zésouza. - rl.art.br · amanhã de manhã no trem para santa maria. -mas tche! ele não vai pegar...
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Zésouza.
O TREM DAS HERDEIRAS.
2018
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Trens o Brasil teve muitos. Em Pelotas teve um trem de subúrbio que
ligava as estações de Inspetor Moisés a Pelotas Fluvial, servia os bairros de
Três Vendas, Santa Terezinha e Várzea. Era chamado o Trem do Meneguetti,
porque foi o Prefeito Mario Meneguetti quem conseguiu esse dito trem com a
Direção da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
Pilantra saltou do Trem do Meneguetti na estação Pelotas Fluvial e foi
até o portão do Porto onde um telegrafista da Companhia de Navegação o
estava esperando e avisou:
- Mandei te chamar pra dizer que o Advogado Papareia está viajando
do Rio de Janeiro para Rio Grande num Ita... O Ita atraca hoje a noite em Rio
Grande.
Pilantra agradeceu e saiu caminhando ligeiro, atravessou a “Pracinha
do Porto” e subiu no bonde. Era muito azar logo naquela noite em que ele
tinha conseguido um encontro com a Puta do Trem do Meneguetti. Desceu do
bonde no Abrigo Central ao lado do Mercado, correu pela Rua XV até o Café
todo envidraçado de nome Café Nacional, mas que as moças bonitas que
passeavam pela Rua XV chamavam de “Aquário” porque segundo elas ali
dentro sempre tinha muitos peixões, em tempo aviso que naquela época as
moças diziam que um rapaz bonito era um peixão. Outro aviso; o café trocou
de nome e passou a chamar-se “Café Aquário” e é ponto tradicional em
Pelotas.
Pilantra entrou no café, tirou uma ficha do bolso e botou em cima do
balcão, olhou pra todos os lados e avistou o Mordomo das Herdeiras, fez sinal.
Mordomo das Herdeiras se aproximou perguntando:
- Novidades?
- Sim... Avisa as Herdeiras que o Advogado Papareia está chegando a
Rio Grande... Eu estou viajando, agora, no Trem das Cinco para Rio Grande...
Elas que aguardem instruções conforme foi planejado.
Na plataforma da estação de Pelotas os últimos preparativos para a
partida do trem “P45”, popularmente conhecido pelo nome de “Trem das
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Cinco”; um trem de lendas e histórias que por mais de cinquenta anos viajou
entre Pelotas e Rio Grande.
Pilantra chegou afobado na plataforma foi ao bar tomar um café e
encontrou o Zé do Bicho, esse dito cujo recolhia jogo do bicho nas estações
onde o trem passava. Pilantra contou:
- To indo pra “Cidade Noiva do Mar” esperar um amigo que está
vindo num “Ita” que atraca essa noite...
Zé do Bicho interrompeu dizendo:
- O Ita atraca se o vento deixar... Eu vim do Rio Grande no “Trem da
Uma” e em Rio Grande tava soprando com muita força o “Vento Rebojo”...
O Trem das Cinco encostou a plataforma da estação Central de Rio
Grande, o Pilantra correu e embarcou no bonde. Saltou do bonde no Abrigo
Central na Praça Tamandaré e foi tomar um café e comer uma “Bomba”, que
Pelotas é a cidade dos doces, mas Bomba Doce a melhor do mundo é feita em
Rio Grande. Beiço lambuzado, olhou o vento sacudindo as árvores, disse pra
um marinheiro que estava tomando um gole de cachaça:
-Hoje o vento está forte.
O marinheiro limpou o beiço com a palma da mão e disse:
-É o vento Rebojo. Hoje não atraca nenhum navio.
-Báh! To esperando o Ita…
-O Ita, tá la fora da Barra e hoje ele não entra.
Pilantra correu pra subir no trem de bondes, sim Rio Grande tinha um
trem formado por bondes que ligava o Abrigo Central ao Porto Novo e
frigorífico Swift, a locomotiva desse trem, hoje, é monumento na Praça
Tamandaré. Pois o Pilantra subiu no trem de bondes e só saltou diante do
portão do Porto Novo onde o Pilantrinha estava recolhendo apostas no jogo do
bicho.
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-Olha quem eu vejo; meu amigo Pilantra, que ventos te trazem a terra
Papareia?
-Ora, vim ver o meu amigo Pilantrinha. Trago notícias da Puta do
Trem do Meneguetti…
-Não me fala naquela ingrata, só queria os meus pilas; me botava
guampas com o Maquinista do Trem do Meneguetti…
-Outra coisa; preciso de um grande favor. O Ita tá ancorado fora da
Barra, no Ita está vindo o Advogado Papareia que tem viagem programada
amanhã de manhã no trem para Santa Maria.
-Mas tche! Ele não vai pegar o trem amanhã de manhã porque tá
ventando e o Ita tá lá fora da Barra.
-E se o vento para e o Ita entra?
-Bom; se para o vento e o Ita entra, ele pega o trem…
-Pois aí é que eu preciso do amigo. Aproveitando que estou na Cidade
Noiva do Mar, eu jantarei na Gruta Baiana e depois vou ao Cabaré da
Mangacha.
-E tu queres que eu te acompanhe…
-Não, eu quero que tu fiques alerta; se o Ita atracar tu tens que me
avisar.
Pilantrinha estendeu a mão esfregando o polegar no indicador dizendo:
-Faço o favor, e os pilas?
-Amanhã eu te pago…
-Não; o sindicato dos pilantras determinou que pagamento tem que ser
adiantado.
Contrariado o Pilantra tirou o dinheiro do bolso e pagou o Pilantrinha.
Pilantrinha botou o dinheiro no bolso e tornou a estender a mão dizendo:
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-Os trocados pra eu tomar um café na Dalila e comer uma bomba na
Confeitaria Colombo…
Naquele tempo a cidade do Rio Grande tinha um café famoso; Café
Dalila, tinha uma confeitaria famosa; Confeitaria Dália, tinha um restaurante
famoso; A Gruta Baiana, tinha um cabaré famoso; Mangacha.
Pilantrinha contou os trocados e pediu mais:
-Ta pouco, quero mais um bocado.
-Esse aí dá pro café e pra bomba.
-E o candi.
-Tu um homem velho vai pra Praça Tamandaré comer candi.
-Eu não; a minha namorada, amanhã, vai levar o meu filho pra brincar
na praça e comer candi.
Cedro, Begeve, Getulião, Bairro Getulio Vargas, o bairro que surgiu
da ocupação dos terrenos alagados próximos do Porto Novo e do Frigorífico
Swiftt. Na Rua Sete a Cancha de Jogo do Osso, iluminada e cheia de gente.
Pilantrinha agachou num canto e ficou olhando o jogo. O galo cantou
anunciando a madrugada e um estivador chegou na Cancha de Jogo do Osso e
avisou ao Pilantrinha que a lancha do Pratico tinha saído a Barra. Ora naquela
hora a lancha do Prático sair a Barra; foi buscar alguém. Quem?
Provavelmente o Advogado Papareia. Se fosse o Advogado Papareia, era
lógico que a lancha atracaria no Porto Velho. Rio Grande tinha dois portos,
Porto Novo e Porto Velho. Junto ao Porto Velho a estação de trem chamada
Marítima. Naquele tempo Rio Grande tinha três estações de trem, uma; junto a
Lagoa dos Patos e que era a Marítima, outra chamada Rio Grande e que o povo
chamava de Central e a outra a Junção que era no lugar onde as linhas se
separavam, seguindo um ramal para a Praia do Cassino e a Linha Tronco
seguindo para Cacequi. Pilantrinha montou na bicicleta e rumou para a
Marítima.
Funcionários da estação e funcionários do trem se moviam preparando
o P42 pra partir de Marítima até a cidade de Bagé; a Rainha da Fronteira.
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Carregadores dos hotéis e choferes dos carros de praça carregando malas de
viajantes que tinham vindo do Norte do Brasil ou de outros países a bordo dos
navios. Com seu boné vermelho o Agente conferia os movimentos. Um
Guarda-freios ligando os engates. O Chefe de Trem orientando os Camareiros.
No carro bufete o Cozinheiro fervendo leite para os cafés e aquecendo
água para o chimarrão. Garçons cortando o pão e botando manteiga nos potes.
Na locomotiva o Foguista botando carvão na fornalha e o Maquinista
lubrificando os cubos das rodas.
O Exmarinheiro embarcou no último carro e sentou no último banco.
No caso; quem viaja por último chega por último, estava indo para Natal no
Rio Grande do Norte. Foi marinheiro até a noite de um forte temporal na Costa
Gaúcha. Desceu do navio foi a Catedral de São Pedro pagar a promessa de ter
escapado vivo. Da Catedral foi a estação e comprou a passagem de trem.
Pilantrinha viu o Advogado Papareia, abraçado com sua pasta preta,
embarcar no carro bufete. Sem perder tempo; o Pilantrinha montou na bicicleta
e correu até a “Mangacha”.
No primeiro carro de segunda classe embarcou o grupo alegre das
Escamadoras de Peixe com seus uniformes brancos manchados e fedendo a
peixe.
No segundo carro de primeira classe embarcou o Marinheiro de Água
Doce
Agente e Chefe de Trem trocaram informações. Trem pronto para
partir. O Agente bateu o sino, o Chefe de Trem trilou o apito, o Maquinista
puxou a corda e o apito da Oitocentas ecoou pelas ruas da Cidade Noiva do
mar, atravessou a Lagoa e foi retumbar nas ruas da cidade de São José do
Norte.
Pilantra pulou a janela do cabaré, pra não pagar a despesa, correu
vestindo o casaco e montou na garupa da bicicleta do Pilantrinha. O barulho do
trem já retumbava na Rua Barroso e na Rua Silva Paes. Pilantinha gritou:
-Já saiu da Marítima, bamos pra Central.
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A batida do sino e o P42 encostou na plataforma da Central. Gente se
despedindo de gente, gente embarcando, gente procurando banco vago.
Camareiros orientando e ajudando.
E a corrente da bicicleta do Pilantrinha escapou. Pilantra saltou e saiu
correndo pra chegar na estação de Rio Grande. Na estação de Rio Grande o
chefe de trem apitou e o trem partiu.
O trem passando por entre os muros do Cemitério e a carga viva ia se
acomodando. No último carro os jogadores e torcedores do time mais antigo
do Brasil; o Tricolor (verde, colorado e amarelo) Sport Club Rio Grande.
Todos vestindo a camisa tricolor. O Exmarinheiro, que ia sentado no último
banco, abriu a mala tirou da mala e vestiu a camisa branca e preta do ABC de
Natal.
Pilantra entrou correndo na Central mas o trem já tava saindo, tonteou
pra cá, pra lá, pra acolá e foi pra frente da estação. Embarcou no carro de praça
do Chofer Nortense dizendo:
-Me leva pra Junção quero pegar o trem.
Esse Chofer Nortense que era do Norte, que esse Norte é de São José
do Norte que fica no sul do sul do Brasil, com muita calma disse que pra o
motor funcionar tinha que dar manivela. Pilantra correu, agachou na frente do
calhambeque, deu de mão na manivela e começou a dar manivela.
O P42 chegou na Junção onde os trilhos se separam. O trem de
subúrbio S50 tinha acabado de chegar da estação de Vila Siqueira, estação na
Praia do Cassino, a maior do mundo em extensão. S50 que passou nas estações
de Bolacha, Senandes e Vieira.
Do primeiro de segunda desembarcou o grupo de Escamadoras de
Peixe.
Mais gente embarcando no P42, a maioria veranistas voltando da praia
do Cassino. O Vendedor de Mel do Senandes subiu no primeiro carro de
segunda classe. A Veranista do Cassino embarcou no segundo carro de
primeira classe; loira de olhos azuis, vestindo calças justas, sapatos de salto
alto, fumando com uma piteira de dois palmos de comprimento, entrou no trem
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batendo salto de sapato, largando fumaça pelo nariz e requebrando a bunda. O
Padeiro do Bolacha saiu atravessando os carros de segunda classe procurando
um lugar ao lado de uma guria bonita, conseguiu sentar ao lado da Velha Feia
da Junção. O Vendedor de Mel do Senandes, empurrou a caixa com vidros de
mel pra baixo do banco no carro de segunda classe, ligeiro antes que o
Camareiro visse e reclamasse.
Na plataforma da estação o Vendedor de Camarão da Vieira ajudando
ao Bagageiro colocar as caixas com gelo e camarão no vagão das encomendas.
Levava camarão pra vender em Jaguarão. O Agente da Junção apressando
aquele carregamento pra não atrasar o trem.
Pilantra, afobado entrou na estação pedindo:
-Uma passagem de primeira classe até Santa Maria.
O trem saiu da Junção batendo o sino. A carga humana ainda se
acomodando. Os garçons do bufete agindo rápido e servindo café com pão e
manteiga. Café preto ou com leite?
No primeiro de segunda a Velha Feia da Junção bateu no braço do
Padeiro do Bolacha e disse:
-Paga o café e a gente come junto.
-Tche; eu to de regime.
Pilantra atravessando os carros de primeira classe farejando o
Advogado Papareia. Encontrou o Advogado Papareia sentado no carro bufete,
com sua pasta preta no colo. Carro bufete que ia com todos os bancos
ocupados. Precisava encontrar um lugar naquele carro, tinha que viajar
vigiando o Advogado Papareia. Ficou de pé encostado no balcão do bufete,
pediu:
-Um conhaque de maçã, faz favor.
Um Camareiro atravessando o trem e avisando:
-Quinta… A chegar na estação da Quinta.
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O trem estava chegando na quarta estação que era a Quinta.
Já na Quinta! Pilantra precisava redigir um telegrama, bateu nos bolsos
procurando a caneta tinteiro cuja propaganda dizia que ela não vazava em
avião. Tinha perdido a caneta.
