombar, a grande barriga tomando conta da calçada, enquanto as costas, no chão, era todo o apoio para seu corpo inerte. Ele pareceu não ter mais pressa, pois lá ficou com a cara vermelha, vendo os transeuntes lutarem com a vontade de rir. Nós não lutamos, apenas gargalhamos, pois foi, de fato, uma cena impagável. Ninguém soube dizer para onde foi o jo-vem africano com suas bananas. Eu particularmente lhe fiquei muito grata.

Foram ainda vários dias de impotência para todos nós, enquanto Elisabete travava sua luta ferrenha e par-ticular. Por sua escolha, somente Estácio e João tinham acesso a seu quarto. Pude, então, admirar a postura forte e compreensiva de Irina. Charles se sentiu humilhado, rejeitado. Ela muito racionalmente tentava explicar ao marido a preferência, naquela hora, da filha pelo avô e uma fala sua, muito honesta, pareceu acalmar Charles:

- Está na hora de reconhecermos. Você é muito ra-bugento, implicante, quer paparicá-la, mas só faz irritá-la. Eu sou exigente, controladora, enquanto o avô lhe dá segurança. Ela está em melhores mãos.

Todos tentávamos nos ocupar com tarefas práticas. Charles foi para a cozinha e nos ofereceu um delicioso ca-nard ao vin. A meu pedido, Estácio preparou um drinque diferente para cada um. Irina se encarregou de escolher os cds e os trocava logo após a primeira música. João jogava

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xadrez no computador e eu apenas lia. O telefone nos as-sustou, era Teresa, do Brasil. Estácio fazendo grande esforço para se manter no controle, deu as últimas notícias e me pas-sou o fone. Soube que Valdir tentara falar comigo. Em se-guida, liguei para a chácara. Felizmente, a notícia era sobre o primeiro corte do junco que havia sido feito e rendido mais do que nossa estimativa. O comprador cumprira o contrato, o dinheiro estava na minha conta e tudo estava bem. Pedi a palavra solenemente e contei que eu era a rica produtora de junco. O casal francês – Irina e Charles – só percebeu minha brincadeira quando contei que a “safra” não pagaria o salá-rio do Valdir. Eles acharam que minha produção abasteceria uma grande indústria. Foram bem positivos os telefonemas brasileiros, pois introduziram assuntos mais leves naquela sala. Após saber, mais uma vez, que Elisabete mantinha o quadro, fomos cada qual para seu canto, deixando Estácio só para um repouso. João e eu fomos direto para o aparta-mento e ficamos bem juntos assistindo a um filme.

Somente depois de uma semana é que o rim esquer-do de Elisabete ofereceu uma considerável ajuda a seu companheiro da direita, o que foi comemorado pela equi-pe do Instituto e por todos nós. Estácio ligou para seus pais e pareceu aliviado e quase feliz. Mais três dias e Dr. Paul mandou-a para casa. Estava com uma cor melhor e o inchaço era bem menor. Esses dois aspectos mudaram as feições de Elisabete e ajudaram a melhorar o clima geral. Haviam feito uma façanha: Elisabete não se viu no espe-lho durante a fase pior do inchaço. A terceira dose dos medicamentos seria a última a ser aplicada no Instituto e foi marcada para 30 dias após a segunda. O programa

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estabelecido pela equipe do Instituto previa ainda outras doses dos medicamentos, porém poderiam ser aplicadas até em casa desde que fossem por um médico com as de-vidas orientações. Iniciou-se, então, uma outra fase que exigia algumas definições, nem todas muito fáceis. Elisa-bete manifestou a vontade de voltar para o Brasil. Estácio ainda não se sentia à vontade para discutir com ela a ida para o Canadá e um mês já se passara.

Agora, foi a vez de a terapeuta propor algumas ses-sões com o casal. Elisabete não tocara no assunto do aborto, o que deixou a psiquiatra bastante preocupada. As sessões seriam diárias desde que Elisabete se sentisse disposta. Pelo depoimento dos dois, foram dolorosas e eficientes as horas daquela terapia. Elisabete sofreu muito ao reconhecer sua deslealdade com o companheiro quan-do da tomada de decisão de se engravidar sem sequer consultá-lo. Estácio enfatizou o fato de ela correr o risco de deixá-lo viúvo, não aceitando interromper a gravidez apesar de os médicos terem avisado que ela poderia mor-rer. Ele não foi nada ameno, ao contrário, mostrou seus sentimentos e suas dúvidas e depois, na segunda semana, introduziu a opção Canadá. Elisabete encarou isto como uma revanche e outra crise foi novamente desfechada. Na visão dela, Canadá só apareceu porque o marido queria uma desculpa para se livrar dela. Na verdade dele, ela não queria ver – e daí generalizava –, porque estava habituada a só enxergar o que lhe interessava. Bastava se lembrar de quando ele havia se inscrito, ou seja, em momento anterior à descoberta da doença e, em comum acordo, os dois se mudariam para o Canadá. Os dois tinham planos

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quanto a seu futuro naquele país. Enquanto Estácio faria o estágio em direito internacional, ela se dedicaria a uma pesquisa para seu mestrado e ainda tentaria assistir, como ouvinte, a alguns cursos. A bolsa dele era suficiente para o sustento do casal. Assim, não aceitou a versão dela e, pior, a viu mais uma vez como desleal.

A terapia conseguiu o ambiente adequado para um acerto menos traumático. Elisabete e o avô iriam para o Brasil assim que ela tivesse autorização médica e faria o restante do tratamento lá, enquanto Estácio seguiria para o Canadá. Após a recuperação de Elisabete, os dois se encontrariam para um novo acerto.

João me contara que a neta queria morar com ele, nesse período do tratamento. Os dois iriam para o apar-tamento de Elisabete que já cobrara do pai a ajuda fi-nanceira prometida. Charles, então, decidira custear to-das as despesas até o término do tratamento, inclusive a contratação de um médico e de uma enfermeira. Esta para cuidar de Elisabete, acompanhando-a o tempo todo e aquele para o tratamento, fazendo os contatos necessá-rios com a equipe do Dr. Paul. É claro que foram horas de discussão e, mais uma vez, Irina deu a palavra final que Charles acatou. Para ele era extremamente difícil aceitar o fato de a filha excluir os pais e a França, mostrando uma preferência absurda pelo avô e pelo Brasil. Estácio ligou para o Brasil pedindo à sua mãe para procurar os dois profissionais. Quando peguei o fone, percebi Teresa mais aliviada, porém ansiosa, querendo entender detalhes difíceis de serem explicados por telefone.

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Na véspera da última sessão no Instituto, Elisabe-te estava quase com sua aparência normal. Insistiu para marcarem as passagens para dois dias após a sessão. Iri-na e Charles resolveram tudo e conseguiram levar a filha para ficar com eles esses últimos dias. Estácio ia entre-gar o apartamento à imobiliária, então fomos juntos e consegui a transferência do contrato por mais um mês. Paguei 15 dias com a condição de completar o aluguel no início da quinzena ou, se preferir, entregar o imóvel. Para mim foi uma ótima combinação, pois me dava uma boa margem de liberdade. Estácio concordou em adiar sua viagem e ficar com a esposa até sua partida para o Brasil.

Avisei ao João que eu iria ficar mais uns dias. Nem um pouco surpreso, comentou que seria absurdo meu retorno sem desfrutar nada da viagem. Correria o risco de passar a associar Paris com problemas. Em seguida, me contou que a polícia francesa e a embaixada brasileira queriam falar comigo sobre o sequestro do avião. Ele ha-via conseguido adiar até o dia seguinte, quando alguém da embaixada passaria para nos acompanhar à polícia. Tranquilizou-me, pois já havia estado com essas autorida-des e dado toda a minha versão dos acontecimentos. Eu iria apenas assinar o depoimento e, se necessário, corrigir alguma coisa. Não seria nada agradável, mas também não perdi o sono por isto. Com exceção dessa desagradável visita, João e eu passamos os três dias preguiçosamente. Dormimos, ouvimos música, fizemos amor e conversa-mos muito. Saímos à rua apenas para saborear alguns pratos especiais, acompanhados de todo o vinho que bra-sileiros, na França, têm direito. No dia de sua viagem,

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João me ajudou a levar minhas malas para o apartamento de Estácio e lá nos despedimos. Na saída ele me disse:

- Agora você vai poder curtir sua Paris e fico dividido entre feliz, por saber você bem, e triste, por não conseguir jamais fazer parte disso.

- Disso? - Da sua solidão.- De novo você está confundindo.- Sei. Acho que está aí a grande diferença entre nós.

Você gosta de estar só e isto não é solidão?!- Não é. Preciso ficar um pouco sozinha, comigo.

Vou aproveitar para revisitar alguns lugares. A primeira vez que vi Paris era também outono, mas não o início. Já beirava o inverno e o frio era doído para quem vinha da tropicália. Estou curiosa para saber como verei o que vi há tanto tempo. Quais as emoções que se repetirão?

De repente, percebi que estava me perdendo em lembranças e João, o avião. Falei depressa:

- Acho bom você ir buscar Elisabete antes que seja tarde para seu voo.

- Até lá – ele disse ao meu ouvido, enquanto me abraçava.

- Boa viagem e boa sorte.

Embora eu tivesse boas lembranças de minha viagem a Europa em companhia de João, desejava mesmo rever a Paris da minha época de estudante. No primeiro dia, após desarrumar as malas, sai e comprei, na primeira padaria, um bom vinho, pão e queijo. Liguei a TV no canal 5, as-sisti a um antigo filme e depois ao debate sobre o que aca-

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bávamos de ver. A impressão que tive de volta ao passado foi vívida. Àquela época, eu morava em uma chambre de bonne no sexto andar, sem elevador, na Avenida George V, nos Champes Elisées. Quando retornava da École Pratique, passava por uma padaria e era esse o meu maravilhoso jan-tar, algumas vezes partilhado com Emma, a colega peruana com quem me identifiquei bastante. Infelizmente, depois que voltei ao Brasil, a perdi. Por várias vezes tentei contato via cartas, porém estas me foram devolvidas. Minhas vizi-nhas eram duas espanholas refugiadas da ditadura Franco e com elas comemorei sua queda em uma grande passea-ta. Também lá quase fui assassinada por um vizinho árabe explorado. Eu estava exatamente vendo um filme quando ouvi, em português, vozes que diziam:

- Qual é o número?- Deve ser mais no fundo, é seis.Fiquei atenta, ouvi meu vizinho gritar algo que não

entendi, mas o merde chegou bem claro, assim como a resposta: merde deux fois. Abri a porta e vi, no corredor, três amigos brasileiros e também o árabe em sua porta. Pedi que meus amigos entrassem rapidamente e fui até o vizinho com a intenção de lhe apresentar minhas des-culpas. Sabia que estava descansando de uma jornada ab-surda de trabalho e devia ter ficado irritado com meus amigos que falavam no corredor, embora não fosse ainda 22 horas. A porta de sua chambre estava aberta e ele abai-xado de costas. Cheguei até lá e chamei:

- Messieur?Ele se pôs de pé, virou para mim e, com um grito

horrendo, levantou o braço direito em cuja mão um pu-

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nhal não deixava dúvidas quanto à sua intenção. Corri para a minha chambre e fechei a porta que me salvou, o punhal ficou lá cravado. Depois de duas horas tran-cados e mal balbuciando, meus amigos e eu saímos pé ante pé. Liguei para o meu senhorio, Mr. Gusçlu, um professor da Universidade de Versailles, que gentil-mente, no dia seguinte, tomou todas as providências. Acompanhou-me à polícia para o boletim de ocorrên-cia e, em seguida, transferiu-me para outra chambre nas imediações da Place de la Republique. Perdi o charme dos Champes Elisées, porém ganhei mais espaço e um amigo.Mr. Gusçlu se sentiu responsável pelo “terrível trauma” da noite anterior. Explicando o ocorrido com meu vizinho, descreveu-me a situação dos imigrantes, de países subdesenvolvidos, que fugiam da miséria de origem para um mundo de exploração cruel. Os empre-gos recusados pelos franceses lhes eram oferecidos em condições, na maioria das vezes, subumanas.

Insistiu em me preparar uma refeição, demonstrando a funcionalidade da cozinha tão compacta que ele próprio havia montado. Mr. Gusçlu comprara várias chambres e as transformara com muita criatividade, mobiliando-as de forma a oferecer um conforto razoável. Possuíam até chuveiro, não vaso sanitário que era comum a todas as chambres do 6º andar.1 Ele as alugava a estudantes, em ge-

1 Os prédios até o 5º andar possuíam apartamentos, enquan-to no 6º andar ficavam as chambres de bonne (quartos de empregada) desses apartamentos. A partir do momento em que as empregadas domésticas de todos os dias inteiros que dormiam no emprego não estavam mais disponíveis, os donos dos apartamentos passaram a vender essas chambres.

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ral estrangeiros. Cheguei a ele por um anúncio colocado na cantina da Aliança Francesa.

Conversamos muito, descobrimos, mutuamente, aspectos fascinantes de nossas respectivas culturas, tão di-ferentes. Ele era turco, conseguira uma bolsa de estudos e fizera engenharia em Paris, obteve a cidadania francesa, prestou concurso e foi nomeado professor da Escola Téc-nica Superior de Engenharia de Versailles. Nunca mais voltou a seu país. Vivia só, mas se gabava de ter grandes amigos franceses. Mostrou-se uma pessoa encantadora e, a partir daí, com a minha mais completa aquiescência, me adotou. Mandava-me, via correio, convites para alguns espetáculos de teatro, concertos, ballet e outros passeios. A resposta deveria ir pela volta do correio para que ele viesse me buscar em casa, como fazia absoluta questão. Eu sempre achava que a carta não chegaria a tempo. O correio parisiense nunca nos deixou na mão, mas sempre me deixava surpreendida. Alguns lugares preciosos, belas pracinhas escondidas dos turistas, salas de cinema de arte e até mesmo alguns pequenos castelos – uma França fora dos guias – foram-me apresentados competentemente por Mr Gusçlu.

Uma dívida que nunca pude pagar. Dizia-me que era um privilegiado por estar na França, em Paris, na Academia. Era um engenheiro humanista. Ao descobrir que minha área era filosofia, passou a me provocar com alguns textos. Sua preferência era discutir as contradições irreversíveis entre o marxismo e o existencialismo. Em uma bela noite, discutíamos a peça de Bretch que acabá-vamos de ver e escuto, num tom bem sério:

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- Cuidado com o que você diz para um aplicado aluno de filosofia!

Ele se matriculara na cadeira de Estética no curso de filosofia. A partir daí, estudamos e elaboramos muitos textos juntos, tanto os de interesse direto do meu curso, quanto do dele. Privilegiada fui eu que desfrutei de sua sabedoria tão generosa.

Quando de meu retorno, combinamos que ele pas-saria suas próximas férias no Brasil. Dois meses depois, recebi a notícia de seu falecimento, em consequência de uma queda naquela escada de seis lances, na avenida Ge-orge V. (Que lugar maldito!) A enfermeira que cuidou dele me comunicava. Junto com a carta havia um brinco que eu esquecera na chambre. A enfermeira explicava que ele, ainda consciente, lhe pedira para me avisar que iria faltar a nosso encontro no Brasil.

O som da campainha me tirou do passado. Era Irina, elegante num conjunto azul turquesa, uma bela echarpe amarela, combinando com os sapatos e a bolsa, porém havia um quê de insegurança, algo estranho nela.

- Olá, Mariana, desculpe-me por vir sem avisá-la. Se incomodo, volto depois.

- Entre, Irina. É um prazer recebê-la. Só espero que es-teja tudo bem. Sente-se. Vou pegar um cálice para você me acompanhar no vinho. Estou tomando uma refeição em homenagem aos meus tempos de juventude: pão, queijo e vinho. Ainda acho que é a melhor combinação na França.

- Obrigada. Vou acompanhá-la. Também acho que são os três melhores ingredientes que temos.

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- No canal 5 estava passando um filme muito antigo com Jean Marais que você não deve conhecer a menos que tenha, como eu, mania de filmes antigos.

- Não sei se posso falar em mania, mas normalmente aprecio as fitas antigas. Não conheço esse ator Marais.

- Nesse filme, ele faz o papel de um cigano que foge com a moça prometida ao filho do chefe da tribo. São, então, perseguidos numa longa caminhada pela monta-nha. Assisti a esse filme quando adolescente e me lem-brava da cena em que a garota exausta quer parar para dormir e ele, sabendo-os acossados de bem perto por to-dos os homens da tribo, insiste com ela, puxando-a pelo braço para continuar a subida, e diz: “Vamos, meu amor, não se dorme na noite de núpcias”. Quase volto aos meus devaneios e Irina, uma mulher prática, exclama:

- Ah! É uma fita bem romântica!- Irina, já teve notícias do Brasil?- Não, mas deve estar tudo bem. Eles ainda não tive-

ram tempo de se instalar. Vim conversar um pouco com você porque sinto que temos muito a nos falar. Quero trocar algumas confidências. Você concorda?

- Se eu puder fazer essa troca e você achar que isso vai ajudá-la...

- Quero lhe contar a estória dos meus pais e gostaria que você me contasse o que não sei da estória da minha filha e seu marido. Antes que, por sua incrível discrição, se recuse, tenho a autorização de meu pai e de minha filha. Não sei se posso dizer que os conheço muito bem, mas, há muitos dias, sei que não fomos Charles e eu informa-dos de todos os aspectos do que ocorreu. Não os culpo.

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Meu marido não é uma pessoa fácil, demasiado emotivo e nem sempre tem o controle de seus atos. Se eu fosse colocada a par, o risco de Charles saber era bem maior. Entendo. Antes de Elisabete embarcar, falei com ela sobre isto e tive sua confirmação. Sugeriu-me ela própria que a deixasse partir e depois, então, falasse com você. Sobre meus pais, é a minha estória.

- Tudo bem, Irina. Se eu estivesse em seu lugar, não sei se teria a sua elegância. Acho que ficaria bem magoada por minha filha me esconder algo importante, porém é bom para todos você ter o entendimento dos motivos que levaram Elisabete não querer lhe contar. Ela, ao saber de sua doença, resolveu, sem consultar o marido, engravidar.

O mais objetivamente que consegui relatei a Irina o que havia ocorrido. EIa ouviu sem me interromper, ao final, estava triste e comentou:

- Elisabete perdeu o marido. Não posso dar razão à minha filha. Estácio não pode mesmo aceitar e duvido que esse casamento sobreviva. Ele foi para o Canadá e, com certeza, não voltará tão cedo.

- As sessões da terapia de casal ajudaram os dois a se entenderem. Resolveram, em comum acordo, que Elisa-bete fará o restante do tratamento no Brasil, como você sabe, e Estácio ficará no Canadá, conforme as exigências da bolsa. Deixaram em aberto um novo acerto, depen-dendo dos sentimentos deles.

Eu estava desconfortável nessa conversa e preocupa-da com a reação de Irina que, mais uma vez, foi extrema-mente racional, embora se mostrasse bastante abalada.

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- Mariana, a sensação é que estou definitivamente ligada a decisões alheias das quais, de algum modo, mi-nha vida depende, e eu vejo, discordo e não posso mudar. As repetições são enlouquecedoras. Como você já deve saber, minha mãe fez a mesma coisa com meu pai, com duas diferenças: não estava correndo riscos de morte e não queria vê-lo mais. Escolheu alguém, cuja possibilida-de de rever era quase nula, preparou tudo para uma transa fértil e achou que estava tudo resolvido, sem questionar o significado para as outras pessoas envolvidas. Não pen-sou no parceiro que lhe proporcionou a viabilidade de ser mãe e nem em mim que nasci e cresci sem pai. Quando comecei a cobrar dela o conhecimento de meu pai e ela me disse que mal sabia seu nome e nacionalidade, achei que era uma desculpa absurda até que compreendi que ela havia feito algo mais absurdo ainda. Daí, deixei bem claro, se ela não o encontrasse, eu iria embora para o Bra-sil e achando ou não o pai eu não voltaria mais.

- Imagino, Irina, como deve ter sido difícil para você e também para ela.

- Para ela?! Se fez o que bem quis! – A mágoa e a raiva voltando em sua fala.

- Você a rejeitou! Ela fez o que achava certo – tentei contemporizar, sem nenhum resultado.

- Certo só para ela. - Você tem razão. Só que a capacidade, o potencial e

os valores das pessoas são diferentes. Sua mãe não conse-guiu ver um possível sofrimento da futura filha. Quis ter uma filha, sem ter de suportar um marido e julgava ser capaz de cuidar de uma criança sozinha.

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- Não é muita prepotência?- Você sentiu isto na pele, mas ela não. É claro que se

pudesse ter esse discernimento, não faria o que fez. Com absoluta certeza, queria o melhor para você.

- Não me fez nada bem. - Você não acha que a dor, a mágoa, a raiva todos os

sentimentos negativos fazem mal par quem os sente? Acre-dito que são as causas das piores doenças. Tenho uma dívi-da com Elisabete e Estácio. Depois de ter visto o sofrimen-to de Estácio pude aceitar alguns fatos da minha vida.

- Você está falando do Papai?- Sim. Ainda não sei explicar o processo que vivi, o

que ocorreu em mim. Ficou fácil estar com João. Não sig-nifica que aceito aquilo que julgo desleal, mas passei a ver as limitações dele, como as minhas próprias. Fiquei ima-ginando quanto do meu lado negativo ele suportou. Para mim sua deslealdade havia sido absoluta. Agora, consigo ver que foi relativa. Para os valores dele, pelo menos à época, seu grande erro foi o que ele chamou de infideli-dade. E veja, Irina, não foi o que me afetou, porque não creio que alguém possa ser fiel a não ser a si próprio. O fato de ter transado com outra pessoa não diz respeito a não ser a ele próprio, mas mentir, esconder significa, para mim, traição. Naquele momento, nada apagaria a feiura dessa traição. Não permiti a ele sequer tentar me mostrar o seu lado, ou seja, o lado dos seus valores. Ele conseguia entender a traição no ato de transar com outra pessoa, mas achava que me esconder, me mentir não era tão grave. Há ainda algo melhor, a serenidade que esse entendimento me deu.

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- Você permitiu, enfim, que Papai lhe mostrasse o lado dele.

- Sim. Depois de tantos anos, conseguimos falar a respeito. O interessante é que nos parecemos tanto! Era comum eu ouvir algum amigo perguntar “o que João vai achar disso?” Também acontecia com ele.

- Só que você não é macho e ele é. Os valores que a educação dá aos homens são bem diferentes que os dados para a mulher.

Achei interessante esta observação vir de uma francesa.- Concordo, mas não recebi esses valores, ao con-

trário, tive que batalhar, como toda a minha geração, para exercer minha liberdade e paguei muito caro. Às vezes, me parecia que era mais caro do que podia pagar. Você não acha que depois de algum tempo de vida, varia de acordo com a maturidade, vivência, as pessoas podem rever os valores recebidos e rechaçá-los ou aprimorá-los?

Irina, parecendo falar para si mesma, disse:- Os filhos estão longe de ser nossas cópias.- Ainda bem! Veja você. Se foi sua mãe quem a edu-

cou, não era para você ter os mesmos valores, portanto, aceitar e até louvar o fato de ser “filha só de mãe?”

Irina me olhou e sorriu com um ar de “bem feito”’ ao me responder:

- Acho que para seu castigo saí mais a Papai que a ela. Sabe que Mamãe planejou com requinte de detalhes a minha concepção? Usou o apartamento de uma amiga, para que Papai não soubesse seu endereço e ofereceu todo o clima para um encontro irrecusável.

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- Irina, como você sente, hoje, sua mãe? - Antes de ela morrer, para minha salvação, tivemos

uma conversa-ajuste-de-conta. - Que bom. Como foi sua morte?- Infarto fulminante.- A morte que todos queremos, não?- Para quem vai é realmente a melhor forma. Foi

duro para mim. Fiquei muito tempo perplexa. Parecia que eu conseguia sentir todas as emoções de uma vez: tristeza, alívio, raiva, dor. A que mais durou foi a grati-dão. O fato de Mamãe ter batalhado tanto para conseguir conversar comigo sobre meu pai e até me acalmar foi, como eu disse, a minha salvação.

- Você é religiosa? - Acredito em Deus, o criador, mas não pratico ne-

nhuma religião. Não tive qualquer informação religiosa e casei-me com um católico, ou melhor, de uma família católica, porque Charles apenas se diz católico. Casamos e batizamos nossa filha na religião católica. Por que você perguntou?

- A forma como você falou “a minha salvação” me lembrou algo religioso.

- Quis dizer salvação de minha vida. O cristianismo nos emprestou muitos termos.

- Valores e costumes...- Você não é religiosa, é?- Não. Nem tenho muita paciência com os chama-

dos devotos. Acho que se houvesse maior distribuição das riquezas do nosso mundo não haveria tanta necessidade de o homem se apegar à ideia de outro mundo.

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- Você está dizendo que o rico não precisa de reli-gião? Mas há tantos ricos devotos!

- Não quis dizer isto. A discrepância entre os povos e entre os homens de cada nação, em termos de bens materiais, leva às injustiças e estas trazem a revolta, o mal-estar da consci-ência, a solidão e outros desconfortos que, por sua vez, fazem o homem buscar as explicações que não encontra para tanta injustiça. Nada mais fácil do que acreditar que sofre aqui, mas, em compensação, irá para o céu ou para outro plano mais ele-vado. É claro que estou sendo simplista, mas é por aí.

- Tenho meus fantasmas. Sinto-me, quase sempre, em grandes contradições.

- Como todo ser pensante.Felizmente, pude ver um sorriso descontraído em

seu belo rosto. Irina é, sem dúvida, uma mulher de forte personalidade, bonita, rosto quadrado sem rudeza, nariz um pouco grande, olhos castanhos, quase pretos, cabelos da mesma cor, usa um corte de cabelo curto, sofisticado, pele muito clara, rosada, é alta e mais para magra. Fiquei me perguntando se não era a primeira vez que via seu sorriso sem ironia ou amargura.

- Mariana, vou-me embora – disse se levantando e se dirigindo à porta. - Gostei muito de conhecer você. Papai soube escolher a mulher da vida dele.

- Está se referindo a mim?Ela riu e respondeu:- Por quê? Foi você quem o escolheu?- Ah! Não sei se houve escolha. Eu também gostei

de conhecê-la e foi muito bom, como diriam na minha terra, foi bom demais.

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- Sua terra?- Nasci no Estado de Minas Gerais.- Lembro-me de Papai me dizer que vocês fizeram

filosofia na mesma faculdade em Belo Horizonte. Co-nheço a UFMG. Quis conhecer os principais lugares da vida do meu herói quando fui ao Brasil pela primeira vez – aí ela já sorria bem mais fácil. - Deixe-me ir embora, senão vamos ficar conversando aqui na porta do aparta-mento. – Deu-me um beijo e se foi.

Bernardo deveria chegar a Paris naquele dia, segundo me informou seu telegrama passado de Amsterdã. Deve ser quase da minha idade, alguns anos mais moço, talvez tenha uns 60 anos, muito ativo. É loiro, rosto vermelho, olhos azuis, nariz fino mais para grande, estatura media-na, magro. É historiador, judeu, filho de portugueses e foi a um Congresso apresentar seu trabalho sobre Spino-za. Parece estar fazendo um esforço para entender suas origens. Sempre discordou de mim quanto à forma de administrar a minha vida que, segundo sua visão, está ab-solutamente desprotegida, além de não ter feito fortuna, não fiz uma previdência privada e, o pior, trato tudo com o coração, em vez de buscar algum bom lucro. Eu, por minha vez, não entendo por que ele não fez economia e não abriu um banco. É um judeu que quer e sabe ganhar dinheiro com as mais diversas atividades, mas sua paixão pelo estudo da história, sobretudo o das religiões, supera tudo. Bernardo diz que história é o seu prazer, enquanto ganhar dinheiro é obrigação, mas quando tem de preen-cher o campo “profissão” ele coloca “professor universitá-

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rio”. Gosto de visitar museus em sua companhia, sempre aprendo muito. Como Bernardo já conhece o Museu do Quai Branly e eu não, fui para lá antes de sua chegada. Minha curiosidade sobre o esse museu de etnologia há muito fora despertada.

Do Quai Brandly, que não me decepcionou, fui me encontrar com Bernardo. Ficou hospedado comigo nesses sete dias que nos restaram em Paris. Fizemos um roteiro pouco ortodoxo para uma semana, mas não deixamos de incluir alguns lugares obrigatórios, o Lou-vre, Versailles. Como era minha expectativa, tive várias e ricas aulas de história. Nossa última noite em Paris foi, é claro, reservada a Montmartre. Escolhi um restaurante bem no alto da colina e, quando estávamos chegando, um competente mímico iniciava sua belíssima encena-ção. Bernardo ficou muito perturbado. Ao término da apresentação me perguntou:

- Quer ouvir uma triste estória de amor?- Já não dizia nosso querido Poetinha que o amor prá

ser grande tem que ser triste? Quero ouvir.- Vamos entrar, pedir uma bebida. Se minha gargan-

ta me trair, a bebida me ajuda. O pequeno restaurante es-tava iluminado quase só com velas, exceção das lâmpadas no bar que ficava num canto da entrada. Em cada mesa havia uma flor diferente, toalhas verdes com listas azuis. Janelas baixas mostravam a Paris boêmia, sedutora. Após o primeiro cálice, ele falou:

- A mímica que acabamos de ver é uma repetição fiel da que vi há 15 anos, aqui, nessa mesma praça, à porta deste restaurante. Será que o mímico é o mesmo?

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- Podemos procurá-lo. O pessoal do restaurante com certeza saberá nos informar onde encontrá-lo. Agora o mí-mico deve estar fazendo outras apresentações, mas ao sair-mos vamos atrás dele, certo? Agora, à estória de amor.

Quis encorajá-lo.- Viemos alguns amigos e eu comemorar a aprova-

ção da tese de doutorado que eu havia defendido naquela manhã. Estávamos bebendo quando nos avisaram que iria começar uma encenação mímica em frente ao restaurante, saímos com nossos copos para apreciar. Havia uma garota magrinha, estatura mediana, cabelos pretos longos, despen-teados dando à sua fisionomia um ar dúbio de malandragem e inocência, salientado pelos olhos grandes, vivos, castanhos claros, às vezes verdes escuros. Ela anunciava o espetáculo que iríamos ver. Enquanto falava, nossos olhos se encontra-ram e me pareceu ter recebido um soco no peito, meus olhos inventaram uma paisagem de estrelas e nuvens. Começou a encenação e a garota veio para perto de mim. Sua função era apresentar o artista e recolher as contribuições do público. Chegou em minha frente e sorriu. Eu sorri, as nuvens me envolveram e o mundo passou a se confundir com ela. Eu a beijei, ela me beijou, tomou do meu vinho e se encostou em mim. A sensação de seu corpo era familiar, como se já tivés-semos nos abraçados muitas vezes. Terminada a encenação, ela me pegou pela mão, mal consegui avisar o amigo que estava mais próximo, e fomos andando pelas ruas de Mont-martre. Passamos a noite andando, sentando em escadas e calçadas, nos beijando, ríamos sem saber de quê. Quando o Sol nasceu, entramos num hotel e fizemos amor. Passamos o dia entre cochilos e carícias. À noite, Mara – era este o

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seu nome – disse que precisava ir se encontrar com o irmão para o espetáculo e, entre lágrimas e soluços, disse que nunca mais nos veríamos. Sou judeu circuncidado, o que ela soube ao fazer amor comigo. Contou-me, então, que, embora ela e o irmão tivessem nascido na França, eram filhos de uma família de alemães nazistas. Fiquei paralisado, pois minha primeira impressão foi de que Mara era uma cigana. Seu tipo físico nada denunciava de sua etnia. Questionei o fato de termos ficado juntos após ela saber de minha origem. Ao que me respondeu:

- Não sou nazista, tenho vergonha por meu pai, mas sei que é impossível você me aceitar.

