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XIV Congresso Internacional de Tecnologia na Educação 21 a 23 de Setembro de 2017 Olinda PE Cognição: teoria, avaliação dinâmica e intervenção Vitor da Fonseca Professor Catedrático Agregado UNIVERSIDADE DE LISBOA _____________________________________________________ 1. – Introdução Teórica à Cognição A cognição tem um passado aproximado de quatro biliões de anos, mas somente cem anos de história. Em termos filogenéticos e sociogenéticos a cognição emergiu da acção e da motricidade ideacional exclusiva da espécie humana (Calvin, 1989 e 1988; Fonseca, 2010, 2014, 2017; Glass, 2016), permitindo pôr em jogo a sua integração, planificação e execução, predizendo os seus efeitos e consequências, antevendo e antecipando em que circunstâncias a acção deveria ser regulada e controlada, com o objectivo de atingir determinados fins, ora de sobrevivência e reprodução, ora de necessidade social e recompensa pessoal. A evolução da cognição começa assim com o controlo da acção, algo com que outros animais, excepto os mais simples, nascem também, ou seja, são portadores de um conjunto de respostas motoras automáticas que lhes permitem interagir de forma adaptada com o mundo exterior ou com o envolvimento. Tais respostas motoras automáticas geradas pelos seus sistemas nervosos são denominadas por reflexos, isto é, respostas motoras efectivas a ameaças ou a oportunidades. Os reflexos que se observam nos animais e nos seres humanos, podem ser simples, elaborados ou complexos, de qualquer forma para eles serem produzidos em termos de comportamento é preciso que os estímulos sensoriais vindos do envolvimento e do corpo sejam processados pelo seus cérebros e que estes transmitam sinais específicos e expressem, efectivamente, movimentos musculares, acções, gestos e múltiplos tipos de motricidade como respostas adaptativas (macro, micro, oro, grafo e sociomotoras – (Fonseca, 2010). A vida inteira da maioria dos animais, sejam insectos, peixes, répteis, pássaros, mamíferos, primatas ou mesmo do ser humano, é consequentemente guiada e executada por respostas automáticas primárias, por respostas complexas incondicionadas ou por comportamentos instintivos, são elas que lhes permitem como seres vivos: nascer, respirar, forragear,

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XIV Congresso Internacional de

Tecnologia na Educação

21 a 23 de Setembro de 2017

Olinda PE

Cognição:

teoria, avaliação dinâmica e intervenção

Vitor da Fonseca

Professor Catedrático Agregado

UNIVERSIDADE DE LISBOA

_____________________________________________________

1. – Introdução Teórica à Cognição

A cognição tem um passado aproximado de quatro biliões de anos,

mas somente cem anos de história.

Em termos filogenéticos e sociogenéticos a cognição emergiu da

acção e da motricidade ideacional exclusiva da espécie humana (Calvin, 1989

e 1988; Fonseca, 2010, 2014, 2017; Glass, 2016), permitindo pôr em jogo a sua

integração, planificação e execução, predizendo os seus efeitos e

consequências, antevendo e antecipando em que circunstâncias a acção

deveria ser regulada e controlada, com o objectivo de atingir determinados

fins, ora de sobrevivência e reprodução, ora de necessidade social e

recompensa pessoal.

A evolução da cognição começa assim com o controlo da acção,

algo com que outros animais, excepto os mais simples, nascem também, ou

seja, são portadores de um conjunto de respostas motoras automáticas

que lhes permitem interagir de forma adaptada com o mundo exterior ou com

o envolvimento. Tais respostas motoras automáticas geradas pelos seus

sistemas nervosos são denominadas por reflexos, isto é, respostas motoras

efectivas a ameaças ou a oportunidades.