Estação Quinta, o Padeiro do Bolacha desembarcou, tinha ido ali
comprar torresmos pra fazer pães com torresmo. Embarcou o Vendedor de
Jurupiga da Quinta com sua pesada mala feita de madeira e cheia de garrafas
de Jurupiga, um Camareiro correu e foi reclamar:
-Essa mala tá muito grande, tá fora do gabarito. Tem que despachar no
carro de bagagens. O que vai aí dentro?
O Vendedor de Jurupiga da Quinta sacudiu o ombro e respondeu:
-Cuecas e carpins.
Embarcou no primeiro de segunda um grupo grande de pessoas,
homens, mulheres e crianças: Enrrestadores de Cebola.
Pilantra entrou no escritório da estação. No escritório se sentia o cheiro
que vinha lá da cozinha de feijão da Quinta; feijão feito com ossos de porco
cozinhados na banha. Pediu um pedaço de lápis, ao Agente, e uma folha de
papel. Voltou pra o carro bufete e se encostou no balcão redigindo o
telegrama.
Estação Domingos Petroline, o cheiro forte do trem de porcos.
Cruzamento do P42 com um trem de porcos. Na plataforma um Guarda-freios
e o Bagageiro carregando no vagão de encomendas os sacos com sementes de
cebola. Pilantra entrou no escritório da estação e falou com o Telegrafista de
Domingos Petroline:
-Bom dia… Faz favor manda este telegrama para Pelotas; o
destinatário tá debruçado na janela da sala dos telegrafistas.
O Produtor de Sementes de Cebola de Domingos Petroline embarcou e
muito contente conseguiu lugar ao lado da Veranista do Cassino.
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No primeiro de segunda embarcou o Curupira do Petroline e sentou ao
lado da Velha Feia da Junção. Ela não perdeu tempo, bateu no ombro dele e
pediu:
-O Curupira, bonito, paga o café e a gente come junto.
-Tche! Não gosto de café.
A Cafetina Rica de Bagé chamou o Garçom e pediu mais uma taça de
café com leite, pão e manteiga, já era a quinta taça.
O trem correndo entre Domingos Petroline e Povo Novo.
Em Pelotas na estação o Telegrafista de Pelotas abriu uma fresta da
janela da sala dos telegrafistas e entregou o telegrama ao Mordomo das
Herdeiras. O Mordomo das Herdeiras coçou a cabeça: tinha que avisar as
herdeiras que o Advogado Papareia estava no trem, e tinha que comprar uma
pasta preta.
Povo Novo cruzamento do P42 com o P43. Do carro de encomendas
do P43 o canto dos galos e o cheiro de frutas. O trem P43 ligava a estação de
Olimpo com a de Rio Grande, e carregava muitas gaiolas com aves e caixas de
frutas e quitandas nas estações do Cerrito, Capão do Leão e Theodósio.
Povo Novo o cheiro de cebola armazenada no grande armazém feito
de madeira.
Povo Novo e os vendedores de araçá rodearam o trem. Janelas se
abriram, gente comprando araçás. O Produtor de Sementes de Cebola de
Domingos Petroline ofereceu a Veranista do Cassino:
-A bela senhorita quer araçás.
A Veranista do Cassino cheia de dengues e trejeitos sorriu e disse:
-Prefiro gasosa com sanduíche.
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O Ceboleiro do Povo Novo segurando uma pasta preta, embarcou no
trem e olhou estacionados na terceira linha do recinto os vinte vagões
carregados de cebola com destino a estação de Barra Funda em São Paulo.
A Cafetina Rica de Bagé queria saber se misturando araçá com café
com leite faz mal.
Da casa beira trilho o cheiro de feijão de pongodó; feijão feito com
gordura, água, cebola e só.
A Moça Pongodó embarcou no segundo carro de segunda, com uma
sacola cheia de araçás e sentou num canto.
Desembarcou o Curupira do Petroline e mais o grupo de Enrrestadores
de Cebola.
O Goleiro Terceiro Reserva do Esporte Clube Esperança do Povo
Novo, vestindo a camisa verde e amarela, embarcou no primeiro de segunda e
sentou ao lado da Velha Feia da Junção e ela perguntou:
-O moço bonito me compra araçá?
Ele sacudiu a mão e educadamente respondeu:
-Tche! Quem gosta de velha é reumatismo.
Dez quilômetros a distância entre a estação da antiga vila do Povo
Novo dos “Pongodós” e a estação rodeada de água do Capão Seco dos
“Remangados”.
Capão Seco, estação de leiteiros, dezenas de carroças de duas rodas
paradas perto da estação. Na plataforma uma pilha de tarros de carregar leite.
Pela estrada de chão batido, um grupo grande de homens caminhando a pé e
com grandes varas tocando uma tropa de perus.
No recinto a vila dos trabalhadores de conservação da via permanente,
“Tucos”. Da casa na frente da estação o cheiro de feijão de remangado;
cozinhado com carne e milho verde.
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O Bagageiro carregando da plataforma para o vagão de bagagens as
pequenas latas de leite.
Num lado do trem a moça bonita com o tabuleiro na cabeça vendendo
bolo de coalhada. No outro lado, uma também bonita moça vendendo pastel de
mingau.
A Cafetina Rica de Bagé comprou seis bolos e meia dúzia de pastéis.
O Moço Remangado embarcou e sentou ao lado da Moça Pongodó e
ficaram conversando e comendo araçás.
Desembarcou o Goleiro Terceiro Reserva do Esporte Clube Esperança
do Povo Novo, vestindo a camisa verde e amarela.
O Peão de Leitaria do Capão Seco, com bombachas remendadas,
remangadas e manchadas de leite e esterco de curral, calçando tamancos
embarcou no primeiro de segunda e sentou ao lado da Velha Feia da Junção e
ela pediu:
-Compra um pastel de mingau.
-Bah! Não tenho nenhum pila.
Um grupo de guris de calças curtas e pés descalços correu pra comprar
gibis do Revisteiro do Trem.
E o trem P42 saiu do Capão Seco cortando a reta de dez quilômetros
por dentro dos campos alagados da Várzea do São Gonçalo.
Os passageiros que compraram pastéis tiveram uma surpresa, que fez a
Cafetina Rica de Bagé enfiar o dedo na boca para tirar o tucho de lã que estava
preso nos seus dentes. E aqui tem que abrir um parêntese pra contar o que
aconteceu. Daí que as duas vendedoras andavam brigadas por motivo que as
duas estavam apaixonadas pelo jovem Telegrafista de Capão Seco. Então a
Vendedora de Bolo de Coalhada junto com uma prima armou uma cilada para
a Vendedora de Pastel de Mingau. A Vendedora de Bolo de Coalhada e a
prima fizeram os “pastéis especiais”. Na hora do trem a dita cuja citada prima
distraiu a Vendedora de Pastel de Mingau e a Vendedora de Bolo de Coalhada
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trocou os pastéis no tabuleiro da Vendedora de Pastel de Coalhada; tirou os
pastéis de verdade e botou os pastéis especiais que eram recheados com lã.
Em Pelotas as duas desembarcaram do bonde na frente da estação. As
duas baixinhas, uma gorda e outra magra, rostos pintados, lábios com batom
bem vermelho, cabelos presos num coque bem no alto da cabeça. A Herdeira
Gorda e a Herdeira Magra. A Herdeira Gorda ordenou:
-Compra as passagens.
-De segunda classe, temos que economizar.
-Deixa de ser brocoió, vamos na primeira classe. Voltaremos dessa
viagem riquíssimas. A Estância de São Lucas será nossa; vinte mil hectares de
campos de primeira, dez mil bois, trinta mil ovelhas, duzentos cavalos, vinte
burros, duas mil galinhas, mil patos, cinco cachorros e dois gatos.
No recinto de Pelotas uma locomotiva de manobras tirou o tabuleiro
do trem que tinha chegado do ramal de Canguçu da linha da plataforma. Antes
um camareiro teve que acordar o Moço Feio do Monte Bonito, que estava
dormindo no carro de segunda classe.
A ponte sobre o Canal São Gonçalo ( canal que une a Lagoa Mirim
com a Lagoa dos Patos) e o trem saia do município de Rio Grande que não tem
rio.
-Pelotas… A chegar em Pelotas, saída pela porta da frente…
Camareiros e Guarda-freios tomando posição nas plataformas dos
carros para auxiliar o desembarque e o embarque.
A Oitocentas batendo o sino entrou no recinto de Pelotas.
Agitou a plataforma da estação da Princesa do Sul. Conferentes e
Carregadores ajeitando as bagagens e encomendas que seriam carregadas nos
respectivos vagões.
Uma batida de sino saudou a chegada do trem.
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O Jornaleiro que gritava:
-Olha o “Diário”… “Diário”…
Gente se despedindo de gente, gente desembarcando, gente
embarcando. O Garboso Tenente do Nove de Infantaria de Pelotas de braços
dados com sua bonita noiva. O Plantador de Batatas de Canguçu, que antes de
embarcar conferiu se os vinte vagões carregados com batatas estavam no
recinto. O Comerciante Gordo, fumando charuto, que ia a São Paulo buscar
mercadorias. O Magro Político, tirando baforadas do cachimbo, que seguia
para a Capital Federal: Rio de Janeiro.
Pilantra tirou o casaco e deixou marcando o seu lugar, desceu e
encontrou as duas herdeiras, trocaram algumas palavras e ele caminhou para a
frente da estação onde se encontrou com o Mordomo das Herdeiras. O
Mordomo das Herdeiras tava com uma pilha de pastas. Pilantra revirou as
pastas e escolheu uma pasta preta igual à pasta preta do Advogado Papareia.
O Peão de Leitaria do Capão Seco desembarcou e saiu batendo
tamancos na plataforma da estação e exalando o perfume de barro de curral
misturado com leite azedo.
No vagão de bagagens o bagageiro alcançando as pequenas latas de
leite que tinha carregado no Capão Seco para os Moleques Carregadores. Cada
Moleque Carregador pegava a sua latinha e saia correndo que era hora do café.
O vagão de bagagens era dividido ao meio, uma metade era para o
transporte de pequenas bagagens, e também era o escritório do chefe de trem.
A outra metade era usada pelo Correio. Funcionários do Correio carregando os
malotes com correspondências a fardos de jornais.
No vagão gaiola para transporte de grandes animais, um Conferente e
dois Tratadores estavam embarcando três cavalos que seguiam do Hipódromo
de Pelotas para o Hipódromo de Bagé.
No vagão de bagagem um Conferente colocando no compartimento
para pequenos animais uma gaiola com dois canários e uma caixa com um
gato.
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O Plantador de Pêssego de Colônia Maciel ajudando um conferente a
carregar as caixas com frutas no vagão de encomendas.
A Doceira de Pelotas ajudando o Bagageiro acomodar as caixas com
doces num canto do vagão de bagagens. Doces finos para a festa de casamento
de uma rica fazendeira em Bagé.
Um Carregador de Malas deu o grito:
-Vai sair o trem para Bagé.
Nove horas da manhã, o Agente de Pelotas deu uma batida no sino, o
Chefe do Trem trilou o apito. O apito, rouco, da oitocentas ecoou nas ruas de
Pelotas.
Apitando e batendo o sino o trem P42 saiu de Pelotas as nove horas.
No primeiro de segunda as quatro mulheres: Velha Triste de Alegrias,
Baixinha de Pedras Altas, Miguelita de Miguel Carreira e a Nascentina do
Nascente se acomodaram em dois bancos de frente um pra o outro e
começaram a preparar o mate doce.
Um grupo de homens se acomodou em dois bancos de canto, eram os
Tropeiros de Candiota, logo improvisaram uma mesa com duas malas e
iniciaram o jogo do truco.
O Gaiteiro do Seival sentou com a mala da gaita no colo.
Os Esquiladores da Biboca, também improvisaram uma mesa com
duas malas, botaram um pelego em cima e começaram a jogar o osso com um
ossinho de ovelha.
Magro, alto, chapéu de palha o Viveirista do Teodósio sentou ao lado
da Velha Feia da Junção e ela já começou conversa:
-Vai pra longe?
-Logo ali. Apeio no Teodósio eu trabalho no viveiro de mudas de
“ocalito”.
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-Ah! Eucalipto é árvore boa; tem um pau duro.
Ele olhou ela de canto de olho e disse:
-Mas quando é oferecido já tá apodrecido.
Garçons servindo café. O Revisteiro do Trem atravessando os carros:
-Revistas… O Cruzeiro… Diário Popular de Pelotas… Loteria…
O P42 corria tendo a direita o mundo da Serra dos Tapes e sua
esquerda a Várzea do São Gonçalo.
Na última plataforma do trem o Mestre de Linha ia olhando o leito da
ferrovia.
Teodósio, os Vendedores de Laranjas e bergamotas cercaram o trem.
Teodósio, na terceira linha seis vagões carregados com mudas de
eucalipto. Na segunda linha uma Novecentas puxando um trem de boi e
aguardando cruzamento com o P42,
Pilantra desembarcou, correu ao escritório da estação e entregou um
rascunho de telegrama ao Telegrafista de Teodósio:
-Bom dia… Por favor transmita este telegrama para Cerrito.
De Teodósio a Capão do Leão, dois quilômetros e meio. Capão do
Leão e mais Vendedores de Laranjas e bergamotas cercaram o trem. Os
vendedores espetavam um bem fino espetinho feito de lasca de bambu na
casca das frutas pra formar o que chamavam de penca, a penca de laranjas era
com quatro laranjas e a penca de bergamota com seis bergamotas.
A Cafetina Rica de Bagé comprou seis pencas de laranjas e meia dúzia
de pencas de bergamotas.
