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\ AS PRÁTICAS DO REFORMISMO ILUSTRADO POMBALlNO NO CAMPO JURíDICO FRANCISCO JOSÉ CALAZANS FALCON' Nosso referencial histórico vem a ser o período da governação pombalina - 1750 -1777. É esse o patamar em função do qual tentaremos definir idéias e práticas jurídicas tendo como vetores o Mercantilismo ea Ilustração. Desses dois vetores, privilegiaremos, neste trabalho, as idéias e as práticas político-jurídicas e culturais geralmente associadas às propostas da Ilustração. Cabe-nos afirmar desde logo que se trata de um reformismo cujo caráter ilustrado situou-se sempre muito mais no nível das suas próprias práticas discursivas. Mesmo assim, estamos diante de algumas das mais significativas manifestações do absolutismo ilustrado -o chamado "despotismo esclarecido". De um ponto de vista estritamente jurídico, a análise da época pombalina envolve naturalmente duas ordens de temas mais ou menos distintos, se bem que não desvinculados entre si: as reformas no âmbito das leis e tribunais civis, e as reformas atinentes à justiça eclesiástica. Na esfera civil deve-se destacar a Lei de 18 de agosto de 1769 _ conhecida como a "Lei da Boa Razão"; na esfera eclesiástica cabe um lugar especial para o Alvará com força de lei, de 1 de setembro de 1774, que estabeleceu um novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal. No primeiro caso, a esfera jurídica civil, iremos contextualizar o processo que levou a uma significativa reorientação da doutrina jurídica e cujos principais elementos foram: a Lei de 18 de agosto de 1769; os Novos Estatutos da Universidade de Coimbra, em 1772; e, já sob D. Maria I, as discussões associadas à elaboração de um novo Código. Paralelamente, que dar o devido destaque aos diversos aspectos de uma atividade legiferante extremamente rica, típica do reformismo ilustrado, que, em ~un~ão de fatores que iremos analisar, preocupou-se em certos casos com Indivíduos e, em outros, com certos segmentos sociais, ali incluídas as -------------------------- , Professor do IFCS/UFRJ BIBlOS. Rio Grande. 8: 73 _ 87,1996. 73

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AS PRÁTICAS DO REFORMISMOILUSTRADO POMBALlNO NO CAMPO JURíDICO

FRANCISCO JOSÉ CALAZANS FALCON'

Nosso referencial histórico vem a ser o período da governaçãopombalina - 1750 -1777. É esse o patamar em função do qual tentaremosdefinir idéias e práticas jurídicas tendo como vetores o Mercantilismo e aIlustração. Desses dois vetores, privilegiaremos, neste trabalho, as idéias eas práticas político-jurídicas e culturais geralmente associadas às propostasda Ilustração. Cabe-nos afirmar desde logo que se trata de um reformismocujo caráter ilustrado situou-se sempre muito mais no nível das suaspróprias práticas discursivas. Mesmo assim, estamos diante de algumas dasmais significativas manifestações do absolutismo ilustrado - o chamado"despotismo esclarecido".

De um ponto de vista estritamente jurídico, a análise da épocapombalina envolve naturalmente duas ordens de temas mais ou menosdistintos, se bem que não desvinculados entre si: as reformas no âmbito dasleis e tribunais civis, e as reformas atinentes à justiça eclesiástica.

Na esfera civil deve-se destacar a Lei de 18 de agosto de 1769 _conhecida como a "Lei da Boa Razão"; na esfera eclesiástica cabe um lugarespecial para o Alvará com força de lei, de 1 de setembro de 1774, queestabeleceu um novo Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinosde Portugal.

No primeiro caso, a esfera jurídica civil, iremos contextualizar oprocesso que levou a uma significativa reorientação da doutrina jurídica ecujos principais elementos foram: a Lei de 18 de agosto de 1769; os NovosEstatutos da Universidade de Coimbra, em 1772; e, já sob D. Maria I, asdiscussões associadas à elaboração de um novo Código. Paralelamente, háque dar o devido destaque aos diversos aspectos de uma atividadelegiferante extremamente rica, típica do reformismo ilustrado, que, em~un~ão de fatores que iremos analisar, preocupou-se em certos casos comIndivíduos e, em outros, com certos segmentos sociais, ali incluídas as

--------------------------, Professor do IFCS/UFRJ

BIBlOS. Rio Grande. 8: 73 _ 87,1996.

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relações entre indivíduos e grupos, conforme o caso, podendo-se citar comoexemplos as modificações introduzidas no direito de propriedade, noscontratos e nas sucessões patrimoniais.

Já no âmbito da justiça eclesiástica, o Regimento do Santo Ofício,de 1774, tem uma significação quase exemplar, tanto pelo sentido ideológicode seu texto preliminar - a Apresentação - quanto pelos dispositivosprocessuais do Regimento propriamente dito. A ideologia do Direito Naturale do Direito Positivo ou Pátrio, sobre um fundo argumentativo antijesuítico,fazem do Regimento um documento/monumento de primeira ordem para acompreensão de uma das mais importantes dimensões do reformismojurídico pombalino.

Em resumo, trata-se de expor as duas faces que constituem arealidade do período, do ponto de vista da sua expressão reformista emnível jurídico.