Os reflexos que se observam nos animais e nos seres humanos,

podem ser simples, elaborados ou complexos, de qualquer forma para eles

serem produzidos em termos de comportamento é preciso que os estímulos

sensoriais vindos do envolvimento e do corpo sejam processados pelo seus

cérebros e que estes transmitam sinais específicos e expressem, efectivamente,

movimentos musculares, acções, gestos e múltiplos tipos de motricidade como

respostas adaptativas (macro, micro, oro, grafo e sociomotoras – (Fonseca,

2010).

A vida inteira da maioria dos animais, sejam insectos, peixes,

répteis, pássaros, mamíferos, primatas ou mesmo do ser humano, é

consequentemente guiada e executada por respostas automáticas primárias,

por respostas complexas incondicionadas ou por comportamentos instintivos,

são elas que lhes permitem como seres vivos: nascer, respirar, forragear,

alimentar, acasalar, caçar, captar, buscar, perseguir, fugir, amamentar e

proteger as crias, etc..

De facto, os reflexos e os instintos desempenham um papel

adaptativo muito relevante, na medida em que influenciam o comportamento

dos animais, embora o seu impacto seja inquestionavelmente importante em

termos de sobrevivência e de reprodução, eles são limitados e perfeitamente

previsíveis em termos de respostas motoras automáticas.

É neste contexto de respostas motoras automáticas perfeitamente

previsíveis e de respostas motoras voluntárias imprevisíveis muito mais

complexas e flexíveis, que emana a cognição, atributo evolutivo que

distingue verdadeiramente a vida dum animal da vida dum ser humano

(Fonseca, 2001; Glass, 2016).

Se os eventos da vida humana fossem perfeitamente previsíveis

como os que caracterizam a vida animal, a emergência da cognição não se

justificaria, exactamente porque as respostas automáticas inatas serviriam,

por si só, para dar cabal resposta a todas as necessidades e a todos os

problemas colocados pela sua própria vida e pela sua própria existência.

Porque a vida humana não é perfeitamente previsível, mas

pelo contrário, altamente imprevisível, o cérebro precisou de evoluir da

produção de respostas automáticas à produção de respostas voluntárias

supercontroladas cognitivamente e necessariamente aprendidas socialmente,

precisou portanto, de evoluir dos reflexos à reflexão. As respostas voluntárias supercontroladas dos seres humanos (os

vertebrados dominantes – Fonseca, 2010, 2009) adquiriram vantagem ao

longo da selecção natural sobre as respostas automáticas dos animais porque

permitiram desencadear e controlar respostas motoras a novas e imprevisíveis

situações, mas para tal, o ser humano com o seu cérebro único no reino

animal tem que: 1º - percepcionar com precisão a situação corrente; 2º - tem

que se lembrar duma situação similar no seu passado e recuperar ou rechamar

a resposta motora que foi então eficiente, para finalmente; 3º modificabilizar

a sua acção anterior para se adaptar às circunstâncias correntes. Podemos

assim compreender que a cognição começa efectivamente pelo controlo

voluntário da acção (Glass, 2016).

Nesta perspectiva a cognição é a chave para a compreensão da

extraordinária capacidade da aprendizagem humana e do pensamento

humano, por isso nascemos imaturos e imperitos com reflexos simples,

crescemos à custa de automatismos habituais, de rotinas familiares e de

emoções compostas, e por último, ascendemos aos símbolos por

aprendizagens complexas humanizadas dado exigirem um transmissão

cultural intergeracional e intersubjectiva.

Deste modo vamos compreender o legado filogenético na trajectória

neurodesenvolvimental e ontogenética da criança (Wallon, 1970, 1969),

subentendendo a organização hierarquizada do nosso sistema nervoso, por

isso, evoluímos do gatinhar ao andar, do gestualizar ao falar, do imaginar ao

simbolizar, porque evoluímos da acção à cognição primeiro, e

posteriormente, quando o cérebro matura, vamos da cognição à acção. Somos

a única espécie primata que planifica e pensa antes de decidir agir, activando

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redes neuronais e sistemas ideomotores antes de produzir gestos com os

músculos.