Embarcou o Graniteiro do Capão do Leão e olhou o lugar vago ao lado
da Velha da Junção, não quis sentar.
Na segunda linha vários vagões carregados com pedras.
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Uma batida de sino, o apito do Chefe do Trem. O apito da Oitocentas
ecoou na Serra dos Tapes e o P42 saiu de Capão do Leão, das pedreiras e da
Igreja de Santa Tecla.
Pilantra se acomodou, chamou um Garçom do Bufete e pediu uma taça
de café com leite, pão e manteiga.
Parada Agente Gomes, o açude grande na beira dos trilhos, a vila de
casas de madeira dos trabalhadores na conservação da via permanente.
Na segunda linha um grupo de guris de calças curtas, pés descalços
brincando de corrida de tala. Brincadeira de guri de beira trilhos; uma tala de
emenda de trilhos colocada em cima do trilho e empurrada com um cabo de
vassoura. O Mestre de Linha, desceu da última plataforma do trem e mandou
eles pararem com a brincadeira. Imagina! Deixa uma tala em cima do trilho e
até pode causar um descarrilamento.
Embarcou no segundo de primeira a Família do Tuco de Agente
Gomes; o casal e treze filhos. A mãe acomodou os treze filhos em dois bancos
e o casal ocupou um banco.
Passo das Pedras, um trem de cargas na segunda linha, aguardando
cruzamento. Perto da estação muitas carroças e faitons.
Parou o P42 em Passo das Pedras e um grupo de Alunos do Grupo
Escolar Edmundo Berchon, com tapa pó branco, correu pra encontrar as
Professoras que desembarcaram do trem.
Um guri saiu correndo da estação com um jornal na mão e montou
num petiço.
Gente descendo e gente embarcando. Embarcou o Poeta do Passo das
Pedras.
O trem saiu do Passo das Pedras, logo passou a ponte no Arroio Itaetá
e a Oitocentas roncava vencendo distâncias.
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Parada Pedro Osorio. Embarcou o Aguador de Granja de Arroz da
Parada Pedro Osorio, com sua pá, e sentou ao lado da Velha Feia da Junção e
ela perguntou:
-O moço trabalha com a pá?
-Tche! Eu carrego essa pá, pra bonito.
Muito movimento em volta da estação do Cerrito. No recinto vários
vagões plataforma, uns já carregados com tijolos, outros sendo carregados e
outros ainda vazios. Muitas pequenas carretas de bois carregadas com tijolos.
Carretas de bois e carroças de quatro rodas puxadas por cavalos com produtos
coloniais pra descarregar no armazém da estação.
Cerrito, o Bagageiro descarregou as latas com os rolos de filmes para o
Cine Carlos Gomes e junto com um Guarda-freios e mais o Guarda-chaves de
Cerrito foi acomodar no vagão pra transporte de animais; doze jacás com
galinhas para os hotéis de Bagé.
O Funcionário do Correio descarregou um fardo de jornais e um
malote de correspondências e carregou outro.
Pilantra foi para a plataforma do carro se encontrar com o Falso
Escrivão de Cerrito. O Falso Escrivão de Cerrito subiu na plataforma dizendo:
-Eu vou até o outro lado.
Aqui um parêntese pra dizer que o “Outro Lado” era Olimpo. Como a
estação de Olimpo já tinha se chamado Piratiny, Olimpo, Engenheiro Ivo
Ribeiro e novamente Olimpo, os moradores do Cerrito diziam; já que não tem
um nome definitivo a gente chama de Outro Lado e deu. Sim havia rixa entre
as duas vilas.
No segundo de primeira embarcou o Oleiro Rico do Cerrito.
Devagar o trem foi saindo de Cerrito, dos armazéns coloniais, das
olarias, do Clube Cerritence, da Capela do Sagrado Coração, do Concórdia
Futebol Clube. Foi fazendo a curva à esquerda, apitando atravessou a ponte do
Rio Piratini.
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Lá embaixo, a arreia branca, água do rio, as lavadeiras acenando para
o trem.
O Falso Escrivão do Cerrito entregou um envelope ao Pilantra e
orientou:
-Bota esse envelope na pasta preta que tu tens. Esse envelope tem o
falso testamento. Durante a viagem tu tem que trocar as pastas pretas, tu deixas
a tua com o Advogado Papareia e pega a dele. A pasta dele tem o verdadeiro
testamento. O testamento será lido assim que o trem chegar em Santa Maria.
Até Santa Maria tu tens que conseguir trocar as pastas de maneira que o
Advogado Papareia não se aperceba.
Pilantra sorriu, bateu no peito e disse:
-Fica tranquilo, eu troco as pastas.
Olimpo o trem entrou devagar no recinto cheio de vagões. Plataforma
cheia de gente.
Na primeira classe embarcou os integrantes da Orquestra Tangueira de
Montevidéu, que ali tinha tocado num baile do Clube Piratini.
Na segunda classe embarcou um grupo de Jogadores do Jogo do Osso
que tinham vindo de Basílio jogar o osso nas cachas do meio do mato do Rio
Piratini.
O trem saiu de Olimpo e começou a correr paralelo ao Arroio Santa
Maria.
Pilantra chamou o Garçom do Bufete e pediu uma cerveja.
Cruz, estação Cruz o trem fez uma parada rápida e desembarcou o
Aguador de Granja de Arroz da Parada Pedro Osorio.
Parte da carga humana se agitou enquanto um Camareiro atravessava o
trem avisando:
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-Próxima estação é Basílio… Basílio baldeação pra Jaguarão…
Baldeação; passageiros que vão para Jaguarão, Airosa Galvão, Carvalho de
Freitas…
Em Basílio encostou o Trem Misto procedente de Jaguarão.
Desembarcou a China Bonitinha de Visconde de Mauá agarrada no braço do
Corneteiro do Treze de Cavalaria de Jaguarão.
Caminhando pela plataforma, garboso, o Excelentíssimo Senhor Juiz
de Brigas de Galo de Airosa Galvão.
O Criador de Galos de Rinha de Carvalho de Freitas ajudando ao
Bagageiro do Misto descarregar as gaiolas com galos.
O Peão de Estância de Presidente Barbosa, tinindo as esporas na
plataforma.
O Chibeiro de Jaguarão com suas sacolas cheias de pequenos
contrabandos; farinha de trigo, gajetas e caramelos do Uruguai.
O Rico Criador de Ovelhas de Herculano de Freitas de braços com sua
bonita Amante Castelhana.
O alegre grupo de Bailarines de Candoble de Montevidéu e seus
instrumentos.
O P42 apitou lá no sinal de apito e agitou-se a plataforma de Basílio.
Gente desembarcando, gente embarcando. O Peão de Estância de
Presidente Barbosa embarcou tinindo esporas no primeiro de segunda e sentou
ao lado da Velha Feia da Junção.
A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano embarcou e conseguiu lugar no
carro bufete
O Produtor de Sementes de Cebola de Domingos Petroline que vinha
sentado ao lado da Veranista do Cassino, se despediu dela e correu para
embarcar no Trem Misto. A Veranista do Cassino não perdeu tempo, fez sinal
21
para o Oleiro Rico de Cerrito e convidou ele a sentar ao lado dela. Ela estava
garantindo quem pagasse o almoço em Cerro Chato.
Gente embarcou, gente desembarcou e o P42 seguiu sua marcha rumo
a Rainha da Fronteira.
No primeiro de segunda a Velha Feia da Junção perguntou ao Peão de
Estância de Presidente Barbosa:
-Vai pra donde?
-Vou pra Bagé campiar uma mulher pra morar com eu… E tu vai pra
donde?
-Eu vou pra Bagé procurar um homem pra morar com eu…
-Tu quer morar com eu em Presidente Barbosa?
-Presidente Barbosa é um lugar bom?
-Tem um bolicho que vende cachaça, fumo e erva mate…
Desvio Erval, ponto de cruzamento entre o P42 e o P41. Na plataforma
o Rico Fazendeiro do Erval esperando o trem pra comprar um bilhete de
loteria do Revisteiro do Trem.
Desembarcaram do P42, de mãos dadas, o Peão de Estância de
Presidente Barbosa e a Velha Feia da Junção. Embarcaram no P41, voltaram
para o Basílio pra dali seguirem no Trem Misto até Presidente Barbosa onde
seriam felizes para o resto da vida.
O trem saiu de Erval e o Pilantra esfregou as mãos, aproxima se o
momento em que ele faria a troca das pastas. Espiou o Advogado Papareia que
viajava com a pasta preta no colo.
-A chegar em Cerro Chato… Cerro Chato é ponto de almoço… Cerro
Chato ponto de almoço…
Roncaram tripas se agitaram cabeças.
22
Os vendedores cercaram o trem com seus tabuleiros e cada um
gritando a sua mercadoria:
-Pastel quentinho… Olha o pastel…
-Arroz de leite… Arroz de leite…
-Butiá… Olha o butiá…
Uns marcando o lugar no trem outros apressados para pegar lugar no
restaurante. O Advogado Papareia desembarcou com sua pasta preta. Pilantra
também com sua pasta preta foi para o restaurante. A Bisbilhoteira de Joaquim
Caetano revirava os olhos prestando a atenção em tudo.
O Bombeiro de Cerro Chato e o Foguista do P42 abastecendo a
locomotiva com água.
A Cafetina Rica de Bagé comprou pastéis, arroz de leite e butiás.
Família do Tuco de Agente Gomes; o casal e treze filhos. A mãe
pegou a cesta onde estava a galinha de trem. Galinha de trem era galinha frita
em banha bem quente e depois enrolada na farinha de mandioca. Os treze
filhos se amontoaram na volta dela. O pai chamou o garçom e pediu as gasosas
de limão.
O Advogado Papareia sentou junto uma mesa de canto e soltou a pasta
preta no chão apoiada no pé da mesa.
Restaurante cheio, garçons atendendo a um e a outro.
Com fome a Veranista do Cassino vendo que o Oleiro Rico do Cerrito
não se moveu para ir ao restaurante, ela disse:
-Estou com fome.
Oleiro Rico do Cerrito sorriu e chamou um vendedor de butiás.
Pilantra olhou bem onde estava a pasta preta do Advogado Papareia.
Comeu um pouco de arroz com o feijão do Cerro Chato. Feijão do Cerro Chato
feito com banha de porco e charque de ovelha. Comeu, respirou, segurou a sua
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pasta preta. Era o momento. Ao passar junto a mesa do Advogado Papareia
esbarrou numa cadeira deixou cair a pasta ao lado da pasta do Advogado.
Agachou ligeiro e pegou a pasta. Voltou para o trem contente; tinha trocado as
pastas.
No primeiro de segunda as quatro mulheres: Velha Triste de Alegrias,
Baixinha de Pedras Altas, Miguelita de Miguel Carreira e a Nascentina do
Nascente pararam de tomar mate doce e deram o jeito em almoçar. A
Nascentina do Nascente abriu a cesta de onde tirou os quatro pratos, garfo e
panela com o quebra bico. Quebra bico uma comida da região da Serra das
Asperezas feita com ovo, linguiça e farinha de mandioca. Boca cheia e
cuspindo farinha pra todos os lados a Baixinha de Pedras Altas disse:
-Vocês já sabem quem é o mais novo guampudo de Pedras Altas?
A Família do Tuco de Agente Gomes terminou de comer a galinha de
trem e a mãe pegou o bolo de farinha de milho enfeitado com uma ameixa-
preta. Os dois filhos menores disputaram no jogo do osso do peito da galinha
quem ia comer a ameixa.
Vendedores de butiás, e cachorros continuavam na volta do trem. A
estação do Cerro Chato tinha muitos cachorros que ficavam na volta dos trens
pra ganhar restos de comida.
Arroz, carne frita, feijão do Cerro Chato, de sobremesa arroz de leite,
barriga cheia, hora de reiniciar a marcha que ainda tinham que rodar cento e
vinte e sete quilômetros até Bagé.
Saio o P42 do Cerro Chato: um vagão para grandes animais, um vagão
de encomendas, um vagão correio/bagagens, três carros de segunda classe,
cinco carros de primeira classe.
Na beira dos trilhos muitos pés de butiazeiros.
O Chefe de Trem conferindo sua carga; cento e oitenta na segunda
classe e cento e setenta e um passageiros na primeira classe.
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Parada rápida na Parada Brete de Cerro Chato onde o Tropeiro do
Brete de Cerro Chato, calçando botas de garrão de potro e vestindo um chiripá
se segurou nos balaústres e sentou na plataforma do primeiro de segunda.
Parada Lageado e embarcou no primeiro de segunda a Lageadana
Bonita que sentou no lado do Moço Feio do Monte Bonito.
Alegrias, parada Alegrias. Os guris vendendo butiás cercaram o trem.
O Tropeiro do Brete do Cerro Chato apeou e se foi ao bolicho comprar uma
garrafa de canha.
Desembarcou a Mulher Triste de Alegrias.
Nascente, estação do Nascente. No recinto em curva, na segunda linha
quatro vagões e uma fila de nove carretas de boi com fardos de lã. Homens
suando e sem camisa carregando os fardos de lã das carretas para os vagões.
Gente pra embarcar, gente esperando gente, gente se despedindo de
gente. Bastante gente na estação. No Nascente era costume o povo da vila ir à
estação ver o “Trem da Tarde”
O Magro Narigudo se pendurou no trem pra comprar jornal e revistas
do Revisteiro do Trem.
O Bagageiro do Trem tentando acomodar no vagão de grandes animais
um carneiro puro da raça Corriedale.
A Nascentina de Nascente se despediu das companheiras de viagem e
antes de desembarcar ainda disse para a Baixinha de Pedras Altas que o feijão
de Nascente é feito com graxa de boi e torresmo de porco.
Batida de sino apito do Chefe de Trem e vamos embora.