1 - INTRODUÇÃO

O fato de adotarmos como referencial histórico o períodocorrespondente à chamada "governação pombalina", especialmente quandodelimitamos tal período segundo os mesmos parâmetros cronológicos queidentificam o reinado de D. José I (1750 - 1777), já constitui por si mesmoum primeiro problema historiográfico. Assim sendo, deveremos estar sempremuito atentos ao caráter artificial dessa delimitação, justificada por suasconveniências didáticas, a fim de que não venhamos a atribuir-lhe um valorde realidade algo excessivo, quando sabemos que se trata apenas de umrecorte arbitrário introduzido pelo historiador e, como tal, sempre sujeito ainúmeras críticas e retificações. Gostaríamos portanto que se tivessesempre presente esse caráter artificial e, no entanto, também bastante real,de nossas referências ao chamado "período pombalino".'

Todavia, se vamos utilizar como referência básica do nossovocabulário o período histórico identificado com a governação pombalina,não poderíamos deixar de referir, desde logo, os dois principais vetoresexplicativos das idéias e das práticas desse mesmo período: o Mercantilismoe a Ilustração. Cada uma destas noções (ou conceitos) possuiespecificidades muito próprias quando aplicadas ao Portugal setecentista,destacando-se porém uma característica que vem a ser talvez a verdadeiraessência, paradoxal, não resta dúvida, da época pombalina - o fato de que,embora contemporâneos, mercantilismo e ilustração não são coetâneos.

, FALCON, F. J. C. A Época Pombalina. Política Econômica e Monarquia Ilustrada(1750-1777). São Paulo: Ática, 1982, p. 213 e segs.

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Justamente essa não coetaneidade nos autoriza de certo mOdo aque deixemos de lado a mercantilismo a fim de nos determos apenas nosproblemas da Ilustração - tanto as idéias, ou ideologias, quanto as práticaspolítico-jurídicas e culturais que constituiriam as manifestações lusas dofenômeno que a tradição historiográfica convencionou chamar de lIuminismoou Ilustração". No presente trabalho, iremos destacar do conjunto das idéiase das práticas que, em princípio, constituem a essência do reformismoilustrado pombalino, aquelas de natureza jurídica, embora tomemos numsentido bastante lato a noção de aspectos jurídicos.

Conforme tivemos ocasião de demonstrar3 há que proceder-secom extrema cautela quanto ao verdadeiro sentido de qualquercaracterização/ definição das reformas pombalinas em termos de "reformasilustradas". Com efeito, o exame minucioso e crítico tanto dos discursosquanto das práticas pombalinas revela-nos não poucas contradições edistorções quando comparados ao que se pOderia denominar de grandesparâmetros da Ilustração européia. Faz-se necessário portanto,a cadapasso, que não nos deixemos levar e confundir pelos artifícios retóricos queasseguram ao reformismo pombalino, sobretudo na esfera das práticasdiscursivas, um sentido aparentemente ilustrado. Tal fato é particularmentedecisivo na esfera da atividade legisladora, onde somente o exame doconteúdo das novas leis aliado à perspectiva das suas determinações ouconexões sociais e políticas, poderá comprovar ou não a sua naturezailustrada. Isto para não mencionarmos o problema talvez ainda mais difícilque seria a questão da eficácia de tais leis, sua aplicação real, pois,teríamos aí a oportunidade de perceber com maior nitidez os verdadeiroslimites desse "caráter ilustrado", com suas inúmeras refrações, adaptações eacomodações.

Talvez, nada mais apropriado do que o campo jurídico para aítentarmos surpreender como que in fieri todas as nuances da vinculação dasidéias e práticas do reformismo pombalino ao movimento ilustrado europeudo séc. XVI/I. Conviria distinguir, no entanto, no seio das práticas jurídicaspropriamente ditas, a existência então de duas esferas bastante distintasentre si, embora inter-relacionadas de várias maneiras, a começar pelaperspectiva própria ao Estado absolutista: a esfera leiga, ou "civil", e aeSfera eclesiástica, ou religiosa.

Constitui uma das linhas de força desse períOdo exatamente apreoCupação ostensiva do poder monárquico absolutista em instaurar, por-------------------------Xv 2 Trata-

59 de entender como Ilustração a corrente de idéias que floresceu no séc.RO'~' e o lIuminlsmo corno tendência intelectual não-limitada a qualquer época específica. Cf.s.... ANET, S. P. As Razões do tlumirüsmo São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 28 e=ss. FALCON, F. J. C. São Paulo: Atica, 1986.

3 FALCON, op. cit., pp.361-8 e p. 483 e segs.

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intermédio da atividade legislante, as condições efetivas para a eliminação,na teoria e na prática, da hegemonia do setor eclesiástico sobre o conjuntoda sociedade portuguesa. Para tanto, o Estado forçou a redução doscampos e das formas de atuação eclesiástica, a diminuição do poder políticoe econômico do clero e, acima de tudo, sua submissão irrestrita à "ciênciacerta e poder real e absoluto do monarca"."

