zzzumbido · seu primeiro livro solo foi desamores e outras ternurinhas e o segundo, estranhas...

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zzzumbido EDIÇÃO #01 E veraldo Gomes de Oliveira C laudio Parreira C arolina Mancini J unior Cazeri

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z z z umb i d o

z z z u m b i d oE D I Ç Ã O # 0 1

E v e r a l d o G o m e s d e O l i v e i r a C l a u d i o P a r r e i r a C a r o l i n a M a n c i n i J u n i o r C a z e r i

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Í n d i c e

03 ZunindoOs editores

05 Bonitos, atéJunior Cazeri

06 TorturaEveraldo Gomes de Oliveira

08 Entrevista de SeleçãoClaudio Parreira

10 DetalhesCarolina Mancini

14 Marcinha BotafogoJunior Cazeri

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Z U N I N D Oos editores

Desprendimento, transtorno, absurdo, melancolia, revolta. As palavras gritam, impressas em tinta ou pixels, gritam. São pacientes, sabem o momento

de manifestar o que possuem de mais forte. Surpreendem, Cativam.

Zunem.

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Junior CazeriEditor

É profissional de Recursos Humanos e coordenador de serviços de TI. Editou

diversos blogs de literatura, entre eles o Café de Ontem e a revista 1000 Universos,

além de uma dezena de fanzines no final da década de 1990. Já publicou

contos em sites voltados para a literatura de horror, na revista Subversa e no site

Quotidianos, organizado por Rober Pinheiro, a quem esta edição é dedicada.

Facebook: Junior Cazeri

Tânia SouzaEditora

Natural de Mato Grosso do Sul, é educadora, escritora, cronista e poetisa.

Já publicou em diversas antologias, entre elas À Sombra do Corvo - Poesias Sombrias, Histórias Fantásticas - Vol 1, Cursed City - Onde as Almas Não Têm Valor, Olympus - Histórias da Mitologia, Crônicas da Fantasia e Quando o Saci Encontra os Mestres do Terror além de

contribuir em diversos blogs de literatura e ter participado do site Quotidianos.

Seu primeiro livro solo foi DESAMORES E OUTRAS TERNURINHAS e o segundo,

ESTRANHAS DELICADEZAS, está no prelo para lançamento.

Facebook: Tânia Souza

Everaldo Gomes de OliveiraConvidado

Nascido em São Pedro, estado de São Paulo. É formado Bacharel em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul na

cidade de Campinas. Casado e pai de família. Apaixonado pela leitura e escrita, viciado em tecnologia e militarismo. É

baterista desde o ano de 1997, além de leitor de quadrinhos, filosofia, história e, agora, ficção científicai. Já publicou um de

seus contos no site Café de Ontem e continua escrevendo.

Facebook: Everaldo Gomes de Oliveira

Carolina ManciniConvidada

Carolina adotou o sobrenome Mancini em homenagem à avó com quem passava grande parte de seus dias durante a

infância. Apaixonada pela arte, é professora formada em Teatro, ilustradora e escritora. Tem textos publicados em antologias de contos e poesias, e seus desenhos podem ser vistos em capas e

internas de livros de fantasia e infanto-juvenil.

Participou por três anos com artes e histórias quinzenais para o site Quotidianos e escreveu a história juvenil O Mirante do

Tempo, para o folhetim do Jornal de Brusque.

Autora do romance de literatura fantástica “Dias de Chuva” – Editora Estronho – 2016, pretende lançar seu segundo livro, “Nihil” ainda em 2017. Além de trabalhar em futuras obras

no campo da fantasia, publica contos gratuitos em seu perfil CarolinaMancini6 na plataforma WattPad.

Para saber mais sobre seus livros e onde encontrar, acesse: carolinamancini.blogspot.com.br

Claudio ParreiraConvidado

Claudio Parreira é escritor. Tem contos publicados nas revistas eletrônicas Cronópios, Germina, Escritoras Suicidas, Diversos Afins, Flaubert, Le Monde Diplomatique, [LIMBO], Revista Gueto, Jornal Opção, TriploV e

InComunidade (Portugal), entre outras. Foi colaborador da Revista Bundas e do jornal O Pasquim 21. Participou das coletâneas CONTOS DE ALGIBEIRA, FIAT VOLUNTAS TUA, DIMENSÕES.BR, PORTAL 2001, A FANTÁSTICA

LITERATURA QUEER, FRAGMENTOS DO INFERNO e também LINHAGEM MONTESSALES – RETRATOS DA INQUISIÇÃO.