A cognição é consequentemente uma das componentes

fundamentais do potencial de adaptação e de aprendizagem humanas (Kolb

Whishaw, 1985; Hale e Fiorello, 2004), sem ela a evolução da espécie humana

não seria possível e a aprendizagem simbólica inacessível às gerações

imaturas e futuras.

A cognição tem sido definida como o acto de conhecimento, ou

seja, como o resultado da combinação sistémica de várias habilidades,

capacidades ou competências cognitivas. Em síntese, a cognição decorre de

processos mentais pelos quais o indivíduo adquire, trata, conserva,

explora e comunica informação, numa palavra, aprende. Tais habilidades primaciais a qualquer tipo de aprendizagem,

permitem ao ser humano: conhecer, tomar consciência, criticar, agir,

conceptualizar, utilizar abstracções, raciocinar, conjecturar, antecipar, pensar

criticamente, extrapolar, generalizar, transferir, fabricar, criar, produzir, isto

é, resolver problemas.

O ser humano é um ser cognitivo porque identifica e analisa

problemas, formula ideias, reorganiza imagens, conjectura acções, aprende

com os erros e chega a soluções, aperfeiçoando-as incessantemente . Dos reflexos à reflexão, o ser humano evoluiu ao longo de

séculos e a criança desenvolve-se cognitivamente até à adolescência, para se

apropriar e transformar a cultura, cuja origem não está nem nos seus genes,

nem nos seus neurónios, mas sim, no grupo social onde está inserido histórica

e culturalmente (Fonseca, 2017).

Cognição refere-se ao conhecimento e ao pensamento (Dewey,

1933), consequentemente, envolve receber, armazenar, recuperar,

transformar e manipular informação que é captada pelos sentidos. Envolve

igualmente percepção, consciencialização, avaliação e compreensão de

emoções (conações), e obviamente memória e aprendizagem.

Para clarificar, a cognição atravessa toda a nossa vida diária e está

em jogo quando temos de fazer actividades e tarefas simples e já

automatizadas, bem como, resolver situações problema mais complexas ou

pouco familiares e inéditas, onde centenas de decisões precisam de ser

tomadas, promulgadas e controladas pelo nosso cérebro, e

concomitantemente, influenciadas pelas nossas aprendizagens anteriores

(Luria 1966, 1973, 1990).

Os componentes básicos do nosso conhecimento são, naturalmente,

os blocos de construção da nossa aprendizagem e da nossa capacidade de

resolução de problemas. Para aprendermos, portanto, temos que juntar e

combinar de forma coerente e integrada, milhares de peças de informação

armazenadas e selecionadas na nossa cabeça (Ashman e Conway, 1977).

Planos, rotinas várias, conhecimentos declarativos ou factos,

estratégias e procedimentos performáticos, descodificações e codificações

múltiplas, etc., todos têm peso significativo nas nossas actividades do dia a dia

e são vitais para enfrentar qualquer situação, porque o que foi aprendido e

como foi aprendido, configura o que uma pessoa já conhece, não esquecendo

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aqui o papel do contexto onde a aprendizagem e a modificabilidade

comportamental ocorrem e se desenrolam.

O conhecimento, a motivação, o interesse, a vontade, a necessidade

e a pré-disposição são características da personalidade que afectam o esforço,

o entusiasmo, a energia, a conação, a dedicação e o compromisso dedicado à

realização das tarefas, dos problemas ou dos projectos que temos que

enfrentar.

Para que tudo nos conduza ao processo de aprendizagem com

sucesso, precisamos também de flexibilidade e de pragmatismo, fixando e

ajustando objectivos realistas, viáveis e fazíveis, tomando decisões em tempo

útil, mantendo perseverança nas prioridades, monitorizando estratégias e

tácticas se o problema continua a não ser resolvido.