Seria possível utilizar-se, como expressões ou formas exemplaresdo que acabamos de afirmar, a Lei de 18 de agosto de 1769 - chamada "Leida Boa Razão" - e a Lei de 1 de setembro de 1774, que estabeleceu umnovo Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portuqal".Entretanto, embora extremamente significativas por si mesmas, essas duasleis devem ser analisadas no interior dos contextos que Ihes conferem suaverdadeira significação e aos quais também, por outro lado, emprestam umsentido mais amplo. Assim sendo, dividiremos nosso trabalho segundoaqueles dois setores acima mencionados.

2 - AS PRÁTICAS REFORMISTAS POMBALlNAS DE CUNHO JURíDICONA ESFERA ECLESIÁSTICA. A LEI DE 1 DE SETEMBRO DE 1774.

2.1 - Dentro do objetivo geral de eliminar todas as formas de oposição aoEstado absolutista, fossem elas pessoas, grupos sociais ou instituições, agovernação pombalina atacou sucessivamente: o setor antimonopolista daburguesia mercantil, o segmento antiabsolutista da aristocracia senhorial, e,principalmente, o setor hegemônico da aristocracia eclesiástica, aquirepresentado pela Companhia de Jesus. Mas não se limitou tal política àextinção da Companhia e expulsão de seus membros. Tratava-se dereduzir, ou mesmo, se possível, eliminar a presença política do clero em seusentido mais amplo. Explorando as rivalidades entre as ordens religiosas,aguçando os conflitos de autoridade com Roma, esvaziando as baseseconômicas e os recursos financeiros do clero, a política "regalista" incluiutambém o combate ao direito canônico e a introdução de novos princípiospedagógicos e de uma nova estrutura educacional, na qual se insere areforma da Universidade de Coirnbra."

2.2 - A Lei de 1 de setembro de 1774 trata-se de um documento compostode três partes distintas:

4 Idem, Ibid., p. 382.5 Utilizaremos para indicar os textos da legislação a Coleção de Legislação Impressa

e Manuscrita compilada por Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato, existente nosReservados da Academia de Ciências de Lisboa, doravante designado por MORATO.

6 FALCON, op. cit., p. 422 e segs.

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2.2.1 - O preâmbulo ou "Exórdio", assinado pelo Cardeal da Cunha,Inqtlisidor Geral;

2.2.2 - O Regimento, dividido em três Livros;

2.2.3 - O Alvará de lei e Confirmação, de 1 de setembro de 1774. Do pontode vista ideológico, o preâmbulo é a parte mais rica, pois, toda a tônica dodiscurso está fundamentada no intuito de demonstrar através de fatosindiscutíveis as sucessivas fraudes e deturpações impostas pelos jesuítas àinstituição inquisitorial e à própria autoridade real, criando um poder superioràs Leis do Reino, fonte de "inexcedíveis abusos, arbítrios e atentados aoDireito Natural" e às leis do Reino. E sobretudo significativa a parte do textoem que são apresentados os principais tipos de "erros perniciosos"praticados pelo Tribunal do Santo Ofício, pois tais "estilos" ilustram bem otipo de prática judiciária até então viqente.'

Quanto ao texto de> Regimento propriamente dito, sãoparticularmente interessantes os Livros 11 e 111. O Livro 11 trata da práticajudicial do Santo Ofício, enquanto o Livro 111 se refere às penas aplicáveisaos réus convictos. Em ambos os casos, o mais interessante talvez venha aser a presença, em cada caso, como que de dois textos: um deles repete asdisposições constantes do Regimento de 1640, ipsis literis ou de formacondensada; já o outro, realmente novo, introduz as preocupações jurídicase ideológicas típicas da mentalidade do setecentos, inclusive as de natureza"ilustrada". Esse "segundo texto" afiara sobretudo através dos diversos"intróitos" que foram acrescentados aos "títulos" mais polêmicos. Narealidade, ocorre um verdadeiro diálogo, quase sempre conflituoso, entre onovo discurso e o antigo, no qual se faz a crítica das concepções e daspráticas fixadas pela tradição inquisitorial e que são agora contestadas oudesqualificadas.8

Apenas para exemplificar, citemos o Título 111 do Livro 11, onde setrata "Dos Tormentos". Afirma-se o caráter crudelíssimo da tortura e se dizque ela é estranha à Igreja e às "Regras ordinárias do Direito", mas sendopermitido, nos casos das "Conjurações de muitos contra a Vida, e Estadodos Monarcas", aplicar-se-a aos "Novadores, Heresiarcas e Espíritos Fortes"a fim de "extirpar as raízes de pestes tão nocivas", em nome da segurançaPública e das "Regras do maior Bem Comum" de todos os Estados, com oque se eliminava, segundo o mesmo texto, "qualquer consideração particularem favor dos atormentados".--------------------------

7

d FALCON. Inquisição e Poder. O Regimento do Santo Ofício da Inquisição no contextoI as reformas pombalinas (1774). Comunicação apresentada ao I Congresso Internacional sobre anqUlslÇão. São Paulo, 1987 (mimeog.), p. 7.

8 Idem, Ibid., p. 9.

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!·II,

Um outro exemplo: os Títulos I e II do mesmo Livro, referentes àtomada das denúncias e das confissões, em que se elimina a figura datestemunha singular e fica assegurado ao acusado tomar conhecimento daacusação e de quem o acusa, embora isto só se concretizasseprocessualmente após a publicação do Libeto de Justiça."