Pilantra espiou o Advogado Papareia sesteando, mas com a pasta preta
bem segura no colo.
No primeiro de segunda o Gaiteiro do Seival floreou a gaita e o Moço
Feio do Monte Bonito se apresentou pra cantar um tango; “Adios Muxaxos”.
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Do Nascente a Miguel Carreira, seis quilômetros. Estação Miguel
Carreira e a Mulher Magra Alta subiu, apressada, no carro bufete pra comprar
maçãs e farinha láctea para dar ao seu bebe.
Desembarcou a Miguelina de Miguel Carreira e embarcou o Miguelito
de Miguel Carreira.
O Caçador de Perdiz de Bagé ajudou ao Bagageiro do Trem carregar
seus dois cachorros perdigueiros no vagão de transporte de grandes animais.
O trem continuou sua marcha rumo a Coxilha de Pedras Altas.
Na segunda classe roncava a gaita do Gaiteiro do Seival e o Moço Feio
do Monte Bonito assassinava tangos e não tirava os olhos da Lageadana
Bonita, que já estava bem caída pro lado daquele grande artista.
O Poeta do Passo das Pedras, andando nos carros de segunda classe e
oferecendo seus folhetins de versos: “O Gaúcho valente que lutou com o
diabo”, “Degolas do Capão do Leão”, “O Carreteiro que salvou o Menino
Jesus”.
Na primeira classe as duas; Herdeira Magra e Herdeira Gorda tomando
gasosa no canudinho, era coisa chique, e comendo sanduíches. Segurando
sanduíche com a ponta dos dedos e fazendo planos. Lido este testamento na
gare de Santa Maria, a gente volta ultramultimilionária. A gente vai voltar num
trem especial, alugamos um carro de administração com um cozinheiro e uma
locomotiva. A gente para dois dias em São Lucas para ver a estância e dar
ordens aos empregados. Depois voltamos para Pelotas. Em Pelotas daremos
uma grande festa no “Clube Comercial”, com doces da “Confeitaria Nogueira”
e uma orquestra de Buenos Aires.
Pedras Altas, da “Paz de 23”, do Castelo, das grandes estâncias. Muita
gente pra embarcar e muita gente pra desembarcar.
Desembarcou, com muitas sacolas e mil fofocas, a Baixinha de Pedras
Altas. Embarcou o garboso Cadete da Academia Militar das Agulhas Negras.
O Criador de Galinhas de Raça de Pedras Altas ajudou ao Bagageiro
do Trem carregar as duas gaiolas com galinhas da raça “Legorn”.
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O P42 saiu lento, com cuidado, do recinto de Pedras Altas onde dois
trens estavam sendo carregados com bois. No brete o latido dos cachorros e os
gritos de sapucai dos tropeiros.
Devagar descendo a rampa de Pedras Altas.
No carro bufete o Advogado Papareia sesteando com a pasta preta bem
segura no colo. A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano não tirava os olhos dele.
Pilantra chamou o Garçom do Bufete e pediu uma cerveja. Beber pra
comemorar o sucesso de ter feito a troca das pastas.
O trem descendo com cuidado e se aproximando de Maquinista
Mezatti. O Guarda-chaves de Maquinista Mezatti no seu posto e muito atento
caso o trem disparasse na descida ele tinha que virar a chave para o trem entrar
na linha de segurança.
Passou tranquilo por Mezatti e começou a correr nos campos da
fronteira. Parada José Sartori. O Telegrafista de José Sartori foi comprar do
Revisteiro do Trem um bilhete de loteria.
Pilantra parou de tomar cerveja a passou a tomar novas ideias. Na
naquela noite dormiriam em Bagé. No outro dia embarcariam num trem para
Santa Maria. Em Santa Maria o Senhor Juiz iria ler o testamento do falecido
Pai das Herdeiras. Herdeira Gorda e a Herdeira Magra ficariam com a estância
de São Lucas enquanto a Herdeira Bastarda de São Lucas não teria direito a
herança. Por ter trocado as pastas, ele, ganharia mil hectares de campos,
novecentos bois, oitocentas ovelhas e um casal de patos.
Biboca, estação de Biboca, no recinto um grande trem cargueiro
aguardando cruzamento. Desembarcaram os Esquiladores de Biboca.
Truco! Retruco! E pararam de jogar o truco os Tropeiros de Candiota
porque era o momento de desembarcar.
Candiota, o recinto cheio de vagões carregados com carvão mineral.
Desembarcou quem tinha que desembarcar, embarcou quem tinha que
embarcar. O trem seguiu.
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O Gaiteiro do Seival parou de tocar e guardou a gaita. O Moço Feio do
Monte Bonito parou de cantar tangos e foi cantar a Lageadana Bonita.
Estação de Dario Lassance, embarcou a Morena Bonita de Lassance.
Seival, o recinto cheio de vagões carregados com pedra calcária.
Desembarcou o Gaiteiro do Seival.
Acordou o Advogado Papareia e a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano
foi conversar com ele. Ela apontou o Pilantra e disse:
-Senhor, aquele moço ali trocou as pastas. Essa pasta preta que tá com
o senhor é dele…
Pilantra, segurando a pasta preta, levantou ligeiro e foi pra perto dos
dois dizendo:
-Essa mulher é louca. Eu não troquei pasta…
-Trocou sim, foi no restaurante de Cerro Chato…
O Advogado Papareia sorriu e disse:
-A moça tá enganada. Eu venho desde o Rio de Janeiro cuidando a
minha pasta…
-Desculpe. Se eu tiver razão o senhor me paga uma gasosa e um
sanduíche…
Pilantra gesticulou sorrindo:
-Ora se o caso é gasosa com sanduíche, tá resolvido, eu pago duas
gasosas e dois sanduíches…
Enquanto os três travavam a “Batalha do Seival” o trem saiu da
estação Seival.
O Advogado Papareira sorriu e concordou:
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-Ótimo, a moça vai comer os dois sanduíches e tomar as duas gasosas
e eu vou a o “Water Closet”…
A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano insistiu:
-O senhor pode ir no Vater Closete, mas as pastas tão trocadas.
Pilantra sacudiu o braço dizendo:
-Chega. A moça não tá regulando das ideias.
Pilantra virou as costas e começou a voltar para o seu lugar, o
Advogado Papareia levantou a mão e disse:
-A minha pasta é preta.
Pilantra se virou e apontou a pasta no colo do Advogado Papareia:
-Tá ai; pasta preta.
-E dentro tem um envelope.
Pilantra sorriu vitorioso dizendo:
-Abra a pasta e confira.
O Advogado Papareia sacudiu a cabeça:
-Não precisa abrir, eu sei que esta é a minha pasta.
Pilantra sorriu, olhou para a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano e
debochou:
-A brocoió perdeu.
O Advogado Papareia pensou e disse:
-Mas dentro da minha pasta preta tem uma coisa muito importante:
uma flâmula do glorioso Madureira…
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A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano tirou a pasta preta da mão do
Pilantra, abriu, sorriu e de dentro da pasta tirou a flâmula do glorioso
Madureira.
O trem chegou em Augusto Duprat onde embarcou a Bonita Filha do
Guarda-chaves de Augusto Duprat.
De posse de sua pasta preta o Advogado Papareia pagou três gasosas
de limão e três sanduíches para a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano.
Estação Hulha Negra, a progressista vila no município de Bagé, Hulha
Negra da grande cerâmica, Hulha Negra antiga Rio Negro, da Lagoa da
Música e da triste degola de noventa e três.
O Bagageiro do Trem descarregou as latas com rolos de filmes. O
Funcionário do Correio desceu um malote de correspondências e um fardo de
jornais.
Embarcou a Simpática Professora de Hulha Negra.
De Hulha Negra a Santo Antônio três quilômetros. Santo Antônio;
charqueada grande, o cheiro forte das mantas de charque nos varais. Embarcou
o grupo alegre de Funcionários da Charqueada Santo Antônio.
-A chegar em Quebracho… Quebracho…
Em Quebracho embarcou a Peona de Estância de Quebracho, botas,
esporas, largas bombachas brancas, blusa folgada, brincos de argolas grandes.
Da estação Quebracho a estação Industrial nove quilômetros. Em
Industrial embarcou o Guarda Livros do Frigorifico, vestindo terno e gravata,
com sua elegante pasta preta.
De Industrial a Santa Tereza, cinco minutos. O cheiro forte de charque
nos varais da Charqueada Santa Tereza. A Louca de Santa Tereza subiu no
trem abriu a porta do segundo carro de primeira a gritou:
-Ai guampudo!
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Vários passageiros se voltaram para ver do que se tratava, ela, a Louca
de Santa Tereza deu uma risada e disse:
-Chamei só um.
Dezessete horas e vinte minutos e o trem já rodava nos subúrbios de
Bagé. Parada Brete de Bagé. Na plataforma da pequena parada muita gente
com camisas vermelhas e brancas e bandeiras do Guarany Futebol Clube.
Torcedores e dirigentes do Alvirrubro da Rainha da Fronteira aguardando a
delegação do Sport Club Rio Grande.
O trem saiu do Brete de Bagé apitando e batendo o sino. Aproximando
com calma da estação de Bagé. Agitados os passageiros recolhendo as
bagagens, outros espichando os músculos. Nos carros a carga humana se
preparava para se despejar na plataforma da estação.
Na plataforma agitaram-se os Carregadores, os Choferes de auto de
praça e os Funcionários dos hotéis. Gritos ecoavam:
-Hotel Gloria… Hotel Gloria.
-Auto de praça… Auto de Praça…
Um Jornaleiro anunciava:
-Correio… Correio do Sul.
Bagé, Rainha da Fronteira, do Alvirrubro Guarany com seu estádio
Estrela Dalva, do Jaudenegro Grêmio Esportivo Bagé e seu estádio Pedra
Moura. Bagé da Catedral de São Sebastião, da Panela do Candal e do Clube
Comercial.
O Advogado Papareia com sua pasta preta bem segura desembarcou
com calma pois tinha reservado hotel por telegrama.
Pilantra com a sua pasta preta, desembarcou preocupado por não ter
conseguido fazer a troca das pastas. O caso era ter calma, ir aos cafés da
Avenida Sete, ir a um bom restaurante pra jantar um Filé à Oswaldo Aranha e
terminar a noite nos cabarés lá de perto da Ponte Seca.
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Passageiros que continuariam a viagem para o Ramal de Dom Pedrito
correram para embarcar no trem que estava na ponta norte da plataforma.
O toque do clarim no Regimento de Cavalaria, o canto dos galos e a
cidade Rainha da Fronteira despertava para mais um dia.
Na plataforma da estação os dois trens. Ponta sul o trem para Rio
Grande, ponta norte o trem para Santana do Livramento via Cacequi.
Pilantra desfilou pela plataforma com sua pasta preta debaixo do braço
e apressou em pegar lugar no carro bufete; assim viajava perto da cerveja.
Advogado Papareia com a pasta preta na mão direita e a mala na
esquerda.
Gente se despedindo de gente. Gente triste, gente alegre. Muita gente
na plataforma.
Esbanjando perfume fino, sapatos de salto alto, bolsas de camurça
elegantes as duas herdeiras. Afinal era o grande dia.
Naquele dia, em Santa Maria seria lido o testamento do Coronel Pau
Fincado. Coronel Pau Fincado que tinha esse apelido por ter nascido no
povoado do Pau Fincado lá perto da estação Umbu na linha de Cacequi para
Santa Maria. Coronel Pau Fincado que andou em revoluções, escaramuças,
ditos e não ditos, traições e outros senões. Coronel Pau Fincado que com
cargas de lanças, tiros de boleadeiras, brigas de adagas, fumaça de pólvora e
conchavos políticos conseguiu a estância de São Lucas.
Coronel Pau Fincado que era viciado em carreiras de cavalos, fazia
carreiras de mano, fazia pencas, era o rei da cancha reta. Pois na Revolução de
Trinta o Coronel Pau Fincado foi pro Rio de Janeiro com as tropas
revolucionarias que levaram Getúlio Vargas para salvar o Brasil. No Rio de
Janeiro o Coronel Pau Fincado se dedicou a um dos patrimônios do Brasil: a
mulata. Ele que antes investia em pernas de cavalos passou a investir em
pernas de mulatas e trocou de rio, deixou o grande e foi pro de janeiro.
Mas antes de ir para o Rio de Janeiro o Coronel Pau Fincado casou um
casamento casado dentro dos conformes tri legais. Casamento com Juiz de
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Paz. Juiz de Paz com seu livro de capa grossa, pena, tinteiro, mata borrão.
Assinaturas de testemunhas. Churrasco grande feito no couro, farinha de
mandioca e muita batata doce assada. Festança que sacudiu a estação de São
Lucas. Dois trens especiais com convidados: um do Cacequi e o outro de Santa
Maria.
Desse casamento nasceram as duas herdeiras; Herdeira Gorda e
Herdeira Magra.
Mas Coronel Pau Fincado era cheio de artes e artifícios e acabou
conseguindo uma filha dos pelegos. Filha dos pelegos é como se diz ali
naquele mundo do Umbu e São Lucas quando se trata de filho bastardo. A
Bastarda de São Lucas.
No Rio de Janeiro, pouco antes de morrer, rodeado de mulatas e ao
som do samba o Coronel Pau Fincado fez seu testamento o qual encarregou de
ser levado do Rio de Janeiro para o Rio Grande pelo Advogado Papareia.
As duas herdeiras que se diziam as tri legais, souberam que no
testamento o Coronel Pau Fincado tinha incluído a Filha dos Pelegos; a
Bastarda de São Lucas. Foi que Herdeira Gorda, Herdeira Magra e o Pilantra
tiveram a ideia de fazer um testamento falso no qual só elas as legitimas filhas
de um casamento legítimo eram as donas da herança.