Comecei a rir de pura alegria, ela não era nazista era tudo que importava. Beijei seu rosto molhado e, carinho-samente, lhe falei:

- Você não me conhece... E se meu pai for um bandi-do? Serei culpado? - Abracei-a e continuei a acariciar, enxu-gando-lhe as lágrimas que continuavam a descer. Fomos nos encontrar com o irmão e, depois da mímica, ficamos juntos mais dois dias, quando, após o espetáculo, Mara me disse que precisava ir para sua casa e que nos veríamos no dia seguinte. Entretanto, em vez de comparecer ao encon-tro, enviou um bilhete dizendo que iria viajar. Depois de muita insistência com o irmão, o portador, soube que o pai havia lhe aplicado um violento castigo físico ao tomar co-nhecimento de que ela estava apaixonada por um judeu, e a trancara em um quarto. Apesar de minha vontade de ir lá acompanhado da polícia, o irmão me garantiu que daria um jeito de tirá-la da casa se eu providenciasse um esconderijo seguro para ela. Disse-me que sabia o quanto a irmã gostaria

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de ficar comigo e iria nos ajudar. Combinamos que Mara ficaria escondida em casa de meus amigos até nosso embar-que para o Brasil. Marcamos, então, um encontro para o dia seguinte. Ninguém apareceu e eu desesperado, pois sequer sabia onde encontrá-los, vim aqui, nesta praça, esperando encontrar o mímico e saber notícias de Mara. Na terceira noite, ele apareceu e me deu a terrível notícia. O pai, após querer obrigá-la a jurar que não me veria mais, deu-lhe um murro, Mara caiu e não se levantou mais. Bateu a cabeça na ponta de uma estátua de bronze. O pai correu com ela para o hospital, sabendo que carregava só seu corpo. Fiquei al-guns dias meio fora de mim, depois reagi como pude, voltei ao Brasil, fiz o concurso para a Universidade e, como você sabe, dediquei-me à cátedra e à pesquisa, não me casei por-que não consegui mais me apaixonar.

Pus minha mão sobre a dele e a apertei. Ficamos em silêncio.

Terminávamos o jantar quando um senhor veio até nossa mesa. Bernardo se levantou e os dois ficaram se olhando, visivelmente emocionados, apertaram as mãos e, meu amigo, não se contendo, lhe deu um forte abra-ço. Era o mímico sem a maquiagem, o irmão. Deixei os dois e fui andar pela praça. Ao voltar à mesa, Bernardo já estava só, parecia calmo, aliviado. Os pais de Mara mor-reram no mesmo ano que ela. O irmão se tornara um concorrido ator de teatro. Há duas noites iniciara, em homenagem aos 15 anos da morte da irmã, uma semana daquela encenação, em Montmartre.

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6. A Vida Ganha Espaço e a Morte Também

Saímos da alfândega e vi Teresa e Jaime que me le-varam um enorme ramalhete de flores, rosas brancas, amarelas e vermelhas, lindas! Os dois me abraçaram ao mesmo tempo e ela foi logo dizendo:

- Sabemos que está cansada e querendo ficar com João. Vimos só lhe trazer as flores e lhe agradecer. Vou aguentar até amanhã para você me contar com detalhes tudo sobre meu filho. Ele nos escreveu, falando do quanto você o ajudou. Queremos muito ouvir a sua versão. Um dia esperamos poder lhe retribuir o favor que nos prestou.

Eu, bastante emocionada, cansada e com uma louca vontade de ir ao banheiro, mas consciente do quanto ga-nhara nessa viagem, respondi:

- Vai ser difícil saber quem deve a quem. As rosas são lindas! Obrigada.

- Lá está João, o lorde! – disse Teresa, apontando para um lado. - Pedi que me deixasse lhe dar um abraço e pro-meti que iríamos embora em cinco minutos. Daqui a pou-co ele se esquece do cavalheirismo e me mostra o relógio. Até amanhã. Ligo para você! Não, espero você me ligar.

Era a minha amiga Teresa, aflita, ágil no pensamen-to, na fala, na ação e, sobretudo, não querendo ser im-

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prudente. Lá se foi, puxando Jaime e me deixando com a mala e as flores. Bernardo não teve tempo sequer de cum-primentá-los. Avisei-o da minha necessidade fisiológica premente, saí correndo para o primeiro banheiro que, felizmente, era a dois passos de onde estávamos. Quando voltei, Bernardo também se despediu. O dia estava claro, a temperatura, amena.

João chegou devagarzinho, aquele sorriso pão-du-ro, me abraçou demorado como se quisesse me escon-der. Pegou minha mala e ainda abraçados fomos para o estacionamento. Já estávamos no carro quando ouvi sua voz um tanto rouca:

- Me dá um beijo?Sorri e aproximei meus lábios dos dele e ele se afastou.- Quero o beijo sem perder este sorriso. Que saudade!Agarrei sua cabeça e nos beijamos como os dois que-

ríamos. Namoramos um pouquinho e fomos para o apar-tamento de Elisabete. João me contou que o tratamento já se fazia notar, mas pareceu-me bem preocupado com o emocional da neta. Mais tarde, depois de algumas horas com ela, compartilhei sua preocupação. Apareceu um in-grediente bastante negativo, a revolta. Elisabete não quis recomeçar a terapia. Queria apenas terminar o tratamen-to e toda decisão sobre qualquer outra coisa deixara para depois. Como o tratamento se restringia a uma sessão semanal, João veio me pedir para os dois me acompa-nharem até a Chácara Xury. Contra a minha expectativa, Elisabete gostou da ideia, mas a observação que fez, ao aceitar o convite, não foi muito animadora. Disse:

- Ótimo! Assim terei espaço para ficar sozinha.

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Decidi vir para casa, já que os dois terão de aguardar a próxima avaliação do médico. Passei pela casa de Tere-sa e respondi, com muita franqueza, a todas perguntas sobre o emocional de seu filho: Estácio está abalado bem mais com o comportamento da esposa do que com sua doença. Ele se preparou para estar com ela durante todo o período difícil do tratamento, acredita na cura, mas não suportou a deslealdade, a mentira e ficou com a sensação de que o amor se foi. Embora tenha sido um companhei-ro irrepreensível até a despedida, bastava observá-lo para perceber o quanto estava desejando a separação, parecia querer ficar só, isolado. No entanto, eu não achava que a estória deles estava terminada.

Chegando em casa, fui recepcionada com a festa de Bia e Bei. Valdir colocou flores nas mesas da varanda e Ilda e Ramon me esperavam no topo da escada que dá para meu quarto. O que será melhor: viajar ou retornar? A sensação deliciosa da chegada estava para ser apagada por uma tragédia que minhas retinas guardariam, contra a minha vontade, por muito tempo e com aquela nitidez das coisas graves.

Como havíamos combinado, Valdir tirou uma se-mana de férias e seu cunhado Mateus veio me ajudar pela manhã. Quando ele foi embora, já na hora de soltar Bia e Bei, verifiquei que Ramon estava deitado no sofá da sala e Hilda, na varanda. Passei e brinquei com ela:

- Você está aí, minha princesinha!Entrei na casa e fui para a cozinha iniciar o almoço,

mas a água da caixa havia acabado. Fui, então, ligar a bomba e, com receio de que Mateus ainda não tivesse sa-

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ído da chácara, fechei o portão que impede os cachorros de saírem do entorno da casa e fui soltá-los. Eles foram para o poste que há perto da varanda, quando olhei, vi Ilda no topo do poste, Ao invés de ela entrar na casa, como faz sempre que vou soltar os cachorros do canil, ela subiu no poste. Fui até o portão para abri-lo e colocar os cachorros do outro lado, isolando-os da gata. Lembro-me de ter pensado que eu teria dificuldades para fazê-la des-cer, como de outras vezes que ela e Ramon subiram em postes ou árvores altos e depois não conseguiam descer.

Quando chamei Bia e Bei, sem entender o porquê, vi Hilda descendo direto para onde os cachorros ainda estavam. Gritei e corri para salvá-la, mas eles já a haviam pegado. Lutei desesperadamente com eles, só via o sangue e o gemido fino da pobrezinha até que percebi o corpi-nho dela inerte. Virei-me e, em pânico, vi a carinha linda de Hilda que já não sentia mais nada. A horrível cena não durou um minuto. Sai dela com a mão, a perna e a alma machucadas, meu sangue escorrendo se misturando ao da Hilda, minha amiga de 10 anos. Meus sentimentos de dor e culpa ainda não me deram trégua. Tive duas certe-zas erradas: a primeira que Hilda havia entrado na casa e a segunda que ela teria dificuldades em descer do alto do poste. Como ela desceu com os cachorros, justamente em baixo do poste, não consigo entender.

A sensação de que fui culpada está me corroendo e a visão da cena não me vai embora. Chorei muito até me lembrar do Ramon que viveu com Hilda por tantos anos. Corri para o telefone para saber da veterinária se haveria algo que eu pudesse fazer para ajudá-lo. Ela me disse que

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ele iria se adaptar e não deveria tomar nenhum calmante, pois ele precisava estar atento aos cachorros.

Já fazia três anos que dividíamos o tempo de liber-dade deles. Pela manhã, os cachorros ficavam presos e os gatos soltos. Fazia minha caminhada e depois os chamava para um passeio pela matinha, voltávamos e eu avisava: “Ilda, Ramon, vou soltar o Bei e a Bia”. Eles, então, en-travam. Bastava falar o nome dos cachorros para os gatos pularem para dentro da casa, seu domínio exclusivo. Por outro lado, tinham a maior facilidade para subir até em paredes, mas não conseguiam descer.

Esta fatalidade me tirou o chão. Ramon passou o resto do dia procurando por Ilda, depois, exausto, dor-miu. Fechei a saída da casa que os gatos usavam quando queriam ir para fora e passei a manter as portas do andar térreo fechadas. Espero que o tempo nos ajude.

As noites sem Ilda ficaram muito difíceis. Ela gos-tava de se deitar sobre minhas pernas, enquanto eu lia, sentada, encostada na cabeceira da cama. Ramon andou pela casa as noites todas e não veio para a minha cama. Ele miava, eu o chamava, ele vinha punha as duas pati-nhas sobre a cama olhava, como que procurando a com-panheira e saia novamente a andar nos outros cômodos. Na primeira manhã, pus os cachorros no canil e, como de costume, chamei Ramon – quase gritei pela Ilda - para dar o nosso passeio. Ele demorou meia hora para des-cer a escada e mostrava nitidamente sua desconfiança. Quando conseguiu sair para o jardim, foi direto ao local da tragédia e ficou cheirando a plantas por toda a área.

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Dei o tempo todo de que ele precisou. Fiz o trajeto que costumávamos fazer os três, numa tentativa de manter a rotina, mas foi demasiadamente doloroso. Sabia que minha energia, sentida por Ramon, estava longe de ser tranquila e ele procurava o cheiro de Ilda por todo o ca-minho. Quando ele se machucou, escolheu um lugar em cima do meu guarda-roupa. Nos últimos tempos, havia trocado esse lugar pelo sofá, onde me sento à noite para ver algum filme. Ramon voltou para o guarda-roupa. A qualquer barulho, se assustava. De minha parte, não con-seguia ficar sossegada sem saber onde ele estava.

Uma semana depois da tragédia sonhei com Ilda. Tenho bastante dificuldade para me lembrar de sonhos e este foi muito nítido. Eu estava abaixada, ela veio e se encostou em minhas pernas, olhei para ela, me lembrei de toda a tragédia e pensei “Que bom! Ela voltou”. Ilda estava com sua carinha linda, seus olhos verdes, translú-cidos, olhando para mim, como se estivesse esperando eu fixar essa sua imagem. Acordei com a sensação de que era um presente que ela me dava para eu substituir aquela lembrança horrível por essa, a Ilda bela, com o olhar meigo e carinhoso.

Passou-se um mês e eu estava tão absorvida na mi-nha dor que o telefonema de João me deixou atônita. Comunicava-me que, se o convite ainda continuasse de pé, chegariam amanhã. Quase lhe pergunto de que convite estava falando. Precisei mesmo de alguns se-gundos para entender a situação que ficou esclarecida, quando ele insistiu:

- Podemos ir amanhã?

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Chegaram à tarde e tive que imediatamente contar o ocorrido com Ilda, pois João ficara ressabiado com o que interpretou como uma apatia de minha parte, pelos contatos dos outros telefonemas, mas, sobretudo, pelo último. Foi mais um momento de dor com Elisabete, comovida até as lágrimas com minha narrativa e, ao co-nhecer Ramon, deu a ele carinho e dengo que o con-quistaram definitivamente.

Achei Elisabete muito frágil e depois que ela se re-colheu a seu quarto João me fez um relato doloroso da situação. Os médicos, embora não queiram se adiantar, não estão descartando a necessidade de transplante de um rim, já que os dois estão funcionando precariamen-te. O inchaço de todo seu corpo contava essa defici-ência. O pior ainda era o estado emocional que vai da tristeza à revolta sem qualquer espaço para o positivo, como a alegria e a paz. Estácio tem procurado saber no-tícias, nada mais. Ela sabe o que fez, se diz arrependida, mas culpa a doença, o próprio marido. Fiquei solidaria-mente preocupada com o desenrolar dessa estória que não me parecia de muito amor.

- Podemos dar algumas horas de esquecimento ao mundo? – João perguntou, sentado na rede da sala, de-fronte à “namoradeira” onde eu me encontrava. Levan-tando-se, acrescentou: – Posso nos servir de mais um cá-lice de vinho?

- Sim à primeira pergunta e não à outra. Vou acom-panhá-lo na bebida, mas com um chá.

Foi a minha vez de me levantar para ir até a cozinha. Os dois em pé foi um convite ao abraço e ainda ouvi:

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- Se for uma daquelas suas misturas de ervas de Pa-sárgada, eu desisto do vinho.

Desistimos de qualquer bebida. Como sempre, o amor com João foi uma escala inteira, começando com muita ternura, alcançando os altos acordes da paixão, da delícia de uma satisfação ampla e chegando à calma ale-gre do tudo conquistado.

Alguns dias se passaram e Elisabete se mostrava cada vez mais recolhida. João recebeu um convite para partici-par, como crítico, de mais um festival de cinema. Deveria ver os filmes e, além de escrever suas críticas, participaria de debates, o que significaria mais tempo fora. Apesar de entusiasmado, ficou em conflito por deixar a neta num momento tão complicado. No entanto, Elisabete perma-neceu numa total indiferença quando ele abordou o as-sunto. Então, meti minha colher e o convenci a aceitar o trabalho que seria para ele um retorno à cidade de nossa Universidade, Belo Horizonte, depois de muitos anos.

Após sua partida, fiquei bastante apreensiva. Como tratar aquela jovem que parecia só cobrar da vida o que desejava, sem qualquer disposição a esforços? Fisicamen-te, parecia estar no caminho certo. Até a magreza era um sinal que o inchaço fora embora, o rim já não nos dava tanto trabalho. Ela passou a aceitar melhor meus convites aos chás, depois às pequenas caminhadas na mata e, ain-da, à uma parada e um pequeno momento de meditação. A primeira vez que o convite foi aceito na íntegra, come-morei intimamente como uma grande vitória. Pressenti, sem uma exata identificação, o que estava para ocorrer.

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- Elisabete, amanhã, iremos a São Paulo para a apli-cação do seu medicamento. Para que hora está marcada?

- Não vou mais.Quando consegui uma respiração a que pude cha-

mar de normal, me levantei fui ao telefone e liguei para o médico. Identifiquei a chamada, anunciando que pas-saria o fone para a Elisabete e o fiz sentindo seu olhar em brasa. Saí da sala, fui para meu quarto. Estava apa-vorada. Não sabia o que iria acontecer e muito menos o que fazer caso o médico não desse conta de convencê-la a ser razoável e continuar o tratamento. Felizmente, não demorou para ela bater na porta e perguntar se poderia entrar. Abriu a porta e disse:

- Às 11 horas. Começou a chorar, gritando que não queria conti-

nuar a viver e mais uma quantidade enorme de palavras sem sentido depois ainda aos berros:

- Ninguém se importa comigo. Estou aqui com uma estranha, parece que não tenho família e não tenho mesmo.

Resolvido o problema da ida a SP, fiquei mais calma e pude argumentar, lembrando-lhe que a escolha de vir para o Brasil com o avô fora dela. João viajara a trabalho porque ela não se opusera a ficar comigo e também me mostrei ofendida por passar a ser uma estranha. Fui mais fundo, cobrei um pouco de atitude responsável. Ela me ouvia, sem me olhar. Parecia se encolher, acabou sentada sobre as próprias pernas, os braços ao redor de si mesma, imóvel. De repende ouvi sua voz num murmúrio:

- O pai de Elisabete é mãe, o pai de Elisabete é mãe. Eles gritavam, gritavam sem parar.

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Tive dificuldade de ouvi-la e mais ainda de entender. Instintivamente, procurei sua mão que apertava o braço com muita força. Quando consegui que ela se desamarras-se, caiu nos meus braços e começou a soluçar. Chorava e falava baixinho frases rápidas, passando do português para o francês. Custou-me compreender o que se passava e o que ela me contava. Seu pai a levava à escola e seus colegas diziam que ele era sua mãe. Ela não se incomodava, até o dia quando um coleguinha entrou na sala de aula cantaro-lando “o pai de Elisabete é a mãe”, a professora ficou muito brava e o menino falou “o pai dela é maricas”. A classe ficou muda e alguns estouraram em gargalhadas.

- Eu tinha oito anos. Saí correndo da sala e me tran-quei no banheiro. A diretora ligou para minha casa e meu pai foi me buscar. Quando o vi, senti que ia me sufocar, precisava respirar, consegui driblar todos e cheguei até a rua na disparada. Só queria sumir. Atravessei correndo, o carro que vinha freou com um barulho que ficou nos meus ouvidos durante todos os dias em que estive inter-nada no hospital. O automóvel parou, mas o ciclista, que vinha na direção contrária, não me viu e me mandou para o meio fio. Estive entre a vida e a morte por uma semana. Eu acordava e via meu pai debruçado sobre meu rosto, fechava os olhos e não queria mais abri-los. Até que meu avô Jô apareceu. Eu o abracei e disse no seu ouvido: “não quero ver meu pai”.

Continuando a falar no mesmo tom, como se fosse o mesmo assunto, ela dizia:

- Posso por um cd? Você gosta de música alegre? Adoro samba. Vou por um samba. Colocou a 5ª Sinfonia

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de Mahler e, no primeiro acorde, levantou-se, dizendo para ela mesma, “vou andar por aí”. E saiu.

Por uma inércia vinda da perplexidade, ouvi o pri-meiro movimento. Percebendo que não era hora do se-nhor Gustav, que só estava me avivando a angústia de um medo vindo da plena consciência de meu despreparo para aquela situação, me levantei e desliguei o som. Os passarinhos vieram em meu socorro. Um bando de anu branco pousou no ipê próximo à minha varanda e o casal de sabiás, ali residentes, talvez assustados ou querendo dar as boas-vindas aos visitantes, substituíram pertinen-temente a densa música do magistral G. Mahler.

Também em mim se fez a mudança e muito grata, mais uma vez, fiquei ouvindo meus músicos particulares. Senti o quanto sou privilegiada e, fortalecida, peguei al-gumas ferramentas de jardinagem e saí à procura da ga-rota. Valdir me avisou que ela havia saído pela estrada, de bicicleta. Seria aquele um momento em que a solidão é o remédio? Estaria Elisabete tão perturbada a ponto de precisar de ajuda imediatamente? Com estas e outras in-dagações fui para a horta cuidar de um canteiro de ervas e deixar a energia boa da terra entrar pelas minhas mãos, enquanto acalmava meu coração.

Felizmente, tenho minhas terapias e a elas me en-trego com a certeza de bons resultados. Algumas horas depois, eu já estava lavando algumas folhas de melissa para meu chá quando ouvi o sino do portão tocar. Valdir prendeu Bia e Bei no canil e me avisou:

- Elisabete chegou com seu Danilo. Ele tem uma roça de verduras perto da minha igreja.

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Fiquei na varanda vendo Elisabete descer a pé, empur-rando a bicicleta. Vinha acompanhada de um senhor grisa-lho, moreno tostado do Sol, alto, bem magro, meio encurva-do, com um nariz de boxeador, parecia quebrado. Seus olhos eram claros de uma cor que me confundiu - azul esverdeado -, pareciam mergulhados em lágrimas que não caíam e sor-riam, destoando da boca séria, quase fechada, mesmo quan-do falava. Disse-lhes que eu estava fazendo chá e lhes ofereci. Sentamos ao redor da mesa na varanda. Elisabete calada. Da-nilo parecia meio incomodado, começou justificando:

- A menina estava perdida perto da roça. Vim trazer pra ela não se perder outra vez. É longe! Ela andou muito. Foi bom pra conversar.

Olhei para Elisabete e vi que ela estava muito ver-melha, transpirando.

- Você está bem? Ela me respondeu com a cabeça e se serviu de um

bom pedaço de bolo.Quando Danilo se despediu, Elisabete ainda foi com

ele até o portão. Na volta, se deitou na rede e, um pouco ofegante, disse que iria descansar para depois tomar um banho. Fechou os olhos e tive a impressão de que dormiu imediatamente. Preocupada, procurei observar sua respi-ração que foi se normalizando.

No dia seguinte, ao chegarmos à casa de Jaime e Te-resa, esta estava pronta para acompanhar a nora ao hospi-tal. Jaime e eu ficamos em seu escritório discutindo uma matéria de que ele queria minha opinião. Entretanto, ainda estava na primeira lauda quando me disse:

- Quero sua opinião, mas não disso aí. Quero saber

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o que você acha da Elisabete.- Parece que ando nos meus tempos de perplexida-

de. Do que você está falando?- Estácio foi fazer um curso de direito internacional

na Suiça. Pedi para ele procurar João que, à época, mo-rava em Paris. Lá conheceu Elisabete e, um ano depois, voltou casado. Nunca entendi. Por ser neta de um grande amigo, não questionamos muito, ou nada, naquele mo-mento. Quando a conhecemos, percebemos Teresa e eu que esperávamos uma jovem dinâmica, resoluta, corajo-sa, qualidades do avô e da mãe, não dela. Teresa ficou decepcionada e até meio irritada. Eu me senti envergo-nhado, pois percebi minha maldade nessa transferência e passei a fazer o que todos sempre fizeram, mimá-la, o que veio a irritar ainda mais minha mulher.Esse antago-nismo, quando se descobriu a doença de Elisabete, trou-xe Teresa para nosso time de mimadores. Como eu, ela se sentiu culpada e quis compensar. Nossa nora tem o dom de provocar esses sentimentos. Quando você vê, está achando que precisa fazer mais.

Cada vez que falo com Estácio me parece que ele está mais longe desse casamento. É como se se sentisse descompromissado e, por isto, aliviado. Pa-rece querer que a mulher se cure para ele se libertar. Desculpe-me, tanta franqueza. Sei que estou sendo bruto, mas preciso de sua opinião. Quero saber se estou errado nesse julgamento.

A voz de Jaime foi sumindo substituída pela de Eli-sabete, tomando conta da minha cabeça: Não vou mais... Ninguém se importa comigo... não quero ver meu pai... As

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imagens me deixavam com sentimentos contraditórios.- Jaime, acho que compreendo seus sentimentos e

até sua análise. No entanto, estou bastante confusa e sei que a sua jovem nora está precisando de ajuda profis-sional. Acho que não conhecemos todos os aspectos da situação que me parece bastante grave e fui pretensiosa me julgando capaz de substituir o avô nestes dias.

- Aconteceu mais alguma coisa?- Apenas não ando me sentindo confortável. Há

uma coisa que não entendi direito. Elisabete não estava fazendo terapia com uma psicóloga?

- Está. As sessões eram duas vezes por semana. Quan-do ela foi para sua casa, ficou combinado que ao vir tomar o medicamento, no hospital, ela iria também à terapia.

- Então, isto é hoje. Não estava sabendo. Qual é o horário?

- Lamento que ninguém tenha lhe avisado. Do hos-pital, Teresa irá levar Elisabete à psicóloga que deverá atendê-la às 14horas.

- Jaime, vou aproveitar este tempo para ligar para o João e para meu editor. Até mais tarde.

Novamente aquela sensação de que algo inespera-do estava para acontecer. Elisabete me deixava pisando em ovos. Liguei para o João com a intenção de lhe pedir para voltar imediatamente. Ao sentir seu entusiasmo com trabalho, fiz o contrário do planejado, dizendo-lhe que estava tudo bem e desliguei com mais esta contradição: estou sendo leviana e presunçosa ou estaria amedrontada e fugindo da promessa de cuidar de Elisabete?

Ao retornar, Jaime me disse que a garota estava des-

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cansando e Teresa me esperava na biblioteca. Quando entrei, ela estava ao telefone e me fez sinal para fechar a porta. Olhava os títulos nas estantes e comecei a me preocupar com o que ouvia Teresa dizer:

- Ela está ótima e, como já lhe contei no último e-mail, me disse que quer se divorciar. Acho mesmo que ela está com outros interesses. Tenho de desligar. Ligo para você mais tarde. – Voltando-se para mim:

- Falava com um colega de trabalho que se encontra numa difícil situação com a mulher.

Esta sua fala saiu um tanto tensa. Embora eu não ti-vesse motivo algum para duvidar de sua afirmação, fiquei com a absurda certeza de que ela mentia. Eu pensara em discutir com Teresa e Jaime minhas interrogações sobre Elisabete, até achei que devia isto ao Jaime. Não o fiz. Uma urgência tomou conta de mim. Sem muita explica-ção, dizendo-lhes apenas que precisava estar na chácara o quanto antes, atropelei nossa despedida sem qualquer tato. Jaime insistiu para ficarmos mais um pouco. Teresa me olhava silenciosa, entendendo minha desaprovação, enquanto eu percebia uma barreira crescer. Já não contá-vamos uma com a outra. Minha indagação era até onde ela iria. Estava protegendo o filho e parecia não ter escrú-pulos para algum bloqueio.

Durante nossa viagem de volta, Elisabete me contou que o médico foi bastante otimista. Colheu material para novos exames de laboratório com a finalidade, sobretudo, de acompanhar o desempenho dos rins e aprovou o que ela chamou de “suas ervas”. Quando indaguei da sessão com a

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psicóloga, ela respondeu um “tudo bem” e começou a me fazer uma série de perguntas sobre os produtores de horta-liças. Ao final me contou, ou melhor, exclamou:

- O Danilo nunca se casou!Quando minha hóspede se recolheu, chamei Bia e

Bei e fomos andar um pouco. A noite estava amena e o céu estreladíssimo. Os cachorros, felizes pelo passeio, corriam à minha volta. Bei, como sempre, provocando Bia, a der-rubava na grama e mordia-lhe a perna até que ela decidiu dar um basta, rosnou, latiu e ele corria para frente, depois voltava, vinha lamber minha mão à busca de carinho. É um macho: ciumento, possessivo, instável, temperamen-tal, mas quando a fêmea sinaliza, ele entende.

Sempre há uma divisão de tarefas entre os dois que nem sempre entendo. Normalmente, Bia fica mais na va-randa, bem perto de onde estou e ele mais próximo do portão da entrada. Quando percebem algum perigo, ela vai à frente, cheirando tudo, enquanto ele se encosta em mim chegando a me atrapalhar o passo. Observando os dois, quase me esqueci da angústia que me fazia desejar ter sido menos discreta ao telefone com o João. Queria que ele voltasse logo. Sentia que não controlava a situa-ção. Estaria mesmo a Teresa induzindo o filho a um di-vórcio? Por outro lado, Elisabete me deixava tensa. Não sabia qual seria seu próximo passo. Nunca mais falou no marido. Suas emoções podiam explodir sem qualquer aviso e, em mim, a sensação de algum acontecimento iminente se abrandava ou se intensificava, mas não desa-parecia. Terminei minha andança ainda sem sono, embo-ra bem cansada. Recorri à ioga para me acalmar e dormir.

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Meu dia, porém estava se esticando com a campainha do telefone. Era João:

- Estou tentando falar com você há horas.- Fui andar um pouco.- Marquei minha passagem para o primeiro voo,

devo chegar aí na Xury por volta de 10 horas..- Por quê? Você me disse que só terminariam o tra-

balho daqui a três dias.- Você me diz uma coisa e eu sinto outra. Chamei

para ver se você me tranquiliza. O que está acontecendo, porque você está tão tensa?

- Desculpe-me, pode dormir tranquilo. Se estou lhe parecendo tensa é apenas minha insegurança com relação aos melhores cuidados para Elisabete. Ontem, ela teve um momento de recusa do tratamento e, de fato, eu me apavorei. Não sabia o que deveria fazer. Liguei para o mé-dico e ele a convenceu. Está tudo bem. Ela está dormindo profundamente, pois nem ouviu o telefone. Não há mo-tivos para você abandonar o trabalho aí.

- Ah! Tudo bem, então vou, porque estou morrendo de vontade de conversar com você sobre o que andou acontecendo por aqui. Acabei pegando uma tarefa bem interessante, vou coordenar uma edição sobre o evento, com total liberdade. Pode ser em forma de livro, com os textos apresentados ou apenas resumos e críticas.

- Parece mesmo interessante já que você vai elaborar os possíveis resultados e não fazer Anais.

- É isso aí. - Boa viagem. - Morena, amo você. Vamos refazer nosso pacto da

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verdade.- Boa noite.- Até amanhã.Fiquei pensando nesta relação com o João. Temos

uma comunicação de emoções e pensamentos que é per-da de tempo as tentativas que ainda fazemos de omiti-los. Por que, então, tenho tanta rejeição por um novo casa-mento? Ele me ama como gosto de ser amada. Eu o amo. Sei que a lealdade para ele está carregada de preconceito. Ou eu o parei no tempo? Não lhe dou a vantagem de mu-danças naquilo que me magoou. Seria o João capaz de me oferecer a lealdade e não me exigir a fidelidade? A grande parte dos homens da minha geração ainda sofre por não conseguir assimilar nossos direitos, sobretudo o exercício de nossa liberdade. É aqui o nó do problema. Vamos ver esse pacto da verdade...

Dormi um pouco, me levantei e fui para o computa-dor. Havia uma mensagem do Estácio. Pedia minha opinião quanto à convalescença da esposa. Contou que Teresa lhe havia dito que Elisabete teria lhe confessado o arrependi-mento por ter voltado ao Brasil, queria o divórcio e voltaria à França assim que essa fase do tratamento terminasse. Con-tou ainda algumas sutis maldades de autoria da nora. Sábio, Estácio desconfiava da objetividade de sua mãe. Havia um anexo, longo texto que mais parecia um conto.

