biblos-21()2007-leitura na idade media- a ruptura com a oralidade

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  • LEITURA NA IDADE MDIA: A RUPTURA COM A ORALIDADE*

    CLAUDIO OMAR IAHNKE NUNES**

    Ao longo da histria h duas prticas sociais da leitura predominantes. A primeira a leitura em voz alta, seja aquela realizada individualmente para fruio do prprio leitor, seja aquela realizada por um leitor e direcionada para a fruio de outrem. Esse outrem pode tanto ser apenas um ouvinte quanto uma platia de ouvintes. Em tempos mais remotos, era mais freqente que a leitura em voz alta tivesse como receptores uma platia de ouvintes, dentre razes, pelo fato de que pequeno era o contingente de pessoas letradas. Contemporaneamente, quando ainda se pratica a leitura em voz alta, em geral, tem-se apenas um indivduo como receptor. verdade que em situaes de ensino-aprendizagem h platias, mas a a leitura encontra-se num contexto substancialmente distinto daquele que objeto das reflexes que originaram este texto.

    O que se pretende neste texto exercitar uma discusso sobre a substituio de uma prtica social, a leitura em voz alta, por outra, a leitura silenciosa. Trata-se de uma premissa que declara que cada uma dessas prticas foi hegemnica em momentos histricos bem demarcados. Por conseguinte, assume-se que, com o exame de alguns aspectos marcantes em cada um deles, seja possvel evidenciar os fatores que contriburam para a preponderncia da leitura silenciosa. Antecipa-se que este fato contemporneo tem na Idade Mdia seu momento de clivagem.

    Para melhor compreenso da reflexo proposta, til que se enfatize a distino entre leitura como prtica social e leitura como tcnica. Sob o ponto de vista tcnico, o que se faz o exame da leitura como percepo e decodificao de signos, com o uso da viso ou do tato, inscritos sobre um determinado suporte. Nesse caso, para o que

    * Texto elaborado com base na comunicao apresentada no I Congresso Internacional de Estudos Histricos, em Rio Grande, em novembro de 2006.** Professor do Dep. de Biblioteconomia e Histria FURG; Doutor em Cincias da Comunicao.

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  • interessa neste texto, no h maiores implicaes decorrentes do fato de que a leitura seja feita silenciosamente ou em voz alta.

    J o exame da leitura como prtica social apresenta implicaes mais complexas decorrentes do modo como realizada se em voz alta ou se em silncio. Sob a perspectiva histrico-social, o conceito de prtica social parte do processo mais abrangente de produo, reproduo e, de tempos em tempos, de transformao, das condies materiais e ideais prprias de uma dada sociedade e que afetam as estruturas econmicas, polticas e sociais dessa mesma sociedade. no mbito destas estruturas que so forjadas as relaes sociais que possibilitam a existncia dos indivduos em sociedade1. Acrescente-se que, para que tais estruturas funcionem eficazmente, mister que o imaginrio compartilhado pelos indivduos que integram uma dada sociedade seja convenientemente legitimado pelos mecanismos intrnsecos ao processo mencionado.

    Dentre tais mecanismos, desde os primrdios da civilizao, sobressaem a famlia, a religio e o Estado em especial no Ocidente, que a configurao histrica a que se referem mais precisamente as reflexes deste texto. No por acaso, os dois ltimos mecanismos mencionados confundem sua prpria formao e evoluo com a inveno da escrita e, por decorrncia, com a prtica social da leitura.

    Na Mesopotmia, no Vale do Nilo, no Crescente Frtil e na Bacia do Mediterrneo, as sociedades antigas inventaram sistemas de escrita em resposta complexificao das atividades econmicas, do processo poltico e dos cultos religiosos, o que tornou progressivamente obsoleto o processo anterior de transmisso do conhecimento pela tradio oral. Com variaes complexas demais para serem discutidas num texto sucinto como este, todas aquelas sociedades atriburam a guarda da nova tcnica a um grupo restrito de iniciados, em geral, religiosos. Isso se explica pelo carter mgico ou divino atribudo escrita e ao fato de que as manifestaes religiosas confundiam-se com o poder poltico ou estavam a servio dele.