Recebeu Menção de Honra para o conto O Jardim de Esperanças (Der Garten Der Hoffnungen), da Revista de Assuntos Latino-Americanos XICOATL, Áustria, em 1996.

Foi o ganhador do 1º Concurso de Contos da Revista Piauí, em março de 2007 e, no ano seguinte, integrante do folhetim despropositado A Velha Debaixo da Cama, da mesma revista.

É autor, pela Editora Draco, do romance GABRIEL e também da coletânea de contos DELIRIUM, pela Editora Penalux.

email: [email protected] - twitter: @ClaudioParreira - facebook: Claudio Parreira

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B O N I T O S , AT É

por Junior Cazeri

Ouço seus lábios, o superior magrinho e o inferior bojudo, lábios que dançam valsa bruta ensaiada no escuro, entre o calor da língua e a indiferença do mundo. Úmidos, os lábios, bonitos, até. Refletem meus olhos na curva entre nascente e poente da boca. Falam, falam e falam. Desencontram-se de mãos dadas. Um sobre, outro sob. Aquele indo, este vindo. Dizem o não dizer em close de filme dublado, pássaros sem asas agitados no chão de pele morena. Eu ouço, ouço e ouço. Creio ouvir desde sempre e para sempre as palavras que nascem além da garganta, às minhas costas, ao redor, suspensas, perdidas. Meus ouvidos tentam resgatá-las. Como se esforçam! Mas, o naufrágio é absoluto, águas antigas borbulham entre elas, afogam as sílabas, arrastam-nas para a solidez do nada.

Serpente mítica, os lábios, ouroboro hipnótico. Jaula acolchoada na claustrofobia de formas emergentes. Vendaval nas vogais abertas, brisa nas fechadas. E ainda falam, falam e falam. Ampulheta horizontal modulando a eternidade. Os dizeres me sopram para longe, longe, longe. As velas da razão estufadas, a imensidão da boca por todos os lados, acima e abaixo, massa contínua de pulsação, tão próxima que eu poderia tocar. Sim, tocar. Fundir-

me, ainda que brevemente, aos tremores respiratórios. Brindar com a saliva, descansar em reentrâncias e relevos. Talvez, tudo é possível, colher um punhado dele para carregar no bolso feito concha e levar ao ouvido para escutar a lembrança do tagarelar longínquo.

Efêmero, contudo, o feitiço labial. Rompe-se quando o brilho metálico atinge a periferia do olho. Uma faísca e pronto, a magia morta, devolvida à catacumba. O rebolado das formas já se mostra vulgar, gelatinoso. A névoa fina cobrindo a superfície encolhe em poças babosas. Enquanto fala, fala e fala, derruba chuva de perdigotos. Grudam as partes antes tão bem separadas em uma só massa e esticam, esticam, esticam, tal sapato derretido no asfalto. E enquanto a luz sobe em arco no limite da visão, os últimos véus evaporam. É sal tingido de mel, leite na lama, cama gelada.

E ouço. Agora eu ouço. A voz entra em foco, nascida pronta e rouca. O brilho aterrissa diante de mim e se torna escuridão profunda.

- E agora, você morre.Vejo a saída do cano, um círculo

perfeito, boca noturna estagnada no ar, entre o calor da mão e a indiferença do olhar. Fria, a boca, bonita, até.

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T O R T U R Apor Everaldo Gomes de Oliveira

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Quem receberá minhas mensagens mediúnicas? Claro, é uma bobagem. Não creio nisso, de todo o meu coração e mente, não creio nisso. Estou brincando. Não que eu tenha medo de ser pego por causa dessas idiotices, mas é melhor deixar pra lá, afinal hoje em dia não se pode confiar em ninguém, não é mesmo? Olha, sei que você deve estar pensando mal de mim, mas você não me conhece direito ainda, descubra mais sobre mim e logo saberá que nada mais sou do que um bobo. Fui torturado uma vez. Mas, parece que não tomo jeito mesmo. He he he. Tenho medo dos olhares agora, sabe. Depois de um tempo os olhares se tornam ameaças advindas de... de Deus! Ele olha, sim está me olhando nesse exato momento está ordenando que algum dos seus malditos anjos volte e me torture de novo. Você não tem ideia, não tem ideia de como dói. Não creio, cara. Esse papo de mediunidade é furado demais. Só disse como uma brincadeira, nada mais. Olha. Olha. Eu me viro aqui na terra como um cão. Depois de ser levado, ninguém mais me respeita, sou como um bicho. E só porque eu falo besteiras. Quem acredita nas coisas que saem da minha boca? Nem mesmo eu acredito, mas tem alguém que implica com o que falo a ponto de me dar umas pancadas. He he. Vi a escuridão e não era quem eu pensava que