Quando terminou a palestra sobre os conflitos no co-mércio internacional do café, vi a garota da tatuagem – uma borboleta azul do lado esquerdo da nuca - parada do lado externo da porta por onde os alunos estavam saindo.

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Algumas vezes nos encontramos pelos corredores e uma vez na biblioteca ela procurava o mesmo livro que eu e só havia um exemplar. Eu havia pedido primeiro, mas lhe ofereci a preferência. Ela me chamou de cavalheiro latino. Quando passei por ela e lhe dei meu sorriso mais caprichado, ela me ofereceu carona. Agradeci, explicando que estava indo para meu alojamento que é bem perto. Ela me respondeu:

- Acho que está passando da hora de você ter um nome pra mim. Eu me chamo Stela e, como você já sabe, tenho muito prazer em conhecê-lo.

Tudo isto veio acompanhado de um olhar brilhante, sorridente, maroto mesmo. A boca continuava séria e eu me sentindo um adolescente sem graça, mal consegui articular:

- Estácio. O prazer é meu. Ela, então, soltou uma risada que me pareceu gozadora. - Se você está tão perto de onde mora pode me oferecer

um café? - Claro. Lá fomos nós para o seu carro e para meu quarto. Stela

é linda, amável, brincalhona, suave e bem humorada. É mais baixa que a maioria das mulheres canadenses, não é gorda e tão pouco magra, tem os cabelos castanhos e a pele clara. Preparei o café e pude lhe oferecer até um pedaço de bolo que ela pegou com a mão e deixou cair no chão. Foi o sinal para a descontração. Fiquei, enfim, à vontade e acaba-mos rindo muito não sei de quê.

Temos nos encontrado diariamente. No começo, dor-mia mal, sentindo culpas e mais culpas. Não contava para Stela que eu sou casado e não me sinto casado. Um dia, como sempre, ela me facilitou as coisas me fazendo uma série de

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perguntas relativas à minha vida e depois me disse:- Agora já conheço você.- O pior ainda não. - Então conta logo esse pior. Você é casado e adora sua

mulher?- Sim e não.Contei-lhe, então, minha vida com Elisabete. Não sei

como consegui passar para Stela a impressão que lhe ficou:- Você abandonou sua mulher doente para vir fazer

um curso?!Havia um tal horror em seu olhar que eu abaixei meus

olhos e lhe disse:- Não! Não foi assim!Stela se levantou e falou num tom que mal distingui

as palavras:- Preciso entender, preciso ir embora. Durante alguns dias, não a vi, embora a tenha pro-

curado o tempo todo. Não entendia como ela queria que eu ficasse com Elisabete. Será que eu sou um canalha? Não me sinto nem mais casado com Elisabete, nem que fiz algo ruim. Elisabete também parecia não achar que, apesar de suas enganações, tivesse errado. O matador come, dorme depois de matar! Estou angustiado e confuso. Minha mãe me afirma que Elisabete está querendo se livrar desse casa-mento e Stela me coloca como alguém tão desprezível! Meus sentimentos por Elisabete mudaram rapidamente quando descobri sua flexibilidade de caráter. Será que se deu o mes-mo com Stela?

Parei minha leitura para responder a outras mensa-

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gens, sabendo que o dia seria cheio. Deixei Estácio sem resposta, com receio de só piorar suas indagações. Só iria lhe responder depois de terminar a leitura do seu anexo. No café da manhã, contei à Elisabete que seu avô chega-ria para o almoço. Em meio à sua alegria, houve um olhar de irritação logo identificado:

- Vou sair de bicicleta. - Não seria preferível você deixar o passeio para de-

pois de receber seu avô?- Preciso avisar o Danilo de que não poderei ir al-

moçar na casa dele. Se meu avô chegar antes de eu voltar, faça bom proveito e ele nem notará a minha ausência.

- Elisabete, não gosto e não tolero grosserias.- Desculpe.Saiu correndo. Chamei Ramon para nossa caminha-

da e logo me esqueci da jovenzinha mimada. João chegou justamente quando ela abria o portão para passar sua bi-cicleta. Já voltava.

- Você não está exagerando nos exercícios físicos? Está suada! – ele lhe disse com um olhar muito terno de explícita complacência.

- É por causa da subida, mas eu fui só até ali, nos eucaliptos.

Achei que chegara o momento de deixar claro à mi-nha hóspede que não deveria me colocar como cúmpli-ce em suas manipulações. Buscando um tom ameno e olhando diretamente para ela, eu disse ao João:

- Por sua causa ela foi cancelar um almoço na casa do seu Danilo que mora perto da Igreja do Valdir. Você quer um suco, Elisabete?

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Ela se denunciou ao sair sem me responder, deixando o avô num total desconforto. Seu comportamento me evi-tou muitas explicações. João carinhosamente me pergun-tou se a situação exigia que ele não desfizesse as malas.

- Posso lhe ajudar a desfazer a mala e conversar sobre sua neta mais tarde. Agora me conte sobre seu trabalho.

Feliz com essa deixa, contou o que fez e seu plano para o término do trabalho.

Elisabete fora tomar um banho e ao retornar estava toda faceira e gentil. Com certo alívio, voltei ao compu-tador para terminar minha leitura.

Numa bela noite, escuto uma leve batida na porta de

meu quarto e lá estava Stela, a bela! Olhava-me de uma forma enigmática, séria, sem me deixar ver seus olhos:

- Posso entrar?- Claro, entre.- Você pode me contar tudo de novo? - Não. Posso responder a todas as perguntas que você

me queira fazer.Passamos horas no que foi para mim verdadeira tortu-

ra. Ela me perguntava, eu respondia. Ela mudava de assun-to, perguntava novamente, eu respondia. Só tinha vontade de gritar ‘basta’! No entanto, fazia o maior esforço para me salvar diante dela. Era muito importante pra mim. Quan-do eu já achava que mais uma pergunta me faria perder o controle, Stela me disse:

- Foi muito difícil, pensei que eu tinha uma dor que ninguém mais sentia. Felizmente, conversei com um amigo sobre o que você me contou. É claro que não o identifiquei e

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vocês não se conhecem. Este cara me disse que eu sofri porque só me via sem ver você. Aconselhou-me a fazer o que fiz. Pro-curar você e ficar me moendo até assimilar o seu lado. Acho que graças à sua paciência comigo, posso dizer que difícil foi, porque descobri que estou apaixonada por você.

Ela me olhava com uma doçura tão convidativa, mas não se mexia. Levantei-me, fui até ela, peguei seu rosto e o acariciei. Devagarzinho fomos ficando em pé, colando nossos corpos e sua boca veio ao meu chamado num beijo de delícia. Stela está fazendo doutorado também em direito internacional e temos nos ajudado nos estudos e pesquisas. Passamos cada vez mais tempo juntos. Nunca falamos do futuro. Acho que ambos temos medo de atrapalhar o presen-te. Às vezes, os últimos dias em Paris aparecem como parte de um filme – filme de horror – e não de minha vida. O pior é que não consigo trazer as lembranças boas de meu casamento e quando consigo, num esforço racional, elas vêm frias, sem emoção. Lembro dos acontecimentos, mas não das emoções. Estas eu perdi. Elisabete as apagou, por isto é difícil perdoá-la. Seria tão bom que os amores só deixassem recor-dações de amor. Acredito que o amor para toda a vida pode ser impossível, porém deveria nos acrescentar coisas boas, nos enriquecer. O próximo amor nos encontraria melhor que o primeiro encontrou e pior que o terceiro. As reencarnações de que os espíritas falam careceriam de qualquer sentido, pois iríamos nos aperfeiçoando pelos amores desta nossa vida.

Compreendi a mãe-Teresa. Ela queria ver seu filho livre para o próximo amor. Quem poderia recriminá-la? Respon-di ao Estácio falando de minha alegria ao sabê-lo apaixona-

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do. As paixões vêm para nos levar a uma outra dimensão, só podemos aproveitá-las e, na sua fantasia, há algo de real, o amor nos torna melhores. Sobre Elisabete, afirmei que ela estava no caminho da recuperação física e emocional. Não achei que tivesse o direito de falar além disso, pelo menos por enquanto. Também enviei uma rápida mensagem à Te-resa, dizendo-lhe que entendia o que ela estava tentando fa-zer para ajudar o filho. Só esperava que essa ajuda não fosse feita de forma a trazer barreiras aos amigos.

Estou começando a sentir falta de minha solidão. Te-nho vivido pouco a minha vida. Vou tomar mais cuidado.

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7. Minha Direita Não Está Vaga

Após o almoço, Elisabete novamente pegou a bici-cleta e saiu, sem qualquer aviso. João se mostrou bastan-te preocupado e quis procurá-la.

- Se você quiser, peça ao Valdir para lhe ensinar o caminho, você irá encontrá-la na casa do Danilo.

- Quem é esse senhor Danilo? – quis ele saber.- É um apicultor, cujos pais, quando ele era criança,

compraram um sítio aqui perto. Vinham nos finais de semana. São professores aposentados da Universidade de São Paulo e, para seu total desgosto, Danilo resolveu vir morar no sítio quando terminou o segundo grau, aban-donando os estudos, ou pelo menos os teórico-formais. Pareceu-me uma pessoa interessante, mas nada mais sei sobre ele, além de que vive só.

- É um solteirão?- Acho que sim.- Elisabete tem ido muito por lá?- João, eu lhe prometi cuidar da saúde de sua neta.

O comportamento dela não me é muito familiar. Para lhe falar francamente, estive pisando em ovos. Estou bem satisfeita por você reassumir seu papel de cuidador.

- Sei que ela não é uma pessoa de fácil convivência.- Não é mesmo.

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- Espero que não tenha ofendido você.- Claro que não.- Ela não tem tido muita sorte. Desde pequena en-

frenta alguns problemas barra pesada. Gostaria de discu-tir com você essas questões de Elisabete, mas acho que não tenho o direito, porque ela não gostaria de que al-guém soubesse.

- Ela começou a me dizer sobre seu pai, mas parou praticamente no meio de uma frase, saiu e foi andar de bicicleta. Aliás, foi nesse dia que conheceu o Danilo. Foi bastante longe e se perdeu. Ele a acompanhou até aqui. Você não acha que deveria descansar um pouco?

- Você vem junto?- Não. Preciso dar uma olhada no pomar. Estão rou-

bando folhas dos caquizeiros. Não sei se são lagartas ou formigas. Sua cama o espera.

João estava mesmo precisando do descanso, pois dormiu a tarde toda. Quando soube que a neta ainda não havia voltado, pediu para eu acompanhá-lo até onde eu achava que ela estaria. Também achei que não preci-sávamos de uma preocupação a mais. Fomos ao sítio do Danilo. Lá, um garoto nos informou que “seu Danilo e a moça estão mexendo com as abelhas”. Ficamos esperan-do e logo os vimos voltando para a casa. Elisabete estava com a vestimenta de apicultor, sem a bota, mas com uma meia grossa até os joelhos, presa com um elástico sobre a calça, protegida. Danilo sem qualquer proteção. Ela foi logo dizendo:

- Dan vai me ensinar a cuidar das abelhas. Elas gos-tam dele, ficam voando fazendo um barulhão, enquanto

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ele mexe na colmeia. Queria também cuidar delas sem ter de vestir isso tudo.

Ao João não passou despercebido o apelido afe-tivo, o que deixou Danilo bastante acabrunhado. Fui em seu socorro.

- Eu não tenho coragem de abrir uma colmeia sem toda a proteção. Já tive um apiário e sempre achei que elas merecem e sabem exigir todo o respeito. Sabem quando você tem medo, quando cuida direito. Devem conhecer bem você e vice-versa. Você sempre mexeu com as abe-lhas dessa forma?

- Tenho os protetores porque, às vezes, preciso que o rapaz que trabalha pra mim me ajude a carregar as mel-gueiras e aí ele usa as proteções. A menina – e apontou para a Elisabete – me deu trabalho pra se vestir. Não queria.

- Queria fazer como ele faz e essas roupas, meias grossas e o chapéu cobrindo o rosto com esse véu, tudo isso é muito incômodo, faz muito calor. É uma verdadei-ra sauna. João, que não dissera uma sílaba, abriu a boca:

- Vamos. - Caraca! Ninguém apresentou estes dois! Descul-

pem. João, este é quase-nosso vizinho, o Danilo. Danilo, João é avô da Elisabete.

- Muito prazer, senhor Danilo e muito obrigada. Va-mos Elisabete!

João estendeu a mão, mas foi para pegar a da neta a quem praticamente arrastou até o carro. Lá fiquei sem saber como salvar aquela situação inaudita.

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- Danilo, por favor, tente entender e nos desculpar. Elisabete está vivendo um processo de recuperação de uma doença grave e João acabou de chegar de uma via-gem, sem ainda saber das últimas orientações médicas.

- A senhora nada tem para se desculpar. É ruim a gente ficar preocupado.

- Apareça lá em casa, venha tomar um café conosco.- Apareço sim, senhora.- Acho que é melhor você parar de me chamar de

senhora. Afinal não sou tão mais velha assim.- É só respeito. Velha é que a senhora, você não é.- Até outra hora, Danilo.- Até.

No carro, o ar era de chumbo. João estava uma fera, fera acuada pela educação e controle. Seu olhar era duro e as feições de seu rosto de tensas pareciam trêmulas. Dei-lhe um leve beijo, afaguei sua mão. Ele tentou um sorriso e um murmúrio que ficou para eu adivinhar. Registrei um obrigado. Elisabete cantarolava uma música de Edith Piaff e falou olhando para mim:

- Vô Jô me disse que você é gamada na Piaff. Gosta desta? – cantou um trecho de uma música antiga que identifiquei como Les amants d’un jour2. Ela fez festa, gritando oui, oui. Em seguida, perguntou:

- E esta? - cantou outra e eu lhe dei o título: Non, je ne regrette rien3.

– E esta?

2 Os amantes de um dia.

3 Não, não me lembro de nada.

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João saiu de sua mudez: - Chega! – E o silêncio imperou feio, sem que eu conseguisse que-

brá-lo. Estava, na realidade, tão mal humorada quanto João e acabei gostando de nada falar e nada ouvir... por alguns minu-tinhos. Elisabete recomeçou a cantar, agora, nos ignorando.

Ao chegarmos, fui para a cozinha preparar um lan-che e João, sempre prestativo, quis ajudar. Sugeri que ele não perdesse tempo. Se queria conversar com a neta, que o fizesse imediatamente para aliviar a tensão e conseguir-mos o prêmio de uma noite mais amena. Depois do lan-che, Elisabete, numa grande novidade, se ofereceu para lavar a louça, enquanto João e eu fomos ao nosso passeio noturno, aproveitando o finalzinho do verão. A Chácara Xury fica a uma altitude de 930 metros e sua temperatura nunca é alta, sobretudo à noite, mas, com um leve agasa-lho, estava bem agradável andar sob um céu com tantas estrelas nos cobrindo. Bei, que parecia ter aceitado João, deu-lhe um grande susto com um rosnado feroz. João ha-via colocado seu braço em meu ombro, uma atitude, na interpretação canina, de posse. Controlado o cachorro, voltamos à casa e ofereci a meu pobre companheiro uma xícara de chá de melissa. Que dia! Pensava que estivesse terminado, sem saber o que ainda nos esperava.

Sozinha em meu quarto, como de hábito, pequei o livro do momento e não consegui ler mais de um pará-grafo, sem que meu pensamento se afastasse da leitura. Estava avaliando a conversa que João tivera com a garota. Segundo ele, começara dizendo de seu constrangimento pela atitude dela, no mínimo, pouco respeitosa ao sair

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sem avisar nada, nos deixando preocupados. A reação dela foi de total tranquilidade:

- Vamos combinar, sempre que eu sair, você já sabe, estarei na casa de Dan. Então, não vai mais pre-cisar ficar preocupado.

- Dan? Você está muito íntima de alguém que mal conhece.

- Combinei com ele e ele não achou ruim.- Combinou?- Eu o chamo Dan e ele me chama Betinha. Sempre

quis ser chamada assim e mamãe nunca permitiu que me dessem apelido. Todos me chamavam ELISABETE. De-pois que fiquei doente, alguns me chamam Bete. Falam meu nome como se me odiassem.

- Ninguém a odeia. Sua mãe gosta de seu nome, por isto não quer que lhe deem apelido diferente do nome que ela escolheu para você.

Será que João não percebera o quanto ela des-viou o assunto, não permitindo simplesmente que ele a questionasse? Estava refletindo sobre esses últimos acontecimentos quando os latidos de Bia e, quase em seguida, do Bei me alertaram para algo que merecia minha atenção. Peguei a lanterna e fui para a varan-da. Alguém estava tocando o sino que fica no portão de entrada da chácara. Voltei ao quarto, vestia um roupão quando João apareceu me perguntando o que estava havendo.

- Há alguém lá no portão tocando o sino. Vou ver. Bia e Bei vão comigo.

- Eu também.

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Em frente ao portão havia um carro e Danilo estava do lado de fora, em pé.

- Boa noite, Dona Mariana. A senhora me desculpe, eu não sabia o que fazer e achei que a senhora podia ficar mais preocupada – ele falava quase gaguejando, muito nervoso.

- Boa noite, Danilo. O que aconteceu?- A menina apareceu lá em casa e... – foi interrom-

pido por João:- Boa noite, o senhor está falando da minha neta?- É, ela está dentro do carro e não queria vir. É claro

que tenho prazer em dar pouso pra ela, mas vi como vocês ficaram preocupados durante o dia e não quis ser grosseiro com ela. Só precisava saber se o seu avô concordava.

- João, preciso pôr os cachorros na corrente para abrir o portão.

Enquanto prendia Bia e Bei, pude sentir que João estava a caminho de um colapso e tive muito medo. Ele foi até o carro, abriu a porta e disse à Elisabete:

- Vamos conversar, amanhã. Agora você desça deste carro e vá para o seu quarto.

Surpreendentemente, pelo menos para mim, ela obe-deceu. Danilo não sabia o que fazer ou dizer e mostrou isto, estava paralisado. Felizmente João percebeu e lhe disse:

- Agradeço-lhe muito e não sei como me desculpar.- O senhor me perdoa o atrevimento, mas a menina

parece estar muito perturbada. Boa noite. - Boa noite – respondemos e voltamos à casa, fomos

para a cozinha fazer outro chá. João estava com outra ideia, serviu-se de uma generosa dose de uísque, sentou-se e por muito tempo permaneceu em silêncio, mal res-

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pondendo às minhas perguntas sobre seu trabalho, via-gem e algumas amenidades. Até que eu lhe disse:

- Parece que você está preferindo ficar só, vou me reti-rar. Se precisar de alguma coisa, não hesite em me chamar.

Depois do café da manhã, João chamou a neta para uma conversa em seu quarto. Peguei o carro e fui até a casa do Danilo que, ao me ver, se mostrou até contente.

- Que bom a senhora ter vindo, estou pensando cá com os meus botões o que Dona Mariana está pen-sando de mim.

- Danilo, pare de me chamar de dona! Vim na busca de um entendimento muito mais do comportamento da Elisabete, já que ela está em minha casa para se recuperar. Será que é muita indiscrição de minha parte lhe pedir para me contar o que se passou?

- Acho até bom. Quem sabe você me ajuda a en-tender também. Desde que a menina apareceu aqui, naquele dia quando ela se perdeu, que ela está me dei-xando muito preocupado.

- Por quê?- Ela é bonitinha, meio sem juízo, muito novinha

e fala umas coisas esquisitas. Fica muito brava quando discordo dela, mas logo se acalma e esquece que discordei e faz o que quer. Fico sem saber o que fazer. Mal nos co-nhecemos. Como diz o pessoal, não comemos nem um saquinho de sal juntos.

- Ah! Minha avó dizia que só conhecemos alguém depois de ter comido um saco de sal juntos. E ela se refe-ria a saco de 60 kg.

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- Pois é.- O que mais o está preocupando?- Bem, é difícil para um homem dizer essas coisas ainda

mais que a menina é novinha e a senhora, você é mulher.- Danilo, você andou cantando a Elisabete? – dis-

se tentando uma brincadeira que não deu certo, ele parecia assustado.

- Eu, mas nem vê!- Ela é que cantou você?- Bem, ela diz que quer vir morar comigo. Olha,

ontem, foi barra pesada. Afinal, eu sou homem e tive de levá-la embora porque achei que não era direito.

- O que você está querendo?- Ai,ai ai, meu Deus do céu!- Calma, Danilo. Você me disse que mal se conhe-

cem, mas você gostaria de aceitar a proposta dela? - Não sou de casamento. Já estou velho. - Não precisa me ofender.- Não senhora, Deus me livre!- Então, não me chame de velha! Se você diz que é

velho, eu sou mais... Que idade você tem?- Fiz 50. - Está bem. Vou ver se consigo conversar um pou-

co com Elisabete. Peço-lhe que tenha mais um pouco de paciência com ela que está passando uma fase bem com-plicada e difícil. Estou lhe deixando o número do meu telefone. Se precisar, pode me ligar. E obrigada.

João e a neta estavam saindo do quarto e eu já estava com as ferramentas para ir ao pomar.

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- João, preciso cortar os galhos secos de um limoei-ro. Quer me ajudar? Assim você evita eu desviar o Valdir de seu período na horta.

- Vamos lá. Trocamos nossas informações. Elisabete confessou

que se apaixonou por Danilo como algo fantástico e iria viver seu grande amor. Tinha intenção de ir morar com ele, só precisava convencê-lo. Segundo ela, Danilo cor-respondia a essa paixão, porém tinha receio de que eu e outras pessoas reagíssemos negativamente. João tentou, de todas as formas, mostrar à neta o absurdo de ela pensar em viver um grande amor com quem nem conhecia. Sua reação foi de ficar repetindo que os dois estavam louca-mente apaixonados e iriam morar juntos. Ao final, acer-taram que ela não iria mais tentar se mudar para a casa do Danilo e o João não implicaria com os encontros dos dois. Passei ao João a impressão que Danilo me deu e sua frase “afinal, eu sou homem”.

À noite, lembrei-me de que vira na casa do Danilo uma mulher de aproximadamente 40 anos. Ela ficou nos esprei-tando enquanto conversávamos. Contei ao João e observei:

- Não será sua parceira: “de dia me lava a roupa, de noite me beija a boca”? Se for, significa que Danilo não assume essa relação, o que não é um elogio ao seu caráter. Também a mulher pode ser a principal pessoa a ter a rea-ção negativa que ele teme.

- Ma, estamos exaustos. Vamos dormir e amanhã espero ter mais clareza para saber o que devo fazer. Quer dormir comigo?

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- Tem razão. Estamos muito cansados. Você sabe que na hora de dormir prefiro estar só. Aceito um beijo gostoso.

- Que seja uma promessa. Nem na minha adolescência tive tantos obstáculos para fazer amor com uma mulher!

- Você está fazendo o que não é do seu feitio, grosseria.João me abraçou dizendo:- Agora sou eu a dizer que você tem razão. Con-

sidere as circunstâncias e me perdoe. - Beijou-me bem suavemente.

- Vou colocá-la na cama.O beijo foi se intensificando e me levando por ca-

minhos há pouco recusados. Nem sempre as palavras são verdadeiras, mesmo quando não se quer mentir.

Passamos uma semana com a tranquilidade deseja-da. João e a neta foram a São Paulo para a continuidade do tratamento. Dediquei meu dia a elaborar o plano para meu novo trabalho e, ao final da tarde, João me avisou que só voltariam no dia seguinte. A psicóloga marcou nova sessão.

Quando retornei ao computador, Estácio havia me enviado uma mensagem instantânea e aguardava meu retorno.

- Olá, saí para atender um telefonema.- Que bom poder teclar com você. É possível utili-

zarmos a fala? - Um momento, preciso ligar o microfone. - Tudo bem? Está me ouvindo?- Perfeito. Estou chegando bem?- Ok. Você está só? – nesse momento, notei uma

tensão na sua voz.

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- Sim. João e Elisabete foram a SP e só retornam amanhã. Algum problema, Estácio?

- Só quero saber o que, de fato, está acontecendo com Elisabete. Como ela está?

- Amanhã poderei lhe dar notícias mais precisas com o relatório médico, mas me parece que, com relação ao tratamento, está bem.

- E o que não está?- Por que está fazendo esta pergunta?- Você ressaltou “com relação ao tratamento”...- Foi uma má construção da frase. E você continua

apaixonado? Está tudo bem?- Sim e sim. Stela é tão meiga, tão companheira, tão

exigente, brava!- Meiga e brava?!- Pois é. Perfeita. Sabe o que quer. Como diriam

vocês mineiros: perfeita demais da conta.- Você está se cansando da perfeição?- Não. Estou com medo. Está tudo muito bem por

aqui e Mamãe me contou que Elisabete está namorando um vizinho aí e quer se casar.

- Como sua mãe soube dessa estória?- Elisabete lhe contou e descreveu como o grande

romance da vida dela.- Não tenho uma opinião a respeito. De fato, ela

tem se encontrado com um senhor que mora em um sítio aqui perto, mas não sei em que pé está essa relação.

- Você me parece mais reservada do que sua natural discrição permitiria. Por quê?

- Meu querido, sou apenas a hospedeira de Elisabe-

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te, mas ainda não a conheço o suficiente para lhe dar as notícias que você quer ouvir.

- Falar em divórcio agora nem pensar?- Nem pensar? Bem, talvez seja aconselhável aguar-

dar um pouco mais. Dar tempo para ela se recompor. Pode haver um componente de orgulho, despeito, onde aparece o desprendimento. Se ela não estiver, de fato, sentindo o que está pretendendo nos mostrar e você pe-dir o divórcio, a terapia pode não segurar.

- Gostaria de não lhe dar razão.- Por que você e Stela não aproveitam para se conhe-

cer melhor? Stela o está pressionando?- Não. Não é ela, sou eu. Não quero prejudicar Elisa-

bete, mas minha sensação é de que o que vivi com ela foi há séculos. Do passado recente nem quero me lembrar.

- Você ainda está machucado. O novo amor não ser-viu de cura?

- De certa forma sim, pois pensei que não iria mais conseguir me entregar a uma paixão, mas também serviu para intensificar minha vontade de estar livre.

- Para se amarrar outra vez? Ah! Desculpe-me, não resisti.

- Tudo bem. Você é mesmo contra o casamento!- Nos moldes de prisão. O amor não é algo íntimo?

Pode ser o elemento libertador, desde que as duas pesso-as se proponham a ser absolutamente leais, o que papel nenhum garante.

- O que o papel pode impedir?- Com pessoas leais, nada. Ele não garante e não

impede. É inócuo. É satisfação à sociedade, interessada

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no patrimônio. Minha opinião nada tem a ver com o que você está vivendo.

- Discordo. Tenho observado os casais e a algumas perguntas não consigo responder.

- Por exemplo?- Por que alguns casais continuam juntos?- Os motivos são individuais e de cada casal.- Os pais de Elisabete, você consegue saber por que

estão juntos?- Estácio, podemos não concordar com os motivos,

mas podemos também citar muitos e errar muito tam-bém. Sabe aquele ditado popular “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”? Acho que neste ditado podemos substituir a palavra briga por vida. Muitas ve-zes, nos relacionamos com alguém para receber algum reforço nas áreas em que somos frágeis. Um dominador pode precisar do dominado e vice-versa. Sabe que a vida dos animais nos ensina muito?

- Por exemplo?- Agora é você? Está bem vou lhe dar o exemplo. Bei

é o dominador, Bia aceita e até curte. Quando ele ultra-passa os limites, ela reage e é ele, então, que aceita. Esta é uma relação sem neuroses. Se os limites individuais de cada pessoa e de cada casal forem delineados e respeita-dos, a relação poderá ser gratificante, ajudar a crescer e ter sabor. Não acha?

- Cada vez concordo mais com você.- Então não está pretendendo se casar de novo?- Agora não. “Quero ser uma metamorfose ambu-

lante”. Não vou me comprometer com nada, no momen-

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to. Amanhã posso mudar, quem sabe?- Entendi. Isto não é safadice? - Com Stela? Ela não quer se casar e estou lhe dizen-

do como me sinto, hoje.- Está certo. Enquanto não temos a certeza, o me-

lhor é ficar em cima do muro.- Ah! Você faz parecer que nos dá espaço para, em

seguida, nos puxar a orelha.- Não foi minha intenção. - Podemos nos falar amanhã? -Depois que eles chegarem? Claro, neste horário, es-

tarei por aqui. Você quer que avise Elisabete?- Gostaria de falar um pouco só com você. Pode ser?- Tudo bem. Até amanhã.- Até amanhã. Não pude continuar meu trabalho porque os cachorros

começaram a latir de forma a avisar que algum estranho es-tava em seu espaço. Fui ver o que era. Encontrei Bia e Bei em baixo de uma árvore e Valdir de posse de seu estilingue jo-gava pedrinhas para cima, onde se encontravam três bugios, um grande e dois menores. Ele foi logo me explicando:

- Hoje pela manhã um deles estava lá perto do canil, mas na primeira pedrinha ele se mandou. Agora, eu esta-va mexendo no minhocário e Bia começou a cheirar o ar, o Bei veio e quando olhei para cima, lá estavam eles. A senhora acha que é uma família?

- Parece. O grande deve ser a mãe e os dois filhotes parecem ser do mesmo sexo por que são da mesma cor.

- O pessoal fala que os pretos são fêmeas e os mar-rons machos.

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- Não é o contrário? Não são os machos que são pretos? Veja, o maior é marrom e deve ser mesmo a mãe.

- Sei não, dona Mariana. Estes não estão querendo sair desta árvore. Foi só falar pra me desmentirem. Olha lá, um está pulando para o lado do vizinho. Os outros estão indo atrás.

- Ainda bem que lá só estão as vacas. Valdir, você tem certeza de que essas suas pedrinhas não machucam os bugios?

- Só se eu errar e acertar neles. Jogo perto deles, tam-bém olha aí o tamanho das pedras. São pititinhas – falou me mostrando as pedras no seu embornal.

- Os bugios estão procurando comida. Nunca vi tanto bicho pela chácara.

- É mesmo. Outro dia era um tamanduá, depois foram aqueles esquilos. A semana passada enterrei dois gambás.

- É mesmo, Valdir? Você acha que foi serviço da Bia e do Bei?

- Deve de ser. Eles estavam barulhando que nem agora, lá perto da pista de skate. Fui lá e não achei nada. Depois apareceram os dois defuntos.

- Pelo menos os ouriços sumiram.- A senhora é que pensa. Os cachorros da Morada

do Buda estão cheios de espinhos do bicho. É que a cer-ca que fizemos, ao redor da casa, segura os meninos de noite.

- Valdir, não tiraram os espinhos dos cachorros? – perguntei aflita.

- Eles são mesmo esquisitos. Falam que os espinhos

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saem sozinhos. A senhora lembra quando a Dra. Clélia veio três vezes seguidas para tirar espinhos no Bei?

- Ih! Valdir, não gosto de me lembrar desses maldi-tos. Você estava falando dos bichos que estão aparecen-do. Não vi mais o teiú que morava na matinha e outro dia, durante o nosso passeio, o Ramon quase entrou na toca do teiú. Será que ele foi para outro lugar? Se tivesse morrido, aqui, teríamos achado. Você deve, então, tapar o buraco para ninguém correr o risco de pisar e quebrar uma perna. Enquanto o teiú estava aqui, não dava pra tampar, mas se sumiu...