Finalmente, já que estamos apenas exemplificando, lembramos oTítulo IV, que trata do caráter das provas que possam ser aceitas comolegítimas para a convicção dos "negativos" e "diminutos", fazendo aindareferência aos "apresentados", aos "Réus convictos no crime de heresia",aos "hereges afirmativos", aos defuntos e ausentes e também aos "queendoidecem na prisão"."

Quisemos tão somente chamar a atenção para a riquezaideológica que se contém no texto desse Regimento de 1774, cuja marcaprincipal, repetimos, é o diálogo conflituoso entre o moderno e o "ilustrado",de um lado, e o tradicional ou antigo, do outro.

3 - AS PRÁTICAS REFORMISTAS POMBALlNAS NA ESFERA LEIGAOU A LEI DE 18 DE AGOSTO DE 1769.

3.1 - Os vários campos das práticas reformistas de, natureza jurídicadurante a governação pombalina - tipos e principais características

Seria para nós algo totalmente impossível e quem sabe até fora depropósito, pretender percorrer novamente, numa exposição como esta, oscaminhos trilhados pelo reformismo pombalino em seu incansável afãlegislador. Dai nos limitarmos aqui ao traçado de algumas grandes linhas,pontilhadas de alguns exemplos significativos.

Houve, por exemplo, uma certa intenção de assegurar adeterminados grupos de indíviduos a sua liberdade pessoal. Destacaríamosnesse caso a concessão da liberdade aos índios do Brasil e aos negros dePortugal. A primeira dessas concessões encontra seu clímax na Lei de 6 dejunho de 1755, que restitui aos "índios do Gão-Pará e Maranhão a liberdadede suas pessoas, bens e comércio"?". sendo tal determinação completadapelo Alvará com força de Lei de 8 de maio de 1758, que ordenou a extensãoda liberdade acima referida "aos índios que habitam todo o continente doBrasil,,12. Em seu nível discursivo, essas concessões apóiam-se numverdadeiro binômio argumentativo recuperar uma tradição preexistente que

9 Idem, Ibid., p. 12.10 Idem, Ibid., pp. 12-3.11 MORATO, v. 15, doe. 14.12 MORATO, v. 15, doe. 178; FERREIRA, Waldemar. ° Direito Público Colonial do

Estado do Brasil sob o signo pombalino. Rio de Janeiro: Ed. Nac. de Direito, 1960, p. 147 e segs.

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teria sido vilipendiada pelos jesuítas, e exaltar os valores propriamenteilustrados - liberdade pessoal e superioridade da civilização. Umaconvergência - curiosa, portanto - do direito divino com o direito natural epositivo.

No caso da segunda concessão antes referida, seu ponto alto foi oAlvará com força de lei de 16 de janeiro de 177313, em' que se concedeuliberdade a quase todos os escravos pretos existentes em Portugal (sobretudono Alagarve), ficando assegurada, daí para o futuro, a liberdade de "todos quenascerem do dia da publicação desta Lei em diante"!". Interessanteobservamos que, ao longo da sua argumentação, o texto dessa lei critica oque chama de "supertição dos romanos" e proclama enfaticamente o caráter"intolerável" da escravatura. No entanto, diríamos nós, ao que parece as"luzes" estavam restritas ao lado de lá do Atlântico, uma vez que sequer émencionada a questão dos escravos negros do Brasil.

Um segundo ponto a destacar refere-se à repressãodesencadeada então contra os abusos e discriminações de vários tiposentão existentes na sociedade lusitana. Fiquemos, porém, apenas com doiscasos: o do "puritanismo" e o dos "cristãos-novos". O então chamado"puritanismo" era uma ideologia que congregava um pequeno segmento danobreza mais antiga, cujos integrantes afirmavam com orgulho a suasuperioridade em relação ao restante da aristocracia, em função do fato dese acreditarem insuspeitos de qualquer mancha de "sangue hebreu, mouroou negro". Contra eles Carvalho e Meio obteve o Alvará de Lei Secretíssimode 5 de outubro de 175815

, destinado a extirpar essa "seita" e submeterseus membros à autoridade real. Em termos sócio-políticos e ideológicos,estamos diante de uma das peças mais curiosas dessa época, quer quantoao texto, quer quanto aos procedimentos adotados para sua execução. Osegundo exemplo citado consistiu na proscrição da antiga distinçào existenteem Portugal entre "cristãos-velhos" e "cristãos-novos", a qual foi oficialmenteabolida pela Carta de Lei, Constituição Geral e Edito Perpétuo de 25 de maiode 1773, e na qual podemos destacar tanto o caráter enfático do própriotítulo quanto os motivos invocados para essa providência legal. 16

Por último, podemos lembrar as diversas medidas voltadas para aeliminação de determinados privilégios ou comportamentos de natureza

---------~~--------------------------P 13 FALCON, F. J. C., NOVAIS, Fernando A. A extinção da escravatura africana emNortugal no quadro da política econômica pombalina. Separata dos Anais do VI SimpósioAaClonal dos Professores Universitários de História. São Paulo, 1973. FALCON. A Épocaombalina, p. 398-9.

14 MORATO, V. 20, doe. 61.

Ja' 15 MORA TO, v. 18, doe. 158; AVELLAR, H. de. História Administrativa do Brasil. Rio denelro: DASP, 1970, p. 45.