    O carter inicitico da escrita imps desde logo uma diviso: quem dominava a tcnica da escrita em geral tambm dominava a tcnica da leitura. Mas o inverso nem sempre ocorria. No era incomum que reis, magistrados, prncipes, generais e altos expoentes das hierarquias religiosas soubessem ler mas no soubessem escrever. Ou que soubessem escrever somente o bsico. Afinal, seu papel social era 1 MAZZEU, Francisco Jos Carvalho. Uma proposta metodolgica para a formao continuada de professores na perspectiva histrico-social. Cadernos CEDES, Campinas, v. 19, n. 44. Disponvel em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32621998000100006. Acesso em: 15 ago. 2006.

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  • o de exercer o poder poltico, militar e religioso que, no raro, misturavam-se. J o papel social de escrever2 textos numa tableta de argila, numa folha de papiro, numa estela ou num rolo de papiro, era do escriba. Essa diviso social do trabalho, milenar, arraigou-se no imaginrio social e, mais, legitimou-se como prtica social, estendendo-se pelos sculos que se sucederam derrocada das civilizaes antigas, alcanando a Idade Mdia.

    Pode-se especular que a civilizao grega tenha experimentado uma tnue transformao nessa prtica. Por que tnue? Dentre outras razes, porque seus filsofos, matemticos, poetas, dramaturgos e outros sbios, que tambm eram cidados, podiam contar com os prstimos de discpulos annimos e no esqueamos! de escravos, no raro hbeis em alguma arte. Por que no a da escrita? Ademais, a atividade intelectual nas academias gregas aponta precisamente para esse trao distintivo: um mestre, luminar, rodeado de discpulos sequiosos pelos prazeres do dilogo. Talvez o caso mais exemplar seja o de Scrates, cujos escritos chegaram a ns por terem sido compilados precisamente por seus discpulos.

    Figura 1 Cena de uma academia grega3

    Permita o leitor a liberalidade a este escriba, para que queime etapas em suas consideraes preliminares, de modo a que seja possvel examinar com alguma pertinncia o foco motivador desta reflexo: a ruptura da hegemonia da leitura em voz alta. Estabelecida a hegemonia dessa modalidade de leitura na Antigidade, a civilizao 2 Preciosismo parte, talvez fosse raro que o escriba, um artfice, escrevesse textos. Haja vista que lhe era vedado conceber ou interpretar textos, no seria mais apropriado dizer-se que os inscrevia?3 Reproduo de parte da pintura de Rafael na Capela Sistina, baixada da pgina http://www.success.co.il/is/conceptions.html. Acesso em: 25 nov. 2006.

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  • romana fez algumas tentativas que poderiam ter produzido uma ruptura. Duas dessas iniciativas merecem destaque: a primeira, a instituio das escolas para meninos, ainda que fossem comumente, na confluncia das ruas, in triviis, ao ar livre. E a cena mais trivial, dela, era o aoite tangendo as costas do menino4. Sem entrarmos no mrito das relevantes questes pedaggicas inerentes a esse fato, destaquemos que os meninos recebiam ensinamentos de escrita e leitura. Por conseguinte, praticavam a leitura em voz alta e adquiriam tambm o preparo tcnico para faz-lo silenciosamente.

    Figura 2 Cena escolar na Roma Antiga (mosaico em Trier)5

    de se supor que os traos laicos do Estado romano tenham atuado como estimuladores de tais prticas, porm sem fora suficiente para provocar uma ruptura com a modalidade socialmente legitimada da leitura em voz alta. Por qu? Dentre outras razes, porque somente os filhos das famlias ricas eram beneficiados com o ensino. Outros traos do prprio Estado e das estruturas econmicas e sociais daquela sociedade, como a escravido, atuavam em sentido contrrio, impedindo que transformaes mais profundas se concretizassem.

    4 TEIXEIRA, J. Melo; CAMPOS, M. Mendes. Aspectos fundamentais da Educao. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937. p. 292.5 Disponvel em: www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/ensinoroma/index.htm. Acesso em 15 maio 2006.