- Pois é. Bem, vou voltar para a horta. Estou pondo calda de fumo nas couves que os piolhos estão querendo comer antes de nós.

- Você já pôs as armadilhas na laranjeira?- Já sim, senhora. Pus cinco garrafinhas com o suco

na laranja bahia e três na lima da pérsia. Esse mosquiti-nho da fruta é pequeno, mas faz um estrago! Será que não é melhor a senhora comprar os tais saquinhos pra gente pôr nas laranjas e nas limas enquanto estão verdes? É mais seguro.

- Você me lembra quando eu for a Ibiúna. Vou dar um ossinho pros cachorros - voltei pra casa chamando os dois.

No dia seguinte, João eu fizemos uma caminhada pela chácara, paramos na matinha, ele sentou-se num banco rústico e eu na rede. Era um lugar com a energia apaziguadora, porém forte, onde, às vezes, vou para me acalmar e outras para me fortalecer. Ele me contou sua conversa com a psicóloga, após a sessão de terapia de Eli-

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sabete. Pareceu-me mais animado. A terapeuta o chamou e fez um bom relatório sobre o trabalho com Elisabete. Disse-lhe que havia discutido o caso com um psiquiatra que assistiu, a seu convite e com o consentimento da pa-ciente, a uma sessão. Após, propôs o acompanhamento permanente do psiquiatra. Este, por sua vez, concordou com o diagnóstico: Elisabete apresentava alguns sinto-mas de distúrbios que estavam exigindo uma terapia bem mais intensa e frequente, além da prescrição de algum medicamento para ajudá-la a sair da depressão. Assim, acordaram que as sessões passariam a duas vezes por se-mana e se for o caso, três.

João achou ótimo porque ele próprio questionava a forma como a neta estava se tratando. Em sua opinião, Eli-sabete deveria estar, há muito tempo, em uma terapia que desse conta de seu comportamento tão alienado, egocên-trico, além da tristeza que sempre a dominou. A rejeição ao pai deveria ser discutida e tratada, pois para ele, ali, estava um foco importante. Desde criança, em sua opinião, a neta demonstrou a necessidade de uma ajuda psicológica que os pais negavam. Esses desequilíbrios acabaram fazendo um círculo vicioso até o comprometimento dos rins e da ener-gia mental. Sua expectativa é de que, agora, a terapia vai chegar à origem de tantos sintomas danosos.

- Sabe, Ma, minha neta foi uma menina feliz até um momento. De repente ela se tornou outra criança, manhosa, medrosa, solitária, infeliz. Tem um segredo que a envergonha, maltrata e a torna nefasta. Minha opinião é que tudo não passa de uma fantasia criada por uma absurda falta de compreensão de uma criança, cujos pais

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não foram sensíveis para perceber seu sofrimento. Criou-se o círculo vicioso.

- Ela sempre teve em você a grande âncora.- Não consegui ajudá-la. Nas crises, me chamavam.

Quando os sintomas mais graves se amenizavam, tudo era esquecido. Falar em tratamento psiquiátrico era um tabu. Não queriam ver. Elisabete não se abre com ninguém.

- Exceto com você.- Em parte. Acho que ela mesma não sabe exata-

mente o que a perturba. Por isto mesmo tenho a esperan-ça de uma cura não dos rins e da cabeça, mas da cabeça que cura os rins.

- Entendo e acho que você gostaria é de levar a Eli-sabete numa médica homeopática.

- Vamos chegar lá, mas por que médica? Rindo eu respondi:- Faz tanto tempo que me trato com uma médica

que a homeopatia pra mim passou a se incorporar nela, a minha “bruxa”. Ela é mágica! A homeopatia é assim: o médico é brilhante e acerta com o seu remédio ou não vale nada porque não consegue chegar até você e não acerta o remédio. É 10 ou zero.

- Está certo. Lembro-me de você contar de um mé-dico do seu filho.

- Ah! o Miotto, José Miotto. Foi um grande médico, o primeiro do André e meu iniciador em muitas coisas, sobretudo na concepção da medicina homeopática, onde foi uma referência. Lamentavelmente morreu muito jo-vem. Briguei com ele quando de sua partida. Médico bri-lhante, eu achei que ele deveria ter evitado sua morte.

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Fiquei absolutamente chocada.- A sua “bruxa” veio substituir o Miotto?- Para o André a substituição foi a Percy, da própria

Clínica do Miotto. Para mim, demorou um pouco mais até eu achar a Regina Brostel. Você sabe, um médico ho-meopata pode acertar o meu remédio de fundo e não acer-tar com o seu. Regina me salvou de muitas, a primeira maravilha que me fez foi mandar minha insônia passear.

- Você acha que ela aceitaria a Elisabete como cliente?- Agora?! – espantei-me.- Mais tarde, agora não dá para interromper o trata-

mento. Pensava que poderíamos ir a BH após o bom re-sultado que essa nova terapia vai ter. No momento, quero que minha neta se concentre na busca disso.

- Que bom! Você está confiante nessa terapia. De-pois, então, iremos para Belo Horizonte consultar a dra. Brostel que vai investigar o que levou Elisabete a fazer esses desequilíbrios. Elisabete antes e depois da “bruxa mineira” – falei brincando na forma, mas achando que seria uma boa saída para Elisabete, pois não tinha dúvi-das de que Regina, como sempre, acertaria.

- Por que você fala com tanto carinho “minha bru-xa” e não “minha maga“?

- Em criança, adorava a Madame Mim e ela é uma bruxa. Maga é a outra, antipática, Maga Patológica? É esse o nome?

- Acho que sim. A Madame Mim é mesmo uma per-sonagem simpática, mas muito feia.

- Ah! Eu não achava. E minha “bruxa mineira” não tem nada de feia, é bem charmosa. Sabe, Estácio me cha-

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mou ontem querendo saber de Elisabete. Ficamos de nos falar hoje para eu lhe passar o relatório do médico.

- Ele está bem? – João usou um tom pretensamente neutro. Fiquei imaginando como deveria estar difícil para ele ser justo com Estácio.

- Está bem adaptado no curso e no país, mas on-tem me pareceu meio tenso, querendo me esconder alguma coisa. Esforçou-se por demonstrar um “não estou nem aí” que não me convenceu. Quis saber do “namoro” da Elisabete.

- Como ele soube? Não precisa me responder. Tere-sa. Acertei?

- Sim. O interessante é que ela soube por um telefo-nema da própria Elisabete. Você acha que sua neta pode estar usando o Danilo para Estácio ficar mais à vontade, por exemplo, para um pedido de divórcio?

- Minha neta é muito egocêntrica para uma atitude altruísta assim. Poderia mais ser despeito, querer fazer ciúmes. Você também não leva a sério esta paixão que ela quer demonstrar?

- É tão óbvio! Esta paixão me parece sem aqueci-mento. Ela está sabendo que Estácio se apaixonou por uma colega de curso?

- Não me disse nada a respeito. Teresa deve ter con-tado, como que constatando que o casal está de fato se-parado, cada um vivendo sua vida. Entendo sua posição de mãe. Elisabete é tudo o que não se quer para um filho. É uma pena, não pretendo fazer nada para tentar neutra-lizar o trabalho da Teresa, porém é este o momento que Elisabete mais precisa do marido.

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- Marido que ela jogou fora – eu disse sem conseguir me conter.

- Concordo e ela sabe disso. - Aposto que sou eu. O que eu sei? – Elisabete foi

chegando, vestida com muito charme e elegância, prepa-rada para um almoço formal.

- Minha filha, aonde você vai nesta elegância?- Vou à casa de Dan. Sei que a mãe dele virá al-

moçar com ele hoje. Vou conhecê-la. João a olhou com espanto e tristeza.

- Danilo convidou você para esse almoço? - Não precisa.- Ah! Neste caso, precisa sim. Você não pode impor

sua presença numa ocasião dessas. Danilo deve ter lhe contado dessa visita exatamente para você ser discreta e não aparecer por lá.

- Não importa, vou seduzir a mãe e ela vai me ajudar a conquistar o filho. Vou pegar seu caro, Jô. Mariana, posso apanhar umas rosas?

- A tesoura de poda está pendurada junto com as outras ferramentas, perto do alicate, em frente ao tanque de roupas. Cuidado com os espinhos.

Ela apanhou as rosas, pegou a chave e saiu. Então, questionei o João:

- Por que você não insistiu com ela? Não vai ser le-gal. Danilo vai se sentir pressionado. Ela pode até não ser bem recebida e se machucar.

- Por isto mesmo. Quem sabe ele dá o chega pra lá que Elisabete está cavando e acaba esse sufoco.

- Já que seremos nós dois para o almoço, o que você

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acha de fazer o seu maravilhoso broto de bambu ao curry com arroz? Eu preparo a salada.

- Ótimo!- Vamos à colheita? Você dá conta de cortar o bambu?Fomos pegar o facão no barracão das ferramentas e

descemos até a touceira e João cortou três bons brotos. Depois fomos à horta apanhar nossa salada.

- João, vou pegar alface, rúcula, cenoura, tomate e beterraba. Tudo bem?

- Maravilha! Temos direito ao molhinho de ervas com limão?

Aquele olhar acompanhado de um pequeno sorriso era tudo de bom. Retribui e disse:

- Almoço pra nenhum vinho botar defeito. De repente, me lembrei de um gravíssimo problema

e fiz uma careta: - Ih! Não há vinho na geladeira.- Um homem prevenido vale por dois...Lá estava ele todo vitorioso, corrigindo o desastre.- Você se lembrou? Antes de saber o que iríamos comer? - Bem, mais ou menos. Perder não perderia. Se não

tomássemos agora, tomaríamos depois. Após nosso almoço, estávamos na varanda, ouvi o

sino do portão e Valdir desceu com os cachorros para o canil, sinal de que tínhamos visitas. Em seguida, vimos Elisabete e uma senhora descendo a alameda que liga o portão à casa.

- Mariana, a professora Zolda, mãe do Danilo. Zol-da, o meu avô João.

Elisabete fez as apresentações com muita desenvoltura.

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- A Elisabete passou o almoço falando em vocês dois. Fiquei com vontade de conhecê-los e estou vendo que sua chácara é linda. Prazer em conhecê-los.

Zolda apresentava ter uns 65 anos, embora tivesse mais de 70. Era magra, cabelos grisalhos, estatura média, olhar inteligente e sorriso fácil. Vestia-se com uma finu-ra urbana, permitindo-se ao campo apenas a concessão dos sapatos sem salto. Mostrou-se quase tagarela, embora sem perder a elegância. Tratava Elisabete com muita fa-miliaridade, como se a conhecesse há tempos. As duas estavam perfeitamente à vontade. Aceitou um licor, con-versou, pediu para ver a chácara e Elisabete a atendeu, mostrando-lhe a horta, o pomar, o minhocário, a mati-nha. Ainda estavam andando quando Danilo apareceu para levar a mãe.

Pela manhã do dia seguinte, estávamos para tomar o café da manhã quando Danilo chegou vestido como quem vai para roça capinar e meio sem jeito falou que a mãe pedira para Elisabete ir tomar o café com ela. Parecia dizer: Não tenho nada com isto – o que levou o João a propor que tomássemos o café e, em seguida, ele levaria a neta para atender o chamado da senhora Zolda. Elisabe-te, já com a bolsa na mão, respondeu:

- Obrigada, vozinho. Eu já estou pronta. Vamos Dan. Lá se foram, ela toda arrumada, pronta para uma fes-

ta, puxando pela mão um homem que não sabia o que fazer com o chapéu furado, nem com ele mesmo. Nos dois dias seguintes, Elisabete só aparecia em casa para dormir.

- Vozinho?! – não pude evitar.João me explicou:

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- É o vocativo da sedução. Normalmente ela, como toda sua família, me chama de Jô.

- Não combina com você.- Também acho, mas não me incomoda, desde que

você não entre nesse grupo.- Da sua família?- Família da Elisabete e o que eu disse é que gosto de

ouvir você dizer João.Olhei para ele e vi aquele sorriso insuportavelmente

encantador.

Na véspera da próxima sessão de terapia, Elisabete chegou dizendo que Zolda retornaria, no dia seguinte, a São Paulo e se oferecera para levá-la à terapia. Já esta-va tudo combinado. Danilo iria levar a mãe e esperaria Elisabete para trazê-la de volta. João concordou sem qualquer objeção. Embora tenha estranhado bastante essa atitude, somente após a saída deles é que obtive uma explicação.

- É evidente, Ma, que a velha senhora está louca para colocar minha neta definitivamente na vida de seu filho. Foi demasiado curto o tempo que Elisabete teve para sedu-zir Zolda. As duas fizeram espontaneamente uma aliança. Não vou lutar contra a maré que de nada adiantaria. Quan-to mais cedo Elisabete descobrir seu engano, melhor.

- Estamos nós falando em engano, e se este for nosso?- Você está dizendo que Elisabete pode, de fato, estar

apaixonada por Danilo? Porque a recíproca não é verda-deira. Aliás, o objeto da “paixão” tem feito o possível para deixar clara a impertinência da “menina”.

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- Não sei identificar o que me incomoda. Alguma coisa não está no seu devido lugar. – João me olhou, ficou de pé e com um gesto de impaciência quase com raiva, me respondeu:

- Claro! Basta ver os dois juntos para saber que tudo está fora do lugar. Hoje é a terapia. Amanhã à tarde é o tratamento. Se a velha senhora ficar sabendo que Elisa-bete deverá voltar a São Paulo amanhã, o que você acha que vai acontecer?

- Elisabete não levou sequer uma frasqueira.- Isto não será problema, a velha senhora terá prazer

em resolver.- João, você está com raiva de Zolda?- Entendo que ela queira livrar o filho da situação

irregular que ele mantém com a empregada- João! – quase gritei. – Que maldade! - Pode ser, mas não é minha. Não inventei nada.

Pergunte ao Valdir.- Valdir sempre foi super discreto. Nunca soube que

ele fizesse qualquer fofoca.- Não fez fofoca nenhuma. Eu perguntei, ele respon-

deu. Você tinha razão a respeito da mulher que espreitava a sua conversa com Danilo. Ela é uma empregada que mora na casa com ele já há alguns anos e faz gosto em não esconder que dorme mais na cama dele que na dela. Eu quis entender a rapidez com que a velha senhora foi conquistada. Dra Zolda se sente incomodada com a situ-ação do filho. Não se pode esquecer que apesar de Danilo ser um bicho do mato, seus pais são da classe média alta paulistana e os amigos, às vezes, vêm ao sítio.

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- João, entendo sua preocupação com Elisabete. Eu mesma tenho ficado meio inquieta, mas estou estranhan-do você. Não gosto nem um pouco dessas suas falas, nada elegantes e preconceituosas. Não o vejo nelas.

- Desculpe-me, minha querida. Estou com mais rai-va que preocupação. Acho que Elisabete ultrapassou meu limite de suportar suas leviandades. Tentei uma conversa séria com ela e fracassei, como sempre. Embora eu dis-corde da forma como a criaram, sei de seus sofrimentos e a trato com a mesma indulgência.

- Então mude. Quem sabe você consiga ajudá-la se for menos tolerante. Em Paris, vocês me escandalizaram com a benevolência estendida sobre Elisabete, mas havia a doença e tudo foi tolerado. Agora, qual a desculpa? Os rins estão funcionando. O tratamento deu certo, os mé-dicos estão apenas sendo cautelosos e ela continua agindo sob o manto de proteção ampla e irrestrita.

- Você também andou se segurando mais do que devia.- Com certeza. Só acho que não é a mim que cabe

qualquer atitude. Ela é minha hóspede e sua neta. Além do mais, minha direita não está vaga!

- Você está brigando comigo?! Está me expulsando?!Não pude deixar de rir da sua cara de menino pego

em flagrante, enquanto negava veementemente a briga e a expulsão. Cortei a conversa desagradável e já pouco pro-dutiva com um beijo acompanhado de um bombom.

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8. A Escolha da Velha Senhora

Jaime telefonou perguntando se Elisabete não iria à terapia. Ela não passou por lá, nem ligou. Haviam combinado que Teresa acompanharia a nora na sessão de terapia. Como Elisabete não apareceu, ficaram pre-ocupados. João explicou como pôde, desculpou-se por não ter avisado:

- Elisabete me pediu para ligar, avisando a Teresa e me esqueci. Por favor, transmita a ela minhas desculpas.

Em seguida, passou a tentar falar com a neta e não a encontrou.

- Não atende o celular e já saiu da terapia.- Então, logo, logo estarão chegando. Acho até que

já chegaram. Estão buzinando.- Impossível! A secretaria da clínica me disse que ela

saiu faz meia hora. Valdir apareceu:- Era o seu Danilo que estava barulhando o sino no

portão. Ele passou com muita pressa. Disse que ainda ia mexer com as abelhas e só veio avisar que dona Elisabete ficou em São Paulo com a mãe dele. Amanhã seu Danilo vai outra vez a São Paulo e ela volta com ele. Que é pra o seu João não ficar preocupado. A senhora quer que eu apanhe alguma fruta? A lima está que é um mel.

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- Por favor, Valdir, quero lima, um pouco de limão e umas folhas de melissa e capim cidreira.

Valdir foi para o pomar. Olhei para o João e falei:- Um bom chá calmante é do que precisamos. Acho

que sua neta encontrou uma parceira competente.- E determinada a ter uma nora francesa. Juntou a

fome com a vontade de comer.Vamos assistir a um filme em São Paulo?- Não. Obrigada. Foi um convite muito espontâneo

e gentil. Mas, ,meu querido, se para você é importante ir atrás de Elisabete, vá.

- Mas?- Em minha opinião, será uma perda de tempo ir con-

tra a Elisabete, neste momento, ainda mais com a ajuda que está recebendo. Por que não deixar as coisas rolarem? O má-ximo que você pode fazer é tentar adiar o casamento.

- Casamento!?Em resposta, apenas meneei a cabeça e fui fazer o chá.Elisabete voltou com um novo vestido e contando

que Zolda chamou algumas pessoas para o jantar que foi muito interessante.

– Até parecia que eu era uma convidada de honra – ela disse e João me olhou entre desconsolado e irritado, vendo a neta descrever, com o maior entusiasmo, o jan-tar, as pessoas – o marido, os filhos de Zolda, com os res-pectivos conjugues -, a casa e as gentilezas de todos. João logo comentou com um azedume pouco apropriado:

- Aliança familiar. Família unida jamais será vencida.Elisabete ignorou o comentário e saiu cantarolando.

Voltou, em seguida, para avisar que os pais de Danilo

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virão para o sítio no final de semana e estamos todos con-vidados para o almoço de domingo.

No sábado, Valdir saiu antes do almoço para ir rece-ber a visita de seus irmãos que moram em Sorocaba. Elisa-bete foi a São Roque com Zolda fazer compras e conhecer algumas vinícolas. João trabalhava em alguns relatórios.

Resolvi levar os cachorros para passear, sem conside-rar alguns elementos conflitantes como a força deles e a minha, além da indisciplina da Bia quando qualquer por-tão está para ser aberto. Não importa o espaço que tenha, sempre quer sair além de qualquer cerca, uma indiscipli-nada que não suporta qualquer restrição à sua liberdade. Valdir e eu costumamos levá-los a passear no terreno que, embora parte da chácara, fica além da cerca de tela fei-ta especialmente para mantê-los seguros. São mais de 10 mil metros quadrados, mas eles são loucos para ultrapas-sar esse limite. Sabendo disso, preparei-me, protegendo minhas mãos com luvas grossas, calcei botas altas e colo-quei neles coleira e uma guia mais longa. Amarrei Bia em uma árvore. Eu sabia que o comando “fica”, usado nessas ocasiões, seria ignorado quando o portão fosse aberto, por isto tive muito cuidado ao prendê-la. Peguei a guia do Bei e comandei “junto”. Logo após o portão, há uma escada para se chegar ao terreno. Quando descíamos a tal escada, passa por nós, como uma bala, a Bia, sem guia, sem coleira. Olhei para trás e vi o vermelho da coleira pendurado na árvore e Bia na disparada pelo terreno a fora. Gritei, ela parou, gritei de novo, ela voltou. Rapida-mente, amarrei Bei em outra árvore e subi com Bia para colocá-la novamente na coleira. Ao voltarmos para onde

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havia deixado o cachorro, Bia forçou um passo, eu segurei com força, Bei deu a volta em mim pelo lado direito, Bia pelo esquerdo, as cordas das duas guias se enrolaram nas minhas pernas e me deram uma rasteira. Caí sentada, ba-tendo o cóccix no chão duro. Tive dificuldade de respirar de tanta dor. Os dois cães se assustaram e ficaram quieti-nhos me olhando. Lembrei-me dos exames que acusaram um início de osteoporose e o médico me dizendo:

- Não é mais hora de cair. - Lá estava eu de bunda no chão e a dor aumen-

tando com o medo terrível de ter quebrando qualquer osso. Bei, como já havia acontecido de outra vez, che-gou perto de mim, como que me oferecendo ajuda com a cabeça e eu lhe disse:

- Espera.Ele ficou imóvel. Quando consegui respirar melhor,

peguei firme na coleira dele e quase gritei:- Junto!Ele andou, fazendo-me levantar. Os dois sentiram

que algo grave estava acontecendo, pois continuaram o passeio no meu ritmo, bem vagaroso. Demos uma boa volta, uma guia em cada mão, tranquilamente, minha dor diminuindo. Já voltávamos quando o olfato deles lhes contou que havia um intruso no seu território, de-ram uma arrancada e eu fui puxada para frente, caindo de boca e completamente esticada sobre uma moita de ca-pim. Dei um berro e os dois, mais uma vez, se assustaram e voltaram para perto de mim que, deitada, sumida no meio do capim, cuspindo folhas e toda preta de picão, vi o ridículo da cena e comecei a rir sozinha, de mim mes-

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ma. Sinal para Bei e Bia de que estava tudo bem, foram andando, o que me ajudou, de novo, a me levantar.

Mal consegui passar uma escova nos cachorros e me sentei num canto da varanda, onde João me encontrou. Olhou pra mim e quis ficar sério, mas sua expressão me fez lembrar de minha aparência e ri, liberando-o para uma boa risada. Contei-lhe o ocorrido e recebi, de uma vez, sermão, dengo e, em seguida, uma massagem com arnica. A dor na região do cóccix durou bastante tempo e me salvou do almoço do domingo. Depois de uma semana sem melho-ra, fui ao ortopedista que me surpreendeu, receitando-me compressa quente com rubi. Em sua opinião, arnica é mais para algo crônico e rubi para traumático. Um ortopedista receitando ervas! Sai de seu consultório com a certeza de que a humanidade não está perdida.

Marcos nos fez uma surpresa, apareceu com uma garrafa de vinho, dizendo:

- Depois que João voltou de Paris, fiquei sem minha companheira de copo e odeio beber sozinho. Esta garra-fa - olhou para mim - é do seu predileto, comprei para bebermos juntos, mas - acrescentou muito sério - se você quiser pode até convidar o João para beber um cálice. Concordo como uma espécie de pedágio.

- Marcos, João parece ainda estar na dúvida, não sabe se você está brincando ou... – eu estava rindo porque João parecia mortificado e Marcos me interrompeu:

- É claro que estou falando sério. Por que você não dá um copinho para ele experimentar?!

Aí sim, João entendeu, pôde se descontrair e pegar as taças para nos servir.

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- João, você está meio tenso? – Marcos perguntou.- Ainda não digeri o almoço de domingo – respon-

deu com uma careta que ele quis nos oferecer como um sorriso e acabou provocando nossos risos.

- Eu ainda não sei como foi o domingo familiar. Conte. É bom para ouvirmos a opinião de Marcos sobre você intervir neste momento.

Fiz um resumo rápido da situação envolvendo Eli-sabete e Danilo.

- Bem, então, você, Mariana, levou o maior tombo e João foi ao tal almoço com a neta e lá o que aconteceu, João?

- Vamos ao relatório. A velha senhora nos recebeu na varanda com drinques e aperitivos para todos os gostos. Enquanto o marido nos servia, a família foi aparecendo. Fiquei no senta-levanta um bom tempo. Fui apresentado a filhos, noras, genros, netos, todos simpáticos demais. Um segundo antes de meu estômago roncar, apareceu uma senhora de idade enigmática, cabelos brancos, pen-teado para traz, magra e espigada, morena, com um gran-de crucifixo pendurado no pescoço e – para desfazer a impressão de que era uma freira - uns brincos enormes. Todos calaram e ouvimos o que queríamos: o almoço es-tava na mesa. Houve um burburinho e pude presenciar o comando férreo da matriarca que nos colocou em nossos devidos lugares. Ela numa ponta e senhor seu marido na outra, à sua direita Elisabete e à esquerda, Danilo, que fi-cou olhando o rosto permanentemente risonho de minha neta. Aqui, um parêntese, Elisabete, agora, é Betinha. As-sim, decretou a velha senhora. Aproveito para já anun-ciar o segundo decreto. Estávamos ainda em pé, cada um

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atrás da cadeira que lhe fora designada, quando Zolda, à guisa de apresentação, disse muito simplesmente:

- Senhor João, esta é Benedita, nossa Dita. Ela me ajudou a criar meus filhos e, hoje, eu concordei com seu pedido de vir tomar conta do Danilo. Vamos trocar, a moça que trabalha aqui vai comigo para São Paulo. Não se preocupe, Danilo, a Querência gostou da ideia porque vai poder fazer um curso de madureza. Vamos nos sentar e bom apetite. – Instintivamente, olhei para o Danilo, assim como todos os que estavam na sala. Ele aguentou firme, só a cor do rosto que mudou para roxo, enquanto ouvíamos a Dita chamar:

- Ciça – apareceu a mulher que já me serviu um café e cujo nome fiquei entendendo ser Querência, Ciça para os íntimos –, traga mais um garfo para servir a mandioca.

O garfo veio e teve de ser trocado porque foi parar no chão justo ao pé da cadeira de Elisabete. Esta, muito graciosamente, o pegou e o devolveu à encabulada Ciça. O restante do tempo foi um show de amabilidades exces-sivas para comigo e minha neta. Todos educadíssimos, ninguém discordou de ninguém. Eu já estava apreensivo com tanta concordância. Uma família sem contradições. Já estávamos no carro, não conseguia achar meus óculos, quando me lembrei de que os deixara sobre um móvel da varanda. Desci e fui pegá-los. Pude, então, ouvir os comentários de uma das noras que estavam na sala:

- Quero só ver! Danilo não vai conseguir sair dessa. Dra. Zolda pegou pesado.

Como Danilo, Zolda e o marido estavam perto do carro, falando com Elisabete, ninguém percebeu que ouvi.

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No caminho, contei a Elisabete, porém acontecera algo mais importante. Zolda lhe dissera que ficaria grata se, de-pois de receber alta médica, acompanhasse Danilo a Paris. Poderia ser a viagem de lua-de-mel, seria um presente.

João, com cara de exaustão, olhando para nós, com-pletou:

- Agora quero ouvir a opinião de vocês.- A velha senhora fez sua escolha e apostou alto. Ela

me lembra minha avó, une petite Caterine de Mèdicis. Se já fez a troca da Ciça pela Dita, o grande problema está resolvido – eu comentei e Marcos perguntou:

- Entendi direito? Ciça é amante de Danilo e a mãe não aprova. Está aproveitando para dar uma força para a Betinha conquistar seu filho e, ao mesmo tem-po, acabar com a incômoda situação de uma emprega-da na cama dele.

- Minha neta está com a idiota ideia de se casar com o Danilo.

- Por que idiota? – Marcos fazia esforço para enten-der e separar o que incomodava seu amigo.

- Vou apontar – João rapidamente quis esclarecer - só um dos muitos motivos: Danilo não quer se casar com ela. Vou reforçar com alguns detalhes que Mariana deixou passar quando da síntese que fez para você.

João descreveu algumas cenas que presenciamos e que, de fato, mostrava claramente a rejeição de Danilo ao casamento ou à Elisabete. Marcos nem procurou ameni-zar, foi logo dizendo:

- João, não pode deixar sua neta entrar nessa fria. Diferenças culturais, sociais, além da situação do moço.

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Um solteirão, com amante em casa, acostumado a viver do seu jeito, sem compartilhar decisões, coisas, emoções.

- Espera aí – eu entrei –, ele tem a companheira para compartilhar emoções.

- Mariana, não é companheira, é apenas amante co-modamente arrumada. Se fosse companheira ele não a apresentava como empregada. Ela seria a dona da casa. Não é a diferença social, é a postura dele.

- Concordo com o João – foi a vez de Marcos. - O Danilo não quer mudar sua maneira de viver. Está ótimo pra ele. Ainda há uma coisa que não estamos consideran-do. A Ciça concordou, segundo a versão de Zolda, que, aliás, é a única que conhecemos, sobre a tal troca. É óbvio que a moça não iria discordar da velha senhora, pelo me-nos não explicitamente. Essa concordância implica tam-bém abrir mão do Danilo? Será que ela não vai fazer nada para ter a situação anterior de volta?

- Ciça está ganhando a oportunidade de estudar – eu palpitei. Marcos me olhou com ironia e foi logo me repreendendo:

- Ma, só porque você quer. É preciso que Ciça te-nha uma boa cabeça, que tenha alguma ambição e dê im-portância ao estudo, mas duvido. A troca, na realidade, é bem vantajosa para ela: perde um patrão sacana para ganhar uma oportunidade de ter uma vida melhor. Eu gostaria de acreditar nisso. Acho mais provável que Ciça não queira desistir de uma situação em que não tinha patroa, comandava a casa a seu modo e à noite dormia com o patrão. Se a segunda alternativa for correta, pobre Elisabete! Ela vai ter uma inimiga não declarada pertinho

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dela e do Danilo. O fato de ela ir para São Paulo melhora, mas não acaba com a situação.

- Quero apostar no discernimento da moça. E, afi-nal, a Zolda está até fazendo alguma coisa positiva. Tam-bém resta saber se esse relacionamento entre Danilo e Ciça é de duas mãos. Trata-se do patrão se impondo na cama ou o acordo é satisfatório para os dois lados? Se é uma imposição do Danilo, a moça vai agarrar essa opor-tunidade – disse o João.

- Estou chocada com a nossa descrença na humanida-de. Todas as observações e hipóteses só levaram em conta os interesses próprios. Não é possível que Ciça ame Danilo e queira lutar por esse amor ou entenda que ele ficará me-lhor com Elisabete? Ou ainda que Danilo, ao perceber que poderá perder a mulher que ama, resolva batalhar por ela?

- Meu amor, você pode levantar essas alternativas nos seus romances, mas na vida real as cartas são outras. A verdade é que não temos nenhum indício da grandeza de Danilo e quanto à Ciça, para o bem dela, espero que não aposte no seu patrão.

- João, me diga uma coisa – perguntou Marcos -, sua desaprovação quanto ao relacionamento de Elisabete e Danilo inclui o caráter dele?

- Você não tem elementos para julgá-lo mau caráter – afirmei.

- Ele é dominado pela mãe, mantém um relaciona-mento furtivo com uma pessoa que se encontra em uma posição bem mais frágil que a dele e não a assume quando tem uma intervenção. Ora, é um oportunista e covarde – João respondeu com um tom de voz pouco agradável.