16 MORATO, V. 20, doe. 87, Impressão.

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discriminatória associados aos segmentos sociais dominantes, os quais serevelavam cada vez mais em descompasso com as novas idéias, além deatuarem como fatores inibidores de uma mobilidade vertical tida comoaltamente desejável pelo Estado absolutista. Novamente, apenas parasubstantivar um pouco nossas afirmações, citemos dois exemplos: Osmorgados e os bens de mão-morta.

A Carta de Lei de 3 de agosto de 177017 regulou a questão dainstituição dos morgados, procurando disciplinar a matéria e simultaneamenterestringir a sua multiplicação, tendo em vista promover uma certadesamortização fundiária, se bem que muito parcial e limitada. Na realidade,pretendia-se algo, em princípio, pelo menos, contraditório: restringir osmorgados mas ao mesmo tempo consolidar aqueles cuja manutenção era dointeresse da monarquia em função do reconhecimento da necessidade deassegurar a sobrevivência das grandes casas da nobreza. Assim sendo,embora um Alvará de 23 de maio de 1775 tenha extinguido alguns tipos demorgados, a essência dessa instituição se manteria ainda por bastante tempo- até a época das reformas liberais da década de 1830.

O segundo exemplo, relativo aos bens eclesiásticos, diz respeitoaos numerosos dispositivos legais cuja tônica vinha a ser o propósito dereduzir ou pelo menos impedir que aumentassem as extensões fundiáriassubmetidas ao regime de mão-morta. A governação pombalina demonstrouclaramente sua intenção de reduzir os bens fundiários do clero e cercear aspossibilidades de os seus diversos segmentos adquirirem por compra oudoação novas extensões de terras. A Carta de Lei de 4 de julho de 176818

foi um desses textos legais destinados a impedir/limitar a ampliação, atravésda compra, dos bens eclesiásticos. O mesmo objetivo foi visado quanto àsdoações, pela chamada Lei Testamentária, adiante referida.

Enfim, seria alongarmos demais esta exposição referir aqui tudoaquilo, que na prática jurídica, visa, por exemplo, favorecer os interesseseconômicos e sociais da grande burguesia mercantil, ou então proteger asatividades - e os lucros - dos pequenos comerciantes varejistas, ou aindagarantir a sobrevivência dos artesãos através da proteção às suasorganizações corporativas.

3.2 - Preferimos dar um relativo destaque à legislação pombalina referentegenericamente à propriedade, aos contratos e às sucessões patrimoniais,destacando, em cada um desses tópicos, respectivamente, os seguintescasos: morgados, os contratos comerciais e matrimoniais e as disposições

17 MORATO. v. 19, doe. 72; cf. COSTA, Mario J. A. Debate jurídico e soluçãopomba!ina. In: Como Interpretar Pombal. Lisboa: Broteira, 1983, p. 102.

18 MORATO, v. 18, doe. 149.

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testamentárias Vejamos então.3.2.1 - O problema dos morgados aparece sob três espécies de rubricasdistintas: sua instituição (já mencionada), seu aspecto fundiário e suasituação em termos de sucessão (adiante). A segunda dessas rubricasremete-nos ao problema mais geral dos emprazamentos ou aforamentosenfitêuticos. O legislador buscou então regular esses aforamentos e coibir,sempre que possível, os abusos tradicionalmente praticados contra osenfiteutas. Essas intenções foram anunciadas já num Alvará de 3 denovembro de 1757

19, embora sua efetivação só se concretize através da

Carta de Lei de 9 de julho de 177320, acompanhada, durante os anosseguintes, de vários outros dispositivos legais que demonstram acomplexidade do problema e os obstáculos que, na prática, se opuseram à"vontade esclarecida" do poder rnonarquco."

3.2.2 - Acerca dos contratos, temos primeiramente a preocupação daautoridade absoluta em preservar a credibilidade das relações mercantis.Nesse particular é muito significativo o encaminhamento dado então aoproblema das falências, sobretudo grave após o terremoto de 1755, quearruinou inúmeros comerciantes lisboetas. Assim, a Lei de 13 de novembrode 1756 veio em auxílio dos comerciantes honestos através de umaregulamentação dos casos de falência na qual se admitia a hipótese dafalência involuntária ou "de boa-fé,,22. Já aqueles comerciantescomprovadamente "falidos de má-fé" têm suas situações awavadas peloAlvará com força de Lei de 1 de setembro de 1757 3. A melhordemonstração da importância atribu ída ao assunto está na quantidade deleis complementares subseqüentes

Ainda dentro das questões contratuais, podemos destacar asmudanças introduzidas nos contratos matrimoniais, através da Lei de 17 deagosto de 1761, que mandou abolir as "legítimas e dotes" das filhas dasCasas principais, o que implicou também o desaparecimento das "arras",Substituídas pelo "apanágio" ou "alimentos", ao mesmo tempo em que selimitava o direito às mesadas ou "alfinetes" por parte das viúvas. O impactod~ssa lei foi muito grande, hajam vista as reações que despertou no seio daaristocracia, levando à sua ampliação e declaraçào através da Lei de 4 defevereiro de 1765.24

19 MORATO, v. 15, doe. 144.20 MORATO, v. 20, doe. 89.21 FALCON. A Época Pombalina, pp. 414-5, notas de 152 a 159.22 FERREIRA, op eit., p. 159.23 MORATO, V. 15, doe. 138.