era. Pensei que era a morte. Que eu já era e tudo, mas depois veio uma luz que quase acaba com os meus olhos. Depois, senti pela primeira vez o gosto de sangue. Quase afoguei em meu próprio sangue. Engoli muito. Mediunidade não é nada. Você sabe – né? O quê? Não fui diagnosticado com nada. Estou bem, muito bem até. Já faz muito tempo que não pego um resfriado, e nem tenho dor no estômago. Bem, quer dizer, tenho. Também, depois do que aconteceu comigo. Nasci em... Tenho trinta e cinco e uns poucos meses. Gosto de colocar os meses também. Sou sistemático, prefiro explicar as coisas bem explicadinhas. E não sou daqui não, vim de outro lugar, mas não me arrependo, as pessoas são gente boa, eu que de vez em quando começo a falar demais, então, vem a confusão, e não sei por quê me pegam dão-me uma sova e me largam numa rua qualquer, num local que nunca vi na vida. Mas, sempre volto. Mas os olhares... Seja discreto agora. Estão vigiando, sim, espiando a nós dois. Preciso falar baixinho. Você fale baixo! Ssshhh. Vamos um pouco para lá, debaixo daquela árvore, ficamos alguns minutos e depois iremos para aquela outra árvore. Não se pode ficar parado, movimente-se e continuará bem, fica na sua, aja naturalmente e de vez em quando sorria, mas não mostre

que está sorrindo por estar nervoso. Ah que isso, você vai conseguir. Qualquer um que seja uma pessoa cuidadosa... Não, ou desconfiada, nem mesmo paranoica. Se bem que tenho sempre uma impressão de que as coisas horríveis que acontecem no mundo vem do céu. Você quer ir para lá? Tem certeza? Estou te avisando. Não me venha com essa de que a solução das coisas vem de dentro de nós, e que é preciso ser um bom homem. Eu sou um homem bom. Não se espante, estou preparado, vivo em tortura. Ah, minha cabeça! A mediunidade não diz nada sobre ser um líquido em forma de gente que escoa nessas ruas imundas, mas a culpa eu sei de quem é. Sim é dele. Não se afaste agora. Fique aqui, rapaz! Não fuja como um cão. Sou fustigado todos os dias e mesmo assim suporto a minha dor que é a também a sua, seu covarde. Mas, venha, te mostrarei uma forma de salvação que é além de todo blá blá blá sobrenatural. Terá que ir embora sim, você vai embora, de um jeito tão tranquilo que nem perceberá. Agora calma... calma... assim... Minhas mãos vão te levar a um paraíso bem melhor do que dizem por aí. Eu sinto tudo o que tem passado, o que tem escondido, eu sei de tudo. Sou mediúnico! Seus olhos foscos enxergam o quanto tenho paz por hoje.

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E N T R E V I S TA D E S E L E Ç Ã O

por Claudio Parreira

O procedimento é bem simples: assim que o novo chefe assume, o presidente da empresa estoura a sua cabeça com um tiro de carabina. Isso é bom: regras claras facilitam muito o trabalho, os funcionários se sentem valorizados e sempre há alguém disposto a assumir a chefia.

Eu sou um deles. Faz anos que venho me preparando para o processo de seleção. Por um motivo ou outro, no entanto, alguém sempre passa na minha frente. São mais capacitados, só pode ser isso. Eu ainda tenho muito a aprender; o grau de excelência do trabalho que executo ainda não alcançou os

inimagináveis, e um extra é sempre bem-vindo. Ele nunca me pediu nada, graças a Deus. Isso prova que é mesmo um bom homem.

Tão bom que finalmente percebeu que, por alguma razão que agora me escapa, preencho todos os requisitos necessários para ocupar a chefia mais importante da empresa. Estou muito orgulhoso, confesso, e saber que a nova chefia representa o fim dos meus dias não me intimida: é o reconhecimento por tantos anos de dedicação e fidelidade.