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  • A segunda iniciativa da civilizao romana que poderia ter afetado a hegemonia da leitura em voz alta foi a criao do primeiro sistema de bibliotecas pblicas, implantado pelo mecenas, gramtico, historiador e orador Caio Asnio Polio, que viveu entre 76 a.C. e 5 d.C. Polio tambm foi protetor de dois personagens que o superaram em prestgio e glria: Virglio e Horcio. verdade que a primeira biblioteca pblica fora criada em Atenas, cinco sculos antes, por Psstrato, porm, tambm fato que essa fora uma iniciativa isolada, sem o carter do feito de Polio, executado em cumprimento aos planos de Jlio Csar, vale dizer, de uma poltica de Estado6. Ainda que tenha sido assim, a criao de vinte e oito bibliotecas pblicas em Roma no foi suficiente para romper a hegemonia da leitura em voz alta mas tambm no constitui um despropsito supor que, no ambiente das bibliotecas recm-criadas, seus leitores tambm praticassem a leitura silenciosa.

    A ruptura daquela hegemonia ainda teria que esperar que outros fatores objetivos se materializassem no curso das transformaes histricas que adviriam aps a derrocada do Imprio Romano. O fator mais poderoso que poderia impulsionar uma ruptura, o contingente de pessoas letradas7, que sofrera mdicos acrscimos durante a hegemonia greco-romana, refluiu ao longo de toda a Idade Mdia. Esse fenmeno est relacionado ascenso da Igreja Catlica ao centro do poder no mosaico em que se transformou a Europa, exercendo sua influncia e poder na vida espiritual e material, pela imposio de dogmas cada vez mais restritivos e emprego de mtodos repressivos e cruis, o que afetou drasticamente a prtica social da leitura. Essa prtica s era permitida e estimulada quando a servio da f. Qualquer desvio ou suspeita de desvio era severamente punido. Esse controle mais rigoroso produziu conseqncias, dentre as quais sobressai o reforo da prtica social da leitura em voz alta, com o que se assegurava que o leitor no se entregasse a interpretaes ou devaneios pecaminosos.

    Mas, alm desse aspecto de controle, que pode ser e questionado, h fatores mais objetivos, como, por exemplo, a escassez de livros, limitao que impunha a leitura em voz alta. Outro fator objetivo era o latim ou o grego da maioria dos cdices medievais, em oposio lngua verncula falada pelos aprendizes leitores.

    Tais situaes restritivas manifestavam-se em todas as esferas: na famlia, nas igrejas, nos conventos e nas poucas escolas em que 6 CUNHA, Vanda Anglica da. Profissional da biblioteca pblica contempornea: o profissional e a demanda por educao continuada. Salvador: UFBA, 2002. p. 33-34.7 Sucintamente, letrado aplica-se a quem, alm de saber ler e escrever (alfabetizado), adquiriu uma competncia lingstica culta, erudita, literria.

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  • meninos e, em nmero menor, meninas, filhos da nobreza, tinham acesso a dez anos de estudos8, preparatrios ao ingresso nas universidades. Um contingente ainda mais reduzido de crianas enjeitadas ou filhos da plebe encontrava abrigo em alguns conventos, onde religiosos lhes proporcionavam semelhante programa de estudos. Resumindo, ao longo da Idade Mdia a prtica da leitura em voz alta no apenas manteve sua hegemonia, por decorrncia de fatores objetivos, mas tambm foi reforada por fatores conjunturais, relacionados ascenso da Igreja Catlica.

    Figura 3 Aula numa universidade medieval iluminura do sculo XIII9

    No contexto do esgotamento do mundo medieval, a inveno da tipografia, em 1455, um evento emblemtico, de clivagem entre dois tempos. A fabricao de livros em srie gera duas conseqncias praticamente imediatas: acaba com a restrio representada pela 8 Trivium: Gramtica, Retrica e Lgica; Quadrivium: Aritmtica, Geometria, Msica e Astronomia.9 Disponvel em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Universidade_medieval. Acesso em 15 abr. 2007.

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  • pequena quantidade de livros disponveis para as atividades de ensino, cultivo do esprito, divulgao de conhecimentos e fruio, e demanda a formao de um mercado consumidor. O que at ento era um crculo vicioso, transforma-se no intervalo inferior a meia centria num poderoso crculo virtuoso. Examinado esse fato no contexto de esgotamento do modo de produo medieval e de seu sistema poltico, seu impacto ampliado exponencialmente, afetando outros processos histricos. Por exemplo, o Renascimento deve tipografia a rpida impresso dos clssicos greco-latinos e retribuiu-lhe com lucros que a transformaram num negcio mercantil10. O ciclo de descobertas ultramarinas, a expanso urbana, a Reforma Protestante e tantos outros eventos ou processos que marcaram a passagem da Idade Mdia para os tempos modernos esto estreitamente vinculados inveno da tipografia.