Para aprendermos bem precisamos de muitas oportunidades de

prática deliberada e intensa, temos de agir com o nosso cérebro sobre várias

fontes de informação, internas e externas, como órgão principal da

aprendizagem tem que operar captando dados do envolvimento,

integrando-os internamente com o conhecimento já adquirido pelas

aprendizagens anteriores e posteriormente, em centésimos de segundo tem

de recuperar, reproduzir, repetir interiormente e rechamar a informação já

armazenada na memória (Kaufman, 2013).

O modo como opera uma central de telefones aproxima-se dos

processos cognitivos e do modo como o cérebro opera na aprendizagem,

imensos dados de informação circulam electricamente e quimicamente em

vários locais do cérebro por meio de cablagens inúmeras que as interligam

sequencialmente e em simultâneo. São estes processos executivos (Fonseca,

2017a, 2017b; Berthoz, 2003; Ashman e Conway, 1997; Bruner 1956) que

permitem produzir pensamentos, imaginações, interiorizações, planos,

manipulações, estratégias, e obviamente, acções.

Recorrendo a Piaget, 1965, 1954, e a Vygotsky, 1986, 1987, 1978

dois dos maiores vultos do estudo da cognição, ambos se aproximam entre si

quando evocam que ela decorre na criança de acordo com um processo

evolutivo dinâmico, centrado primeiro na acção e posteriormente no

pensamento, sendo ele produto duma organização sistémica complexa

mas sujeita a determinadas propriedades de funcionamento e composta de

múltiplas componentes. Porém ambos se distinguem entre si, quando o

primeiro centra o desenvolvimento cognitivo numa perspectiva construtivista,

egocêntrica e individual, e o segundo pelo contrário, enfoca-o numa

perspectiva co-construtivista, sócio-histórica e interactiva.

Com base em Piaget o desenvolvimento cognitivo corresponde à

construção da realidade, processo esse que envolve formas de

aprendizagem, primeiro sensoriais e motoras, e só depois, perceptivas,

linguísticas, lógicas e sociais. Nesta linha de pensamento, as crianças utilizam

portanto as habilidades cognitivas em todas as áreas do currículo escolar, não

apenas na matemática, na leitura ou na escrita mas também na arte, na

música e nos desportos, etc.. Desde os jogos, à exploração da natureza, à

expressão corporal, à música, à dança, ao teatro, ao desenho, etc., as crianças

aprendem todas estas manifestações culturais com base na integridade das

suas funções ou habilidades cognitivas.

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O que é a cognição? Quais são os seus instrumentos mentais?

Donde ela nasce? Como é que a aprendizagem ocorre?

Responder a estas questões é certamente abordar a matriz

teórica da cognição, para isso teremos que apresentar primeiro o seu

enquadramento conceptual mais amplo.

Já evocamos que a cognição começa com a acção e com o seu

controlo progressivo, o que de imediato sugere um processamento de

informação, um sistema de integração da mesma e, subsequentemente, um

sistema de comunicação e transformação da informação, o que no seu todo

requer um código, um conteúdo e um meio (Glass, 2016; Ashman e

Conway, 1997).

Nos seres humanos: o meio envolve obviamente o seu cérebro, os

seus neurónios e as suas vias de conectividade; o conteúdo é a representação

do mundo decorrente da experiência e das acções e interacções praticadas

pelo indivíduo; e o código emerge das representações do mundo

descodificadas pela recepção e captação de estímulos sensoriais e da

codificação de operações mentais que planificam, regulam e executam as suas

acções ou respostas motoras adaptadas.

Podemos agora compreender melhor os fundamentos teóricos da

cognição na medida em que ela se refere ao ser humano que possui uma

representação de si próprio e uma representação de si no mundo, exactamente

porque tem de criar e produzir computações que são necessárias para

executar novas acções apropriadas às situações problema que enfrenta

constantemente.