Coronel Pau Fincado nos seus vareios, devaneios e caprichos, mandou
cartas, telegramas, fonogramas, chasques, bilhetes amarrados em patas de
pombos. Papéis assinados, rabiscados, selados, carimbados com firmas,
desconhecidas, reconhecidas. Tudo isso para que o seu testamento fosse lido
na “Gare” da estação de Santa Maria, logo que o Advogado Papareia
desembarcasse do trem.
Chefe de Trem e o Agente trocaram informações. Tudo pronto, hora
de bater o sino anunciando a partida. Calma! Um passageiro atrasado entrou
correndo na plataforma. Quem? A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano.
E saiu de Bagé o trem em que o Advogado Papareia levava uma pasta
preta com o testamento verdadeiro e o Pilantra levava uma pasta preta com o
testamento falso.
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Batendo o sino e apitando, passou na Ponte Seca. A carga humana
ainda estava se acomodando. Os garçons dando jeito em servir café com leite,
pão e manteiga. Alguns passageiros querendo água quente para o chimarrão. O
Revisteiro do Trem oferecendo revistas, gibis e o “Correio do Sul”.
No primeiro de segunda a Cafetina Pobre de Bagé e suas seis gurias.
Estavam indo pra Cachoeira do Sul, porque na fronteira tinham acabado as
esquilas de ovelhas e os esquiladores já tinham ensacado a lã, já tinham
satisfeito os seus desejos e já tinham gastado os pilas. Iam pra Cachoeira do
Sul onde estava em andamento a colheita do arroz e a peonada das granjas tava
com os pilas.
Sentaram juntas as duas comadres de Santa Maria; Comadre Alta e
Comadre Baixa. A Comadre Alta, com o rosto lambuzado de pó, lábios
pintados com batom vermelho forte, brincos de grandes argolas, dois dentes de
ouro, apontou o grupo da Cafetina Pobre de Bagé e disse:
-Tudo china safrista…
O Velho Vesgo de Dilermando de Aguiar perguntou ao Velho Míope
de Canabarro:
-Quem são as gurias?
O Velho Míope forçou o olhar espichou o pesco, olhou e respondeu:
-São chinas que sesteiam pra fora.
Magro alto, bombachas brancas bem largas, sapatilhas de pano, lenço
verde no pescoço o Espalhafatoso de Jaguari falou em voz alta:
-Vou pra Jaguari comer a Maria Cabeluda.
A Cafetina Pobre de Bagé olhou pra ele.
A Comadre Alta de Santa Maria reclamou:
-Falta de respeito.
A Comadre Baixa de Santa Maria, sacudiu o ombro dizendo:
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-Esses, que muito diz, não comem ninguém.
O Velho Biriba de Três Coroas, com uma bombacha amarela,
enfeitada com duas fileiras de botões de cima a baixo, botas de cano curto e
enrugado; botas de gaitinha; sentado com um saco branco no colo.
Sentada ao lado do Velho Biriba de Três Coroas a Loira Bonita.
No segundo de primeira o Pilantra se acomodou no último banco. O
Advogado Papareia ia sentado no primeiro banco.
Um Casal de Pantaneiros de Corumbá chamando a atenção porque
estavam tomando mate numa guampa e com água fria.
O Magro Criador de Porcos Gordos de Giruá sentado com a mala no
colo. Mala cheia de dinheiro, resultado da venda de dez trens de porcos para o
frigorífico de Pelotas.
Os quatro Caixeiros Viajantes, que viraram um banco para ficarem
frente a frente, e iam jogando canastra.
O Jovem Bota Amarela do Erechim que comprou do Revisteiro do
Trem uma pilha de gibis de “Faroeste”.
O Ervateiro de Gaurama, tomando chimarrão numa cuia com enfeites
de prata, a bomba de prata com o bocal de ouro.
A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano, prestando a atenção a tudo que
acontecia dentro daquele carro.
Estação São Martim, o cheiro forte da charqueada, o berro do gado nos
currais. Desembarcou um grupo de Empregados da Charqueada.
Quatro quilômetros de São Martim a São Domingos. São Domingos,
outra charqueada, na segunda linha os vagões carregados com charque.
Embarcou o Caixeiro Viajante da Charqueada São Domingos.
Depois do farto café com leite, pão e manteiga as duas: Herdeira
Gorda e Herdeira Magra começaram a roer, cada uma, uma maçã que
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descascaram com o canivete com cabo de madrepérola que a Herdeira Gorda
tinha ganhado de um exnamorado.
Estação José Otávio. Embarcou o Guasqueiro de José Otávio com um
saco cheio de seus trabalhos em couro: laços, mangos, buçais e boleadeiras.
Sentou ao lado do Espalhafatoso de Jaguari que perguntou:
-Bom dia… Vai pra longe?
-Boenos dias… Vou pra São Gabriel.
-Eu vou pra Jaguari, vou comer a Maria Cabeluda.
No segundo de primeira a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano conversou
com o Casal de Pantaneiros de Corumbá e descobriu que aquele mate tomado
em guampa e com a água fria não era chimarrão e sim terere. E descobriu que
o casal era de Corumbá uma cidade que tinha o apelido de Cidade Branca e
recebeu o convite pra ir conhecer Corumbá, o Pantanal, o tuiuiú e comer
sarrabulho. Sarrabulho uma comida portuguesa que Corumbá adotou pra ser
sua comida tradicional.
O trem procedente de Dom Pedrito encostou na plataforma de São
Sebastião e o Camareiro avisando:
-São Sebastião ponto de baldeação…
E a plataforma se encheu de gente que ia pegar o outro trem.
Os guris atentos lá na ponta do recinto prontos para subirem no trem
que vinha de Bagé pra marcarem lugares e depois venderem aos viajantes por
uns trocados.
Entre os passageiros, o Domador de Passo do Rocha; chiripá, botas de
garrão de potro, boleadeira amarrada na cintura os arreios no ombro.
O casal e treze filhos, todos guris e cada um com dois revólveres de
espoleta na cintura. Os treze se espalharam por entre os passageiros, brincando
de caubói, e dando tiros de espoleta.
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O Caçador de Tatu de Leões, esse era um maluco que uma vez por
mês ia de São Gabriel até a estação Leões caçar tatu na verdade ia procurar um
enterro de dinheiro que diziam que ali havia.
A Mulher do Telegrafista de Upacaraí, viajando só ela e um filho de
colo, ia pra Cacequi.
O Fazendeiro de Vacaiquá, bombachas largas, chapéu jogado nas
costas, faca na cintura. O Subdelegado de São Sebastião aproximou-se dele e
advertiu:
-Seu! Não pode viajar de faca na cintura.
-Ué! Por que?
-É lei.
-Apaga essa lei…
Se movimentou a plataforma de São Sebastião, o trem de Bagé apitou
lá no sinal de apito. Batendo o sino entrou no recinto. Os guris correram a
subir pra marcar lugares.
O trem procedente de Dom Pedrito deu um apito e seguiu rumo a
Bagé.
Gente apressada embarcando e procurando lugar vago. A Mulher
Estabanada da Estação Engenheiro Ataliba Madureira, tropeçou e caiu por
cima do Advogado Papareia fazendo ele dar um pulo e deixar a pasta saltar
para o corredor do carro. Pilantra foi ligeiro e levantou pra trocar as pastas,
mas a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano foi mais rápida e pegou a pasta preta
do Advogado Papareia.
No segundo de primeira embarcou a Cartomante de Dom Pedrito, mais
o casal e seus treze filhos.
A Mulher Estabanada da Estação Engenheiro Ataliba Madureira
sentou ao lado do Advogado Papareia.
37
Também embarcou no segundo de primeira o Fazendeiro de Vacaiquá
e comprou o lugar de um dos guris que marcavam lugar; deu uns pilas e mais
um canivete.
Auxiliada por um Camareiro do Trem a Mulher do Telegrafista de
Upacaraí embarcou com o filho no colo. O carro estava cheio, não tinha mais
lugar vago e ela ficou de pé no corredor. O Fazendeiro de Vacaiquá ficou de
pé, examinou o carro viu o rapaz sentado, foi até o rapaz pegou ele pelo braço
e disse:
-Levanta e dá o lugar pra senhora.
No último carro a Parteira de Saibro não conseguiu lugar, ficou de pé
no corredor, um senhor ofereceu o lugar, mas ela agradeceu dizendo:
-Vou apear em Saibro, daqui ali é dez minutos.
Se ela ia viajar dez minutos naquele trem tinha gente que ia viajar dias.
A Aracajuana Magra, que viajava acompanhada de um filho, contou para o
Caixeiro Viajante:
-Vim a Dom Pedrito visitar meu filho que é Sargento do Quatorze de
Cavalaria e agora estou voltando pra Aracaju… Logo eu chego em Santa
Maria, eu pulo desse trem pro trem que vai pra São Paulo, e no trem de São
Paulo eu viajo três noites e dois dias. De São Paulo eu subo no trem que vai
pra Belo Horizonte e é mais um dia e uma noite viajando. Em Belo Horizonte
eu subo no Trem do Sertão e vou até Monte Azul. Monte Azul até Salvador eu
vou é no Trem Baiano. Em Salvador eu vou subir no Estrela do Norte e nesse
eu chego em Aracaju.
Estação Saibro, na terceira linha alguns vagões carregados com pedras.
Saibro das pedreiras da Viação Férrea e da venda grande. Desembarcou a
Parteira de Saibro.
A Cartomante de Dom Pedrito andou pelo carro se oferecendo pra ler a
sorte dos viajantes. Não paga nada, querendo dá uns pilas… O Advogado
Papareia foi o primeiro a querer saber sua sorte. Ela pediu pra ele tirar três
cartas do baralho e entregar pra ela:
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-Dois de bastos, um valete de espadas e a dama de ouros… Pois
vejamos! Bem o nobre cavalheiro está fazendo essa viagem num importante
negócio… Tem perigo...Tome cuidado…
O Fazendeiro de Vacaiquá bisbilhotou a Bisbilhoteira de Joaquim
Caetano.
Estação Três Estradas. Um trem encostado no brete e sendo carregada
com uma tropa de bois. Na plataforma muito movimento. Um cavalo e uma
égua para serem carregados no vagão para transporte de grandes animais até a
estação Suspiro. Embarcaram no primeiro de segunda os dois donos dos
animais e seus companheiros eram a Parceria de Três Estradas que ia para a
Grande Penca de Suspiro.
A Cartomante de Dom Pedrito pediu ao Pilantra pra escolher três
cartas no baralho e entregar pra ela:
-Báh! Rei de ouros, dama de ouros e sete de ouros… Pois vejamos! O
elegante cavalheiro está nessa viagem em missão importante… Terá sorte…
Êxito…
Estação João Câncio. Embarcou um grupo de homens e acabaram de
encher o primeiro de segunda; doze homens, os Lenhadores de João Câncio
que se acomodaram e logo se dividiram em seis duplas e organizaram um
torneio de truco, que a viagem era longa. Iam para a estação Sertão na Linha
da Serra.
A vila do Ibaré junto ao Arroio Jaguari e da Sanga da Cachoeira. Ibaré
da capela de Santo Antônio.
Os Vendedores de Pastéis cercaram o trem. Pastel recheado com
guisado de charque.
O Casal de Pantaneiros de Corumbá comprou pastéis, mas ela disse:
-Eu tou com vontade de um chipá…
Ele riu e comentou:
39
-Chipá! Só vamos comprar chipá lá na estação Taunay.
Problema na plataforma, um cavalo colhudo que estava para ser
carregado no vagão para transporte de grandes animais sentiu o cheiro da égua
que já estava no vagão, aquela égua que foi carregada lá na estação Três
Estradas. O colhudo ficou excitado, relinchou, esperneou, se empinou, batia
com o pênis na barriga e deu coices. Dentro do trem a égua tremeu, escoiceou
e mijou bastante. O dono afastou o colhudo pra longe do trem. O Chefe do
Trem reclamou com o Agente de Ibaré, como ele tinha aceitado despachar um
cavalo colhudo sem a cinta broxante.
O trem atrasando mas conseguiram a tal cinta. Uma tira de couro com
uma tábua fina cheia de pregos de ponta pra fora. Colocaram a cinta no cavalo
com a tábua dos pregos embaixo da barriga. Voltaram com o colhudo pra perto
do trem, ele sentiu o cheiro da égua relinchou, endureceu o membro sacudiu e
bateu nas pontas dos pregos. Brochou, ficou manso e foi carregado.
Homens, mulheres e crianças, todos alegres, embarcaram; a Parceria
de Ibaré que ia para a penca de Suspiro.
A Mulher Estabanada da Estação Engenheiro Ataliba Madureira
tentando segurar a garrafa de gasosa e quatro pastéis acabou derramando
gasosa por cima do Advogado Papareia. O Advogado levantou ligeiro deixou a
pasta preta em cima do banco e foi ao “wc” se lavar.
Pilantra viu tudo, olhou a pasta do Advogado Papareia em cima do
banco. Era o momento. Levantou, viu que a Mulher Estabanada da Estação
Engenheiro Ataliba Madureira estava atrapalhada com os pastéis, caminhou
disfarçado, mas no momento que ia trocar as pastas um guri encostou o cano
do revólver de espoleta na barriga dele e disse:
-Mãos ao alto.
Estação Coronel Linhares. Recinto cheio de vagões carregados com
pedra calcária. Subiu apressado no carro bufete o Gerente da Pedreira pra
comprar charutos e chocolates.