Ieg' 24 MORATO, V. 17, doe. 28; ef. o excelente trabalho de NIZZA DA SILVA, Maria B. "AIslaÇão pombalina e a estrutura da família no Antigo Regime português". In: Pombal Revisitado.

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'il!13.2.3 - Testamentos e sucessões. O Alvará com força de Lei de 9 denovembro de 175425 prescreveu que a posse civil que os defuntos em suavida houvessem tido passassem logo, nos "bens livres", aos herdeiros"escritos ou legítimos"; nos "vinculados", ao filho mais velho, ou neto, filho doprimogênito e, faltando este, ao irmão ou sobrinho; nos "morgados", ou"prazo de nomeação", a pessoa que tivesse sido nomeada pelo defunto, oupela Lei. Mais adiante, em 25 de junho de 1766, uma Carta de Lei ePragmática, também conhecida como "lei testarnentária'f". deteve-se sobreo problema dos testamentos e "últimas vontades", introduzindo sériaslimitações ao direito de testar, completadas por uma Lei de 9 de setembrode 1769. As inovações drásticas introduzidas através dessas leisinspiravam-se no direito natural - a defesa dos herdeiros legítimos,ameaçados pelas manobras muito comuns daqueles que se aproximavamdos velhos e doentes a fim de fazê-Ias testar em seu benefício, ou de suasordens religiosas. Daí a importância que tem para o historiador interessadona história da filosofia do direito o preâmbulo da já citada Carta de Lei ePragmática de 9 de setembro de 1769, no qual o texto aparece pontilhadode expressões como: "Direito das Gentes", "ordem da natureza", "benefíciopúblico", "nações civilizadas", "claríssimas luzes", etc27

. Destaque-se aindaseu viés fortemente anticlerical expresso nas severas limitações impostas aolegados pios ou "bens da alma", e na afirmação de que tais eram os abusoscometidos nessa matéria que logo "se chegará ao caso de serem as almasdo outro mundo senhoras de todos os prédios destes Reinos".

3.3 - A Lei de 18 de agosto de 1769 - a chamada Lei da Boa Razão trata-sedo principal texto pombalino em termos de filosofia jurídica. Segundo Cabralde Moncada, a Lei da Boa Razão assinala o abandono do "sistema doromantismo justinianeu" em prol de um "sistema do direito natural e doindividualismo crítico"."

A principal característica dessa transformação consistiu, emtermos de Jurisprudência, na adoção dos princípios do direito natural e dasgentes, do usus modernus Pandeetarum de origem germânica, bem comodas diretrizes histórico-críticas cujacianas."

Lisboa: Estampa, 1984, v. 1, pp. 403-14; COSTA, op. cit., p. 102; MONCADA, L Cabral de. EstudoSde História do Direito. Coimbra: s/ed., 1948-50,3 V., v. 1. p. 120 e segs.

25 MORATO, v. 14, doe. 115 e v. 18, doe, 42.26 MORATO, v. 18, doe. 87; COSTA, op. cít. p. 102-3.

Lisboa Estampa, 1984, v. 1, pp. 403-14; COSTA, op. cit., p, 102; MONCADA, L Cabral de. EstudOSde História do Direito. Coimbra: s/ed., 1948-50,3 V., v. 1. p. 120 e segs. 27 MONCADA, op. Clt..v. 1, pp. 112·4; FERREIRA, op cit., p. 168-9; MORATO, v. 19, doe. 93 e v. 21 doe. 48.

28 MONCADA, op. cit., v. 2, p. 197·8.29 COSTA, op. cit., p. 95.

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Na verdade, essa Lei objetivava eliminar os numerosos abusosexistentes quanto ao re~urso ao direito subsidiário e ao valor dos chamados"assentos" dos tnb~nals do Reino, be~. como limitar a utilização doscostumes - a comunts opuno - fontes do direito doravante em vigor. Justifica-se a denominação de "Lei da Boa Razão" em função do apelo freqüente quese faz no seu texto a reeta ratio jusnaturalista. A razão universal, eterna,imutável. Cumpria buscar essa razão cristalizada nos textos romanos, nodireito das gentes, nas obras jurídicas e leis positivas das nações

. 30estrangeiras.

Substancialmente, a Lei da Boa Razão estabeteceu a prioridadedas "leis pátrias" e "estilos da Corete" (somente quando legitimados atravésde "assentos" da Casa de Suplicação, de Lisboa). A seguir, o costume,desde que não fosse contrário à Lei, e possuísse mais de cem anos deexistência. Enfim, somente na hipótese de não haver leis, assentos oucostumes, entraria em caráter subsidiário o direito romano, mas desde quefosse conforme a "boa razão", isto é, conforme os princípios do direito

31natural e das gentes.Em conseqüência, além de reconhecer-se o caráter histórico do

direito romano, no qual haveria sempre que distinguir o eterno docontingente, afirma-se nitidamente a prioridade das "leis pátrias" em facedas "leis imperiais", inclusive porque se tratava (no caso dos romanos) de"Gentios (...) que do Direito Divino, é certo, não souberam coisa alqurna"."