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Marcos, meio assustado, veio todo apaziguador:- Calma, homem! Ainda não aconteceu nada grave. Vo-

cês acham que Elisabete está de fato apaixonada por Danilo.- Não – respondemos em uníssono.- Bem, então, acho que a preocupação está exagerada.

Deixe correr, João. Se sua neta não está perdida de amores, não há porque protegê-la. Qual é de fato o problema?

- O fato – eu disse – é que Elisabete afirma que Da-nilo é o amor de sua vida. Está fazendo o jogo da Zelda que decidiu casar o filho com a doce francesinha. Elisa-bete acredita que é correspondida.

- Não é bem isto, Ma – João me corrigiu com aquela voz ainda desagradável. - Ela não acredita, diz que acre-dita. O meu medo é que este seja o motivo. Elisabete apostou com ela mesma que põe o caipira a seus pés.

- O João resolveu me escandalizar – eu reclamei.- Não sou eu. Lamentavelmente é minha neta. Gos-

taria de estar enganado. Acho que é assim que ela pensa.- Pois eu tenho outro medo. O motivo de ela que-

rer se casar com Danilo ou com qualquer outro está no Canadá. Não sei se faz parte de seus planos chegar ao cartório, mas, sobretudo, ela quer pedir o divórcio. Quer que Estácio fique com medo de perdê-la. Por que conta para Teresa os progressos da sua conquista? Teresa tam-bém está desempenhando um papel na estória. Repassa para o filho os caminhos da nora e, para esta, os do filho. Ou seja, quer que Elisabete deixe Estácio livre para que ele possa refazer sua vida.

- Ai, ai, ai. Li em alguma revista que o cérebro da mulher muda com a maternidade. Deve ser verdade.

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- Marcos – iniciei meu protesto -, nem toda mãe confunde os valores frente ao que acha que pode ser sua colaboração para a felicidade do filho.

- Está certo. Fui infeliz na observação feita... na sua presença – falou Marcos rindo de mim. - Voltando à sua hipótese, se Elisabete não está apaixonada pelo Danilo e nem pretende chegar às vias de fato, você, João, precisa ter mais calma. Deixe as águas rolarem. Quem vai ficar zangada com o final sem casamento será somente a velha senhora.

Marcos, sem que soubéssemos, profetizava.- Marcos não deixa de ter razão, João. Elisabete está

se comportando como ela é, uma menina mimada que bate o pé, aliás pode até ser sobre alguém quando quer al-guma coisa, no caso, Danilo. Este é bem grandinho, com boa dose de experiência com o lado feminino. Não tenho a mesma opinião que você, João. Acho que Danilo é mais tímido que mau caráter. Quanto a não estar apaixonado por Elisabete, não sei, o que tenho quase certeza é sobre ele não querer se casar. Isto sim.

- Ah! Este é o seu campo – disse João. E triunfante completou:

- Disto você entende. Marcos, diante dessa frase do amigo, dita com tanta

ênfase, me olhou interrogativamente e quando me viu rindo, entendeu a insinuação e se juntou a mim.

- Que cruel e feio! Aproveitando para me malhar! Você se lembra, Marcos, de quando nos apresentou? Lembra-se do que falou?

- O que, exatamente, não me lembro, mas que eu

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tinha receio de um caso sério entre dois tão parecidos tive. Depois vocês se casaram.

- Casaram?! Ela nunca quis se casar comigo! – João não deixou passar a oportunidade, mas eu retruquei:

- Nem com ninguém, embora você tenha provado que não somos tão parecidos como Marcos achava.

- O vinho acabou - Marcos aproveitou para inter-romper o que todos nós sabíamos ser uma direção peri-gosa. – Posso pedir ao Valdir para trazer os ingredientes para a saladona que vou fazer para nós?

- É claro, mas os temperos, cebola, cebolinha, ale-crim, tomilho, salsinha, orégano, você pode pegar ali, no canteiro noturno – eu disse e João, rindo, acrescentou:

- Quero ver você saber o que é o canteiro noturno.Marcos, sem saber que brincadeira seria essa, só fi-

cou olhando para um e para outro, aguardando a explica-ção que João logo deu:

- Além dos temperos, há também as ervas mais usa-das para o chá da noite e o orégano para a pizza.

- Bem, então, vou usar o canteiro noturno para a salada diurna.

Alguns dias depois, Elisabete me pediu para dar uma carona para a Dita que, como eu, iria fazer compras na ci-dade. Passei por lá, Danilo me apresentou “sua babá” que muito à vontade entrou no meu carro e, imediatamente, começou a falar. Contou sobre a infância do Danilo, as preocupações com ele aqui no sítio, morando sozinho, sem alguém para cuidar de sua comida, sua roupa... “es-sas moças sem juízo não sabem fazer um prato bem tem-

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perado”. Depois falou do quanto a família ficou chateada por ele ter deixado os estudos, “podia ser um doutor” e, finalmente, chegou ao delicado ponto que ela queria abordar, o casamento com Betinha.

Nas duas vezes seguintes, Elisabete foi à terapia levada por Danilo, embora João tenha chegado a ser grosseiro na insistência para levá-la. Nessas vezes, eles só voltaram no dia seguinte. Na primeira, foram ver uma peça de teatro e na outra um concerto, sempre acompanhados de Zolda.

- Vocês não iriam reconhecer o Danilo – observou Elisabete, orgulhosa –, todo elegante, no vestir e no tra-to, sobretudo com a mãe, abrindo a porta do carro, cui-dando de tudo, prestativo e cuidadoso. Ele parece outra pessoa, lá em São Paulo, perto da mãe.

João mostrando-se entediado saiu da sala e foi para o escritório.

- Mariana, você não gosta de mim, não é?Olhei para ela muito espantada e ela continuou:- Você tem sido generosa, discreta, mas só me rece-

beu por causa de meu avô. Você me acha insuportável, com razão. Todos acham. E o que eu mais queria era ter uma amiga como você.

- Minha filha - comecei a dizer e fui impetuosamen-te interrompida por Elisabete -,

- Seria ótimo se eu fosse sua filha e do meu avô!- Elisabete!- Você dizia: minha filha...- Vamos aos esclarecimentos. Recebi você e seu avô

devido a um pedido dele. Não poderia ser diferente. Você, eu mal sabia da sua existência. Conheço há muito tempo

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o Estácio, seus pais e João. Você está aqui devido a seu avô e também não poderia ser diferente. Agora, depois desse tempo juntas, acho que a responsabilidade de nossa convi-vência é sua e minha e não do João. Você não acha?

- Acho, mas se não fosse por ele você já teria me mandado embora.

- Por que você diz isto?- Porque sou insuportável.- Acho que você é uma garota muito mimada. Se

você se acha insuportável, por que não deixa de ser?- Não consigo.- Acho que você deveria continuar aquela conversa

que começamos ter lá no meu quarto, quando João es-tava viajando, e você a interrompeu. Talvez eu consiga entendê-la melhor.

- Quando ainda não sabia falar direito ‘mamãe’, cha-mava minha mãe de Ma. O seu nome é Ma-riana, muito grande. Posso chamá-la de Ma?

- Se for sem acento, pode.- Como?- Desculpe-me, às vezes, chego a me esquecer de que

você é francesa. Em português, o feminino do adjetivo mau é má com acento agudo.

- Ah! Então, Ma, sem acento, vou contar pra você o que ninguém sabe de mim.

Neste momento, ouvimos João chamando:- Elisabete!Ele foi entrando e, ao nos ver juntas, disse:- Ah! que ótimo vocês duas aqui! Pode, agora, nos

contar, Mariana, sua conversa com a histórica babá?

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- Histórica?! Elisabete, temos que tomar o maior cui-dado com seu avô, ele está cada vez mais escarnecedor!

- Só agora você percebeu?! - Ironizou o João.Elisabete, bastante ansiosa, cobrou logo:- É mesmo, Ma, você não falou nada do seu encon-

tro com a Dita. Estou curiosa. Conte.- Bem, a senhora Benedita é muito esperta e tem

suas próprias opiniões que parecem nem sempre coinci-dir com as de sua patroa. Foi muito cuidadosa, mas fez questão de dizer que Danilo tem vontade própria e, claro, ela está do lado dele se houver uma disputa de opiniões entre mãe e filho. No entanto, Dita é também discreta em suas desavenças com a Zolda, pois sua lealdade só é questionada se “seu menino”, é assim que ela se refere ao Danilo, precisar de proteção contra a mãe. Este aspecto a torna bem interessante como aliada e ela se ofereceu como tal. Ou, pelo menos, foi minha interpretação. Se-gundo ela, a Ciça não concordou em ir para São Paulo, não quer sair de perto do Danilo e ainda vai dar trabalho para a velha senhora. Ciça, pintada por Dita, é quase o oposto do que vocês viram naquele almoço, quando es-tava travestida de “boa menina”. Ela se meteu na cama e na mesa do Danilo e não quer “largar o osso”; foram suas expressões. Fazer de conta que concorda com Zolda foi sua única saída. Está se preparando para “dar o bote”. Dita teme que apareça uma gravidez, mas ela já alertou mãe e filho sobre isto e Zolda já deu um jeito de levá-la ao médico, pedir alguns exames, cujos resultados negati-vos estão em seu poder. Encarregou Dita de não permitir que Danilo a encontre.

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- Que trama! - Exclamou João. - E você, minha me-nina, quer fazer parte dessa família!

- Continue – pediu-me Elisabete, ignorando a ob-servação do avô.

- Acho que foi esse o quadro que vislumbrei nas falas da “babá”. É claro que ela enfatizou que Danilo é inocente: “Sabe como é homem, sozinho, a mulher se oferecendo. Ele não é santo”. E acrescentou que “ele está louco por dona Elisabete e quer se casar com ela o quanto antes”.

- Ela falou isto, Ma?- Falou. Dita acha que Zolda está patrocinando

sem necessidade o casamento, como se precisasse con-vencer o Danilo e ele está se divertindo, deixando a mãe pensar que ele quer manter o caso com a Ciça e conti-nuar solteirão. Parece que o relacionamento entre mãe e filho se dá assim. Ela dominadora, ele rebelde e, agora, ele se diverte, deixando a mãe fazer seu papel, enquanto ele finge que está se rebelando para depois lhe dar a vitória de presente. Segundo sua versão, Zolda sempre acha que domina o filho, mas é ele que consegue e faz o quer. Dita também se diverte como aliada de Danilo. O tempo todo ela contava e ria.

- Faz sentido a mudança de Danilo quando estamos sós. Eu interpretei como timidez. Ele me disse que tinha vergonha de as pessoas nos verem como namorados por ele ter idade para ser meu pai.

- Pode ser também - tentei amenizar.- Elisabete, você já tem bem uma ideia da família!

Ainda bem que para se casar você precisa primeiro do di-vórcio e isto vai nos dar um tempo que você poderá usar

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para encontrar seu bom senso - João falou com um ar de quem está perdendo a paciência e recebeu da neta uma resposta no mínimo inesperada.

- Casamento?! Hum, hum! Vou descansar um pouco, parece que minha cabeça tem um ferro baten-do nela por dentro.

Quando Elisabete saiu, João estava radiante e disse:- Estou desconfiado de que há também por aqui

alguém que não precisa ser convencida. Vamos, então, relaxar. Não haverá casamento, pelo menos não esse que tanto temíamos.

- Você está sofrendo tanto quanto Elisabete pela si-tuação dela e do Estácio e o curioso é que não vejo você fazer nada a respeito.

João me lançou um olhar tão triste que me arrepen-di do que dissera, mas ele logo perguntou:

- Fazer o quê?! Torcer, rezar? Fico pensando em como estará Estácio. Pelo que sei, refazendo sua vida e com muita competência. Torço por ele que merece o me-lhor, o que não me impede de fantasiar...

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9. Estácio

Estácio me avisou que iria passar um mês em Bra-sília, em busca de dados para sua tese no Itamaraty e na Universidade. Pediu para nos encontrarmos, mas com discrição. Eu deveria ir à Capital Federal para partici-par do lançamento da revista “A Filosofia XXI”. Apenas adiantei uma semana minha passagem e fui sem justi-ficar minha antecipação. Não foi fácil, pois não pude contar nem para o João, já que o obrigaria a manter o segredo junto à neta.

Estácio, bastante ansioso, me esperava no aeroporto. Pareceu-me bem, com o mesmo peso, apenas um pouco mais pálido. Mostrou-se bastante curioso com o que se passa na nossa terrinha. Já havia comprado um exemplar do Correio Brasiliense, O Globo, O Estado de S. Paulo, A Folha, O Estado de Minas, Caros Amigos, Carta Capi-tal, Época e Veja. Já havia lido as principais matérias dos jornais e começava a devorar as revistas. Fomos para o restaurante do hotel. Quando o garçom saiu com nossos pedidos, ele foi direto:

- Como está Elisabete?- Bem. O tratamento foi suspenso por um ano.

Conforme o planejado pelos médicos franceses, após esse período eles querem vê-la para uma avaliação.

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- Qual a avaliação que os médicos daqui têm?- Acham que Elisabete está curada, porém são cau-

telosos e fizeram muitas recomendações sobre os cui-dados que ela deve tomar no seu dia a dia, sobretudo quanto aos rins. Um dos médicos passou uma receita fitoterápica, a decocção com casca de carvalho e cabe-los de milho. Ela está tomando direitinho três xícaras por dia, durante três dias e depois alterna com o chá de malva. Está havendo um movimento interessante entre os médicos em direção a alternativas menos invasivas. Outro dia, um ortopedista...

- Mariana, por favor - sem qualquer cerimônia, cor-tou minha fala e, numa cascata de frases apressadas, foi dizendo –, volte à Elisabete. Como ela está emocional-mente? Está mesmo namorando seu vizinho? Que estória é aquela de jantares em família?

Entre surpresa e divertida, tentei o caminho da cal-ma e fui respondendo:

- Primeiro, Elisabete está bem física e emocional-mente, no seu normal; segundo, até onde posso deduzir, existe um relacionamento entre o que, no meu tempo, se chamava um flerte e um namoro; terceiro, quanto aos jantares em família, não participei de nenhum.

- Está bem, mereci. Agora, me entenda, estou con-fuso, sem compreender o que se passa com os meus pró-prios sentimentos e preciso entender os da minha mulher. Você é a pessoa com quem conto para me ajudar.

- Você disse sua mulher?!Ele me olhou espantado e quase gritou: - É minha mulher, casada comigo, minha esposa!

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- Sei. Então, você não acha que antes de querer saber dos sentimentos de Elisabete, não seria mais honesto fa-lando ou, pelo menos, descobrindo os seus próprios sen-timentos? Ou vai depender da situação emocional dela para você definir a sua?

- Como você sabe ser má!- Sabe, Elisabete também me chama de Ma, sem

acento. Mais uma vez ele me olhou espantado, mas acabou

dando uma boa risada e se descontraindo um pouco.- Você quer que eu fale primeiro. Tem razão. Ste-

la tem me feito muito bem, me ajudou a tirar aquela dor que enchia meu peito e pude estudar, trabalhar levar uma vida quase normal, num país estranho. Meu orientador está satisfeito com meus trabalhos. Agora, meus sentimentos estão embaralhados. Stela acha que ainda estou apaixonado por minha mulher e que devo buscar a reconciliação.

- E você? - Às vezes, sinto que Stela tem razão. Ela fala que

mulher não se engana quando está na cama com um ho-mem que não está todo com ela. Fico chateado porque sempre fui honesto, tanto com Stela quanto com Elisabe-te. Por outro lado, às vezes, acho que fui muito duro com Elisabete que, afinal, só queria ser mãe...

- E como está a relação com Stela?- Morna. Ela começou a colocar Elisabete no meio

de nossa relação, dizendo que eu deveria procurar Elisa-bete. Na realidade, ela colocou como condição. Acha que não só eu não me separei como não vou me separar.

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- E você? Onde coloca Elisabete?- Ai de mim! Sei lá. Prometi que iria procurar Elisabete

e conversar com ela, tentar ver com mais clareza meus senti-mentos e tomar uma decisão. Agora você pode me dar a sua opinião? Você acha que Elisabete pode me receber de volta?

Estácio estava com pressa. Parecia o menino que fez a lição correndo para ganhar a bala.

- Acho – falei e imediatamente me arrependei. – Só que não tenho que achar nada. Você precisa ter suas cer-tezas e depois falar com sua mulher e aí os dois resolve-rem de acordo com seus sentimentos.

- Claro. Agora, você pode nos ajudar. Sua opinião de fora é bem orientadora.

- Estácio, é justamente o que não pode ser.- Você pode me ajudar a me ver melhor. Você faz

isto com brilhantismo, pelo menos comigo.- Veja - comecei a falar devagar, tentando dimi-

nuir o ritmo -, acho que Stela é muito sensata e lhe dou toda a razão. Tire uns dias e vá para minha casa conversar com Elisabete. Vim para Brasília para me encontrar com você, mas eu viria na próxima semana para o lançamento de uma revista de filosofia. João, com certeza, aceitará de bom grado meu convite para se juntar a mim nesse evento. Posso ligar para ele e você vai. Ficam vocês dois sozinhos, conversam e se resolvem. O que acha?

- Agradeço e aceito. Quando você ligar, dê um jeito de falar com Elisabete para ela ter a oportunidade de re-cusar a minha visita. Está bem?

- Tudo bem. Então, vamos ligar juntos.

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Estácio fez questão de pagar a conta. Fiz minha ficha na portaria do hotel e subimos para o meu apartamento.

João aceitou o convite. Ficou de me ligar assim que conseguisse a passagem, mas garantiu que estaria comi-go no dia seguinte. Elisabete foi escandalosa na primeira e espontânea reação, mostrando-se maravilhada com a ideia do encontro com o marido. No segundo momento, quis recuar para uma indiferença dizendo:

- Se Estácio quer conversar e já está no Brasil tudo bem.Repeti a frase e Estácio sorriu, feliz. Já tínhamos nos

dito boa noite e eu estava me trocando para me deitar, o telefone tocou e Estácio me disse intempestivamente:

- Ainda preciso lhe dizer uma coisa antes da chegada do João. Posso ir ao seu quarto, agora?

Quando chegou, foi logo pedindo uma bebida e falando:

- Stela está grávida.Sentou-se enquanto eu, com o copo e a garrafa na mão,

me balançava em pé querendo entender o que ouvi. Devo ter ficado meio abobalhada, porque ele se levantou arrancou o copo de minha mão, tomou um gole triplo, voltou a se sentar e, sem me conceder mais um segundo, continuou:

- Ela quer abortar, mas sei que se nos compro-metermos a ficar com a criança assim que nascer, ela vai concordar.

- Estácio, há uma garrafa de vinho branco no frigo-bar. Eu vou tomar um copo de água, vou até a sacada res-pirar e você vai me servir uma taça do vinho. Não tomo bebida destilada, mas minha garganta quer ajuda.

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Novamente, sentados cada um com sua bebida e pensamentos, emudecemos. Sabendo que meu jovem amigo precisava se acalmar e eu também, quebrei o silên-cio buscando um tom de voz suave.

- Bem, vamos lá. Corrija-me se, com toda a razão do mundo, eu não estiver falando coisa com coisa. Você pretende que o filho que você e Stela fizeram seja gestado e parido por ela e criado por Elisabete?

- E por mim. É isto. Elisabete não queria tanto um filho que não poderá mais ter? Está aí a oportunidade.

- É racional demais. Muita coincidência você se apai-xonar, engravidar a moça, pegar o filho, entregar para a esposa, voltar ao casamento e juntos criar a criança. Que-ro ver você convencer Elisabete de que está voltando por amor a ela e não somente pelo filho que Stela não quer.

- Mas é a verdade! – Estácio gritou. - Stela só me contou sobre a gravidez na véspera de minha viagem para dizer que iria abortar enquanto eu estivesse no Brasil. Passei horas lhe implorando que não o fizes-se e que me esperasse voltar. Já havíamos combinado que eu iria procurar Elisabete. Passei todas as horas no avião pensando como impedir esse aborto. Por outro lado, acho que Stela e eu esgotamos a paixão, o que me permitiu sentir a possibilidade de retomar meu casa-mento, já que com Elisabete sempre foi o amor e não só a paixão. Agora, como fazer Elisabete entender tudo isto não tenho a menor ideia.

- Agora entendo porque você quis se encontrar co-migo discretamente. Seus pais estão sabendo?

- Ninguém sequer sabe que estou no Brasil.

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Estácio se levantou e se serviu de mais uma dose. Qua-se o alertei do seu exagero, mas achei que se ele ficasse bêba-do eu o colocaria na cama e tudo bem. Ele continuou:

- Primeiro quero falar com minha mulher. Como não tive coragem de ir direto para lá, precisei pedir sua ajuda. O que você acha? Como abordar o assunto com Elisabete?

- Não sei e duvido que alguém possa lhe responder. Acho que você precisa ter certeza, clareza de seus sen-timentos e somente depois falar do filho. Não planeje, seja absolutamente honesto com seus sentimentos e com Elisabete. Ela irá captar, sentir essa energia e dará boas respostas. Sabe de uma coisa? Sua única salvação será se ela sentir amor saindo de você em direção a ela.

- Entendo e acho que você tem razão.- Estácio, não tenho mais nada a lhe dizer a não ser

lhe desejar inspiração e boa sorte. Ficarei torcendo muito por vocês. É, acho que pode dar certo. Poucos teriam a coragem de buscar essa solução. Se der certo, será um final feliz de contos de fadas.

- Ai, até chegar lá vou ter muita frieira!- Frieira?!- Basta eu ficar tenso que sofro com meus pés, mas des-

ta vez nem vou me importar. Vai ser um custo barato toda a frieira que vier se Elisabete me aceitar com meu filho.

- Caraca! Estácio! Vocês não são um casal comum! - Ainda seremos uma família: mãe, pai e filho.- Ou filha?- Seja bem-vinda!Seu sorriso maroto e o brilho nos olhos não desmen-

tiam a fala, para ele a filha já estava chegando.

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- Vamos dormir. Estamos os dois com cara de quem carregou pedra.

- Obrigado, minha madrinha. Boa noite. Beijou minha mão direita, depois a esquerda, deu-

me uma piscadela, outro beijo na testa e com todo o seu charme repetiu:

- Boa noite.Saiu, fechando a porta e voltou, em seguida, para

dizer muito sério:- Você tem os olhos de mel e o nariz cheirando o céu.

Elisabete teve uma transformação que chegou a me confundir. Pareceu-me ter perdido a lucidez. Falava sem parar, perguntava e respondia, ria ou chorava, sem que eu conseguisse entender o que dizia, se chorava ou se estava era rindo.

- Mais ou menos como você está fazendo agora? – perguntei enquanto João sentava à beira de minha cama para, em seguida, se levantar e andar até a janela se movi-mentando inquietamente.

- Como você entrou no meu quarto?- A porta estava só com o trinco. Achei que você

havia deixado aberta para eu entrar. Não foi? - Pode pedir o café enquanto vou ao banheiro?Escovava os dentes e ele atrás de mim falando das

reações da neta e dele próprio quando souberam da vi-sita do Estácio.

- João, e o Danilo?- Fiz esta pergunta para Elisabete e ela me olhou

como se eu estivesse falando de alguém há muito esque-

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cido. Sorriu e falou “É mesmo!”. Não era esquecido, era descartado! Depois conseguimos conversar um pouco e ela me prometeu ir falar com ele, mas ainda não sabia como iria avisá-lo de que o marido estava chegando. Se torcida adiantar, eles não estarão falando de divórcio. Conte-me como foi sua conversa com Estácio.

- Ah! Não. Convidei você para ficarmos juntos uma semana, sem neta, sem vizinhos. Agora, vamos ao café, depois quem sabe compensamos o sono que nem você, nem eu conseguimos ter à noite. À tarde daremos um passeio, com direito a escolher o local. Serve pra você?

- É tudo que eu quero. Só me responda uma coi-sa: você acha que Estácio quer o divórcio ou há alguma chance de um retorno?

- Este é o João que eu conheço! Tudo bem! Acho que a torcida será eficiente. O café chegou.

Aliviada pela trégua, fui atender à campainha. Per-cebi que não seria fácil manter João na ignorância de qualquer detalhe. O garçom recebeu um sorriso maior do que esperava. Quando abri a porta, eu estava me lembrando da expressão muito usada nas Gerais: “aonde fui amarrar meu burro”! Estácio passou correndo para se despedir e pude lhe dizer que, após sua partida, eu falaria ao João sobre a proposta do filho. Foi a minha salvação, pois a trégua acabou quando ainda estávamos na cama, naquela hora da grande cumplicidade, o des-pertar do depois do amor. João entendeu o desejo de Estácio de falar primeiro com Elisabete. Estava tão ra-diante, repetindo de quando em quando:

- Serei bisavô!

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Fiquei comparando nossos momentos: eu sem pers-pectiva de neto num horizonte de longo prazo, o que não me desagrada nenhum um pouco e ele com um bisneto torto batendo à porta. No entanto, João é apenas cinco anos mais velho que eu. São os rumos que demos à nossa vida. Nossos valores, nossas prioridades, nossas escolhas nos levam a caminhos nem sempre tão planejados, po-rém sempre resultados dos nossos atos. O que uma noite em Paris trouxe para a vida do João!

Um mês depois, Estácio me enviou seu relato do que aconteceu quando de sua volta. Ele chegou a seu aparta-mento, em Quebec, desfez a mala enquanto se preparava para mais uma difícil conversa. Teria que convencer Ste-la a não interromper a gravidez e lhe entregar a criança. Lembrando-se do brilho nos olhos de Elisabete quando soube dessa possibilidade, estremeceu de medo. Ele não podia falhar. Precisava conseguir, convencer Stela. Por outro lado, gostava muito dela. Por nada iria magoá-la. Ela o tirara de uma tormenta e fora sensível o suficiente para perceber que Elisabete ainda estava muito presente. Stela sabia que o forte tesão entre os dois não sustenta-ria uma relação no longo prazo e era orgulhosa bastante para esperar pela água fria. Ela entrou carregando uma sacola com comida. Olharam-se com ternura e, ao invés do beijo, buscaram um abraço companheiro, solidário. Estácio a afastou um pouco, pegou seu rosto com as duas mãos e deu-lhe um banho de beijos, fazendo Stela passar de uma surpresa gostosa para uma divertida recepção, até que conseguiu dizer:

- O que é isto?!

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Estácio quase põe tudo a perder ao colocar sua mão na barriga da parceira que, entre mágoa e raiva, exclamou:

- Ah! Os beijos são para seu filho? Ele ainda não existe e nem pense em me convencer do contrário.

Percebendo o erro tático. Estácio, num estado de pura emoção, onde o medo e a tensão ficavam cada vez maiores, tentou se acalmar, abraçando-a fortemente. Ao se separar do abraço, foi a vez de Stela ficar perplexa, Es-tácio estava em lágrimas.

- Tenho cometido muitos erros que causaram so-frimento em outras pessoas e em mim mesmo. Não vou continuar, não posso abrir mão do que é importante para minha vida e fazer de conta que nem percebo. Não quero ver as pessoas queridas sofrendo. Preciso fazer as coisas certas.

Stela lhe oferecendo uma caixa de lenços-papel, em-purrou-o gentilmente para que se sentasse no sofá.

- Fique quietinho um momento, deixe-me fazer uma massagem em sua cabeça.

- Gosto tanto de você! Você me tirou de um grande buraco. Não quero magoá-la.

- E por que iria me magoar? Parece que está desco-brindo que o que sente por mim é gratidão.

- Também. É claro que lhe sou grato, mas não posso negar que o que nos uniu foi um baita tesão. Você se esqueceu?

Ela lhe ofereceu um sorriso charmoso, uma piscade-la e quase ronronou, acariciando o lóbulo de sua orelha.

- No início sim, mas quando você soube que eu es-tava grávida, mudou. Você me engravidou e passou a me

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ver como uma irmãzinha! Já ouvi falar de mulher grávida que rejeita o parceiro, mas o contrário é a primeira vez!

- Rejeitar?! Mas do que você está falando?- Estácio, não vamos quebrar nossa honestidade! O

que há? Você esteve com sua mulher e descobriu que ain-da a ama. Quer terminar comigo e não sabe como. Por-que estou esperando um filho seu? Ora, já lhe disse que vou interromper esta gravidez.

- Não! – ele berrou. Ela ficou assustada com aquela ênfase, a seu ver, fora de propósito e lhe exigiu uma expli-cação mais racional:

- Vamos tentar uma conversa mais objetiva? O que o está perturbando tanto? Você tem alguma coisa contra o aborto?

- Acho que cada pessoa deve agir de acordo com sua vontade. Acho que essa escolha é, sobretudo, da mulher.

- Então!? Cada vez entendo menos sua atitude.- Sobre a gravidez, a decisão é sua e vou respeitar e

apoiar o que você decidir, mas não posso deixar de sentir o que sinto.

- E o que você sente?- Há dois assuntos que quero discutir com você, in-

clusive contar o que se passou no Brasil.Estácio estava numa tensão tão forte que não conse-

guia disfarçar e Stela percebendo disse:- Você está me deixando tensa só de olhar pra você!- Desculpe-me. Não quero errar mais e estou com

muito medo de magoar você.- Meu querido, se você decidiu retomar seu casa-

mento, não posso culpá-lo. Você foi se encontrar com

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Elisabete para tirar essa dúvida e eu insisti muito para que você fosse. Nós dois já havíamos sentido que as coisas estavam mudando e a gravidez foi o marco. Não sei por que, mas foi. Vamos, me diga tudo. Tenho certeza de que poderemos resolver de forma legal.

- Como sempre você tem razão. A gravidez me trouxe uma situação dolorosa vivida com a Elisabete e eu passei a querer esse filho de uma forma estranha, intensa demais. Houve momentos em que evitei estar com você por recear não aguentar ouvir você falar que não queria a criança.

- Mas, Estácio, nós sempre evitamos filho e não só eu, você também não queria. É loucura pensar numa criança em minha vida agora e na sua, não? Quero um filho quando eu tiver condições de colocá-lo como prioridade.

- Entendo e lhe dou razão. Você é uma pessoa tão séria, tão honesta com você mesma!

- Nem tanto!- Como? Por que você disse isto?- Bobagem! Mesmo assim você quer o filho?!- Querer eu quero muito. Você já pensou que eu

poderia criá-lo?- Você?! Como?- O filho não é meu também? Então, se para você

fosse tudo bem, eu poderia levá-lo para o Brasil.- E Elisabete? Um filho de outra mulher pode lhe

tirar qualquer chance de uma reconciliação. Acha que vale a pena? Você não estava com esperança de retomar seu casamento?

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Estácio olhou para ela e titubeou. Não queria ser desonesto, porém não podia misturar as coisas. Ficou um momento pensando e finalmente disse:

- Primeiro, vamos resolver o que se refere a você? Eu posso lhe garantir que essa criança será bem amada, cuidada e, mais ainda, aceito qualquer condição que você impuser.

- Meu deus! Você quer tanto assim?- Quero. Posso levá-lo para o Brasil e registrá-lo

como você quiser. Você poderá vê-lo quando quiser ou como você preferir.

- Estácio, estou aturdida. Preciso absorver tudo isto. Preciso de um tempo.