Nos corredores de mármore todos me cumprimentam e choram ao

padrões exigidos pela empresa. O presidente é um homem

refinado, gentil, extremamente humilde. Uma parte significativa dos seus funcionários confia nele tanto quanto no papa, a ponto até de mandarem rezar missas e pedir bênçãos quando ele adquire algum resfriado ou sua bunda coça. Eu também sou dedicado, quase um devoto. Quando recebo o meu salário agradeço três vezes pela oportunidade, elogio a sua gentileza e me coloco sempre à disposição caso ele precise de um empréstimo. Homens da estatura do presidente têm despesas

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costas. Um grupo de funcionários se formou do lado de fora da sala, como sempre acontece nessas ocasiões. Todo chefe novo desperta esse sentimento nas pessoas, e isso é bem natural.

— Você conseguiu, enfim — disse o presidente.

— Consegui. Consegui?— Sim — ele disse e tirou a famosa

carabina de um armário. — Eu consegui, senhor. Fico muito

contente.— Sabe o que é isso, não é?— É o processo de seleção —

afirmei.O presidente apontou a carabina

para minha cabeça e ficou com ela parada lá por um bom tempo. Em seguida, abaixou a arma e a colocou nas minhas mãos.

— Você sabe o que fazer — disse.— Sim — concordei. O som do tiro causou euforia

nos funcionários que aguardavam do lado de fora. São todos fieis e sabem que a base que sustenta toda a engrenagem é a lisura do processo de seleção.

mesmo tempo. Uma bobagem: todos sabem como a engrenagem funciona. Não sou um ingênuo e eles também não.

— Quando você assume?— Assim que o homem me

chamar. Ouvi gente do RH ligando para

as funerárias, fazendo cotação de preços, agendando a missa de 7º dia. Por isso gosto da empresa: tudo aqui é tratado como negócio, de maneira correta e transparente.

No tão esperado dia, fui recebido pelo presidente da empresa com os tradicionais sorrisos e tapinhas nas

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D E TA L H E Spor Carolina Mancini

O ranger repetitivo nas madeiras velhas deixou escapar o vento zumbindo. Rangeu em seguida a porta, no andar de baixo, de modo devagar. Até o “click” do trinco girando ao entrar na fechadura ressoou na casa. Quem inspirou? Seria ela ou ele? Provavelmente ela. O outro respirava rápido soprando o frio para fora dos pulmões. Quatro passos de sapatos novos, uma aproximação mínima e novamente o ranger da porta e o click duplo, primeiro do girar do trinco para fora da fechadura, e depois, para dentro do batente. Pés de salto alto para dentro de casa foram seguidos pelos passos firmes.

O vento soprava na janela. Sussurros caminharam escada

acima perdendo-se no carpete até chegarem aos meus ouvidos. Indistintamente me incomodara. Não falavam minha língua. Seria de propósito? Era estrangeiro aquele que chegara com a voz grave e melancólica?

Os tilintares de duas xícaras sendo colocadas sobre pires, uma rosca macia revelou que havia café na garrafa térmica, já que o cheiro também chegou até mim fazendo cocegas nas narinas. A colher metálica bateu na borda de uma xícara, delicadamente e ritmada,

num tlic-tlic-tlic-tlic, e depois, novamente, tlic-tlic-tlic-tlic.

O cheiro do café fez minha língua salivar.

A conversa continuou baixa, uma mistura de consoantes em excesso e arranhados da garganta. Ela chora. Calmamente chora. Seu nariz está fungando do modo que escorre sempre que as lágrimas caem. Silêncio. Sem passos, sem bocas engolindo o café e o último som foi o peso das xícaras de volta aos pires “tli-tlim”, ambas quase ao mesmo tempo.

Será que se abraçam? Quando eu costumava abraçar

sentia cheiro de erva-doce no seu pescoço.

Só sinto agora a naftalina da coberta guardada durante um verão, uma primavera e um outono.

Mas de volta ao ocorrido: os passos retornaram. Novamente aqueles de salto alto:

Plá-plá-plá-plá-plá-plá-plá.Um armário se abre e novamente

o: plá- plá- plá- plá- plá- plá.Ele inspira o ar. SURPRESA! A surpresa e o susto

têm som de ar que entra e não sai. Sopro ao contrário.

Ouço-os como se os estivesse vendo.

Risos baixos. Baixíssimos. Som de

roupa roçando uma a outra. Mais suspiros.