Complementando o novo quadro jurídico, a mesma Lei proscreveutotalmente a utilização ou citação das "glosas" de Acursius e dos"comentários" de Bartolo, substituídos por Cujacio, Heineccius, Bohmer,Carpzov, etc. Simultaneamente eliminou-se o direito canônico dos tribunaisreais, relegando-o ao uso dos "Ministros e Comissários Eclesiásticos".33

Finalmente, devemos prestar atenção a uma particularidadeimportante dessa Lei, ou seja, ao mesmo tempo que ela fixa a legalidade dorecurso ao "uso moderno" para as questões de direito privado, deixaperceber que as lacunas da jurisprudência em matéria política, econômica,mercantil ou marítima deveriam ser resolvidas através do recurso ás "LeisPolíticas, Econômicas, Mercantis e Marítimas que as mesmas NaçõesCristãs têm promulgado com manifestas utilidades" baseadas na "boarazão,,34

30 Idem, lbid. p. 96-7.31 Idem, lbid. p. 98; FALCON. A Época Pombalina, p. 394-5.32 MORATO, v. 19, doe, 25; transcrita em AVELAR, H., op. cit., p. 231 e segs.33 MORATO, v. 19, doe. 25.

So . 34 OLIVEIRA, Antonio R. Poder e Sociedade. A Legislação Pombal.ina e a A~tigaI Cledade Portuguesa. In:O Marquês de Pombal e seu tempo. Revista de História das ldéias,nSIIt. de Hist. e Teoria das Idéias, Fac, de Letras, Coimbra, 1982, t. 1, p. 53.

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o texto da Lei da Boa Razão é evidentemente bem mais rico doque nos foi possível aqui explicitar. Trata-se de um discurso que seapresenta, inicialmente, como uma espécie de reatamento com a tradiçãodas Ordenações Manuelinas a fim de extirpar as "interpretações abusivas",invocando para tal o exemplo de "todas as nações políticas da Europa".Afirma-se a consciência de como que um hiato legislativo - entre o séculoXVIII e os séculos XV/XVI haveria um período em que predominou a nefastatutela jesuítica, juridicamente improdutivo - espécie de horizonte práticocontra o qual se dirige o combate da legislação pornbaíína". Mas alémdessa preocupação, que poderíamos chamar de "historicista", afirma-se osentido do contemporâneo através de inúmeras alusões que são feitas aolongo do texto, ao exemplo das "nações polidas" e "civilizadas", assim comoàs "luzes", em conexão com a exaltação ao direito natural e à "boa razão".

3.4 - A reforma do ensino do direito de acordo com as orientações jurídicasA reforma da Universidade de Coimbra, tanto· em sua primeira

etapa (1761), quanto principalmente na segunda e decisiva (1770 - 1772), foiuma conseqüência imediata da expulsão dos jesuítas, se bem que, numsentido mais profundo, tenha constituído a culminação das críticas esugestões há longo tempo formuladas por muitos intelectuais"estrangeirados", particularmente Verny e Ribeiro Sanches. A reformaconsubstanciou-se nos Novos Estatutos, aprovados em 1772 através daCarta de Lei de 28 de aqosto."

Os cursos jurídicos continuaram divididos em Lei e Cânones, comofaculdades distintas (somente em 1836 elas se fundiriam, dando origem àmoderna Faculdade de Direito).

Na esfera do ensino, procedeu-se em primeiro lugar à crítica doserros mais comuns até então: predomínio do direito romano e do direitocanãnico em detrimento do direito pátrio, praticamente ignorado; o abuso do"método bartolista"; o respeito quase cego pela comunis opinio; o desprezopelo direito natural e pela história do direito.

No intuito de reformar tal ensino, houve a revisão radical doscurrículos, sendo introduzidas algumas matérias novas: o direito natural, ahistória do direito e as instituições de direito pátrio, se bem que fossemantido o estudo do Corpus Juris Civilis e do Código Canônico, mas sem averdadeira hegemonia que possuíam anteriormente. Indo mais além, areforma deteve-se sobre a questão do método, obrigando-se à utilização dométodo denominado pelos reformadores, de "sintético-demonstrativo-

35 Idem, Ibid. p. 55.36 FALCON. A Época Pombalina, p. 438-9.

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compendiário,,37. Também em relação aos programas houve o cuidado deelaborar novos programas, nos quais foi determinada de forma taxativa qualseria a escola de jurisprudência preferível: o método dos comentadores oubartolistas cedeu lugar às diretrizes histórico-críticas dos cujacianos e aousus modernus, quanto ao direito romano e ao canônico.

Exigiu-se a adoção ou elaboração de compêndios "breves, claros ebem ordenados", para substituírem as "tradicionais postilas". Dada ainexistência de compêndios ou manuais portugueses, apesar da pressãoexercida para que os lentes de Coimbra os produzissem com urgência,foram adotadas as traduções de manuais italianos e alemães. Na realidade,do lado português, somente Mello Freire apressou-se em escrever e publicaros seus manuais.