A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano escolheu as três cartas e entregou
para a Cartomante de Dom Pedrito:
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-Bah! Ás de ouro, rei de ouro e sete de ouro… Pois vejamos! A bonita
jovem vai encontrar, nessa viagem, o grande amor da sua vida… Vão casar,
vão ter filhos… Tu vais remendar bombachas, tu vais lavar roupas sujas com
barro de curral, tu vais botar galinhas em choco, tu vais tirar leite, tu vais
comer frussuras com farinha de mandioca, vocês vão brigar e ser felizes para
sempre.
Estação Von Bock. Embarcou o Coimeiro de Von Bock com sua
pesada mala de madeira onde levava fichas, baralhos e ossos de garão de boi.
Ia pra Suspiro explorar os jogos de osso, e mais os jogos de baralho; primeira e
solo, junto a cancha de carreiras.
O Fazendeiro de Vacaiquá tentou pealar a Bisbilhoteira de Joaquim
Caetano com os olhos, mas ela olhou pra outro lado.
Suspiro; estação Suspiro, muita gente na estação aguardando as
parcerias que iam para a grande penca. Penca com nove cavalos; três ternos e
mais o terno do desempate.
O Domador de Passo do Rocha; chiripá, botas de garrão de potro,
boleadeira amarrada na cintura os arreios no ombro, apeou do trem e já
gritando:
-Jogo mil pilas… Mil pilas no Colhudo do Ibaré….
Descarregaram os dois cavalos e a égua. Bagageiro do Trem, mais os
Guarda-freios do Trem, auxiliados pelo Guarda-chaves de Suspiro
descarregando do vagão de encomendas caixas de cerveja, caixas de gasosa,
um barril de vinho, um barril de canha.
Os grupos de parcerias espalhados e o comentário geral era que a Égua
de Vacacai ganharia a penca.
O trem correndo rumo a Coxilha do Batovi já em terras de São
Gabriel. A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano olhou para o Fazendeiro de
Vacaiquá.
Estação Lindolfo Waick, embarcou a Doceira de Lindolfo Waick com
duas sacolas cheias de vidros com doce de leite.
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Parada Estância do Céu. Um Cabo da Brigada Militar e dois
Brigadianos embarcaram levando preso o ladrão de ovelhas conhecido pelo
apelido de o Diabo de Estância do Céu.
Vacacai, na segunda linha um grande trem de cargas aguardando o
cruzamento com o trem de passageiros.
Um grupo de guris, pés descalços, calças curtas presos por tirantes de
pano, cercaram um Guarda-freio do Trem pra comprar bolinhas de gude e
canivetes. O Guarda-freio que aproveitava as viagens e vendia bugigangas ao
longo da linha.
Finalmente o olhar do Fazendeiro de Vacaiquá se pechou com o olhar
da Bisbilhoteira de Joaquim Caetano.
Estação Santa Brígida e o cheiro forte da graxeira da charqueada.
Embarcou o Caixeiro Viajante da Charqueada Santa Brígida, ia para uma
longa viagem, chegando em Santa Maria ia embarcar no trem para São Paulo,
depois no trem de São Paulo para Belo Horizonte, de Belo Horizonte no Trem
do Sertão até Corinto. Em Corinto embarcaria no trem do ramal de Pirapora
até Pirapora na barranca do São Francisco. De Pirapora ia descer o Velho
Chico, nos vapores da Companhia de Navegação do Vale fazendo a praça de
Pirapora a Juazeiro.
São Gabriel Terra dos Marechais. São Gabriel a Princesa das Coxilhas.
Muito movimento na plataforma da estação. O elegante Juiz, de terno preto e
gravata branca e a bengala com cabo de prata. O Comandante do Regimento
de Cavalaria, com suas botas lustradas.
O trem chegando devagarzinho, batendo o sino saudando a cidade dos
“Fuzilados”, a cidade de lendas e histórias.
No primeiro de segunda desembarcou o Guasqueiro de José Otávio
com um saco cheio de seus trabalhos em couro: laços, mangos, buçais e
boleadeiras. Embarcou a Viúva do Finado Bolicheiro da Estação Vinte
Pinheiros e sentou ao lado do Espalhafatoso de Jaguari que já foi perguntando:
-A senhora vai pra donde?
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-Vou pra Vinte Pinheiros na linha de São Borja.
-Pois bamos pra mesma linha. Eu vou pra Jaguari comer a Maria
Cabeluda.
Embarcou o Recruta da Terra dos Marechais de braços com a China de
Três Divisas.
Com as tralhas de pesca um grupo que ia pescar no Inhatinhum.
Embarcou a Sertaneja de Massaroca, além da mala levava uma lata
grande cheia de farofa pra comer na viagem. Eita moço! Eu é vou passar por
muito chão até chegar na vila de Massaroca, a pois do Trem Baiano em
Salvador eu vou é subir no trem de Juazeiro, que Massaroca é lá no chão de
Juazeiro. Eita!
No segundo de primeira embarcou o Jovem Escritor Gabrielense, com
uma pasta preta onde levava os originais de mais um romance. A Bisbilhoteira
de Joaquim Caetano comentou:
-Três pastas pretas nesse carro.
Embarcou o Fazendeiro de Canabarro, botas pretas, bombachas pretas,
camisa preta, colete preto, lenço tricolor no pescoço; vermelho, verde e
amarelo, “as cores do Rio Grande do Sul”, bisbilhotou a Bisbilhoteira de
Joaquim Caetano.
Gente embarcando, gente desembarcando, alegrias de reencontros,
tristezas de separações.
E vamos que o mundo é grande e o tempo é pequeno.
O Agente de São Gabriel bateu o sino, o Chefe de Trem apitou, o
Maquinista, puxou a corda do apito. Saiu devagarzinho, batendo o sino. Das
casas, beira trilho, os olhares curiosos. Junto a linha um grupo de guris
jogando o taco.
No primeiro de segunda o Guarda-freios do Trem, que vendia
bugigangas, mostrando suas mercadorias para os Lenhadores de João Câncio,
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que estavam jogando o torneio de truco. Um canivete, ou um chaveiro, talvez
um isqueiro, uma bomba de chimarrão? Estavam escolhendo o troféu que
dupla vencedora ganharia.
O Biriba de Três Coroas continuava com o saco branco no colo.
No segundo de primeira o Fazendeiro de Vacaiquá e o Fazendeiro de
Canabarro iam de olho na Bisbilhoteira de Joaquim Caetano
O Pilantra ia com vontade de tomar uma cerveja, mas ia preocupado
que o tempo tava correndo junto com o trem e ele não tinha conseguido trocar
as pastas.
Tiaraju; quatro carretas carregadas de melancias, cinco carretas com
fardos de lã, três carretas carregando mercadorias no armazém. No brete uma
tropa de gado chucro dos campos do Inhatinhum; tudo boi franqueiro com
guampas grandes.
O trem de passageiros apitou lá no sinal de apito e o gado se agitou no
brete. Estourou a tropa e rebentou o brete. Passageiros, que estavam na
plataforma da estação, entraram, apavorados, pra dentro do escritório.
O trem entrando no recinto e aquela confusão de bois correndo pra
todo o lado e carretas desgovernadas. Virou uma carreta. Um Guarda-freios
acionou o freio de emergência e o trem parou de golpe.
No primeiro de segunda o Espalhafatoso de Jaguari gritou:
-Pechooooooooooooouuuuuuuuu!
O Biriba de Três Coroas segurou firme o saco branco que carregava no
colo. A China de Três Divisas pulou para o colo do Recruta da Terra dos
Marechais. A Cafetina Pobre de Bagé caiu sentada no corredor do carro.
No segundo de primeira, o Fazendeiro de Vacaiquá e o Fazendeiro de
Canabarro pularam para ir proteger a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano. Os
treze guris armados cada um com dois revólveres de espoleta gritaram
contentes:
44
-Índios atacando o trem.
Começaram a estalar espoletas. O Advogado Papareia deixou cair a
pasta preta. Pilantra pulou ligeiro pra aproveitar a confusão e trocar as pastas,
mas a Mulher Estabanada da Estação Engenheiro Ataliba Madureira pechou
nele e os dois caíram abraçados.
Passado o susto o Espalhafatoso de Jaguari riu e disse:
-Báh! Pensei que nem ia chegar em Jaguari pra comer a Maria
Cabeluda.
A Cafetina Pobre de Bagé chegou perto dele e perguntou:
-Ainda que mal pergunte; essa Maria Cabeluda não é uma mulata da
cintura fina e bunda grande?
O Espalhafatoso de Jaguari, botou a mão na cabeça e disse:
-Não! Maria Cabeluda é uma comida lá de Jaguari. É arroz feito com
charque desfiado.
Tropeiros do Inhatinhum e Carreteiros do Tiaraju acalmaram os bois e
a confusão passou e passou o trem em Tiaraju.
E chegou o trem em Inhatinhum e desembarcou o grupo de
pescadores. E a moça bonita; Vendedora de Roda de Carreta Frita do
Inhatinhum, oferecendo sua mercadoria nas janelas do trem.
E a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano comentou:
-Roda de carreta frita, coisa boa.
O Fazendeiro de Vacaiquá comprou seis e deu pra ela. O Fazendeiro
de Canabarro comprou meia dúzia e também deu pra ela.
Bela União, faltando cinco minutos para as onze horas e aquele frete
de último minuto. Um caixão de defunto com o dito defunto. O telegrafista que
estava tomando conta da estação era novo e não estava sabendo como calcular
o frete...
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Caixão ali na plataforma. A viúva e os filhos brigando por causa da
herança. A viúva viu um grupo afastado, olhando a briga e sabia que aqueles
estavam esperando o momento de entrar na disputa pela herança; eram “filhos
dos pelegos” do finado que aliás entre ela e o falecido não teve uma bela
união. Enquanto isso os netos do finado aproveitavam o comprido banco da
plataforma pra brincar de pari gata.
E o P33 apitou no sinal de apito e o Telegrafista de Bela União não
perdeu mais tempo, usou para calcular o valor do frete a tabela usada para
calcular frete de carne de porco.
As onze horas e três minutos saiu o P33 de Bela União com um morto
e quatrocentos e trinta vivos.
Três Divisas. Três divisas estava o Sargento do Quinto de Cavalaria de
Quarai que estava levando o Desertor de Três Divisas.
Parada rápida em Três Divisas onde desembarcou o Recruta da Terra
dos Marechais e embarcou o Desertor de Três Divisas.
-Próxima estação é Azevedo Sodré… Azevedo Sodré…
Em Azevedo Sodré embarcou o casal e quatro filhas, moças muito
bonitas e os marmanjos regalaram os olhos e o velho tossiu seco. As quatro
moças sentaram e com um barbante começaram a jogar cama de gato.
Retiro, embarcou com suas pobrezas num saco branco fechado com
um nó o Retirante de Retiro com destino a Piraputanga no Mato Grosso.
-A chegar no Cacequi… Cacequi ponto de almoço… Cacequi;
passageiros que seguem para Santa Maria e Porto Alegre…
Se movimentou a carga, sacudiram as bagagens, roncaram as tripas e
estômagos.
O P33, as doze horas e vinte e cinco minutos, chegava no segundo
entroncamento ferroviário do Rio Grande do Sul. Ao meio dia se encontravam
em Cacequi os quatro; P33, P34, P31 e P32. P33 e P34 faziam a linha
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Bagé/Cacequi/Santana do Livramento. P31 e P32 faziam a linha
Uruguaiana/Cacequi/Santa Maria e recebiam o apelido de “Fronteira”.
Gente marcando o lugar. Gente com fome correndo para o restaurante.
Gente trocando de trem. Camareiros e Carregadores ajudando e orientando.
-Pra Bagé é lá naquela ponta… Aqui o Fronteira.
A Mulher Estabanada da Estação Engenheiro Ataliba Madureira
andou de sul a leste de oeste a norte, pediu informações e mais informações e
acabou embarcando no trem errado.
Cacequi do famoso bife de charque e a Bisbilhoteira de Joaquim
Caetano correu para o restaurante e o Fazendeiro de Vacaiquá se apressou para
sentar na mesma mesa. Momento em que os dois estavam sentando, sentou,
também, o Fazendeiro de Canabarro. Ficaram os três na mesma mesa; ela
devorando uma pilha de bifes de charque e eles os dois se olhando e rosnando.
Pilantra pensava em trocar as pastas naquele vai e vem dentro do
restaurante, mas o Advogado Papareia se sentou junto a uma mesa grande
onde estava a delegação do Quatorze de Julho de Livramento e ele teve que
sentar no outro canto do restaurante junto com um grupo de Filhas de Maria,
religiosas que iam do Alegrete para Santa Maria.
A Cafetina Pobre de Bagé e suas gurias se acomodaram no segundo
carro de segunda do Fronteira e depois de acomodadas devoraram duas
galinhas de trem.
Baldeação feita, gente trocou de trem, gente continuou no mesmo
trem. Gente se separou, gente se aproximou. Novos companheiros de viagem.
No segundo de segunda do Fronteira, onde já vinham viajando os três
componentes do Conjunto de Cantores de Chamamé da Barra do Quarai, um
gaiteiro e dois violões. Vinham o Velho Coronel Chimango da Estação
Inhandui e o Velho Coronel Maragato da Estação Caverá. Nesse carro se
acomodou o Biriba de Três Coroas com o saco branco no colo. A Viúva do
Finado Bolicheiro da Estação Vinte Pinheiros e sentou ao lado da Viúva do
Falecido Bolicheiro da Estação Foguista Lacerda.
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No primeiro de primeira o Pilantra sentou ao lado do Advogado
Papareia, cada um segurando a sua pasta preta. No banco defronte o deles, no
outro lado do corredor, sentou o Jovem Escritor Gabrielense, também
segurando a sua pasta preta.
Nem o Fazendeiro de Vacaiquá e nem o Fazendeiro de Canabarro
conseguiu sentar ao lado da Bisbilhoteira de Joaquim Caetano, porque ela
sentou ao lado de um passageiro que já estava no carro; o Mentiroso do Guaçu
Boi.