E tenho certeza que se fez abraço.Croc-cruuoc. Rasg-Crac. Cras.

Cros.Cra-cras. Raaassssg.Parte ocos, parte agudos, galhos

arranharam a madeira da janela e o vento pareceu uivar. Um lobo se impunha na tarde.

Tudo para que eu perdesse parte do que acontecia lá em baixo.

E novamente os passos altos seguidos dos abafados, até que todos quase se emudecessem e, pelo ritmo mais lento, previ que subiam as escadas.

Os Plá-plá-plá-plá-plá-plá-plá;Se tornaram:Plã plã plã plã plã plã plã plã. Já no piso de cima as vozes

seguiam a conversa na maldita língua da garganta. Seguiriam em minha direção ou para o outro quarto? Bem no fundo do peito senti que as duas escolhas me deixariam feliz, mesmo que eu preferisse que viessem aqui primeiro.

Se aproximaram com seus cheiros tão diferentes. Hidratante barato e perfume com mais álcool que o cheiro de madeira proposto na fragrância.

O ranger de minha porta suavemente se fez ouvir, mostrando que estava entreaberta. Sem

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passos. Ar que entra rápido e sai com dificuldade.

Será que se segura o ar na busca pela segurança?

Será que o ar que entra quer congelar a vida pré segundo derradeiro?

– Bom dia, Eva. – A voz saiu em um português arrastado. O “E” não foi acentuado na fala grave. Sua voz de locutor de rádio me lembra morte.

Não respondo.– Querida, esse é meu amigo

Antonin. Ele gostaria de conhece-la. Espero que não se importe.

Continuo mirando o teto imaginando que raio de nome é Antonin. E vejo um raio abrindo o teto e acabando com a minha vida, mas na verdade, eu ainda queria viver. Então revejo e transformo o raio em uma luz dourada que bem podia ser só uma lâmpada.

Eles se aproximam. O rosto de Silvia está menos tenso que nos últimos... Sei lá, anos? Penso em sorrir, mas não o faço.

– Muito prazer, Eva. Sua mãe não mentiu quando disse que é muito bonita.

Não me olho no espelho. Beleza já não faz sentido.

Sua garganta continua arranhando. A palavra bonita em sua voz parece sinônimo de sinto muito.

As mãos de minha mãe se esfregam e sua pele macia tem som de conforto. Sinto falta de carinho. Sempre sinto.

Antonin se aproxima revelando-se ser muito mais velho do que imaginei. Não idoso, exatamente, mas tem uma maturidade nítida. Seus cabelos são grisalhos e as sobrancelhas grossas. O rosto é comprido e os olhos são castanhos, o que eu estranho. Achei que seriam azuis.

– Ela me contou muito sobre você. – Ele fez uma pausa incomodado com o meu silêncio. Estou acostumada e entediada.

Acostumada e entediada, como o tic-tac de um relógio.

Tic-tac (acostumada-entediada)Tic-tac (acostumada-entediada)Tic-tac (acostumada-entediada)Tic-tac (acostumada-entediada)E o TRIIIIIIIIIIIIIIIIM ESTRIDENDE

DEMAIS do despertador é quando

não me suporto e acho que quero morrer.

Mas não quero. O TRIIiiiimmm cessa. Se acalma. Se afoga.

São sempre as mesmas reações. Ele provavelmente diria que minha mãe me ama muito, que sente muito por tudo, que irá me fazer companhia. Que pode haver uma cura e blá-blá-blá.

E blá-blá-blá.No entanto ele ficou quieto.

Apenas me observando. Não que “apenas” caiba na ação cheia de propósito que ele teve, pois, Antonin não estava observando a mim, mas sim, aos movimentos dos meus olhos.

Não escutei mais nada. A tensão da observação dele tampou meus ouvidos.

Desviei a visão um pouco para o lado contrário, a apreensão encheu o quarto de gosma paralisadora. Respirar ficou mais difícil naquele instante até que o vento soprou forte.

Mais que um uivo, uma matilha a se manifestar.

A árvore lá fora bateu na janela. Pisquei. E ao meu piscar os olhos

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dele se arregalam e por mais um instante sustentou para ter certeza do que viu antes de se voltar para minha mãe.

– Como vocês se comunicam? – Sua voz soou séria e tensa, parecendo preocupado.

Silvia não respondeu.– Vocês não se comunicam?– Não. – Sua voz pesa e torna o ar

ainda mais difícil de lidar. – Desde o acidente.