- Tudo bem. Como você quiser, no seu tempo.- Obrigada.Depois de alguns minutos em silêncio, ela ficou em

pé e disse: - Trouxe comida.- Vamos lá, estou com fome.No dia seguinte, quando Estácio chegou da Uni-

versidade, encontrou um bilhete de Stela avisando-o que iria passar uma semana fora. Explicava que queria ficar sozinha para refletir e entender seus próprios sentimentos quanto à proposta dele.

Fiquei, então, pensando no meu próprio retorno à Chácara Xury, após aqueles dias em Brasília. O sentimento de amargura de minhas perdas preencheu novamente meu coração dolorido. Estava dirigindo e o celular tocou. João ficara em São Paulo, Elisabete ainda em Brasília, eu estava sozinha, então encostei o carro no acostamento. Era minha nora que me deu a tétrica notícia da morte do querido

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amigo Mi, o impagável comediante, inteligente teatrólogo e sensível poeta Miguel Magno. Que abalo! A sensação do inexorável entrou em mim cruelmente. Muitos momentos vividos com ele foram chegando numa visão dramática. Ouvi minha voz, às vezes, cortada por soluços incontrolá-veis, dizendo suas poesias. Uma delas, muito especial, ele a fez por ocasião do nascimento do meu filho. Vim pela estrada, prestando–lhe minha homenagem.

Há mais de 35 anos, era editora de uma revista quan-do lá apareceu o jovem, recém-formado, Miguel Magno, que imediatamente contratei como meu auxiliar e logo se tornou um grande amigo. Acompanhou-me em mui-tos e importantes momentos de minha vida. Quando ele começou a atuar no teatro, o fez pelo infantil. Seu grupo alugou um casarão no Pacaembu, onde ele recebia meu filho em meio a cenários e guarda-roupas, um mundo de fantasias que encantava qualquer criança. Mi foi, durante toda a infância de André, o único adulto convidado para suas festas. Miguel foi um artista maior e uma pessoa enorme. Agora me dou conta do quão difícil será pensar que não mais terei sua presença incondicionalmente ami-ga, carinhosa, absurdamente criativa, inteligente, bondo-samente crítica, sábia.

Quando cheguei em casa, mais uma tragédia me aguardava. Os cachorros estavam soltos e Ramon preso com a casa fechada. Valdir faz isso com medo de Bia e Bei pegarem Ramon e este cada vez mais andava fugindo, descendo pela parede da varanda. Mesmo depois de já ter sido machucado pelos dois e me passado um susto

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danado, Ramon parecia odiar tanto a falta de liberdade que corria os riscos. Por várias vezes, passei pelo aperto de ver Ramon em perigo. Entrei em casa, chamando-o e ele mediatamente veio roçar em minhas pernas e esperar o carinho. Peguei a fita e seus olhinhos brilharam, comecei a movimentá-la pra lá e pra cá e ele pulava para pegá-la. Era a sua brincadeira preferida. Fui ler o jornal onde ha-via a matéria sobre o Mi, me entreguei à sua lembrança e chorei muito. Quando chamei novamente, Ramon não apareceu. Fui procurá-lo e pela varanda, vi Bei e Bia saí-rem correndo. Alguma coisa neles me deixou preocupada e, enquanto percorria a casa, a preocupação foi se trans-formando em medo. Ramon havia fugido e os cachorros já voltavam, com uma postura corporal estranha. Não querendo acreditar no que eu já sabia, gritei pra eles:

- Canil!Bia e Bei atenderam sem regatear. Calcei minhas bo-

tas e saí pela chácara chamando o Ramon, na esperança de que ele tivesse subido em alguma árvore. Afinal, fazia apenas uns dois minutos desde que os vi correndo. Uma vez, mesmo machucado, Ramon conseguira subir na caixa d’água. Depois de percorrer quase todo o terreno, gritando por ele e já desesperada, vi, dentro da matinha, seus pelos amarelos, brilhantes, no chão. Corri e o peguei ainda pensando que poderia estar vivo. Meu companhei-ro de mais de 10 anos não resistiu ao ataque furioso dos dois cães. Coloquei-o numa caixa – ele sempre gostou de brincar, pulando dentro de caixas – para ser enterrado. Entrei na casa e não pude reprimir um grito feio, gutu-ral. Meu peito estava vazio. Ramon foi um companheiro,

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solidário e sensível, que sabia exercer sua liberdade. En-sinou-me muito até a me conhecer melhor. Aquela noite foi de despedidas.

Elisabete depois que voltou de Brasília, após a ida de Estácio, ainda ficou na chácara por mais uns dias e, então, me comunicou que iria voltar para o apartamento em São Paulo. Queria trocar uns móveis e, bastante an-siosa, falou de sua expectativa quanto a seu casamento. Quando da vinda de Estácio de Brasília, ela ainda receava que fosse um pedido de divórcio e se propôs a bancar a durona. Iria dizer que estava noiva e só esperava o divór-cio para se casar novamente. Iria apresentá-lo ao Danilo. Assim, não foi esperar o marido no portão, mas ficou na varanda aguardando que Valdir prendesse os cachorros e acompanhasse Estácio até a casa. Ele entrou, ela ficou em pé e sentiu os joelhos baterem um no outro, não conse-guia articular uma palavra e tentou sorrir, mas seus olhos soltavam lágrimas. Estácio parou na entrada e também nada pode dizer. De repente, os dois abriram os braços e ele a suspendeu num abraço. Parou, olhou para ela, bei-jou-a ternamente, se olharam e um novo beijo veio com a força do desejo escondido. Depois do amor, ele, inquieto, preocupado quis saber:

- Fizemos alguma coisa que você ainda não pode?Ela rindo dele, lhe respondeu:- Estou bem, o tratamento já terminou, com ótimos

resultados. Agora só avaliação de três em três meses.- Ah! Que alívio. Quando a vi, me esqueci de que

você está em tratamento. Também, você está tão bonita!

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– Ele falava e a acariciava e ela, ainda um pouco nervosa e insegura, sorria e retribuía seus carinhos, enquanto ten-tava acompanhar o que ele dizia.

- Preciso falar com você sobre uma coisa muito im-portante. Você precisa saber que a amo muito. Não quero mais ficar longe de você. Vou terminar o curso e fazer a tese aqui no Brasil, no nosso apartamento, em São Paulo. Você ainda me quer?

- Quero muito!- Soube que você está namorando um cara daqui. É

verdade? Você está apaixonada por ele?Ela saiu logo na defensiva:- E você? Está morando com uma canadense.Entre surpreso e divertido ele riu, puxou-a para mais

um abraço e disse:- Acho que quase podemos encerrar esse assunto dos

terceiros.Ela o interrompeu cheia de interrogação:- Quase?!- Meu amor, meu amor querido!- Estácio, por que o quase?- Venha cá, fique aqui, grudadinha em mim. Não,

você precisa ficar olhando nos meus olhos.- Você está me assustando e não me responde por

que o quase!- É porque há uma consequência que eu não sei

como você vai encarar e não posso correr o risco de perder você.

- Anda, fala logo.- Nós estamos apaixonados um pelo outro, como

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sempre. Não é? Então, vamos deixar os outros pra lá. Te-mos que procurar não magoar ninguém. Certo?

- Até aí, tudo bem, mas você falou e não explicou o QUASE. Estou ficando nervosa.

- Não fique. A moça com quem eu estava morando está grávida.

- Ai, meu deus! Que inveja!- Ela não quer o filho, agora.Elisabete olhou para ele com uma expressão de dor

e gritou:- Ela não pode abortar! Você não pode deixar. Não

pode!Ele estava assustado com a reação da mulher que

não conseguia entender. Falou, com voz baixa: - Calma, meu bem. Ela diz que não tem tempo,

nem espaço para uma criança. Quer ter filhos, mas não agora. Está terminando um doutorado e concorrendo a uma vaga na Universidade como pesquisadora. Acha que jogaria fora essa oportunidade ou não teria como criar direito o filho.

- Eu crio! – Foi um grito tão espontâneo que até a própria Elisabete se surpreendeu. Estácio estava muito emocionado e seus olhos mostraram sua emoção. Era o que ele pretendia, porém a ideia partindo dela! Por esta ele não esperava. Elisabete interpretou erroneamente sua reação e, quase chorando, pediu:

- Eu quero tanto um filho! Por favor, por favor. Diga para a moça... como ela se chama?

- Stela.- Diga para a Stela que vamos adotar a criança e va-

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mos criá-la com todo amor. Por favor! Você vai convencê-la, não vai?

- Se você quer mesmo, vou tentar.- Estácio, quando fiquei grávida sem o seu conheci-

mento, você me disse que um filho é de pai e mãe. Então, não é a mesma coisa? Você não pode deixar a Stela acabar com a gravidez do seu filho! Você me ama? É a mim que você ama? Ou você ama a Stela?

- Minha querida, é a você que eu amo. A Stela foi muito importante para aquele meu momento de total desespero quando cheguei ao Canadá e lhe sou grato por isso. Ela me ajudou muito.

- Você vai voltar para ela? - Tesouro, tenho que voltar para entregar meu plano

de trabalho. Daí, venho para o Brasil e vou fazer minha tese aqui, tendo que ir ao Canadá, possivelmente em duas ocasiões. Vim para falar com você e aproveitar para fazer uma pesquisa em Brasília. Eu deveria estar lá, mas não aguentei esperar. Gostaria que você fosse comigo para Brasília para ficarmos esses dias juntos. Podemos discutir mais sobre a criança.

- Você me prometeu que vai trazer seu filho para mim.- Espera, Elisabete, não faça isto!Estácio falou sério, num tom ríspido, lembrando-se

de vários momentos quando sua esposa lançava mão de subterfúgios e meias verdades para convencê-lo e teve, por um momento, medo. Por seu lado, também Elisabete percebeu seu erro e sobressaltou-se e corrigiu:

- Desculpe-me, amor. Desculpe-me. Você prometeu que vai falar com Stela. Sei que você vai convencê-la.

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- Escute, minha intenção já era tentar convencer Ste-la a não interromper essa gravidez e falar com você para criarmos a criança. Estava com receio de você não aceitar. Foi uma delícia quando você teve a iniciativa. Agora, pre-cisamos conversar melhor sobre nós.

- Você já está arrependido de ter me procurado?Elisabete, imaginando ter colocado tudo a perder,

não conseguia segurar as lágrimas e Estácio, dividido entre as lembranças nada agradáveis dos dias vividos em Paris e da saudade sentida no Canadá, ficou uns segun-dos calado, levando a esposa a se encolher, entrando num estado de sofrimento. Quando Estácio olhou para ela, a dúvida se desfez e imediatamente a abraçou, enxugou suas lágrimas e a acalmou.

- Não estou arrependido. Quero recomeçar com ho-nestidade e com tudo muito claro. Há algumas coisas que teremos que mudar. Tenho uma proposta. Quer ouvir?

Ela balançou a cabeça num sim mudo, mas bem ex-pressivo.

- Vamos nos permitir alguns dias juntos e com muita calma e amor vamos resolver todas as pendências. Con-corda?

- Você está certo, mas você entende minha aflição?Ele respondeu com carinhos convidativos que os le-

varam a um mundo de poucas palavras, substituídas por eloquentes sussurros.

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10. E a Velha Senhora...

Passamos o inverno com muita chuva, os bichos, as plantas e nós clamávamos por uns dias de Sol. Segundo Valdir, o mato pula prá cima com a chuva que não lhe dá tempo para cortar nem a grama. O capim alto do terreno vizinho já nos enviou uma cobra de um metro e meio, o que significa muito mais cuidado com os cachorros e com nossos próprios pés.

A primavera chegou com jeito de verão pela chuva e sem se soltar do inverno pelo frio. Não há dúvida de que a mãe natureza está passando recados cada vez mais enfáticos a esses seus filhos prepotentes e egoístas que insistem em feri-la. As chuvas, acompanhadas de fortes ventos, caindo fora de época, estão derrubando as flora-das. Nosso pomar, cujas árvores estiveram carregadas de flores, estava com vários tons de verde e o branco foi para o chão, significando perda de safra. Nossa horta esteve produzindo para a compostagem, pois as hortaliças não suportando tanta umidade, apodreciam antes de chegar à mesa. Se nós, aqui, na Chácara Xury, onde só planta-mos para garantir a qualidade de nosso próprio alimento, tivemos tanto prejuízo, como será para os pequenos agri-cultores? Perdem se na hora da comercialização o preço está abaixo dos custos, perdem se o clima não ajuda. Não

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têm condições de utilizar meios de garantir sua proteção, como a plasticultura ou o hegde usado pelo grande agro-negócio na bolsa de futuro?

Nesses dias, ao abrir as portas da varanda de meu quarto, via, no alto das árvores, uma nova família de bugios: a mãe e dois filhotes. Acho que estiveram mo-rando em algum lugar na nossa matinha e andaram procurando um abrigo melhor para se esconderem de tanta chuva. Os pequeninos, com a mãe vigilante atrás, iam saltando, com muita ligeireza pelos galhos altos e alguns bem finos. Davam a volta em toda a chácara e, ao chegarem do lado onde há uma cerca viva de san-são do campo, com galhos bem finos, a mãe, bem mais pesada, continuava seguindo os filhotes, enquanto eu quase tinha taquicardia com o medo de vê-la cair na boca de Bia e Bei. Eles os seguiam pelo chão. Sempre foi para mim uma grande angústia. Minhas experiências com meus cachorros matando animais foram demasia-das dolorosas. Os ladrões-homens me obrigaram a man-ter os cães ferozes e os pequenos e bem-vindos ladrões-animais sofreram a consequência. Onde o homem põe a mão, sobrevive o mais forte. Ainda bem que os esquilos, os passarinhos outros pequeninos visitantes do nosso pomar têm suas defesas, sobretudo a agilidade.

Num momento em que a chuva estava fininha, fui dar uma olhada no ipê que transportamos para perto do portão da entrada. Alguém me chamou:

- Mariana, bom dia.- Dra. Zolda! Bom dia. A senhora veio a pé? – per-

guntei achando a situação bem inusitada. Ela estava

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com um lenço de seda, colorido, com vários tons de verdes na cabeça, uma saia-calça e botas marrom, blusa combinando com o lenço, parecia que saíra para um passeio a cavalo.

- Não. Por favor, dispense o doutora. O carro está um pouco mais acima. Caiu uma árvore na estrada e não conseguimos passar. O motorista tentou puxá-la, mas é muito pesada.

- Vou abrir o portão para a senhora entrar.- Primeiro você vai prender os cachorros porque te-

nho medo deles. Já me falaram que são muito bravos. Valdir já aparecera e os levava para o canil.- Entre, vamos para a casa, lá podemos ligar para a

Prefeitura pedindo para enviar uma equipe para a desobs-trução da pista. Aproveitamos para tomar alguma coisa e saímos da chuva de molhar bobo, como dizia meu avô.

Depois de uma conversa sobre as últimas apo-sentadorias de alguns professores amigos comuns, Zolda me perguntou:

- Sua neta não está mais morando com você?Fiquei sem saber se o sua neta era ignorância ou

anunciava uma cobrança desagradável. Perguntei:- A Elisabete? Ela voltou para seu apartamento em

São Paulo.- Ela avisou o Danilo que o marido havia voltado.

Não entendi muito bem a situação, que me pareceu bas-tante esdrúxula. Será que Danilo não soube me explicar?

A velha senhora era mesmo uma pessoa de convi-vência exigente. Olhava-me como a pedir uma explicação a uma aluna que ousara colar numa prova.

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- Zolda, não sei se sou a pessoa mais indicada para qualquer explicação deste assunto.

Tentei trazer a lógica à conversa, mas minha visita estava firme em seu propósito de me cobrar alguma coisa que eu ainda não sabia da dívida.

- Bem, é sua neta e conheceu meu filho enquanto era sua hóspede – falou olhando para o pé de jasmim e tive uma louca vontade de lhe perguntar se gostava do perfume. Covardemente, falei com suavidade:

- Elisabete é neta do João que foi meu companhei-ro e é um amigo muito querido. Os dois aceitaram meu convite para passar uma temporada aqui, enquanto ela se recuperava de um grave desequilíbrio em sua saúde.

Houve um incômodo silêncio que Valdir quebrou ao nos avisar que alguns homens haviam ajudado a retirar a árvore e o motorista já estava com o carro no portão. Nada como dar tempo ao tempo... Pude, então, ouvi-la:

- Mariana, me desculpe. Não quis lhe imputar qual-quer culpa. Apenas quero entender o que aconteceu. Pen-sei que já estavam comprometidos e se casariam assim que saísse o divórcio. Fiz questão de mostrar aos dois que aprovava esse casamento e, quando chego aqui, vem Da-nilo me dizer que não haverá divórcio e muito menos casamento. Não sei de quem foi a iniciativa dessa brinca-deira de tanto mau gosto.

- Não me sinto nenhum pouco à vontade para dis-cutir um assunto que não me diz respeito, não tenho pro-curação, nem mesmo creio que estou bem informada. É a primeira vez que você vem a minha casa e gostaria de

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recebê-la com a cordialidade que merece, por isto sugiro mudarmos o tema de nossa conversa, se não se importa.

Achei que havia sido corajosa, o que, no caso, não significava muita delicadeza, porém sua resposta veio na ponta da língua:

- Ah! Mas eu me importo sim. Também quero man-ter a cordialidade com você, que, aliás, é uma pessoa edu-cada e gentil, porém peço-lhe mais paciência e que me ajude a entender o que ocorreu com esses dois.

Zolda havia mudado o tom, esforçava-se para chegar perto do ameno, porém dava para perceber sua irritação.

- Bem, acho que a iniciativa que você mencionou foi do marido de Elisabete que veio do Canadá para lhe pro-por uma reconciliação e ela parece ter aceitado. Assim, é claro que não haverá o divórcio. Elisabete me disse que conversou com Danilo antes de o marido chegar aqui.

- Não foi o que meu filho me disse. Estou perceben-do que fui enganada.

Zolda ficou em pé, pronta para sair, dando-me a im-pressão de que estivera sentada em um formigueiro.

- É possível pedir ao motorista para trazer o carro até o jardim? Sua casa fica longe do portão e minhas pernas já não estão querendo andar tanto.

- Claro, com licença, vou pedir ao Valdir para abrir o portão e avisar seu motorista.

Bastante aliviada, saí para providenciar o pedido da velha senhora que se foi batendo o pé de uma for-ma engraçada.

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No dia seguinte, foi a vez de o filho Danilo vir me visitar. Constrangido, explicou-me que não era a primeira vez que Zolda tentava casá-lo. Seu principal propósito era acabar de uma vez com a ligação dele com Ciça, a moça que trabalhava em sua casa. Zolda, ao levá-la para São Paulo, entendeu que havia contro-lado a situação e ficou particularmente furiosa porque a moça apenas deixou um bilhete e veio embora para a casa de seus pais. Danilo soube e foi buscá-la. Quando Zolda chegou, encontrou o filho na mesma situação de antes. Ele me disse:

- Você imagina a fúria dela, ao invés de eu estar noi-vo da linda e elegante francesa, estou a-mi-ga-do com a empregada! Ciça voltou para seu lugar de onde, ficou provado para nós dois, não devia ter saído. Mamãe é bas-tante preconceituosa e não desiste de comandar a família toda. Vai demorar a me perdoar.

- Pelo seu tom, sua mãe não aprova a situação do não-casamento. Então por que não se casam?

- Casar com a Ciça?! Aí que minha mãe faz um AVC! Ela não aprova qualquer relação com a Ciça devido a sua condição sócio-econômica. Hoje, acho que se para a Ciça o casamento fosse importante, eu me casaria. Felizmente, ela sabe que o papel não faz diferença e poupamos Dra. Zolda que considera nossa família aristocrática e, portan-to, para entrar nela só com um berço de ouro. Elisabete tem o charme francês, além de ser linda, elegante e Ma-mãe criou a fantasia de que todos os europeus são des-cendentes de nobres. Bem, não vamos querer entender os preconceitos da velha senhora.

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Olhou pra mim com um sorriso maroto e uma pis-cadela para me dizer que sabia do apelido que havíamos dado à Zolda. Sorri e perguntei:

- Ela ficou decepcionada com a bela francesa?- Ah! Sim. Elisabete e Ciça têm, na opinião de Ma-

mãe, quase toda a culpa, embora, é claro, também eu sou culpado. Caso contrário, como iria descarregar sua fúria em mim?

- E você, Danilo, como reagiu à decisão de Elisabete?- Sabe, ainda não analisei direito meus sentimen-

tos. Acho que há uma contradição: um pouco é vaidade ferida e alívio. Ao lado de Elisabete, qualquer homem, sobretudo os da minha idade, ficaria orgulhoso e eu não sou exceção. Por outro lado, sou um bicho do mato e não gosto de mudanças e essas seriam enormes num casamen-to com Elisabete. Ela também tem algumas característi-cas que me aturdiam.

- É mesmo? – mostrei-me curiosa.- Nunca vi uma garota tão mimada e caprichosa. É

inteligente, mas quando queria alguma coisa, se mostrava tão imatura que se tornava ridícula e chata. Para lhe dizer a verdade, não tenho certeza se acabaríamos de fato nos casando ou se nos separaríamos antes, independente de uma terceira pessoa. E ainda há o fato de Elisabete nunca ter sentido por mim nada parecido com amor. Ela queria chamar a atenção do marido e conseguiu. Servi para isto e até fico contente. Ciça também ficou balançada e está mais carinhosa. Tenho de confessar que eu também.

Danilo me surpreendia com sua perspicácia e fran-queza. Um pouco por provocação, perguntei:

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- Afinal, na sua visão, todos saíram ganhando?Ele rindo, mas prontamente, respondeu:- Menos a velha senhora. Qualquer dia você vai me

ensinar a fazer mudas de sansão do campo.Ele falava olhando para a alameda com as árvores al-

tas, muito floridas, por baixo apareciam as folhas verdes, por cima, as flores brancas.

- Mudas de sansão é com o Valdir. Ele fez uma ver-dadeira pesquisa e conseguiu chegar à metodologia que deu certo, embora bem diferente da que veio descrita junto às primeiras sementes que compramos. Chegamos a perder meio quilo de sementes. Vou insistir e a sua mãe, como ficou depois da triste visita à Chácara Xury?

- Não se preocupe – ele ainda se mostrava interessado na alameda, mas com certo desprezo continuou. - Ela já deve ter convencido meu pai a comprar as passagens para algum cruzeiro pela Europa e se esquecerá de todos nós por um bom tempo, talvez o suficiente para me perdoar.

- Então seus pais estão indo para a Europa?- Bem, na realidade, é assim que Dra. Zolda finali-

za uma frustração, porém, devido à crise financeira, ela parece estar meio decepcionada com o que chama de in-competência dos governos e sendo a crise mundial não sei quais serão, agora, seus critérios para montar um ro-teiro de viagem. Ela se nega a visitar pobreza. Diz que já é obrigada a ver os pobres brasileiros e chega.

- Danilo! Você está muito bravo com sua mãe!Ele me olhou, sorriu meio constrangido, voltou os

olhos para a varanda onde estávamos sentados, pareceu analisar as cadeiras ao redor de uma mesa redonda de

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vidro, a rede verde e azul, onde eu estava, a cadeira es-preguiçadeira ao lado dele e, finalmente, olhou a própria cadeira, passou as mãos pelos braços de madeira, achei que fosse fazer algum comentário sobre os móveis e bai-xando o tom disse:

- Estou escandalizando você! Minha mãe me é muito querida, faço um grande esforço para agradá-la, embora ninguém ache isto, porque sou a ovelha negra da família, mas tenho clareza de seus preconceitos e de seu caráter - fez outra longa pausa para continuar. - Temos ela e eu contradições intransponíveis. Tento não magoá-la no que me é possível. Todos acham que não ligo para o que ela pensa e quer. Não é verdade. Se não ligasse, minha vida seria outra. Faço muitas concessões à velha senhora.

Sem perceber eu sorri e ele, fingindo certo rigor, completou:

- Esse seu sorriso é de quem não está acreditado. Você não me vê assim. Não é?

Foi a minha vez de fazer uma pausa e ficar pensando se deveria ser franca ou cuidadosa. Dei um tempo antes de lhe responder:

- Danilo, não comemos um saco de sal juntos, por-tanto não tenho pretensão de afirmar qualquer coisa so-bre você ou mesmo sua mãe. Sei que só tenho as apa-rências como informação... Confesso que fiquei curiosa para saber que vida seria a sua se não houvesse as suas contradições com a matriarca.

- Eu teria me filiado a algum partido de esquerda, me dedicado a uma luta a caminho do socialismo, estaria batalhando pela Reforma Agrária. Esta é minha grande

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frustração. Não fiz isto porque mataria Dra. Zolda. Ela é uma sitiante que defende o latifúndio.

- Sua mãe não é sitiante. Você é. Zolda é uma inte-lectual.

- Intelectual de direita!Achando interessante que ignorasse minha observa-

ção sobre ele próprio, mas se fixasse na que se referia à sua mãe, lhe observei que Zolda era intelectual de direita como muitos e muitos. Danilo, com uma ênfase desme-surada, replicou:

- Os intelectuais têm acesso a informações privile-giadas, portanto, se aderem aos donos do capital contra o trabalhador, são desprezíveis.

Pensei em tantas discussões parecidas com esta em que eu dizia frases também parecidas com as que, agora, mais uma vez, ouvia.

- Danilo, atualmente ando evitando este tipo de discussão porque minhas certezas foram abaladas e ain-da não consegui discernimento suficiente para retraçá-las, aliás nem sei se podemos falar em certezas. No en-tanto, não posso concordar com você quando classifica os intelectuais. Há muitos argumentos contra sua classi-ficação. Basta lembrar de que há intelectual que apenas está defendendo o seu interesse, ou você acha que não há capitalista intelectual? As interpretações dos textos do próprio Marx são tão diversas! Acredito que muitas de um lado, ou de outro, sejam honestas. E olha, Dani-lo, penso que acima de qualquer ideologia está algo tão sagrado quanto a vida, a liberdade. Nunca concordei com ditadura seja qual for.

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- Nem com a do proletariado?- Caraca! Danilo! Isto está caduco. Foi a chamada dita-

dura do proletariado que desmoralizou o socialismo. A direita fica utilizando o fim da União Soviética para dizer que ficou provada a inviabilidade do socialismo. Por outro lado, temos que deixar claro que nunca houve a ditadura do proletaria-do. O diabo é a tal intimidade com o poder. O trabalhador chega ao poder e passa a agir como seu antecessor! Na rea-lidade, terá sentido falarmos em esquerda e direita, como o bem e o mal? Meu amigo Marcos diz que a salvação está na pessoa. Não gosto disso, pois quase elimina o coletivo.

- Então, qual é a saída? – desafiou-me.- Não sei. Temos que achá-la, construí-la. Entendo

que hoje no Brasil há muita frustração, mas também há muitas cabeças boas procurando melhores saídas. Quero crer que essa procura está sendo intelectualmente hones-ta. Nosso mestre Jacob Gorender fez uma revisão, a que ele chama de atualização, do marxismo e uma de suas correções é exatamente quanto à missão do proletariado. Você leu o “Maxismo sem Utopia”?

- Não. - Leia e não vamos mais falar em ditadura.Sua resposta foi mais um bater de pé que me fez

pensar em sua solidão intelectual, a pior das solidões. - Ainda acho que quem conhece a história não tem

direito de defender o capitalismo. - Lamentavelmente, uma grande parte dos estudantes que militaram em or-ganizações de esquerda, lutando contra a ditadura militar no Brasil, hoje está em partidos chamados de direita, in-teressados na acumulação.

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- Vencidos pelo capitalismo. – Danilo completou minha frase, fazendo uma cara de nojo.

- Está certo, vencidos pelo capital, cujo poder se equipara ao das armas, talvez com mais sutilezas.

Novamente, meu interlocutor não se conteve:- Ou mais hipocrisia? - Aí o jogo é duro.Numa tentativa de mudar o rumo da conversa que

já estava me levando por caminhos dolorosos, inquiri:- O fato de você não ter feito faculdade não foi uma

frustração para sua mãe? - Veja, na época em que fiz a opção de parar de es-

tudar, pelo menos formalmente, eu era muito jovem e a pressão familiar, sobretudo a de meus pais, pareceu, para mim, uma espécie de desafio. Como secundarista, fui da Ação Popular e tive uma experiência tétrica com os milicos - mais uma pausa, uma careta que devia expressar uma dor antiga, mal curada. - Numa panfletagem, na porta de uma fábrica em Osasco, a polícia nos esperava escondida e em trajes civis. Consegui me esconder embaixo de um carro, enquanto três matavam, a cacetadas e pontapés, um com-panheiro. Isto me desestruturou um bocado. O chefe da minha célula me afastou de todas as atividades, com receio de que eu acabasse perdendo o controle e caísse ou preju-dicasse algum companheiro. Essa atitude teve um efeito desastroso. Saí da AP, larguei tudo, vim para o sítio e deixar de estudar foi uma das consequências. De quebra, tive a satisfação de ir contra os valores familiares.

- Caraca! Você é surpreendente! – Não pude deixar de me espantar.

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- Também eu tenho uma curiosidade com relação a você. Posso ser indiscreto?

- Poder pode, não garanto responder.Ele deu uma risada e ficou pensativo. Eu provoquei:- Desistiu?- Você militou em que partido à época da ditadura?- Você está afirmando que militei?- Estou. Só não consegui identificar!Olhei para ele procurando, sem encontrar, algum tra-

ço de ironia ou presunção. Então respondi brincando:- Ana Paula.Ele sorriu e afirmou com ironia:- Depois você se filiou no partido que levaria o so-

cialismo ao poder e, agora, como eu, veio para o mato. Em que momento o vento da desilusão bateu tão forte que tirou você dos trilhos?

- Será que estive nos trilhos? – foi minha vez de pro-vocá-lo.

- Não quero entrar no campo da filosofia. Esperava que você me respondesse que quem saiu dos trilhos foi o partido. Apenas perguntei quando sua desilusão fez você se mandar.

- Um mês antes de me mudar para a Chácara Xury - respondi, fazendo cara de inocente. Ele não se deu por vencido e rindo perguntou:

- Você acha que pendurou a chuteira? Foi a minha vez de rir, achei mesmo engraçado a for-

ma de abordagem dele. Queria saber mais de mim para verificar em que terreno pisava?

- Você está indo por um caminho errado. Não pendurei a chuteira se com isto você quer dizer que

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desisti de alguma coisa. Prefiro dizer que mudei alguns rumos. Precisei de um momento de reflexão, de estar um pouco recolhida comigo e acabei percebendo mais a realidade. As mudanças são mais vagarosas do que gostaríamos, do que sonhamos.

- Você se desiludiu com seu partido - afirmou.- Acho que precisamos diferenciar os partidos pe-

las suas propostas que não são iguais. Nas próximas elei-ções compare os programas dos diversos partidos e você verá as diferenças. Enquanto não temos o ideal, precisa-mos fazer as distinções para caminharmos em direção às conquistas em que acreditamos - ele me pareceu sincero quando replicou:

- Você ainda não confia em mim. Tudo bem. Não vou ficar zangado ou magoado por isto. Eu a observo desde que a conheci e logo percebi duas coisas. Uma que tínhamos algo em comum. Não sabia o quê e a outra é que você negava isto porque não foi com a minha cara.