O Baiano Piritibano de Piritiba sentou ao lado do Caixeiro Viajante de
Caxias do Sul
Pastéis com gasosa, bife de charque, galinha de trem e tava feita a
refeição e era o momento de continuar a viagem.
Início da tarde, hora da sesta, hora da preguiça e do desanimo. No
segundo de segunda a Cafetina Pobre de Bagé resolveu movimentar a carga do
carro e pediu ao Conjunto de Cantores de Chamamé da Barra do Quarai, um
gaiteiro e dois violões:
-Tche! Bamos bailar um chamamé.
E os três não se fizeram de rogados e já chorou a gaita e tiniram os
violões e um chamamé ecoou na segunda classe.
Na primeira classe o Caixeiro Viajante de Caxias do Sul contou para o
Baiano Piritibano de Piritiba:
-Eu vendo vinho de Caxias e salame de Caxias. Gosta de vinho com
salame?
-Oxente! Eu gosto é de macaxeira frita com cerveja. Eu sou é da
Bahia, eu sou é de Piritiba, que Piritiba é lugar bonito na Chapada Diamantina.
Conhece Piritiba? É estação de trem na linha que vai do Iaçu pra Senhor do
Bonfim. Conhece Bonfim? Cidade boa, ali chove, tem uma serra bonita. A
pois eu vou no Trem Baiano até Iaçu e no Iaçu eu é vou rodar mais cento e
cinquenta quilômetros pra chegar em Piritiba. Do Iaçu para Piritiba eu vou é
no Trem da Grota. Sabe o Trem da Grota? A pois ele vai do Iaçu até Bonfim.
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Andei é muito no Trem da Grota é que eu fui guia de um cego e a gente
andava naquelas feiras. Feira grande e bonita é a de Jacobina. Conhece
Jacobina? Perto de Jacobina tem uma estação que é Pau Seco, eita! Lá em Pau
Seco eu namorei a filha de um cangaceiro. Capitão do Pau Seco, moço! Esse
bicho era danado de brabo. Zabelinha de Capitão do Pau Seco é o nome da
moça, conheci foi é na feira de Miguel Calmon. Conhece Miguel Calmon? E a
gente começou o namoro. Pois foi que Zabelinha ficou é buchuda. Vinha eu
mais o cego voltando do Bonfim, eita! Deu lasqueira. O Trem da Grota parou
na estação do Pau Seco e quem tava lá? Zabelinha vestida de noiva, mais o
Padre e mais o Delegado e mais o Capitão do Pau Seco e mais a jagunçada…
Na segunda classe o Biriba de Três Coroas tirou do saco branco a gaita
de botão e sacudiu tocando um bugio.
O sol morno de início de tarde o trem correndo. Hora da sesta.
Pilantra, com a pasta preta o colo, tirando um cochilo. Advogado Papareia,
com a pasta preta no colo, também tirando um cochilo e sesteando com a pasta
preta no colo o Jovem Escritor Gabrielense.
Estação Floriano Maidano, aguardando cruzamento com o Fronteira
um trem, grande, com um Regimento de Cavalaria que seguia para o Campo
de Instrução na Estação Saicã.
Enquanto a maioria dos passageiros do primeiro carro de primeira
cochilavam, inclusive os pais deles, os treze “mocinhos” pegaram seus
revólveres de espoleta e vibraram vendo o outro trem:
-A cavalaria chegou!
E correram por dentro do carro estalando espoletas. Um deles gritou:
-As malas do tesouro.
Outro, o menor, muito ligeiro juntou as três pastas pretas.
Na segunda classe reinava a alegria entre chamamés e bugios e pra
completar; se apresentou para declamar uma poesia o Pajador de Touro Passo.
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Na primeira classe o Pilantra pulou para pegar as três pastas e pegou
dizendo:
-Eu distribuo…
A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano levantou dizendo:
-Não te faz de sorro manso. Eu distribuo…
Segurando as três pastas ele interrompeu:
-Cala a boca…
Fazendeiro de Vacaiquá e Fazendeiro de Canabarro puxaram as suas
facas e se posicionaram junto a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano e ela
retrucou:
-Cala a boca já morreu, agora quem manda sou eu…
Na segunda classe a Viúva do Finado Bolicheiro da Estação Vinte
Pinheiros ia ensinado a Viúva do Falecido Bolicheiro da Estação Foguista
Lacerda a fazer o feijão de Vinte Pinheiros:
-Eu faço o feijão bem simples e quando tá quase pronto eu frito uns
ovos e despejo na panela do feijão e deixo cozinhar. No meu bolicho eu faço
boia pra vender. A estação de Vinte Pinheiros tem o brete pra carregar bois nos
trens, e ali chegam muitos tropeiros…
Na primeira classe a Herdeira Gorda ia roendo a unha, nervosa. O trem
estava próximo da estação de Umbu. E depois do Umbu a estação de São
Lucas. Em São Lucas embarcaria a lambisgoia, a mulata ranhenta, a filha dos
pelegos, a Bastarda de São Lucas.
O velho careca, olho de vidro e desdentado chamou o Camareiro do
Trem e perguntou:
-O trem para no Pau Fincado?
-Não… Pau Fincado não tem estação… Tem que descer no Umbu.
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Estação Umbu, embarcaram os artistas do Gran Circo de Touradas. O
mais saliente era el torero espanhol Juan de la Mancha; nascido e criado na
Bossoroca.
Pilantra foi ao bufete tomar uma cerveja pra se acalmar. A viagem tava
quase no fim e ele não tinha trocado as pastas.
O Mentiroso do Guaçu Boi contando para a Bisbilhoteira de Joaquim
Caetano:
-Agora lá adonde eu moro tem um lobisomem, esses dias eu lacei ele
mas o bicho passou os dentes no laço e cortou.
-E o senhor não tem medo de lobisomem?
-Não, não tenho medo de assombração. A moça já viu lobisomem?
-Não. Eu já vi mula sem cabeça. Naquelas estações do Ramal de
Jaguarão; Airosa Galvão e Joaquim Caetano tem bastante mula sem cabeça.
Do Umbu a São Lucas a distância é vinte e três quilômetros. Na
estação de São Lucas, vestida de preto, a Bastarda de São Lucas, esperando o
trem.
Botas rasgadas, bombacha remendada, guaiaca larga, faca na cintura,
caminhando a passos largos o Louco da Beira dos Trilhos chegou na
plataforma e gritou:
-Buenas que me espalho, nos pequenos dou de plancha e nos grandes
dou de talho.
A Bastarda de São Lucas sorriu e o Louco da Beira dos Trilhos chegou
perto dela e pediu:
-Me dá uns pilas.
Ela remexeu na bolsa tirou uns trocados e deu pra ele.
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Ele agradeceu, eram muito amigos. Sempre que ele passava em São
Lucas, ela dava café, dava boia e dava uns pilas. Ele fazia algum serviço,
limpava galinheiro, capinava o pátio, cortava lenha.
O Agente de São Lucas bateu o sino duas vezes anunciando que o
Fronteira estava com licença concedida para trafegar no trecho Umbu/São
Lucas. O Louco da Beira dos Trilhos saiu caminhando a passos largos
dizendo:
-Vou indo, tenho que passar no Chagas e hoje eu vou posar no
Dilermando.
Estação São Lucas, embarcou a Bastarda de São Lucas no primeiro de
primeira.
O Advogado Papareia, soltou a pasta preta no banco e foi
cumprimentar a Bastarda de São Lucas.
Pilantra viu a pasta, em cima do banco, ali no seu lado, não acreditou,
pensou vacilou, sorriu e trocou as pastas. Levantou sorrindo e foi delicado, deu
o seu lugar para a Bastarda de São Lucas.
A Bisbilhoteira de Joaquim Caetano não notou que ele trocou as
pastas, ela tava distraída contando para O Mentiroso do Guaçu Boi a história
de um primo dela, que lá em Airosa Galvão, montou numa mula sem cabeça.
Contente o Pilantra foi ao carro bufete tomar uma cerveja, quando ia
atravessando de um carro para o outro jogou a pasta preta do Advogado
Papareia fora.
A zoada do trem, o chiado dos cilindros, o cheiro de ferros quentes, e o
barulho das rodas. E aquela coisa que caiu por cima dele. Refeito do susto o
Louco da Beira dos Trilhos olhou a pasta no chão. Pegou, abriu, tirou o
envelope, abriu, pegou o papel, leu, botou o papel dentro da pasta. Tirou uma
vela do bolso, agachou, acendeu a vela pedindo:
-Negrinho do Pastoreio me ajuda.
Saiu correndo rumo à estação Chagas.
52
O trem parou em Chagas e embarcou no primeiro de segunda o Gringo
Gordo de Bento Gonçalves, com dois sacos brancos, dentro de cada saca uma
lata de vinte quilos de banha com passarinhos fritos. Passou um mês em
Chagas armando arapucas pra caçar passarinhos; pra comer com polenta.
Agente bateu o sino, Chefe do Trem apitou e o trem seguiu.
De Chagas a Dilermando de Aguiar a distância é treze quilômetros. E
o Camareiro do Trem avisando:
-Chegando em Dilermando de Aguiar… Passageiros com destino ao
Ramal de São Borja, desembarcam em Dilermando… Passageiros para São
Pedro do Sul, Mata, Jaguari, Unistalda…O trem entra no ramal amanhã de
manhã…
O Louco da Beira dos Trilhos entrou estabanado no escritório da
estação Chagas, sentou junto a mesa, da pasta tirou o testamento, pegou a pena
molhou na tinta e disse para o Agente de Chagas, que estava até de boca
aberta:
-Desculpa… É causo de urgência… Vê ai selos e carimbos…
Em Dilermando de Aguiar o Espalhafatoso de Jaguari desembarcou
apressado e correu para garantir vaga no hotel. Desembarcou o grupo de
artistas do Gran Circo de Touradas, na frente o Palhaço, tocando matraca,
fazendo cambalhotas e anunciando a chegada.
Em Chagas o Louco da Beira dos Trilhos escreveu o texto, colou selos,
carimbou com o carimbo da estação umas quatro ou cinco vezes.
O Fronteira saiu de Dilermando de Aguiar apitando e batendo sino.
Pra sorte do Louco da Beira dos trilhos, os Trabalhadores da
Conservação da Via Permanente da Turma de Chagas; os Tucos de Chagas,
estavam no recinto da estação. Ele pulou pra cima do trólei e ordenou:
-Bamos que nos bamos.
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De Dilermando de Aguiar até a estação Canabarro à distância de vinte
e seis quilômetros. No primeiro de primeira o clima tava esquentando. O
Fazendeiro de Canabarro insistindo e fazendo sinais para a Bisbilhoteira de
Joaquim Caetano e o Fazendeiro de Vacaiquá a todo instante tossia e tocava no
cabo da faca.
Em Canabarro o Peão do Fazendeiro de Canabarro segurando a rédea
da bonita égua tordilha do patrão.
Estação Canabarro e o Fazendeiro de Canabarro levantou chegou perto
da Bisbilhoteira de Joaquim Caetano e disse:
-Prenda bonita, aqui eu apeio, que aqui é meu pago, te convido a apear
com eu…
O Fazendeiro de Vacaiquá levantou e interrompeu dizendo:
-Apeia e deixa a prenda quieta…
Um Bagageiro do Trem apressou em evitar encrenca dentro do carro e
convidou os dois a desembarcar.
Movimento na plataforma e o Agente de Canabarro sem entender o
que estava acontecendo.
Na segunda classe correu o boato. Morreu um lá na primeira classe,
peleia. Parece que ainda não morreu. Briga por causa de mulher. Baita
bobagem; mulher, bolacha e cachaça em qualquer lugar se acha.
Fazendeiro de Vacaiquá e Fazendeiro de Canabarro ali trocando
adjetivos e substantivos enquanto a Bisbilhoteira de Joaquim Caetano tava só
olhando. E o trem parado.
De homens apaixonados, de homens abobados e de chinas matreiras a
Cafetina Pobre de Bagé entendia e ela desembarcou foi a plataforma e assumiu
o comando da situação. Mandou um guri buscar uma taquara que estava
suspendendo um varal de roupas no pátio da estação e mandou o Biriba de
Três Coroas desembarcar. Botou a taquara na plataforma e disse:
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-Disputa por china se resolve é na chula.
Fazendeiro de Vacaiquá numa ponta da taquara e Fazendeiro de
Canabarro na outra e o Biriba de Três Coroas floreou a gaita.
Enquanto isso entre as estações de Chagas e Dilermando de Aguiar os
quatro Tucos empurravam o trólei a toda e o Louco da Beira dos Trilhos
comandava:
-Galopeia… Galopeia…
Bonita a dança da chula na plataforma de Canabarro. Começou o
Fazendeiro de Vacaiquá sapateando ao longo da taquara, foi e voltou. Muita
gente desceu do trem pra assistir a dança. O Fazendeiro de Canabarro sapateou
ida e volta batendo no cano da bota. Alguém gritou:
-Jogo cem pilas no Vacaiquá.
Chuleia pra lá, sapateia pra cá, chuleia pra cá, sapateia pra lá e o trem
atrasando. Upa! O Canabarro pisou na taquara. Palmas e assobios; ganhou o
Vacaiquá.
A Cafetina Pobre de Bagé segurou o braço da Bisbilhoteira de
Joaquim Caetano e entregou ao Vacaiquá.
Terminou a dança os viajantes voltaram para o trem. O Fazendeiro de
Canabarro apertou a mão do Fazendeiro de Vacaiquá e fez sinal ao seu Peão
pedindo:
-Traz a égua tche.