Segundo a maioria das avaliações realizadas sobre as reformaspombalinas no campo do direito - jurisprudência e ensino - não há dúvidasquanto à profundidade das mudanças introduzidas na interpretação dasnormas jurídicas, embora devamos também levar em conta as críticas queforam feitas a tais reformas, tanto por Antonio Ribeiro dos Santos38 , à épocade D. Maria I, quanto, mais recentemente, por Cabral de Moncada, quechegou a considerá-Ias uma "obra desnacionalizante,,39

CONCLUSÕES

37 COSTA, op. cit, p, 98.

Anto' .38 PEREIRA, José Esteves - o Pensamento Politico em Portugal no séc. XVIII.ruo R~~elro dos Santos: Lisboa: Imprensa Nac./Casa da Moeda, 1983.

125-6. COSTA, op. cit, p. 106; MONCADA. L. C. História do Direito Português. v. 1, p.

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entre a realidade jurídica e cultural de Portugal e o que existia no restante daEuropa "culta" em meados do séc. XVIII; a seguir, uma segundaconstatação: tais diferenças resultariam da defasagem entre duas realidadessendo em sua essência diferenças mentais, ou de mentalidades; daí, ter-se-ia "Iogicamente", a razão de ser do "absolutismo esclarecido" do ministrotodo-poderoso de D. José I - uma busca incessante/interminável de meios emodos capazes de reformar/transformar um Portugal "arcaico" num paísmoderno, sincronizado com seu próprio tempo. Estaria então definido o lugardas idéias ilustradas - alavancas destinadas a situar a sociedade lusa nomesmo nível das "nações mais polidas e civilizadas da Europa".

No entanto, tal explicação não nos satisfaz, pois continuamos aindagar: "Por quê?" Bem, respostas não têm faltado: influência das idéias epropostas dos "estrangeirados"; pantomima a esconder uma gigantescamanipulação destinada a promover o fortalecimento do Estado monárquico;vontade de poder associada aos caprichos pessoais de um ministro hábil edecidido. Além dessas respostas algo simplistas, podemos arrolar aindaalgumas outras bem mais sofisticadas: as reformas como exigênciaresultante de princípios ou "forças" mais ou menos abstratos: "progresso","modernização", "racionalidade", etc.; as reformas como uma forma deenfrentar/acomodar as pressões crescentes dos segmentos sociais não-privilegiados nos moldes do Ancien Régime, a fim de evitar que se pusesseem risco o mais importante - a sobrevivência da sociedade aristocrática; asreformas como simples conjunto de respostas ou medidas "pragmáticas" adiversos tipos de problemas, enfrentando-se as dificuldades à medida queelas iam surgindo no horizonte político do Estado absolutista.

Num estudo recente, deparamo-nos com a utilização da noção de"crise" como ponto de partida para a explicação/compreensão das reformasdo período?". Estas últimas teriam constituído então o conjunto das reaçõestomadas pelo aparelho de Estado para sua própria conservação em funçãoda nova e sombria realidade produzida pela crise, particularmente para fazerface ao declínio acentuado dos seus rendimentos fiscais. Para atingir seusobjetivos, o Estado teria levado a cabo uma completa "clarificação" e"reestruturação" tanto do seu aparelho como da sociedade como um todo. Aidéia de "Crise" é fundamental em tal esquema explicativo. Como criseentende-se a verdadeira mutação imposta, em meados do séc. XVIII, aoEstado e à sociedade estruturados em função do "exterior" - os rendimentosda exploração colonial e mercantil. O declínio de tais fontes de recursos, emconexão, aliás, com a enfeudação a Inglaterra, teria forçado o Estadoportuguês a voltar-se sobre si mesmo (leia-se aí, o Reino), devendo entãobuscar na própria metrópole a compensação para aquela parcela cada veZ

40 OLIVEIRA, op. cit., passim.

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aior de rendimentos que já não mais afluíam do "exterior" (leia-se: Brasil).~ra, esse voltar-se para dentro, para o interior da metrópole, exigiu uma"reordenação" completa e profunda de estruturas, mecanismos einstituições, tornados agora (ou reconhecidos como) arcaicos por força dasnovas exigências de uma máquina estatal à míngua de rendimentos e àsvoltas, ironicamente, com toda uma verdadeira multidão de privilégios,isenções, fraudes, descaminhos, além da obrigação de atender aopagamento de tenças e ordenados a um corpo hipertrofiado de oficiais efuncionários da Coroa.

À luz de tal teoria, deveríamos explicar as práticas reformistas doperíodo pombalino como aquele conjunto de medidas impostas ao Estadocomo imprescindíveis e inadiáveis para a manutenção desse mesmoEstado. Sua marca comum seria assim o sentido de "interiorização"enquanto forma de sobrevivência. Ora, a primeira condição para suarealização efetiva era proceder-se à remoção dos obstáculos que impediam,ainda, a plena utilização pelo Estado das potencial idades metropolitanas. Asegunda condição seria a racionalização e redução dos gastos do Estadocom seu próprio aparelho.

Note-se, por conseguinte, que, nessa formulação, atenua-se emmuito a importância da perspectiva "ilustrada", instrumentalizando-seclaramente todo o seu conteúdo político-jurídico e cultural-ideológico. Emsuma, relativiza-se tremendamente a preeminência das idéias em favor daeficácia das práticas referidas por sua vez a determinações políticas efiscais de natureza estrutural.

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