Tremendo ela se controla para não chorar. Sei que começará a falar desesperadamente para esconder o fato de que está cansada de insistir e esperar minha recuperação.

– Os médicos me disseram que ela ouve e enxerga um pouco. Muito pouco. – Coça a mandíbula, o arranhar de suas unhas na pele é tão alto que pressinto que abrirá uma ferida. – Mas não sabemos o que ela entende. Como perdeu parte do cérebro, bom, não sei o quanto de minha filha ainda está aí.

Antonin pareceu assustado. De súbito pegou minha mãe pelo braço e saiu. Do lado de fora a língua desconhecida sai rápida, uma urgência feito quem esfrega roupa no tanque de cimento por querer dar cabo da sujeira indesejada.

Os silêncios ficam mais aparentes do que os sons. Sou eu quem me canso e durmo.

No dia seguinte não houve vento. A janela foi aberta. Antonin sumiu.

E no dia seguinte do anterior o rádio ficou presente maior parte do tempo. Gosto de músicas, elas empurram na escuridão os barulhos do cotidiano.

E mais dias seguintes passaram feito nuvem branca, o que tem me machucado. Remoer memórias é parte inerente de mim, e tanto melhor são as memórias depois do acidente, as recentes, pois aquelas

de liberdade me fazem chorar, e como não choro, meus olhos ardem.

Mas veio o dia seguinte a todos os outros, e a rádio foi mudada para uma de notícias. Estamos em 1962. Seis anos desde o acidente.

Acordei e era a tarde. Minha mãe sabe que meus espasmos são de dor e me medica por conta, o que me faz apagar por vários momentos ao longo do dia. A audição retornou aos poucos. Para minha pequena alegria escutei a voz grave e melancólica de Antonin. Ele e Silvia trocam poucas palavras e seus passos são apressados. Nem consigo entender os sons. São todos um só.

Ele trouxe uma cadeira consigo e sentou ao meu lado, próximo da janela. Eu o olhei o máximo que conseguia, virando o globo ocular, mas continua uma sombra branca no canto do meu olho.

– Eva. Se você está ai, volte a olhar para o teto.

Assusto-me com a frase. Mas fiz o que me pediu. Olhar para o teto é mais confortável. Segurar os olhos para o canto me incomoda bastante.

– Você não consegue ver, não é? – Suavidade e doçura. Ele parece ter descoberto algo novo.

– Do que está falando? – Mãos macias se esfregando.

– Sua visão também ficou prejudicada no acidente, querida?

Ignorei o “querida” deixando meu ciúmes de lado pela curiosidade do que ele pretende.

– Sim, um pouco. – Voz tensa. – Eva, se você quiser se comunicar

desvie o olhar rapidamente para mim.

Ainda fui pega de surpresa. Nunca senti o coração acelerar assim depois de tudo. Antonin foi

grosso, frio. Quer resultado como um professor que eu já não lembro bem de ter tido.

Eu obedeci e tive a impressão de que um sorriso nasceu em seus lábios finos.

– Silvia, acho que temos um modo de nos comunicar com sua filha.

A sentença soou como um trovão.

Notas para mim:Os silêncios estão menos

frequentes. Saímos do inverno e pedi para ser colocada mais próxima da janela. Conforme respiro escuto as fitas que me prendem à poltrona esticar e retrair. Meu corpo às vezes pesa para o lado, mas isso não me importa. A barriga a roncar do gato, lá embaixo, deitado no sol, é como uma música. Se eu não estiver cansada, será que consigo pedir para que o tragam à frente de meus olhos?

Garfos e facas batem e arranham sob a comida nos pratos de vidro. Agora sei que Antonin e Silvia falam em alemão e percebo como sei muito pouco sobre minha mãe.

O som que mais gosto é o leve e suave rasg-rasg-rasg das folhas arranhando-se umas nas outras, nas árvores lá em baixo.

Eu sempre penso nas frases antes de Antonin chegar com sua tabela de letras e máquina de escrever, assim, não ocupo tanto o seu tempo.

Notas para Antonin:Eu gosto de você, mesmo quando

fede a charuto.Notas para Silvia:Não coloque tanto sal na comida,

quer matar nós duas, mamãe? Amo você.