Já ia montar na égua tordilha quando o Fazendeiro de Vacaiquá
comentou:
-Bonita a égua.
O Fazendeiro de Canabarro sorriu e disse:
-Tá pra negócio…
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O Fazendeiro de Vacaiquá fez a proposta:
-Troco pela china…
O Agente de Canabarro mais que ligeiro disse:
-Eles que fiquem negociando e o trem vai embora.
Bateu o sino e o trem saiu de Canabarro.
Saiu o Fronteira de Canabarro e chegava o Missioneiro em
Dilermando de Aguiar onde também chagava o trólei com o Louco da Beira
dos Trilhos.
Diminuindo a marcha o Missioneiro saiu do ramal de São Borja e
estava encostando na plataforma de Dilermando de Aguiar quando o Louco da
Beira dos Trilhos entrou na máquina, bateu nas costas do Maquinista do
Missioneiro dizendo:
-Ajuda o Foguista que eu toco esse troço.
Abriu o regulador as rodas motrizes patinaram, abriu o areeiro, puxou
a corda do apito, bateu sino. O Missioneiro não parou em Dilermando de
Aguiar.
O Fronteira estava chegando na bonita vila de Boca do Monte e nova
confusão: o Velho Coronel Chimango da Estação Inhandui levantou do banco
e seguiu pelo corredor do carro com intenção de ir ao “WC”, quando passou ao
lado do Velho Coronel Maragato da Estação Caverá, disse:
-O Generalíssimo José Flores da Cunha tinha que ter matado o
Bisonho Tropeiro do Caverá e todos os seus cupinchas.
O Velho Coronel Maragato da Estação Caverá segurou as pontas do
lenço colorado e disse:
-O Leão do Caverá é que devia ter capado o Boi tata de Uruguaiana e
todos os maturrangos…
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Em Dilermando de Aguiar o Agente, o Telegrafista e o Guarda-chaves
ficaram com cara de brocoió olhando o Missioneiro passar correndo.
O Fronteira parado em Boca do Monte, da Igreja de Santo Antônio e
do Clube Concórdia. O Velho Coronel Chimango da Estação Inhandui puxou a
faca da cintura e o Velho Coronel Maragato da Estação Caverá levantou,
ligeiro, e também tirou a faca da cintura.
Trem em louca corrida entre Dilermando de Aguiar e Canabarro.
Passageiros que iam desembarcar em Dilermando sem saber o que estava
acontecendo. Camareiros e Guarda-freios sem entender. Boatos, duvidas,
palpites e mentiras. Rebentou uma válvula de escape. O Maquinista ficou
louco. O Maquinista morreu do coração e o Foguista pulou da máquina. Eu
acho que se escangalhou os freios.
O Bananeiro de São Francisco do Sul andou nervoso por dentro do
carro.
A Puta Rica de São Borja sacudiu as mãos de unhas grandes pintadas
com esmalte brilhante e reclamou:
-Será que não tem um homem pra parar esse trem.
O Gaúcho Valente de Curussu foi até a plataforma do carro e disse:
-Preteou o olho da baia. Eu vou apear desse troço.
E pulou do trem, caiu e saiu rolando pela beira dos trilhos.
O Bananeiro de São Francisco do Sul sentou, levantou, passou as
mãos no casaco. Tinha que pegar, em Santa Maria, o Trem Paulista e viajar até
Porto União da Vitoria. Em Porto União embarcar no Trem Bananeiro e viajar
até São Francisco do Sul onde tinha o compromisso de carregar dez vagões
com bananas para mandar para São Borja.
No primeiro de primeira a Mulher do Guarda-chaves de Taquarichim
ia dizendo para a Lavadeira de Vila Clara:
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-De trem eu entendo, que eu me criei na beira da linha, o meu pai era
Tuco e o meu marido é Guarda-chaves. Ai na frente vai indo o Fronteira e se
esse nosso não parar vai dá uma baita pechada.
No segundo de segunda a Beata de Unistalda tirou o terço da bolsa e
comandou:
-Pessoal vamos rezar um terço para que o Senhor Jesus nos ajude…
Em nome do Pai…
No último carro o Maquinista Aposentado de Santiago ia contando
para o Comerciante de Mata.
-Quando eu entrei na Viação Férrea eu fui ser Foguista lá no Depósito
de Rio Grande. A minha primeira viagem foi no Trem Excursão. Esse trem é
um trem que tem todos os domingos entre Rio Grande e Olimpo. De manhã ele
vai de Rio Grande para o Olimpo e no fim do dia ele volta. E era a minha
primeira viagem e a gente passou na estação do Povo Novo e o senhor
acredita, o Maquinista desmaiou. Báh o Trem Excursão correndo, o
Maquinista desmaiado e eu ali sem saber o que fazer. Despejei água fria em
cima do Maquinista e nada, o homem desmaiado e o trem correndo e a gente
quase chegando na estação do Capão Seco. E tinha um problema; no Capão
Seco o Trem Excursão faz o cruzamento com trem de passageiros P43. Eu
respirei fundo, olhei as alavancas da máquina e nós passamos correndo pelo
recinto do Capão Seco e ali vinha o P43, e nós ia se pechar. Criei coragem e
fechei o regulador de pressão, virei a alavanca de reversão de marcha e dei o
contravapor. Paramos um palmo um do outro.
Em Boca do Monte e peleia entre o Velho Coronel Chimango da
Estação Inhandui e o Velho Coronel Maragato da Estação Caverá foi
apaziguada pelo Cabo Comandante do Pelotão da Brigada Militar de Boca do
Monte e o trem continuou a viagem.
-Movimento, cruzou de cruzada o Missioneiro por Canabarro.
-O quê??
-O Missioneiro passou a todo o vapor em Canabarro.
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-BÁH!!
Pobreza pouca é bobagem. Dois trens vindos do Sul se aproximavam
de Santa Maria da Boca do Monte; o Fronteira e o Missioneiro. Um trem se
aproximava vindo do Norte o P22 mais conhecido como o Serra, procedente
de Passo Fundo. Entre as estações de Taquarembó e Val de Serra, o Foguista
do Serra abriu a tampa da fornalha e com um garfo comprido começou a tirar
um carvão coque que estava trancado na grelha do cinzeiro. O Maquinista do
Serra vendo o seu Foguista passar dificuldade em retirar o coque foi ajudar. O
trem correndo, os dois fazendo força e se desequilibraram e cambalearam, e se
abraçaram e caíram de dentro da máquina.
O Louco da Beira dos trilhos no controle e o Missioneiro mandando
muita roda. Na primeira classe o Bananeiro de São Francisco do Sul a todo o
instante apalpava o casaco e ia contando para o Bolicheiro de Nhu Porã:
-Eu tenho que pegar o Paulista, eu tenho compromisso de mandar
bananas pra São Borja. La de Porto União da Vitoria eu ainda vou viajar um
dia inteiro no Trem Bananeiro pra chegar em São Francisco.
Na segunda classe os quatro Tropeiros da Estação Chimbocu nem
estavam preocupados com a correria do trem, iam jogando o truco.
E o Serra passou a toda velocidade por Val de Serra e o Agente de Val
de Serra correu até o telefone para avisar ao Controle de Movimento:
-Movimento, é Val de Serra, o P passou a toda velocidade e sem
ninguém na cabine da máquina.
-O quê??
-O Serra passou a todo vapor em Val de Serra.
-BARBARIDADE!
Vindo de leste, procedente de Porto Alegre o P2, o Paulista, estava
chegando em Santa Maria da Boca do Monte.
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O Fronteira se aproximando de Santa Maria, o Pilantra mais que
contente por ter conseguido trocar as pastas resolveu tomar mais uma cerveja.
O Missioneiro passou pelo recinto de Boca do Monte.
Em Santa Maria, na sala do Controle de Movimento, os Controladores
fazendo cálculos e planos. No escritório da estação o Agente de Santa Maria
dando instruções aos Guarda-chaves e Manobreiros:
-Botamos o Paulista na ponta norte da primeira linha, deixamos o
Noturno que vai pra Porto Alegre no meio da primeira linha, botamos o
Fronteira na ponta sul da primeira linha, deixa a segunda linha livre para o
Missioneiro, deixa a terceira linha livre para o Serra…
Em Pinhal o Guarda-chaves de Pinhal se arremangou se postou na
beira dos trilhos dizendo:
-Eu vou subir na máquina, mas báh! Me criei em estância pegando boi
a unha, mas vou pegar esse trem…
Um é pouco, dois é bom, três é de mais e quatro é além da conta. O P2
entrando no recinto de Santa Maria e a máquina quebrou uma braçadeira e o
trem ficou atravessado entre a primeira linha, a segunda linha e a terceira
linha.
O Camareiro do Fronteira percorrendo o trem e avisando:
-Chegando em Santa Maria… Santa Maria baldeação imediata…
Passageiros que seguem no Noturno para Porto Alegre, Rio Pardo, Cachoeira
do Sul… Santa Maria; passageiros que vão para São Paulo, Sorocaba, Itararé,
Porto União da Vitória…
E o Missioneiro correndo. A Beata de Unistalda continuava
comandando as rezas. A Senhora Gorda da Estação Povinho dos Castilhos
desmaiou. O Bananeiro de São Francisco do Sul estava contando para o
Bolicheiro de Nhu Porã e história de um bolinho de graxa que ele comprou da
janela do Trem Bananeiro na estação de Paciencia, parou de repente e
impaciente bateu casaco e disse:
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-Se esse trem se acidentar e se eu morrer o senhor diga para a minha
viúva que o dinheiro tá no forro do casaco.
Vapor saindo dos canos, ferros batendo em ferros e gritos e mais
gritos; Mecânicos, Guarda-chaves e Manobreiros desatravancando o Paulista.
O Fronteira chegou em Santa Maria, gritos de Carregadores, gritos de
Recepcionistas de hotéis, um Jornaleiro:
-Jornal a Razão… A Razão…
-Vamos acabar com essa história que já tá muito grande.
Disse a Meritíssima Meretriz aos que estavam na sala de espera das
senhoras na estação de Santa Maria: Advogado Papareia, Pilantra, Herdeira
Gorda, Herdeira Magra, Bastarda de São Lucas e montando guarda, na porta,
um Guarda Noturno do Corpo de Guardas Noturnos do Camobi.
Meritíssima Meretriz; Meritíssima durante o dia por necessidade e
Meretriz durante a noite por prazer, mas em ambos os casos cobrava uns bons
pilas.
Advogado Papareia entregou a pasta preta a Meritíssima Meretriz, ela
tirou da pasta o envelope e do envelope tirou o testamento e leu:
-Na plataforma da Estação de Mangueira ao som da bateria da Escola
de Samba Estação Primeira de Mangueira, cercado de belas mulatas e diante
da bandeira do glorioso Madureira, eu Coronel Pau Fincado declaro que são
únicas herdeiras da estância de São Lucas as duas filhas legitimas de um
legítimo casamento com…
-Epa! Sujeita a leitura.
Disse o Louco da Beira dos Trilhos que entrou na sala depois de dar
um tapa na orelha do Guarda Noturno do Corpo de Guardas Noturnos do
Camobi. A Meritíssima Meretriz olhou para ele com cara de inimiga e
perguntou:
-Quem és tu?
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-Coronel Ponciano, comandante do Terceiro Esquadrão de
Degoladores Maragato de Santiago do Boqueirão…
Pilantra comentou:
-Santiago do Boqueirão, quem não é bandido é ladrão…
Coronel Ponciano levou a mão a faca e perguntou:
-Como disse?
-Nada, foram palavras ao vento num mal momento.
A Meritíssima Meretriz, olhou para o Coronel Ponciano com cara de
amigo e perguntou:
-A que devo a honra de receber tão brilhante guerreiro?
Coronel Ponciano entregou a pasta preta dizendo:
-Esta é a verdadeira pasta.
O Advogado Papareia protestou:
-Data Vênia, como advogado da causa em questão eu protesto.
A Meritíssima fez um gesto e disse:
-Cuidado! Proteja o seu pescoço.
Coronel Ponciano sorriu e disse:
-Data venha ou data vá, respeito o nobre causídico, mas sei que todo o
tempo em que ele esteve debruçado sobre os alfarrábios ele aprendeu que um
bom rábula quando carrega uma pasta com um testamento, leva além do
testamento uma outra coisa dentro da pasta.
Advogado Papareia sorriu e disse:
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-Minha pasta é preta e dentro tem o testamento e a flâmula do
Madureira.
Coronel Ponciano, comandante do Terceiro Esquadrão de
Degoladores Maragato de Santiago do Boqueirão, deu uma gargalhada e
entregou a pasta a Meritíssima Meretriz:
-Confira.
Meritíssima abriu a pasta de onde tirou a flâmula:
-Bonita flâmula, e eu não tenho essa na minha coleção. Mas vamos ao
que interessa.
Tirou da pasta o envelope e do envelope o testamento e começou a ler:
--Na plataforma da Estação de Mangueira ao som da bateria da Escola
de Samba Estação Primeira de Mangueira, cercado de belas mulatas e diante
da bandeira do glorioso Madureira, eu Coronel Pau Fincado declaro que são
herdeiras da estância de São Lucas as minhas TRÊS filhas; Herdeira Gorda,
Herdeira Magra e Bastarda de São Lucas… Aqui temos um asterisco e escrito
vide verso… Aqui está o texto do verso, devidamente selado, carimbado,
manchado de erva mate, rasurado, borrado e rubricado e diz que; Em caso de
tentativa de troca das pastas a herança fica unicamente e somente para a
Bastarda de São Lucas. Para a Herdeira Gorda e para a Herdeira Magra eu
deixo um lote medindo três metros de frente por cinco metros de fundo na
estação de Aruanã na Estrada de Ferro Madeira Mamoré no Território Federal
do Guaporé e FIM.
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