Senti que ele queria mesmo se aproximar e, de novo, confessei minha surpresa.

- Você resolveu mesmo me surpreender! Não nego que não gostei de como as coisas encaminharam entre você e Elisabete. Daí, devo ter sido bastante antipática.

- Fria, gelada.Danilo me olhou desconfiado, querendo saber até

onde poderia ir. Encontrando meu sorriso, continuou: - Cheguei a pensar em não voltar mais aqui. Acha-

va, logo que a conheci, que você teria restrições devido a eu ser um caboclo xucro. Depois pensei que era mes-mo devido à Elisabete. Bem, agora, aproveitei a besteira

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da minha mãe e resolvi ver se conseguia quebrar o gelo. Faz tempo que tenho vontade de conhecer melhor você. Também o João. Poderíamos ser amigos se não fosse o desgaste da relação com sua neta.

- Fico contente de ouvir isto e acho que o episódio com Elisabete pode ser passado, sem consequências desas-trosas. Você mesmo afirmou que ninguém saiu perdendo.

- Exceto dra. Zolda – riu à vontade, levantou-se, me deu um beijo na testa e perguntou:

- Posso voltar?- Será sempre um prazer. - Prazer teremos Ciça e eu se você aparecer para al-

moçar conosco amanhã.- Alguma data especial? – pareceu-me um tanto en-

cabulado ao responder:- Quero que você conheça a Ciça.- Posso estender o convite ao João?- Se ele for, nosso prazer será duplo. Outra surpresa vinda do Danilo ainda me aguarda-

va. Contei ao João a conversa e o convite. Ele se mostrou curioso para confirmar minhas impressões. Ao sairmos para o almoço, pediu-me para ajudá-lo a colher umas ro-sas e fez um belo ramalhete que entregou à Ciça. Ela e Danilo nos receberam na varanda, onde os aperitivos já estavam nos aguardando. Pareciam um casal feliz e sem qualquer constrangimento, estavam em seu lugar. Ciça é uma jovem senhora, graciosa, discreta, inteligente. Não sei se chegou a terminar o curso primário, mas dava a impressão de pouco se incomodar com isso. Embora mostrasse seus pontos fracos no domínio do vernáculo,

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não parecia ter problemas na comunicação, defenden-do enfaticamente seus pontos de vista que nem sempre coincidiam com os do companheiro. Foi um almoço de-licioso. Ciça se mostrou vaidosa ao receber os elogios de excelente cozinheira. Acho que Dra. Zolda não a conhece de fato e poderá não conhecer, o que é uma pena, pois acredito que poderia aprender muito com a nora que o filho de fato escolheu.

Quando voltávamos, João comentou: - Você deve à minha neta esses seus novos amigos.Concordei balançando a cabeça e rindo lhe respondi:- Que frase mais antipática! Você também gostou

deles e acho que o mérito é sobretudo do Danilo que, como ele mesmo disse, nos achou.

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11. O Condão de Elisabete

Resolvi trabalhar com mais afinco na revisão do meu livro. Com esta intenção, fui para o computador e lá estava uma mensagem do Estácio.

Stella me disse que não podia continuar morando co-migo e, para que eu tivesse tempo de arrumar um lugar, ela iria permanecer na casa da prima. Concordei e lhe agradeci. Dias depois, mudei-me para o apartamento de um colega que estava precisando dividir as despesas por um tempo. Stela retornou e me chamou para conversar. Está bastante angustiada, dividida entre abortar e me entregar a criança. Sem qualquer escrúpulo, defendi, com todos os argumentos de que fui capaz, a segunda hipótese. Sei o quanto isto é im-portante para Elisabete e também para mim. É meu filho, quero refazer meu casamento com a mulher que amo e que não poderá mais engravidar. Num determinado momento, Stela disse que concordava, mas havia um ponto ainda a ser resolvido. Não aceitava a ideia de enganar a criança, em-bora achasse que seria mais simples para todos que Elisabete aparecesse, desde o nascimento, como a mãe. Paramos a con-versa nesse impasse. Mais alguns dias e Stela me chamou no-vamente. Perguntou-me se poderia conhecer Elisabete que, consultada, disse que viria assim que conseguisse a passagem.

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Estou tentando negociar o prazo da entrega de minha tese, pois a agitação que me cerca e, sobretudo, a que está dentro de mim estão me deixando exaurido. Confesso que minha maior preocupação agora é o encontro das duas.

Numa dessas transmissões de energia que parece chamar as pessoas, o telefone tocou e Elisabete me per-guntava se poderia pegar uma carona com o avô e vir se despedir já que iria para o Canadá daí a dois dias. Ela chegou mais irrequieta que de costume. Imediata-mente, me pôs a par de seus planos. João assistia a sua exposição com um sorriso condescendente, entrando de vez em quando para esclarecer alguns pontos, pois Elisabete não conseguia ser objetiva. Contava o que pre-tendia fazer, interrompendo-se a todo instante para di-vagar sobre “seu filho” que já era lindo, superinteligen-te e outros superlativos que me deixavam, por alguns segundos, correndo atrás do sentido de suas palavras. Entendia, então e quase sempre com a ajuda do João, que ela havia introduzido, sem qualquer lógica, os so-nhos, abandonando os planos de atividades mais racio-nais, como, por exemplo, o horário do embarque. Num determinado momento, quando ela repetia “meu filho”, João a corrigiu muito sério:

- “Seu filho” pode ser minha bisneta.Nós duas tivemos um colapso de inteligência até en-

tender e Elisabete, rapidamente, disse:- Ah! Sim. Pode ser menina!E continuou na sua falação. Depois foi ligar para

Danilo e saiu para ir a sua casa, queria “limpar a área”.

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Voltei-me para João e senti um olhar carinhoso e um sor-riso maroto, convidativo.

- Faz tempo que não ficamos sozinhos.Puxou minha cabeça para seu ombro, pegou minha

mão, beijou meus cabelos e ficamos quietinhos, deixando o silêncio substituir a agitação causada pela intensidade do momento vivido por Elisabete.

Depois, fomos para o quarto e fizemos amor deva-gar, baixinho, como se quiséssemos prorrogar o tempo, e João, mais uma vez, disse, ao meu ouvido, alguns versos do “Le Lac” de Lamartine, como que para confirmar o quanto estávamos juntos, querendo parar o tempo.

Finalmente, trocamos nossas informações. Quando falei sobre o e-mail do Estácio, João comentou:

- Espero que Estácio não esteja se iludindo quanto ao caráter dessa moça. Ele gosta de acreditar que as pes-soas são boas e alguma coisa me parece fora do lugar. A gravidez já está entrando no 3º mês e ela continua com novas dúvidas. Agora, quer conhecer Elisabete, o que, a meu ver, é uma garantia do nascimento da criança. Ora, deveria ter o movimento contrário se ainda tem suas dú-vidas. Estará valorizando a situação, o seu pretenso sacri-fício? Tenho medo por minha neta. Seu estado emocional é muito frágil e, como você viu, ela já se sente grávida, à beira do parto, com a criança nos braços! Ela não escuta quem tenta chamá-la à razão. Que coisa estranha esse ins-tinto maternal! Essa necessidade de ser mãe!

- Como a avó? - João me olhou com uma expressão que traduzia surpresa e certo receio.

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- Deve ser. Não a conheci o suficiente.- Elisabete esteve, numa ocasião quando estávamos

só nós duas, a ponto de me contar algo de sua vida que a perturbou muito. Parecia ser com relação ao pai.

- Irina e Charles formam um casal esquisito, cada um tem, teoricamente, total liberdade sexual. Minha filha su-portou outras mulheres na vida do marido, mas ao ter co-nhecimento de um rapaz, tornou-se vingativa, dominadora e, pior, nada discreta. Fez com que todos pensassem que o marido é homossexual e, sobretudo, um fraco. Elisabete era bem pequena, estava no jardim de infância. Uma colegui-nha ouviu uma discussão entre Charles e Irina em que ela chamava-o de bicha louca. A escola toda ficou sabendo e os colegas tiveram reações extremamente maldosas. A cruelda-de dos colegas e o comportamento da mãe levaram Elisa-bete a se envergonhar do pai. Acho que isto dura até hoje. Alguma coisa perturba minha neta e a fragiliza. Não conse-gui sensibilizar Irina que não perdoa o marido. Ele, por sua vez, não aceitava se separar da esposa com medo de perder a filha definitivamente. Charles adora Elisabete, quando ela veio para o Brasil e se casou achei que, enfim, se separariam. Não aconteceu sei lá por que. Elisabete não permite que o pai se aproxime. Pessoalmente, não acho Charles com as co-res pintadas por Irina, mas o fato de ele tolerar o tratamento que recebe da mulher o expõe como um pobre coitado. Há uma acomodação absurda nessa família. Charles chegou a me dizer que “já entregou na mão de deus”.

- João, esta estória é infernal! Ninguém ganha, todos são infelizes! Elisabete é o fruto disso e os pais giram em torno de si, sem perceberem o mal que fizeram à filha!

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- O pior é que continuam. Se bem que, em minha opinião, Irina é que poderia esclarecer as coisas para Eli-sabete. Ela é a responsável.

- Não concordo. Charles aceita o tratamento recebi-do. Se ele reagisse, a situação mudaria.

- Ele não consegue, acho que, em parte, devido à filha.

- No mínimo, aceita ser tratado como um fraco. Per-mite que a filha o despreze. Por quê? Eles nunca fizeram terapia de casal?

- Não sei. Acho que já cheguei à beira da imperti-nência por causa de Elisabete. Só faltou Irina me mandar tomar conta da minha vida.

- Você se sente culpado por não ter sido pai da Irina-criança?

- Nem um pouco. Esta culpa não é minha - João falou num tom calmo, sem mágoa ou raiva, tranquili-zando-me. – O que perdi de Irina, conquistei em Eli-sabete e o prejuízo de minha filha ela só poderia cobrar da mãe, não de mim. Quando soube de sua existên-cia, assumi imediatamente a paternidade, sem titubear. Somos amigos com a restrição natural, além daquelas vindas de nossas diferenças. Ela sabe que pode contar comigo, mas não permite que ninguém entre em algu-mas áreas de sua vida.

- João, você está bastante preocupado com Elisabe-te? A viagem, o retorno com Estácio, a criança... Por que não vai junto com ela?

Ele parecia aguardar esta minha fala e imediatamen-te me respondeu:

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- Você vem também?Sorri, sem levar a sério sua pergunta e ele, deixando

claro que falava para valer, insistiu:- É claro que já pensei nisto. Andei fazendo umas

contas e posso custear nossa viagem e, talvez até ganhar uns trocados. Fui convidado a escrever alguns ensaios so-bre os filmes apresentados no último festival de Montreal. Ainda não dei resposta exatamente pelas dificuldades de obter todos os dados de que precisarei para um trabalho dessa envergadura.

- Seria um livro?- É, acho que sim. Você acabou o seu livro e ainda

não começou um novo trabalho. Poderíamos fazer a qua-tro mãos. Não me diga que não é uma proposta razoável.

- Encantadora. Nem conheço o Canadá. Uma pro-posta irrecusável!

- Morena, você está dizendo que irá comigo?João se levantou e fez o que costumava fazer quan-

do de uma grande alegria, me ergueu e, como se pegasse uma criança, me jogou pra cima, me recebeu com um beijo risonho.

- Vamos ver como fazer. Você está pronto para viajar daqui a dois dias?

- Não. Elisabete irá sozinha. Nós iremos assim que conseguirmos. Vou, então, avisar os editores, comprar as passagens, etc.

- Vamos acertar a questão das despesas e do traba-lho. Sou escritora, não crítica de arte.

- Sim. Como você se sentir confortável. Será que você se esqueceu dos trabalhos que fizemos juntos?

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- Elisabete está chegando. Por sua expressão conse-guiu limpar a área com Danilo.

- Do jeito que vimos Danilo e Ciça, não foi nada difícil – João respondeu e nós dois recebemos sua neta com cara de quem comeu e gostou. Foi o que Elisabete nos disse, usando, segundo ela, uma expressão preferi-da do Danilo.

Antes de a filha embarcar, Charles lhe telefonou di-zendo que faria todas as despesas necessárias para a ado-ção da criança, inclusive as relativas ao pré-natal e parto. Isto foi um alívio para Estácio que estava bem preocupa-do, sem saber como esses eventos funcionam no Canadá. João fez um comentário que, no momento, julguei mal-doso. Disse que Charles poderia ter uma surpresa com alguma conta antes do pré-natal, insinuando que Stela apresentaria uma conta alta.

Já no Canadá, descansarmos um pouco mais de 24 horas no hotel. Nosso apartamento era bastante confor-tável, com uma decoração sóbria, sem chegar a ser fria, embora como em quase todos os hotéis, impessoal. No quarto, duas camas de solteiro, as mesas de cabeceiras com luz de leitura, um sofá, dois cabides de pé, croma-dos, uma mesa de refeições com cadeiras confortáveis, nas paredes xilogravuras em tom pastel, lindas. Felizmente, o tempo e a temperatura estavam compatíveis com nosso clima de país tropical, saímos do nosso frio e chegamos no calor do hemisfério Norte.

João convidou Estácio e Elisabete para virem jantar conosco. Ela chegou lúgubre. Estava pálida, com olheiras

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e alheia, com dificuldade de acompanhar a conversa. João, aflitíssimo, pediu quase com rispidez aperitivos e quis saber o que estava acontecendo. Estácio começou a nos contar algo sobre Stela e Elisabete desabou. Consegui levá-la para o quarto e lá, depois de servir-lhe uma bebida, com muito esforço da parte dela e de paciência da minha, soube que Stela ainda falava em abortar. Lembrei-me dos receios e co-mentários de João e fiquei bem contente de termos vindo. Elisabete se acalmou quando lhe disse que tinha certeza de que seu avô saberia resolver aquela situação.

Quando voltamos ao restaurante, encontramos os dois já descontraídos e João confirmou minha afirmação, pro-metendo que falaria com Stela e sabia como convencê-la. Estácio e eu fizemos coro brincando que o super avô lá es-tava para conseguir sua bisneta. Elisabete estava louca para acreditar e acabou rindo ainda com os olhos molhados.

Novamente sozinhos, João e eu compartilhamos nossa preocupação com a fragilidade e a obsessão de Eli-sabete. João me confidenciou sua estratégia de convenci-mento da Stela, baseada na intenção dela de se transfor-mar em uma “barriga de aluguel”.

- João, você nem a conhece. Pode estar equivocado, ofendê-la e colocar tudo a perder.

- Sei que não estou. Vou ligar para o Charles para saber até quanto posso negociar e depois vou conversar com a moça.

Ele estava determinado e eu aflita, torcendo para que ele estivesse enganado e, ao mesmo tempo, querendo que sua estratégia desse resultado. João pareceu adivinhar minha contradição.

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- Minha querida, o mundo seria melhor se eu esti-vesse errado quanto ao caráter de Stela. Fique tranquila, serei cauteloso ao falar com ela de tal forma que se meu julgamento estiver errado, poderei desviar a direção da proposta que lhe farei. Por favor, me dê alguns minutos para fazer a chamada para a França. Acho que é uma boa hora para pegar o Charles em casa.

João fez a ligação que Irina atendeu e ficou melin-drada pela recusa do pai de lhe adiantar o assunto. Ele apenas insistiu que queria falar com o Charles. Este lhe deu carta branca, dizendo que se fosse uma quan-tia demasiada alta que a negociação se baseasse em um prazo compatível para ele dispor de alguns ativos. Chegou a falar em um milhão de euros quando João pediu um número.

- João, preciso lhe pedir uma coisa – falei cautelosa.- Fale, fale – pediu com voz aflita, deixando-me per-

ceber sua tensão.- Quando isto estiver resolvido, você conta a partici-

pação do Charles para Elisabete?- Claro, meu amor. Estou avaliando que este é o momen-

to de um encontro pai e filha e já estou trabalhando nisto.- Foi por este motivo que você quis estar aqui?- Quando percebi a possibilidade de Stela explorar a

situação, tive medo por Elisabete. Sabendo da ingenuida-de do Estácio, achei que devia estar disponível. Por outro lado, Charles já me dissera que pagaria qualquer preço pela recuperação de Elisabete.

Fiquei em silêncio, pensando, e ao olhá-lo percebi uma interrogação a que respondi:

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- Será que minha antena quebrou? - Sua antena!?- Você preparou tudo, inclusive minha viagem e não per-

cebi – falei chorosa. Ele riu, nos serviu um cálice de conhaque, sentou-se ao meu lado e me puxou para si, dizendo:

- Vamos descansar.

João telefonou para Stela, pedindo-lhe permissão para lhe fazer uma visita e lá se foi, enquanto eu fazia ioga para não atrapalhar sua energia. Quando ele voltou, repetiu o seu movimento da alegria e, ao ser colocada no chão, pedi:

- Conte tudo.- Vou contar e quero sua opinião se devo passar ao

casal o verdadeiro argumento usado para convencer a se-nhorita Stela. Este é o momento que é bom saber que as pessoas têm um preço.

- Algumas pessoas.Sorrindo ternamente ele murmurou:- Como queira, minha querida, mas faz tempo que

a chaminé da minha casa caiu.- Está bem, não é a hora. Conte.Sentamos no confortável sofá do apartamento e João

começou a falar:

Ela me recebeu gentilmente, oferecendo-me um chá e dizendo que era um prazer conhecer um crítico de cinema tão respeitado. Isto já foi quase uma confirmação de que meu julgamento estava correto, pois ela nunca ouviu fa-lar de mim, antes do meu telefonema. Soube quem eu era

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porque ligou para Estácio para saber do meu currículo. Fiquei, portanto, esperançoso, mas ciente de que em minha frente havia uma adversária inteligente. Fiz algumas ob-servações simpáticas sobre a decoração de seu apartamento, pedi autorização para chamá-la pelo primeiro nome e in-troduzi o assunto.

- Soube que você está angustiada com algumas dúvidas sobre ter o bebê.

Ela, fazendo uma expressão de quem não sabe o que fazer, me respondeu:

- É verdade. Estácio me pediu um sacrifico que não tenho certeza de conseguir.

- Não é por duvidar de que a criança será bem cuidada e muito amada?

- Ah! Não! - Acho que poderei ajudá-la. Compreendo que não era

sua intenção engravidar agora já que tem uma carreira e está batalhando para melhorá-la.

- Este é o ponto principal, mas tenho outras dúvidas também.

- Certo. Vamos primeiro resolver a questão de sua car-reira – olhei para ela da forma mais simpática, que conse-gui, mas prossegui muito seriamente. - Haverá uma maneira de contornar o principal problema que deve ser o tempo, os próximos meses. Entendo que você está numa pós-graduação e deverá apresentar sua tese. Como está esse seu calendário?

Ela ainda titubeava entre não permitir que eu continuasse e a curiosidade, além, é claro, do fato de ela querer negociar para atingir seus objetivos. Após algum instante, eu insisti:

- Se não houvesse a gravidez, como seriam seus prazos?

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- Acabo meus créditos ao final desta semana. Depois tenho que elaborar minha tese.

- Perfeito. Você já tem a aprovação de seu projeto de tese?- Não. Na verdade, o projeto que apresentei foi alvo

de grande discussão com meu orientador e resolvi mudar o projeto e o orientador.

- Já escolheu o novo orientador?- Já, mas ele está com suas vagas de orientandos preenchi-

das. Então escolhi outro e ainda não consegui falar com ele.- E se você voltar a falar com o orientador sobre uma

vaga para o próximo ano?- Aí vou perder um ano. Não posso me dar a este luxo.Virou-se para mim com um olhar surpreendentemente

límpido e abanou a cabeça para enfatizar a negativa.- E se você puder se dar a esse luxo? Porque estamos

falando, sobretudo, da questão material, uma vez que sua juventude lhe dá muito tempo.

Lisonjeada, ela sorriu e balançou novamente a cabeça, dizendo com mais ênfase ainda:

- Sei que não posso.- Por quê?- Preciso defender a tese para concorrer a algum empre-

go que valha pena. Quero fazer o concurso para pesquisadora na Universidade ou trabalhar em uma grande companhia, na área de comércio internacional.

- Desculpe-me insistir, você é jovem. Qual o problema de adiar por um ano essas etapas?

- Não quero ser indelicada.- Nem eu quero invadir sua privacidade. Minha insis-

tência é por ter certeza de que esse não é o grande empecilho

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e é justamente onde podemos entrar. Também não quero ser indelicado, mas me parece que você fez alguma economia, investiu na sua carreira e esse investimento não comporta o prazo de uma gravidez, ou seja, adiar por um ano. Certo?

- Seria mais de um ano. Um ano seria para eu apresen-tar o projeto da tese, caso acertasse com meu orientador e...

- Perdoe se a interrompo, acho que já entendi. Depois terá que fazer a pesquisa, a redação, a revisão, a impressão e a defesa. Tudo isto são dias que se transformarão em, no mínimo, dois ou três anos.

Fui bem além do que ela ousaria e acho que foi o que a seduziu e, sem se comprometer, apressou-se a dizer apenas:

- É isto aí.Dei, então, o xeque mate: -Três anos?Ela se tornou envergonhada, chegou mesmo a corar,

mas rapidamente murmurou:- Sim.- Então, me permite fazer as contas. Você precisa multi-

plicar suas economias por três. Estou no caminho certo?Pensei que poderia estar forçando a barra, pois a gra-

videz a faria perder apenas um ano, porém Stela já havia aceitado os três e era esta a sedução, o que eu teria que fazer era insistir nesse lucro de mais dois anos. Ela fez sua parte direitinho. Olhando para o infinito de sua janela, disse:

- Estou ficando constrangida. Gostaria de mudar de assunto.

- Stela - foi um vocativo doce e irrecusável -, não vim até aqui para parar este assunto, ao contrário, vim para

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resolvê-lo. Tenho certeza de que é o que todos nós, inclusive você, queremos. Então, me diga, se eu lhe garantir a multi-plicação por três, este item estará resolvido? Podemos passar para sua próxima dúvida?

- Estou meio atordoada.Paternalmente, lhe ofereci meu doce sorriso enquanto

continuava:- Normal. Estamos falando de vidas. Algo de muito

sério. Para fechar este item, você vai verificar o número exa-to e depois me dar essa base para eu multiplicá-la por três e providenciar, em seu nome, um fundo que você vai escolher. Assim, estaremos sendo perfeitamente justos com sua carrei-ra. Concorda que isto é justiça?

- Concordo.- Ótimo. Você poderia me fornecer esse número até

amanhã?- Acho que sim.Tive a impressão de que ela já não precisava desempe-

nhar algum papel.- Faremos o seguinte: você faz suas contas, liga para mim,

marcamos um encontro no escritório do advogado...Ela me interrompeu aflita, retomando o papel quase

abandonado:- Para que advogado?- Para sua própria proteção. Escolhi um especiali-

zado em direito da família e que me foi indicado pelo escritório de meus editores, portanto me parece bem neutro. Ele fará um documento particular entre as duas partes e, se você quiser, poderá se encarregar do fundo. Embora você esteja abrindo mão da criança em favor

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do pai, o advogado é importante para que não corramos riscos legais, de acordo com as leis dos dois países, Ca-nadá e Brasil.

- O Estácio pode se encarregar disto.- Ele é uma das partes, então é melhor ter a assesso-

ria de um profissional não envolvido que irá nos ouvir, redigir o documento e depois você e Estácio irão assinar. O advogado cuidará legalmente e, de acordo com sua vontade, do fundo de que falamos, assim que a quantia for estabelecida, conforme já combinamos. Está bem?

- Amanhã lhe telefono.- Quanto às outras dúvidas, tenho uma sugestão. O

que você acha de conhecer o Brasil? Você poderia levar uma acompanhante, se preferir ter alguém de sua confiança sem-pre a seu lado. Vocês ficariam bem instaladas até a criança nascer e, então, você poderá ter certeza de que o bebê estará bem. Você pensa e amanhã voltaremos a nos falar e acertar o modo de operacionalizar tudo. Queremos que você se sinta confortável e segura. Está bem para você?

- Amanhã ligarei para seu hotel até às 14h – ela ten-tava recuperar seu papel, mas apenas falei, ainda com um meio sorriso:

- Perfeito.Despedi com um beija-mão e fui direto ao escritório do

advogado e lhe dei outra incumbência além do caso em si. Pedi para que fosse colocado, imediatamente, um detetive particular para investigar Stela. Agora, quero sua opinião.

João acabou a narração, deixando-me chocada. Só pude murmurar:

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- Caraca! Se seu diagnóstico quanto ao caráter da moça estiver correto, você foi brilhante. Não acha que foi também bastante cínico?

- Ma, posso até admitir que Stela não planejou tudo desde o início, mas as “dúvidas” não existiram. Quanto a isto, ponho minha mão no fogo. Ela nunca pretendeu abortar. Foi muito viva, esperando algo acontecer. Estácio é mais transparente que o ar, minha querida neta perde o controle frente a menor possibilidade do aborto e, para completar, chegamos nós dois. Como diria aquele nosso amigo... “até eu que sou mais bobo”... Estou dando à Stela o benefício da dúvida quanto a um prévio plano, mas após a confirmação da gravidez, sei que ela só aguar-dava a pressão ficar insuportável para Estácio, e a minha proposta com a conta de 3 x 1 era só o que faltava. Estou tranquilo. Não fui cínico, minha querida, correspondi ao que a moça desejava e minha neta deixa de sofrer desne-cessariamente.

- Entendi. Você ficou muito bravo com a Stela on-tem, quando viu Elisabete naquele estado de sofrimento.

- Fiquei sim. Fiquei uma arara com a moça tão pre-ocupada com a carreira!

- É, acho que você tem razão, meu amor, mas que eu queria meu avô vivo, ah! Isto eu queria. – João deu aquela gargalhada contagiante!

– Ai, que bom! – não me contive. - Tomara que amanhã a moça confirme seu otimismo. Você tem ideia de quanto será a sua base de cálculo? Não acha que ela vai aumentar um bocado essa base?

- Você se esqueceu de que Estácio morou com ela e

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eles dividiam as despesas? Calculamos que, no máximo, ela vive com o equivalente a mil e quinhentos dólares. Supondo que ela tenha a ousadia de dizer que vive com dois mil e quinhentos dólares por mês, então, esta etapa vai custar ao Charles US$72 mil. As outras despesas, as viagens de ida e volta para o Brasil, estada lá, médicos e hospital, não sei. Precisamos calcular, mas acho que vão beirar os US$100 mil.

- A minha conta corrente fica vermelha só de pensar nas despesas de um ano!

- A minha não vai muito além, mas Charles é bem mais abastado que nós dois juntos. Minha preocupação está mais com o lado da criança. O fato de o Estácio ser o pai deve ajudar os trâmites legais. Aí conto com sua ajuda.

- Eu?! - Confio na sua sensibilidade pra ajudar a convencer

Stela de que o melhor é nada esconder da criança, mas deixar que ela, se e quando for o caso, procure a mãe biológica. Acho que é preciso impedir Stela de ficar mais tempo no Brasil após o parto.

- João, vou decepcioná-lo, mas não irei além de uma reflexão conjunta com Stela e Elisabete. O que, aliás, deveríamos sugerir seja feito não por mim, mas por um profissional. Se as duas concordarem poderá ser a própria psicóloga da Elisabete. Sabe de uma coisa, acho mais é que estamos nos metendo num campo que não é nosso.

- Pronto! Já ajudou. Você tem razão, se Stela aceitar ir ter a criança no Brasil, os três vão chegar num acordo com a orientação profissional. Acho que talvez o melhor seja uma psicóloga infantil.

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- Melhor ainda. Corretíssimo. Há mais uma dúvida. Será que Elisabete não terá ciúmes devido à situação vivi-da pelo marido com Stela?

- Pela reação dela frente à possibilidade de ter a criança, acho que não. Agora terá que ser adulta, caso contrário não poderá ser mãe. Bem, vamos levar as boas notícias para o casal?

- Você tem certeza de que Stela não vai dar para trás?- Tenho. Ela não está pensando em um aborto, não

depois de três meses de gravidez.

Novamente a transformação de Elisabete em menos de 24 horas; foi surpreendente. João contou sua conversa com Stela sem mentir, porém omitindo a própria opi-nião quanto aos planos da jovem. Estácio não me pare-ceu muito tranquilo, mostrou preocupação com o estado emocional de sua mulher que estava pródiga em risos e em argumentos de que a vida é maravilhosa.

Charles pediu quatro dias para mandar o dinheiro. João entregou todos os trâmites do caso ao advogado que foi aprovado pelas duas partes até a entrega da minuta do documento. Este estipulava algumas condições para o re-cebimento da criança, uma delas era o exame de DNA. Como a mãe estaria abrindo mão da guarda do filho em favor do pai, era aconselhável não pairar nenhuma dúvi-da sobre essa paternidade. Stela mostrou-se ofendida, não aceitando tal condição. O advogado, já instruído por João, disse que se tratava de uma condição sine qua non. Ao fi-nal, a moça pediu mais um tempo, prometendo voltar no mesmo horário, no dia seguinte para uma resposta final.

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Estácio, preocupadíssimo, foi ao hotel discutir co-nosco a situação, porém encontrou-me sozinha. Coube a mim lhe contar algo bem desagradável.

- Estácio, o que vou lhe dizer pode ferir seu orgulho, sua vaidade masculina, embora irá, por outro lado, ame-nizar sua preocupação.

- Estou tão aflito com a possibilidade de Stela não aceitar. Será doloroso para Elisabete e também para mim. Não posso pensar em perder meu filho. Fale seja lá o que for. Pouco estou ligando para vaidade ou orgulho.

- Desde o início, João desconfiou das verdadeiras in-tenções de Stela. Quando resolveu entrar na negociação foi por achar que vocês, levados pela vontade de ter a criança, não atentasse para alguns detalhes importantes. Ao conversar com Stela, sua desconfiança foi intensifica-da e orientou suas ações por esse fato.

- Do que você está falando?- Estou dizendo que o principal interesse de Stela é

o dinheiro.Ele me olhou espantado e se lembrando de alguma

coisa, respirou com alívio, retrucando-me:- Não! Ela queria abortar quando fui para o Brasil, fui

eu que insisti para que prometesse, pelo menos, esperar mi-nha volta. Até as despesas do aborto seriam por conta dela.

- Ao sair do apartamento de Stela, João foi direto ao advogado e, além de lhe dar as instruções sobre o docu-mento, inclusive a cláusula sobre o DNA, pediu-lhe para contratar um detetive a fim de levantar as informações sobre Stela. Imediatamente, ficou patente que ela tem um namorado há algum tempo.

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- Antes, durante e depois de mim?- Antes e depois. Durante não dá para saber. An-

tes porque é uma relação de mais de um ano e depois porque ele dormiu lá, saíram juntos e se comportaram como namorados. Como você morou com ela, deve ter havido um intervalo no tal namoro. A investigação foi extremamente facilitada já que não estão nenhum pouco preocupados em esconder essa relação, confirmada por uma colega do antigo emprego dela.

- Será que...Eu o interrompi:- Você disse que não ligava para vaidade ou orgulho

ferido e acho que, de fato, não deve, nem é boa hora. O que importa é assegurar que o filho é seu e você terá sua guarda desde o nascimento. Concorda?