Qualquer aprendizagem humana emerge, consequentemente, de

múltiplas funções, capacidades, faculdades ou habilidades cognitivas

interligadas, quer de recepção (componente sensorial - input), quer de

integração (componentes perceptiva, conativa, mnésica e representacional),

quer de planificação (componentes antecipatória e decisória), quer

finalmente, de execução ou de expressão de informação (componente motora

– output).

Explicar a cognição e intervir na sua modificabilidade, que é um dos

objectivos cruciais da educabilidade do ser humano, a que já nos referimos

noutras obras (Fonseca, 2001, 2014), pressupõe em primeiro lugar, concebe-la

como tendo origem social (Vygotsky, 1978, 1986, 1987; Bodrova e Leong,

2007) e como sendo composta por três componentes principais do processo

total de informação em estreita conectividade, sequencialidade e

interactividade, conforme modelo simplificado abaixo apresentado.

O termo cognição é, consequentemente, sinónimo de “acto ou

processo de conhecimento”, ou “ algo que é conhecido através

dele”, o que envolve a co-activação integrada e coerente de vários

instrumentos ou ferramentas mentais, tais como: atenção; percepção;

processamento (simultâneo e sucessivo); memória (curto termo, longo termo

e de trabalho); raciocínio, visualização, planificação, resolução de problemas,

execução e expressão de informação. Naturalmente que tais processos

mentais decorrem, por um lado da transmissão cultural intergeracional, e por

outro, da interacção social entre seres humanos que a materializam

(Tomasello, 1999; Vygotsky, 1978).

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A cognição é portanto sistémica, emerge do cérebro como o resultado

da contribuição, interacção e coesão do conjunto de funções mentais acima

apontadas que operam segundo determinadas propriedades fundamentais

(Fonseca, 2001, 2014; Berthoz, 2003) a saber: totalidade (noção de

integração); interdependência (noção de coibição); hierarquia (noção

de maturidade e complexidade); auto-regulação (noção de busca de

objectivos e fins a atingir); intercâmbio (noção de reaferência e efeito da

experiência); equilíbrio (noção de homeostasia); adaptabilidade (noção

de modificabilidade); e finalmente, equifinalidade (noção de vicariedade,

ou seja, de execução e duplicação do pensamento pela acção).

Se as crianças não fizerem uso das suas funções cognitivas, e

acusarem dificuldades perceptivas, dificuldades de reconhecimento, de

discriminação, de comparação e de análise de objectos, de imagens ou de

eventos no seu envolvimento quotidiano, as dificuldades de

aprendizagem (DA) podem emergir necessariamente (Fonseca, 2016,

2000). Fracas ou vulneráveis habilidades cognitivas interferem

claramente com a comunicação, com a compreensão e com a expressão da

linguagem, assim como com os processos de aprendizagem não simbólica e

simbólica (Feuerstein, 1980; Fonseca, 2016, 2000).

Qualquer tipo de aprendizagem, seja aprender a andar de bicicleta

ou a nadar (aprendizagens ditas não simbólicas e não verbais, mais

compatíveis com o funcionamento do hemisfério direito), seja a falar, a ler ou

a resolver um problema de matemática (aprendizagens ditas simbólicas ou

verbais mais compatíveis com o funcionamento do hemisfério esquerdo),

reclamam funções e estratégias cognitivas que subjazem a qualquer acto

mental. O acto mental inerente à interacção ou à experiência do indivíduo

com o seu envolvimento, desde o mais simples ao mais complexo, envolve

sempre cinco fases ou componentes principais que operam mentalmente de

forma ordenada e interligada: 1º a recepção (input); 2º a integração

(processamento e memória); 3º a planificação; 4º a execução (output); e por

último, 5º a retroalimentação.

Aprender bem e com prazer põe em jogo sistemas mentais

operacionais, quer motores porque implicam uma resposta adaptativa, quer

cognitivos porque envolvem funções de atenção, processamento,

planificação e execução, quer emocionais porque subentendem

recompensas e processos de motivação e de gratificação.