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M A R C I N H A B O TA F O G O

por Junior Cazeri

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Nosso beijo foi assim, colisão frontal em curva sinuosa. Ela segurou meu rosto entre as mãos, amassou minha boca e aplicou a ferroada. Exibiu os dentes tortos coloridos de vermelho, piscou os olhinhos inquietos de barata em fuga. De saída, me deixou atônito. De chegada, deixei-a escapar.

O barman observava, seu cinismo cansado silenciou os pensamentos. Fiz beicinho para limpar o lábio partido, o guardanapo de seda desmanchou sobre a ferida. Lá fora, uma pedrada estourou a lâmpada no poste, deixando a escuridão sem véu. Ladeira acima ou abaixo, sumiu. Fui apresentado à sua ausência.

Marcinha Botafogo. Encrenca, meu caro, encrenca.Tomei posse da mesa

abandonada. Garrafas sem rótulos, bitucas pisoteadas, copo manchado de batom. Notei o cinzeiro limpo e cinzas nevando sobre o tampo. Acariciei as queimaduras deixadas pelos cigarros e os sulcos dos anéis.

Sem pedir licença, um dos habitués puxou a cadeira ao lado. Apontou a rua com o polegar: sabe essa aí? Abriu a camisa e inflou o peito magro. Quatro cicatrizes leitosas escorriam da clavícula ao mamilo.

- Aquela lá?- A própria.Um outro se chegou. Este já

flagrara Marcinha riscando as laterais de automóveis estacionados no pátio da igreja. Outro, guarda municipal, diz ter lhe dado uns sopapos por pichar os muros da prefeitura. E mais um, que avistou um poodle tosado com suas iniciais. A roda inchou como um útero e foi parindo fantasias. Logo, tinha o da cama em chamas no motel, das bonecas com as cabeça arrancadas na loja de importados, das camisinhas furadas na farmácia.

Saí de fininho.Naquela noite, sonhei beijar

um espelho trincado. Sugava o reflexo da minha boca, estimulava as rachaduras com a ponta da língua, mordia e devorava os cacos que escorregavam pelo esôfago refletindo temores sem faces. Acordei com frio, o cobertor no chão.

Passadas semanas, às vezes ainda penso em Marcinha. Sua lembrança me pega de supetão ao tropeçar no cadarço desamarrado, no pneu furado, no vaso entupido, na caneta estourada. Sinto a fisgada de seus dentes tortos no beijo sem paixão, determinado pelo acaso de um ir e o outro vir. Há sua ausência nos dias de sol e presença na chuva que acompanha a manhã de segunda-feira.

Tranco a tranco, decifro Marcinha. No rastro de lascas, sangue e chamas repousa uma história que para ser negada há de negar espaço e tempo. Os vestígios em carne e concreto, do botequim da esquina às lojas de grife, reclamam seu lugar à sombra cotidiana. Modesta, estampa paredes públicas e bocas itinerantes. Marcinha perdura. Para destruí-la, autoimolação.

Se ela é ideia, caneta, papel ou leitor, não sei. Amálgama real-subjetivo furioso.

Dia desses, uma moça se jogou do viaduto. Soube que o impacto deixou um buraco no asfalto. Verdade ou mentira, quando passo por ali sinto um solavanco fantasmagórico. Me vem uma vontade estranha de mutilar estátuas, retornar lápides para as famílias, confessar a infelicidade.

Sou covarde, não me atrevo. Aceito a distância entre os que agitam a água e os que admiram as ondas.

Page 16: zzzumbido · Seu primeiro livro solo foi DESAMORES E OUTRAS TERNURINHAS e o segundo, ESTRANHAS DELICADEZAS, está no prelo ... melhor deixar pra lá, afinal hoje em dia não se pode

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g m a i l . c o m . b r - s i t e : r e v i s t a z z z u m b i d o . w o r d p r e s s . c o m /

c o l a b o r a d o r e s : e v e r a l d o g o m e s d e o l i v e i r a , c l a u d i o p a r r e i r a e c a r o l i n a m a n c i n i . i m a g e n s s o b l i c e n ç a c r e a t i v e c o m m o n s ( p á g i n a s 0 3 , 0 6 , 1 1 e 1 3 ) e j u n i o r c a z e r i ( p á g i n a s 0 1 , 0 8 e 0 9 ) . O s d i r e i t o s p e r t e n c e m a o s a u t o r e s e o c o n t e ú d o n ã o p o d e s e r r e p r o d u z i d o s e m a e x p r e s s a

a u t o r i z a ç ã o d o s m e s m o s .

z z z u m b i d o