    O impacto da tipografia afetou, como no poderia ser diferente, a prtica social da leitura. Finalmente, a leitura em voz alta comearia a perder sua hegemonia para a leitura silenciosa. Mas, como em outras rupturas sociais, econmicas ou polticas, esta tambm no foi assim to abrupta como pode sugerir a inveno da tipografia, quando examinada isoladamente.

    Recuando mais de um sculo, por exemplo, vamos encontrar nas Confisses11 de Santo Agostinho (doutor da Igreja Catlica e filsofo que viveu entre 354 e 430) uma referncia ao modo como o bispo de Milo, Ambrsio, praticava a leitura. Santo Agostinho observou que Ambrsio no lia (decifrava) as letras em voz alta, mas que o fazia silenciosamente, como se fosse feita com o esprito e no com os olhos e o movimento dos lbios. Ficou to vivamente impressionado no apenas por ver uma pessoa ler em silncio, o que era incomum na poca, mas tambm porque lhe pareceu que Ambrsio havia silenciosamente descoberto, com aquela prtica inusitada de leitura, o esprito e a letra como analogia do eu interior e do eu exterior.

    O estranhamento de Santo Agostinho, progressivamente, transmutou-se em comportamento comum, evidenciado nos ambientes mais diversos e inusitados, quando se observa o comportamento dos leitores contemporneos. Nas bibliotecas, nos nibus e metrs das grandes cidades, nos bancos das praas, em todos os lugares, os leitores percorrem os textos com o olhar, sem movimentar os lbios. Em seu livro 10 Os cerca de 20 milhes livros impressos at o ltimo dia do ltimo ano do sculo XV so denominados incunbulos, sendo que, devido presso da demanda, grande parte deles foi distribuda sem encadernao. Esse acabamento continuou durante algum tempo como uma arte independente da tipografia, o mesmo tendo ocorrido com as iluminuras,1 1 NEIVA, Eduardo. Vontade e contrato social em Santo Agostinho. Alceu, v. 6, n. 12, p. 206. Disponvel em www.beatrix.pro.br/educacao/ agostinho .htm . Acesso em 15 abr. 2006.

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  • Uma histria da leitura, Alberto Manguel sugere que, se Santo Agostinho retornasse Milo contempornea, com certeza se depararia com esse leitor tpico num caf em frente Igreja de Santo Ambrsio, (...) lendo talvez as Confisses de Santo Agostinho12. Quais os traos distintivos desse comportamento? A introspeco, a indiferena ao que se passa sua volta, mesmo que seja o burburinho. Alis, indiferena esta que encontra correspondncia nos transeuntes, nos outros freqentadores dos cafs, nos demais passageiros de nibus e metrs. Como pde se produzir esse padro de comportamento? Como pde se impor a hegemonia dessa prtica de leitura em to curto intervalo de tempo?

    Recorrendo outra vez a Manguel, ele esclarece em sua obra que a exigncia de silncio mencionada pela primeira vez em ordenaes monsticas no sculo IX, com a finalidade de assegurar fidelidade e correo ao delicado e meticuloso trabalho dos copistas nos scriptoria medievais. Tais ordenaes no mereceram aplauso unnime, haja vista que, at ento, a cpia dos textos era um trabalho de equipe. Um copista lia o texto em voz alta, outro fazia a transcrio caligrfica. Por que era assim? Por causa da forma do pergaminho, em rolo. No era prtico nem produtivo que um mesmo copista desenrolasse um pergaminho, lesse-o silenciosamente e o reproduzisse num segundo pergaminho, que tambm precisava ser desenrolado. Por evidente, o ambiente do scriptorium de fato uma oficina no era silencioso. Como de praxe, quando foram editadas as ordenaes exigindo silncio, houve resistncias e no baseadas apenas em argumentos de natureza prtica. Ao contrrio, alguns monges mais dogmticos resistiam a observar silncio porque suspeitavam que a leitura feita assim propiciasse a que os copistas sonhassem acordados, o que configurava o perigo de que sucumbissem moleza, ao sono, o que, alis, no era incomum por volta do meio-dia. Com certeza, o rigor do regime monstico exigia dos copistas que acordassem muito cedo, em razo do que seu organismo, quela hora, j apresentava cansao. Era mais provvel que os copistas sucumbissem a esse cansao se executassem seu trabalho em silncio do que se o fizessem lendo em voz alta. Como se v, resistncias motivadas por razes de ordem prtica.