Com disfunções cognitivas de input (recepção e captação de

informação), de integração, de elaboração e de output (expressão,

comunicação e transformação da informação), de acordo com Feuerstein

1979, 1980; Das, 1998; e Haywood e Tzuriel 1992, a formação de conceitos, a

estruturação de julgamentos, a organização do pensamento e a resolução de

problemas, tornam-se empobrecidas e tendem a provocar baixo rendimento

escolar e fraco comportamento adaptativo.

A aprendizagem na escola reclama um conjunto de funções

cognitivas, sem as quais: não há acesso nem assimilação do conhecimento;

não se verifica a capacidade de reconhecimento nem de discernimento; não se

desenvolvem conceitos; não se opera a formulação ideacional; não se acciona

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a rechamada e a recuperação de dados para nomear e identificar eventos e

experiências; não se produzem os processos de resolução de problemas; não

se desenham inferências nem se retiram conclusões de acontecimentos; não se

discriminam nem se identificam regras; não se dão generalizações nem

transferências de conhecimento para novas situações; não se realizam

avaliações e julgamentos coerentes de ocorrências ou situações problema; não

se retiram ensinamentos da experiência; numa palavra, não se dá a reflexão.

O comportamento resultante de disfunções cognitivas, vai ser

impulsivo, desplanificado, episódico, frustracional, incoerente, fragmentado,

numa palavra, inadaptado, os seus efeitos emocionais na personalidade dos

sujeitos aprendentes em qualquer idade vão ser devastadores (Mentis et al.

2008).

Todas estas condições podem comprometer a aprendizagem na

escola e na vida, com fracos recursos cognitivos, as crianças e os jovens

possuem menos instrumentos mentais (“mental tools”) para superarem os

desafios e descobrirem as soluções dos problemas com que se deparam

(Bodrova e Leong, 2007).

A cognição é assim um termo que atravessa todas as áreas de

aprendizagem – comportamento adaptativo, auto-suficiência,

psicomotricidade, linguagem, comunicação, artes e ofícios, desportos,

reconhecimento perceptivo, leitura, escrita, matemática, relações sociais,

resolução de problemas, planificação e tomada de decisão, etc. - ela deve

interessar todas as educadoras e todos os professores (Bruer, 2000; Spitz,

1986).

Sem funções cognitivas treinadas e empoderadas os estudantes vão

encarar as tarefas escolares com mais vulnerabilidade, desconforto e

insegurança quer na pré-escola, quer ao longo de toda a sua escolaridade, o

risco de abandono e de insucesso escolar é maior, e os custos sociais vão ser

mais avultados.

Em termos de síntese, portanto, o propósito e o processo da

educação têm tudo a ver com a optimização e a maximização do potencial

cognitivo, para isso é preciso saber avaliá-lo dinamicamente e depois saber

intervir individualmente respeitando obviamente a neurodiversidade que

caracteriza a população escolar (Willis, 2010; Ward, 2006).

O mito do cérebro saudável ou típico com funções cognitivas

operacionais e performantes escolares médias já não serve para todos os

estudantes, pois o que os caracteriza não é a sua homogeneidade

cognitiva onde todos aprenderem da mesma maneira, mas a sua

heterogeneidade porque não há dois cérebros exactamente iguais e que

processem a informação do mesmo modo.

É o conjunto das funções cognitivas e a sua dinâmica interactiva

que permitem à criança e ao jovem atingir uma performance de rendimento

satisfatório, sem o qual a sua aprendizagem e o seu comportamento podem

ser desencadeados adaptativamente, mas para isso precisamos de adoptar

uma avaliação dinâmica e pedagógica mais compatível e amiga da

cognição e do seu órgão central.

Imensas pesquisas reforçam os benefícios da intervenção

cognitiva precoce para a aprendizagem. Revendo vários programas

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cognitivos, todos eles apontam, ganhos e melhorias nos testes de inteligência

e nas avaliações escolares (Feuerstein, 1980; Fonseca, 2014).