- Claro. - Será ótimo se Stela aceitar ir para o Brasil.- Ah! Ela me disse hoje que não irá. Pretende ter o

filho aqui.- Bem, tenho uma preocupação, mas preciso lhe

passar o recado do João. Pede para Elisabete não ficar sabendo de mais esse problema. Ele acha que isto será re-solvido a contento e evitaria mais um sofrimento inútil.

- Também acho.Sem se conter na sua aflição, pediu:- Que outra preocupação você tem?- Com a gravidez. Acredito que a partir de um de-

terminado estágio do feto, a tranquilidade da mãe é es-sencial para toda a vida da pessoa. Como não sei qual é o estágio, coloco todo o período dos últimos seis meses.

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Assim, precisamos dar à Stela condições de ter uma vida calma e feliz no próximo semestre.

- Meu deus! Mas não é só o que estamos todos fa-zendo?! Ela é quem está criando caso.

O tom de sua voz saiu mais estridente do que ele queria, pois ficou meio sem jeito e disse:

- Sou mesmo um idiota, orgulhoso e vaidoso.- Se quiser colo, pode deixar que lhe dou, mas você é

um rapaz amável e valente. Quer me acompanhar num chá? Desculpe-me, só agora percebi que não lhe ofereci nada.

- Obrigado, Ma. Vou-me embora porque a tensão de Elisabete deve estar chegando às alturas.

No dia seguinte, o advogado astutamente ligou para Stela e lhe pediu para chegar um pouco adiantada e, antes que ela abrisse a boca depois dos cumprimentos formais, ele lhe entregou um envelope fechado com relatório su-cinto do detetive, dizendo:

- O Sr. João pediu-me para lhe entregar, antes da chegada do Dr. Estácio, e enfatizou que a senhora deveria ler seu conteúdo imediatamente.

Junto com o relatório, João colocara uma carta onde deixava claro que aquele seria o momento de Stela desis-tir, caso não tivesse certeza de que o filho era do Estácio. Segundo o relato do advogado, ela leu, mudou de cor algumas vezes e, terminada a leitura, perguntou:

- Posso assinar agora?Após a assinatura do documento pelas duas partes,

Estácio se retirou e o advogado pediu à Stela que lesse o outro documento relativo ao pagamento, ficando acorda-

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do que ela lhe passaria os dados do fundo e, então, volta-ria novamente para os acertos finais. Receberia um adian-tamento para as despesas até o parto e o restante, após a confirmação da paternidade pelo resultado do DNA.

Como Estácio ainda ficaria no Canadá alguns meses até a defesa da tese, Elisabete resolveu esperar o nascimento da criança e mais o tempo necessário até o pediatra liberar sua viagem até o Brasil. O colega que dividia o apartamento mudou-se, cedendo gentilmente o lugar à Elisabete.

João e eu começamos nosso trabalho. A primeira fase foi deliciosa, vimos todos os filmes do festival, alguns muito interessantes, outros, nem tanto. Chamou-me a atenção os cenários da maioria dos filmes, bonitos, lim-pos, habitados pelas classes de confortável poder aquisiti-vo. Será o reflexo de um país com a distribuição de renda que almejamos? Ou há uma fuga planejada dos cineastas? Após cada sessão, João escrevia uma primeira versão da crítica e um roteiro para a entrevista com o diretor. Es-colhi alguns filmes e, com os roteiros na bolsa, iniciei as entrevistas com aqueles que se encontravam no Cana-dá. Para agilizarmos o trabalho, muitas vezes João partia para um lugar e eu para outro. Viajei bastante e adorei o trabalho. Infelizmente, não tive tempo suficiente para responder às perguntas suscitadas pela homogeneidade dos cenários. João se reuniu com alguns críticos e outros cineastas, enquanto eu pesquisava o que fora publicado sobre os filmes quando do festival. De posse dos DVDs de todos os filmes, retornamos ao Brasil.

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No aeroporto, João praticamente forçou Elisabete e Estácio a se despedirem antes da hora de nosso embar-que. Cheio de mistério, levou-me a um barzinho acon-chegante. Só quando o champanhe nos foi servido é que soube o que comemorávamos. Contou-me, então, que tivera uma boa conversa com a neta sobre seus pais. O resultado foi a expectativa de uma dor a menos no cora-ção de Elisabete que, por sua própria iniciativa, receberá a visita de Charles, sem Irina.

Novamente, Teresa e Jaime nos esperavam no de-sembarque. Durante o trajeto até São Paulo, lhes conta-mos a situação que deixamos no Canadá. Eles percebe-ram nosso cansaço, deixaram que dormíssemos mais de oito horas para depois continuarmos a conversa. Teresa pareceu realmente aliviada e até feliz pelo desfecho en-tre seu filho e a mulher. Estivera apenas no seu papel de protetora-mor, mãe.

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12. Da Chácara Xury à Ibyxury

Dentro da Preta, em frente à Chácara Xury, vendo Bia e Bei ganirem de alegria pela minha volta, esperava Valdir abrir o portão. Entreguei-me à deliciosa e conhe-cida emoção da chegada ao meu lugar. Tudo fazia coro com os dois cachorros na minha recepção: os passarinhos cantavam nas árvores que nos ofereciam um desbunde de verdes, o Sol emprestava tons dourados às flores, os esquilos espiavam e competiam com os macaquinhos nas brincadeiras no alto dos galhos e o céu faria inveja a qual-quer brigadeiro. Sou mesmo uma privilegiada. A felici-dade está aqui e não pode esperar, é agora. Com licença, minha Preta, vou ser feliz! Desci do carro, abracei Valdir, deixei-me cheirar, lamber por Bia e Bei e fomos ao nosso passeio pela matinha. Saudades também dos cheiros da terra, misturados aos das plantas. Busquei a energia boa das árvores e senti sua penetração me fortalecendo. Fui para a horta colher meu almoço.

João voltou ao Canadá para o lançamento do livro sobre os filmes. Mostrou dificuldades para aceitar minha vontade de ficar por aqui. Sei que era apenas a sua pró-pria vontade da minha companhia, o que me lisonjeou, mas não me convenceu.

A cidadã canadense-brasileira Charlotte, registrada na Embaixada brasileira como filha de Estácio e Elisabe-

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te, chegou ao Brasil acompanhada de seus pais e do avô materno. Na versão de Estácio, houve uma mudança na relação de Elisabete com o pai e no modo de os dois en-cararem a vida. Irina os esperava em São Paulo. Imagino como deve ter sido difícil para ela respeitar a vontade da filha. No entanto, parece que a família entrou em uma nova era. Stela concordou em aguardar Charlotte procu-rá-la e Elisabete se comprometeu nada esconder da filha.

Stela teve uma decepção com o namorado que ten-tou lhe exigir 50% do que recebeu do Charles. Ofereceu duas justificativas: fora dele a ideia da “barriga de alu-guel” e fizera o sacrifício de retomar o namoro e assesso-rar Stela durante as negociações. Tudo indica que a moça canadense teve seu discurso sobre a priorização de sua carreira validado.

De volta à Xury, recebi como presente-surpresa de Teresa e Jaime o projeto de implantação da Ibyxury. Após minha conversa com Mirna, há algum tempo atrás, a ideia de abrir espaço para os amigos que quisessem um lugar de paz verde ficou rondando novamente minha cabeça e acabei comentando com Teresa. Ela passou para Jaime e os dois, entusiasmados com a proposta, desenvolveram-na com grande competência. Chamaram a opinar e deba-ter vários profissionais de áreas diversas e o resultado me pareceu positivo e até mesmo encantador. Sua execução foi bem mais rápida do que eu imaginara, quase não tive tempo para me preparar. Os adeptos da ideia já estavam com tudo pronto, aguardando meu retorno para a grande transformação da Chácara individual na Comunidade da Terra Xury, daí o nome Ibyxury. Soube depois que o pro-

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jeto estava até adiantado quando fui para o Canadá. Uma grande surpresa para mim que me obrigou a trabalhar duro, inclusive na socialização de Bia e Bei.

Algumas diretrizes básicas nos orientaram na admi-nistração do espaço comum, de forma a garantir a pri-vacidade de cada morador e o enriquecimento da convi-vência solidária. Com este objetivo, foram incorporados dois terrenos vizinhos à chácara original para que cada chalé tivesse uma distância confortável de seus vizinhos. O pomar, a horta, o horto de ervas medicinais, o minho-cário, a compostagem formaram a área produtiva, poste-riormente ampliada com uma pequena criação de aves, um tanque para peixes e um apiário. Estes dois últimos foram localizados perto de onde temos a minúscula mina d’água que recebeu a seu redor, além das árvores, inha-me. Uma receita popular para aumentar a vazão da água. Valdir montou uma pequena equipe para essa produção. Não podemos nos esquecer de que os moradores optaram por botar a mão na terra. O estábulo e as cocheiras fo-ram o grande luxo que só aconteceu após outras despesas. Como isto implicou mais aquisição de terra, houve um receio de desvirtuamento do projeto que poderia adquirir um formato mais grandioso que o desejado. Danilo pres-tou imenso serviço nos apresentando dois rapazes que trabalharam com ele no manejo do gado leiteiro. Em um dos terrenos anexados há um pequeno vale, onde dizem ter havido uma nascente que formava um córrego e, com o desmatamento, desapareceu. Definimos como priori-dade o reflorestamento dessa área, visando a recuperação da nascente. Embora o resultado não seja no curto prazo,

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há uma grande expectativa quanto a conseguirmos alterar essa paisagem.

Os serviços de cozinha, lavanderia e limpeza são co-muns, portanto, as compras, comunitárias. Ciça nos aju-dou no treino de duas jovens para esses serviços. O lazer conta com piscina, sauna, e as trilhas para caminhadas.

A concepção do projeto nega a hereditariedade. Os moradores compraram uma cota que equivale ao terreno, construíram seu chalé, têm a garantia de seu desfrute até o final de sua vida, porém não podem passar para outra pessoa. Pagam as despesas comuns que são mensalmente apresentadas. Na ausência de um morador, o grupo pode aprovar sua substituição. Os moradores que vierem substi-tuindo os iniciais terão que fazer face aos investimentos já realizados. Estácio elaborou um documento, criando uma associação com os direitos e deveres de cada morador e registrou em cartório. A propriedade passou a ser da as-sociação. Há a possibilidade de trocas e pagamentos por prestação de serviços, assim como a utilização do escambo não apenas entre os moradores, como com os vizinhos.

Teresa e Jaime foram os primeiros a construir seu chalé, seguidos, com muita alegria, por Mirna, Marcos e Isa, Bernardo e, finalmente, por João. Somos, portanto, oito pessoas em seis chalés. O grupo, embora funcionasse como uma espécie de assembleia nas tomadas de decisão, seus integrantes tiveram suas competências e funções dis-tribuídas. Assim, Teresa ficou com a responsabilidade da horta e pomar; Mirna, do jardim e horto das ervas; Jaime, da criação de peixes; Bernardo, da matinha e refloresta-mento; João, das aves; eu fiquei com o minhocário, com-

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postagem e apiário; Isa, com as compras e Marcos com a parte administrativo-financeira. Na realidade, Valdir, com seus auxiliares, deixava pouca coisa para se resolver.

A adaptação dos urbanos à vida rural foi surpreen-dente. É bem verdade que cada um conservava um pouco de sua atividade produtiva remunerada, pois somos to-dos aposentados pelo INSS. Embora tenhamos nos apo-sentado pelo teto, a correção anual, sempre menor que a do salário mínimo, fez com que nossas receitas ficassem aquém das despesas. Ainda temos energia produtiva e so-mos, felizmente, saudáveis. Jaime conserva seu emprego de editor de artes, mas seu compromisso, em termos de presença no jornal, é apenas de dois dias na semana: um para definição da pauta e outro para o fechamento das matérias, já que o suplemento de arte é semanal. Mirna mantém a floricultura que é administrada, no dia a dia, por uma gerente de sua confiança e, aos pouco, transferiu suas pesquisas com as rosas para a Ibyxury. João assina uma coluna de crítica de cinema em uma revista e é bas-tante solicitado para outros trabalhos, sobretudo quando dos festivais. Teresa e Marcos dão algumas consultorias: ela para associações de agricultores familiares; ele princi-palmente na área de propostas de empresas concorrentes a projetos governamentais. Isa também está transferindo seu trabalho social com algumas comunidades na praia para as nossas vizinhas. Eu continuo escrevendo.

Nos primeiros anos, Marcos, depois de muitas con-tas, concluiu que não valia a pena comercializar o exceden-te da produção, devido ao elevado custo adicional – como estufas e irrigação - para a manutenção das exigências co-

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merciais, como a qualidade e periodicidade. O projeto de reflorestamento teve a prioridade mantida. Decidimos, então, ficar com as atividades que nos garantiam uma ali-mentação saudável e os aproveitamentos. Somente quando de um ganho extra com um trabalho em que quase todos nós estivemos envolvidos pudemos investir numa plasti-cultura e na irrigação da horta. A partir de então, Isa pas-sou a comercializar o excedente de nossa produção. Valdir triplicou sua equipe e enviava, apenas uma vez por semana, as olerícolas excedentes para a CEAGESP. As perdas físicas e financeiras deixavam Isa deprimida e cada uma de nossas contas bancárias sofreu um colapso.

Por fim, Isa nos convenceu a investir numa micro agroindústria de conservas e a horta passou a enviar para o processamento sua produção. Deixamos de vender in natura. Conseguimos a certificação da produção orgâni-ca, o que valorizou as conservas. No ano seguinte, outra micro agroindústria estava produzindo queijos. Fizemos uma parceria com Danilo e Ciça e começamos a produzir outros produtos apícolas, além do mel.

A implantação da primeira agroindústria foi um mo-mento difícil. Juntamos tudo que tínhamos disponível e ainda precisaríamos de um empréstimo. Então, Bernardo bancou 45% do investimento que foram sendo amortiza-dos, segundo uma tabela elaborada por ele e Marcos. De acordo com Bernardo, ninguém saiu perdendo. Já Mar-cos nos contou que Bernardo deixou de ganhar uma boa grana com a aplicação onde estava seu dinheiro.

Danilo admirava nosso trabalho, mas sempre que tinha ocasião aproveitava para nos colocar em xeque.

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- Se vocês – ele falava - não tivessem outras fontes de renda, não fossem pequenos burgueses, não consegui-riam implantar essas atividades e menos ainda tirarem algum lucro delas. Outro diferencial importante é que vocês têm, no grupo, a agrônoma. Vejam seus vizinhos, só vão ficando cada vez mais pobres. Não têm assistência técnica, não têm crédito seguro. Vão vendendo tudo o que têm e acabam na enxada dos outros.

Ninguém discordava dele, pois mesmo sendo um coletivo e cada um tendo sua aposentadoria e as outras fontes, foi bem vagaroso nosso caminhar.

Numa dessas conversas do Danilo com a agrôno-ma acabamos sabendo um pouco da estória pregressa da Teresa. Todos nós estávamos à mesa na nossa horinha gostosa do chá. Era um ritual de que Danilo e Ciça par-ticipavam nos dias das abelhas. A mesa grande ficava na varanda envidraçada onde normalmente tomávamos as refeições. Ao lado, havia uma cozinha e um banheiro, uma edícula construída no lugar mais alto, cuja visão nos deliciava. Danilo, falando repetidamente da burguesia que nunca pôs a mão na massa, nunca passou necessidade e fica cantando de galo em cima dos pequenos produtores, acabou irritando nossa agricolona que reagiu para valer, ou melhor, para calar.

- Olha aqui, você precisa parar de falar sem saber com quem está falando. Aqui ninguém nasceu em berço esplêndido a não ser você.

- Eu?! - Danilo se ofendeu.- Você presta atenção na sua trajetória e compare

com a minha. Depois me diga quem é pequeno burguês.

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Sou a oitava filha de um casal de camponeses que mal conseguia matar a fome dos 10 filhos. Trabalharam até morrer envelhecidos e minha mãe ainda não tinha 40 anos. Cada um de meus irmãos foi para um lugar, em casa de parentes dos patrões. Fui enviada para São Paulo para ser babá dos filhos de uma prima do dono da fazen-da. Dos 10 irmãos só eu tirei a sorte grande, pois conse-gui, aos 14 anos, me alfabetizar, prestando atenção nas lições que as crianças da casa faziam. Meus irmãos foram alfabetizados por seus próprios filhos.

Ela falava sem percebermos sua respiração e até o marido ficou tenso.

- Fiz o curso o supletivo, que se chamava madureza, em quatro anos. Fiquei conhecendo uma professora das crianças que também dava aula no MOBRAL, um curo de alfabetização de adultos. Ela me forneceu todo o material do MOBRAL e depois dos supletivos, além de me presen-tear com muitos livros e dar dicas importantíssimas.

Aqui, Teresa foi se acalmando, como quem puxa uma boa lembrança.

- Foi quem me levou à primeira biblioteca pública que entrei. A ela dediquei minha tese de mestrado – fez uma pausa e percebemos nosso silêncio expectante. - Aos 20 anos, consegui passar no vestibular de agronomia, em Piracicaba. Fiz um semestre e tranquei a matrícula por-que não consegui emprego noturno. No ano seguinte, um colega me arrumou um trabalho, tomar conta de sua avó à noite. Foi outra sorte grande porque passei a morar na casa, onde me forneciam, inclusive, o jantar e o café da manhã. A avó morava sozinha com uma empregada que

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não dormia no emprego. Desconfio que foi um arranjo para me ajudarem. Depois de formada, as dificuldades perderam a graça.

- Arre! Estou cansado só de ouvir sua estória – des-culpou-se Danilo. Isa quis saber:

- Teresa, e seus irmãos?- Somente eu vim para São Paulo, os outros fica-

ram no Nordeste e apenas dois estão vivos. Moram com os filhos em Aracaju. Estão bem, embora com a saúde debilitada. Assim que pude, dei uma ajuda aos quatro sobrinhos que quiseram estudar, são dois advogados e dois professores. Três outros se empregaram num hotel e lá estão até hoje.

Já mais serena, Teresa quis sair da berlinda e tentou fazer uma piada, mas foi a minha vez de perguntar:

- Você disse que depois de formada as dificuldades perderam a graça. Isto significa que sua infância e adoles-cência foram mesmo barra pesada porque, até onde sei, sua vida sempre foi de batalha.

- Ah! Batalha sim, mas nada perto da miséria que conheci. Tive o primeiro casamento, mal escolhido.

Teresa olhou com muita ternura para Jaime que retribuiu o olhar e lhe enviou um beijo, já que estavam sentados um à frente do outro. Mais uma vez, Teresa foi solicitada a continuar. Jaime, na maior provocação, sorriu e disse:

- Teresa gosta de pagar dívidas alheias – ela abriu a boca como quem vai reagir brava, mas sorriu se pegando em flagrante e respondeu:

- Nessa provocação não vou entrar.

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Fizemos um coro:- Conta.- Bem, é que meu primeiro casamento foi um desas-

tre. Ele era colega de faculdade, saímos e nos empregamos na mesma empresa de assistência técnica que, na realidade, era venda de agrotóxicos. No primeiro semestre ganhamos uma fortuna para os níveis de salários de recém-formados. Quando descobrimos que não era para dar assistência téc-nica e sim vender os produtos, cujas fórmulas estavam lon-ge da inocência, eu me mandei e ele ficou.

- Ele tem nome – mais uma vez, o Jaime provocava, bem humorado. E a narradora aguentando firme, conti-nuou. - Chama-se Carmo dos Anzóis Pereira - provocan-do uma risada geral. - Na terra da Mariana - ela explicou - dizem dos anzóis pereira quando não sabem o sobreno-me da pessoa, mas seu nome é Carmo Pereira. Ih! Já nem sei por que estamos falando nessa criatura! É você, Jaime, fica se valorizando! - ela fingiu-se irritada.

- Que maldade, minha Terezinha de Jesus! Você ia contar que gosta de pagar dívidas - fez Jaime com a ex-pressão de candura.

- Pois é, Carmo ficou e resolveu apostar naqueles produtos. Comprou, por conta própria, uma quantidade enorme, assinando uma promissória para 90 dias. O go-verno brasileiro proibiu o uso do tal agrotóxico, base dos produtos que foram descartados. Diga-se de passagem, que a fabricação dos malditos era nos EUA, onde sua venda há muito estava proibida. A empresa foi à falência e o espertinho, desempregado, ficou devendo o que se transformou em uma fortuna, na medida em que ele fa-

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zia empréstimo para pagar empréstimo. Depois de algum tempo, à época eu pagava as prestações de um pequeno apartamento, recebi uma intimação para pagar a tal dívi-da em uma financeira. Ainda estávamos casados e eu não sabia que era coautora da dívida. Aí foi uma guerra, ad-vogados, juízes, negociações, o diabo. No final, para não perder o apartamento, paguei uma montanha de presta-ções e, claro, nunca foi ressarcida e ainda tive que pagar o divórcio.

- Agora, você entra no céu – Jaime mantinha nosso interesse e Teresa, rindo do e para o marido, continuou:

- Numa das vezes em que estive no fórum havia um movimento anormal e os jornalistas estavam lotando a entrada, alguém me esbarrou, eu me desequilibrei, já ia para o chão, quando umas mãos fortes, poderosas – ela passou a usar um tom de voz grosso como se fosse a nar-radora de uma história infantil – me seguraram, era o príncipe encantado que me levou para seu castelo.

- Não havia castelo, mas o príncipe, aqui, lá estava – Jaime se levantara e colocou um chapéu na cabeça, a guisa de coroa, levantou-se, foi até a Teresa e passou o chapéu para a sua cabeça. Fazia os gestos com expressões tão engraçadas que todos começamos a rir, esquecendo-nos das tristezas da estória real que nos estava sendo con-tada. Foi a vez de Bernardo querer saber:

- Vocês se conheceram no fórum e já foram para a casa do rapaz?

- Nãaoo! A mocinha demorou para quebrar a resis-tência – responder Jaime que tomou a palavra. – Depois de quase pegá-la no colo, fiz o óbvio, convidei-a para um café

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que foi bebido e repetido várias vezes, num bar horrível da Praça da Sé. Enquanto ela me contava, revoltadíssima, toda a confusão do ex-marido que ainda era marido, pude até colocar minha mão em seu ombro. Quando parou de falar, me olhou séria, tirou minha mão, me agradeceu e saiu quase correndo. Eu, aturdido, sai na disparada, conse-gui alcançá-la, mas não seu telefone. Deixou-me plantado feito pé de banana nanica no meio da praça.

- Por que banana nanica? – Não pude deixar de per-guntar.

- Baixinha e gordinha – respondeu, abrindo nossos risos. É claro que nosso chá havia esfriado há muito tem-po. As xícaras estavam vazias e, Isa, me vendo passar os olhos por toda a mesa, já se levantou dizendo:

- Vou providenciar mais chá.Com sua peculiar eficiência, estava de volta quase

em seguida com o bule fumegando e João nos serviu. Todos ficamos esperando Isa se sentar e passamos a olhar em direção da Teresa.

- Pensem bem: eu estava numa situação embaraça-dora, fula de raiva inclusive comigo mesma, pagando de todas as formas para me livrar de um casamento. Que-ria distância de homem. Jaime conseguiu me achar daí a uma semana numa outra audiência. Ele, afinal, à época, era jornalista investigativo.

- Depois de sete dias telefonando sete vezes por dia, ela se dignou a jantar comigo – completou Jaime, com a cômica expressão de puro desespero. - Eu esperava Teresa à saída de seu emprego, à saída de seu prédio, nem sei por quanto tempo estava disposto a permanecer nessa humi-

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lhante situação. Chovia, eu ponha minha capa e chapéu a la detetive, fazia sol, eu me avermelhava todo, mas não arredava pé. Estava fazendo a corte à jovem mais difícil do planeta. Um dia, à saída do trabalho, ela veio direta-mente até mim, me olhou com uma fúria assoladora que durou dois segundos e meio, sorriu, enviou seu braço no meu e me disse: “Estou com uma fome de loba”.

Realmente, não me lembro de ter mais ouvido Da-nilo falar em pequenos burgueses.

A partir da comercialização dos produtos industria-lizados é que as contas da Ibyxury mudaram de cor. Es-távamos acostumados a tirar o dinheiro de nossos traba-lhos remunerados - chamávamos trabalho urbano - para o pagamento de tudo e este tudo ficava bem vermelho. Não tínhamos muita esperança de fechar o mês no azul. Nunca fizemos as contas de quanto precisaríamos inves-tir até termos o retorno. Quando Bernardo introduzia o assunto, mal tinha a voz de Isa para defender uns dois parágrafos de sua pretensa proposta. Marcos, rindo, di-zia para Bernardo continuar investindo seu dinheiro fora e seguir o seu exemplo, entregando tudo nas mãos de Deus. Jamais nosso financista conseguiu ser ouvido. In-tuíamos que se o permitíssemos, teríamos que admitir a falência, ou, no mínimo, a burrice dos maus investimen-tos. A pequena agricultura só dá prejuízo, ou seja, só se viabiliza com grande investimento ou com agregação de valor à produção. Isa demonstrou isto.

Não foi apenas a cor das contas que mudou, nós também sofremos uma mudança, inicialmente sutil. Aos

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poucos fomos perdendo a cautela, o pudor e começamos a aumentar o volume da música, as risadas apareceram mais vezes, as ferramentas de jardinagem, também uti-lizadas na horta, tiveram uma demanda maior, alguém inventou um baile. Tive uma sensação conhecida de pura alegria bem compartilhada.

Encontráramos, enfim, a liberdade de viver a nosso modo. A Ibyxury nos provia do que precisávamos, com a maior qualidade. Antes, nossa preocupação era viabilizar a permanência no lugar que cada um havia escolhido, na companhia de pessoas queridas. Para tanto, tínhamos que buscar, fora do lugar escolhido, o sustento disso e, o que era pior, esse sustento ficava cada vez mais exigente. Quando chegou o retorno financeiro, pudemos, de fato, nos deliciar com nossa escolha!

No segundo mês das contas azuis, comemoramos com uma comida. Cada um fez um prato. Isa, com sua valiosíssima experiência de boa dona de casa, determi-nou, sem nenhuma possibilidade de contestação, que cada um usaria a própria cozinha e os pratos viriam já prontos para a cozinha coletiva. Tivemos convidados: Es-tácio, Elisabete e Charlotte, Ciça e Danilo. Se eu não es-tiver mal informada, foi a primeira vez que os dois casais se encontraram. A criança, com seus cinco anos, era mui-to parecida com o pai: meiga, inteligente e tímida. Não houve constrangimento entre os convidados. No início, estiveram como que esperando o comportamento dos outros. Elisabete e Ciça tomaram a iniciativa e quebra-ram o gelo, não deixando outra alternativa aos senhores senão acompanhá-las no convívio tranquilo.

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Num determinado momento, o volume das con-versas abaixou e a voz de Ciça, vinda de um canto da varanda, pode ser ouvida por todos, além da ouvinte pri-vilegiada, Charlotte:

- A mamãe macaca pulou na frente do filhote e o tirou do galho, onde lá estava a cobra amarela.

A criança bateu palmas e gritou:- Conta outra. Ciça olhou para todos os lados, percebendo sua pla-

teia ampliada, procurou mudar a brincadeira, mas foi de-nunciada pelo marido:

- Ciça é uma grande contadora de casos.Fizemos, então, coro com Charlotte e ganhamos

mais algumas lindas estórias de sua própria autoria. Não resisti e lhe perguntei: - Você já pensou em colocar tudo isso no papel? Ela se escandalizou: - Imagine só, eu nem sei escrever direito! - Ciça, se você quiser, escreva do jeito que nos con-

tou. Depois, posso fazer uma revisão.Senti que seu olhar adquiriu aquela centelha tão co-

nhecida e seus lábios a traíram num sorriso de grande esperança, já não conseguiu negar. Facilitei as coisas para a sua timidez:

- Pense e depois vamos conversar, quando você quiser.Enquanto eu falava, João trocou algum entendimen-

to mudo com Jaime e, despudoradamente, falou: - Temos uma ideia que você pode gostar mais. Jaime

e eu estamos pensando em fazer um documentário sobre a região e você poderia contar suas estórias no filme.

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Danilo, talvez por se sentir um pouco culpado, veio ajudar a companheira:

- Vamos deixar essa conversa pra outra hora? Agora, precisamos nos mandar e a disputa entre a literatura e o cinema é mais acirrada do que nós pobres mortais pode-mos ver – sorrindo todo orgulhoso para a companheira completou - Heim, Ciça, você acaba de receber duas pro-postas. Peça tempo para decidir e valorize seu passe. Ela, percebendo a deixa, sorriu e disse:

- É, vou pensar. Vocês são mesmo malucos!

João e Jaime estavam de fato trabalhando num ro-teiro que pretendia contar nossa trajetória, localizando-a no tempo e espaço. Teresa tentava interferir no sentido de o documentário retratar não apenas a Ibyxury, mas tam-bém mostrar os graves problemas da agricultura familiar. Argumentava que nosso entorno era dessa pobre agricul-tura, sem crédito, sem estradas, sem assistência técnica. Ela dizia a agricultura dos sem. Os dois “cineastas”, cujo propósito inicial era bem menos ambicioso, resistiam a tanta seriedade. Confessaram, entretanto, que poderiam pensar em juntar vários ingredientes e, quem sabe, até contar a estória da gente que povoou o bairro. As estórias da Ciça serviriam como uma boa introdução. João e Jai-me entraram em processo de criação e pouco ouviam ou falavam outros assuntos.

Numa tarde, enquanto servia um chá acompanha-do de uma maravilhosa torta de limão com que Isa nos brindou, falei:

- Parece que conseguimos, enfim, viver do que a

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Ibyxury nos fornece. Acham que está na hora de pensar-mos na participação dos lucros para os empregados?

- Como faremos isto? - perguntou Bernardo. Todos sorrimos, pois era quase óbvio que seria ele a fazer a per-gunta. Quem respondeu foi Marcos:

- Podemos estipular as condições. Quem tem suges-tão? Você chegou a pensar na forma, Mariana?

Parecia que todos concordavam, mas ninguém sabia como fazer.

- Acho que você, Marcos, e você, Bernardo, pode-riam pensar a respeito e nos fazer uma proposta. O que acham? - devolvi a pergunta, ciente da minha total in-capacidade de bolar um modelo com itens numéricos. Todos deram sugestões, porém deixamos nas mãos dos dois, cuja primeira providência foi pedir ao Valdir para convocar os empregados para uma reunião.

Fizeram uma verdadeira assembleia. No início, o silêncio foi religiosamente observado, tiveram dificul-dades para entender o que lhes era proposto e depois, por timidez, permaneciam calados. Houve ainda algu-mas outras reuniões até adquirirem confiança, liberarem a fala e contribuírem para uma boa proposta. Aprovada por todos, Bernardo e Marcos passaram a minuta ao advogado Estácio que cuidou de tudo. A Ibyxury foi legalmente criada como uma comunidade, onde há oito associados que dividem os lucros com os empregados. A partir daí, as despesas puderam ser cobertas sem os tra-balhos urbanos que passaram ser aceitos se oferecessem algum prazer compensador. A frustração que ficou foi a de termos que reconhecer a limitação do nosso modelo

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de comunidade rural produtiva. Afinal, Danilo estava com a razão, nossa liberdade é apenas sussurros para o mundo das desigualdades.

Ibiúna, 24 de novembro de 2009.