    E o que a Idade Mdia providenciaria como soluo a esse inusitado e singelo problema? Um avano tcnico, prosaico se avaliado pelo olhar contemporneo, mas revolucionrio para a poca: a substituio do rolo de pergaminho pelo cdice. Surge assim a forma do livro moderno, alis, preparando o caminho para a inveno da prpria

    12 MANGUEL, Alberto. Uma histria da leitura. So Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 58-59.

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  • tipografia. Esse formado, que consumiu vrios sculos para impor-se definitivamente sobre o rolo de pergaminho, permitia que um mesmo copista realizasse as duas tarefas, a da leitura do texto original e a da reproduo caligrfica daquele texto num novo cdice. Pronto, dera-se um passo gigantesco que contribuiria para transformar os scriptoria dos mosteiros em fbricas de livros, no prottipo das tipografias quatrocentistas e das modernas editoras. E isso ocorreu em decorrncia de duas inovaes, uma comportamental a exigncia de silncio , e outra de reorganizao (hoje se diria reengenharia) social do trabalho atribuindo-se a uma mesma pessoa a execuo de duas tarefas at ento distintas.

    Essa mudana no ficou circunscrita somente ao mundo do trabalho, mas alcanou a esfera ideolgica e, principalmente, teolgica. Ocorre que a leitura em silncio, se que representou maior produtividade, tambm fato que ensejou um perigo para quem detinha o controle do poder eclesistico e poltico. O exerccio desse poder estava estreitamente vinculado circulao das idias, dos dogmas. A reproduo dos livros pelo mtodo da leitura em voz alta propiciava mais do que o pronto esclarecimento de dvidas inevitveis, haja vista problemas de traduo e de interpretao. Alm dessas dvidas, que agora quedavam sob o arbtrio de uma nica conscincia, acrescia-se o perigo da livre interpretao dos copistas, liberados que foram do controle de um interlocutor. Destravou-se assim, pela mudana de uma prtica social, um poderoso mecanismo de controle poltico, o que produziria conseqncias devastadoras para a Igreja Catlica, para o modo de produo e para a organizao poltica medievais, como evidenciam os acontecimentos dos sculos XV e XVI.

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  • Figura 4 Copista realizando seu trabalho, num scriptorium medieval13

    J foi mencionado neste texto o carter emblemtico da inveno da tipografia, pela sua relao com a ascenso da leitura em silncio como prtica hegemnica e socialmente legitimada. Esse carter mais acentuado se considerar-se que Gutenberg inicia seu projeto de impresso da Bblia em 1450 e s o conclui, falido, em 1455. Ora, nesse intervalo de tempo que se convencionou demarcar o fim da Idade Mdia e o incio da Idade Moderna, elegendo como evento demarcador a tomada de Constantinopla pelos otomanos, em 1453. conjuno desses fatos histricos, que no apresentam relao de causa e efeito entre si, certo, vem somar-se a construo de um novo homem, em que se salienta o trao da individualidade. Esse aspecto singular, contudo, guarda relao com o comportamento de leitura que foi tomando forma, progressivamente, nos sculos anteriores e que converge, refora e se acentua com a inveno da tipografia.

    Daquele momento histrico em diante, nos sculos seguintes at a contemporaneidade, constata-se que a prtica social da leitura segue via silenciosa, ampliando exponencialmente o contingente de leitores, alfabetizados e letrados, cada vez mais individualistas e solitrios. A prtica social da leitura em voz alta passou a segundo plano, reservada para finalidades de carter mais utilitrio, como, por exemplo, no processo ensino-aprendizagem, na mdia e nas manifestaes ldicas e 13 Disponvel em http://es.wikipedia.org/wiki/Scriptorium#Edad_Media.23El_scriptorium. Acesso em 15 abr. 2006.

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  • artsticas. Na esteira dessa ruptura, a prpria tipografia transmutou-se numa indstria poderosa, de molde capitalista, contribuindo decisivamente para inmeras inovaes tcnicas que se sucederam nos ltimos cinco sculos, assim como para a acumulao de capitais que esto na origem da indstria miditica contempornea. Mas isto assunto para reflexes posteriores.

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