A intervenção precoce com base nos princípios e pressupostos

cognitivos que acabámos de expôr conduz a efeitos positivos no

desenvolvimento cognitivo das crianças pré-escolares e fornece-lhes os

pré-requisitos de processamento de informação que lhes permitem

performances mais rentáveis, ao mesmo tempo que as impede de serem mal

encaminhadas para enquadramentos escolares de exclusão, ao mesmo tempo

que evita e minimiza a emergência de DA mais tarde ao longo da escolaridade

primária e secundária.

O papel da escola é, para além de ensinar a ler, a escrever e a

contar, também ensinar a pensar, a aprender a aprender, a dar suporte,

orientar, expandir e mediatizar as funções cognitivas das crianças e dos jovens

(Fonseca, 2017; Bodrova e Leong, 2007; Bruer, 2000; Spitz, 1986), razão de

enorme importância para proporcionarmos oportunidades activas, prazerosas

e envolventes para lhes desenvolvermos ao máximo os seus potenciais

cognitivos, mas antes temos que saber observar e avaliar dinamicamente o

potencial cognitivo de cada ser aprendente.

2. Avaliação Dinâmica da Cognição

A Avaliação Dinâmica da Cognição (ADC) compreende uma nova

metodologia de identificação da modificabilidade cognitiva ou da

Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) do indivíduo aprendente

(criança, jovem ou adulto, etc.), trata-se portanto duma nova metodologia de

diagnóstico, radicalmente diferente da que tem sido produzida pela

psicometria tradicional (Feuerstein, 1979; Lidz, 1987; Das, 1994; Fonseca,

2001; Bodrova e Leong, 2007).

A sua finalidade prioritária centra-se no estudo do potencial

prospectivo de aprendizibilidade do indivíduo, isto é, no encorajamento

e incitamento dele para novos processos de aprendizagem, e não meramente

na avaliação, pura, nua e crua, das suas características intelectuais

quantificáveis, imutáveis e estáveis, ou do seu nível funcional intelectual

actual.

Ao contrário, na nossa óptica e ética clínica, a ADC visa observar,

apreciar, estimar, identificar e modificar dinamicamente e interactivamente o

potencial de modificabilidade e de flexibilidade cognitiva do indivíduo

observado, isto é, a sua finalidade é apurar a qualidade dos processos

cognitivos, e não simplesmente, a quantidade mensurável ou

estandardizada dos seus produtos intelectuais finais.

A ADC que preconizamos procura medir a plasticidade e a

modificabilidade do funcionamento cognitivo do indivíduo, numa palavra,

procura empoderar o seu potencial de aprendizagem ou de adaptabilidade,

visando a exploração de condições e de estratégias pedagógicas de interacção,

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segundo as quais o seu repertório cognitivo pode ampliar-se, potenciar-se e

expandir-se, ou mesmo, transformar-se em termos de funcionamento

cognitivo mais eficiente.

Trata-se de perspectivar, para cada indivíduo, a sua

propensibilidade adaptativa para uma aprendizagem futura, ou seja,

para uma capacidade de aprender a aprender, o que exige da parte do

indivíduo a utilização de processos de aprendizagem que necessitam de novas

ferramentas cognitivas (Fonseca, 2001, 2014).

Visto estarmos em presença de uma sociedade com mutações

tecnológicas novas, muito rápidas e mais complexas, torna-se urgente

preparar o indivíduo para ser mais modificável e adaptável a situações novas,

inéditas e imprevisíveis, daí a razão de uma ADC dinâmica.

Porque vivemos numa nova cultura tecnológica que se instala

progressivamente e a uma grande velocidade, e porque a escola não prepara a

maioria dos indivíduos para os tais desafios, torna-se necessário perspectivar

uma nova metodologia de avaliação cognitiva, e concomitantemente, uma

nova metodologia de intervenção e de enriquecimento do potencial cognitivo

do indivíduo aprendente.

A ADC procura assim, identificar alguns dos indicadores de

proficiência cognitiva dos indivíduos observados aos quais se sublinham

as suas áreas cognitivas fortes primeiro, as suas áreas de

desenvolvimento cognitivo proximal que solicitam apoios específicos

em seguida, e finalmente, as suas áreas cognitivas fracas, onde o

indivíduo se encontra em sofrimento emocional e vulnerabilidade

motivacional, que por si só, e devido ao funcionamento integrado e sistémico

do cérebro, bloqueia o potencial cognitivo do indivíduo (Fonseca, 2001, 2014;

Bodrova e Leong, 2007).

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Em termos de sensibilidade clínica, a finalidade da ADC procura captar

alguns traços do perfil cognitivo intraindividual (PCI) do observado,

traços esses que deverão ser intervencionados e compensados com um

programa individualizado de intervenção cognitiva (PIIC)

subsequente, tendo como objectivo principal, a melhoria e o aperfeiçoamento

do seu potencial cognitivo manifestado num momento dado de avaliação.

Para simplificar diremos que a ADC espelha o acto mental nas suas

funções cognitivas básicas (Fonseca, 2001, 2014, 2017a, 2017b), funções essas

que são transversais a qualquer aprendizagem, sendo descritas como uma

sequência de operações mentais que compreendem uma tríade de funções e

subfunções cognitivas, a destacar:

- funções de input, de recepção ou de captação (atenção

sustentada; percepção analítica; sistematização na exploração de dados;

discriminação e ampliação de instrumentos verbais; orientação espacial com

sistemas de referência automatizados; priorização de dados; conservação e

agilização de constâncias (tamanho, forma, quantidade, profundidade,

movimento, cor, orientação, dados intrínsecos e extrínsecos, etc.); precisão e

perfeição na apreensão de dados; filtragem, fixação, focagem e flexibilização

enfocada de fontes de informação simultânea; etc.;

- funções de integração, retenção e de planificação (definição

detalhada de situações-problema; selecção de dados relevantes; minimização

e eliminação de dados irrelevantes; comparação, classificação e escrutínio de

propriedades comuns e incomuns de dados; estabelecimento de comparações,

ligações, semelhanças, dissemelhanças, analogias; memorização, retenção,

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localização, manipulação e recuperação da informação; ampliação do campo

mental em jogo; integração sistemática da realidade; estabelecimento de

relações e de sistemas de relações; organização e monitorização dos meios

necessários; supervisão das situações e dos problemas; elaboração conceptual;

formulação ideacional; utilização de comportamentos quantitativos;

exploração da evidência lógica; utilização do pensamento dedutivo,

inferencial, crítico e criativo; desenho de estratégias para testagem de

hipóteses; planificação, antecipação e pragmatização de objectivos, fins e

resultados; visualização e interiorização da informação; flexibilização de

procedimentos; etc.; e finalmente,

- funções de output, de execução ou de expressão (comunicação

clara, conveniente, compreensível, desbloqueada e contextualizada; projecção

de relações virtuais; transposição psicomotora (transporte ideatório,

ideomotor e visuográfico); expressão verbal fluente e melódica; regulação,

inibição, iniciação, persistência, perfeição, verificação, conclusão e precisão de

respostas adaptativas; enriquecimento de instrumentos não verbais e verbais

de expressão; avaliação e retroacção das soluções criadas; etc.);

A ADC implica, deste modo, uma avaliação cuidada e dinâmica do ser

aprendente na tríade cognitiva acima apresentada, isto é, nas funções de

captação, de processamento e comunicação da informação, avaliação essa que

deve induzir uma decisão rápida sobre o seu perfil cognitivo em funções

fortes, proximais e hesitantes, e obviamente, em funções fracas que

normalmente desencadeiam bloqueios, frustrações e sentimentos de

auto-subestimação e auto-ineficácia.

A ADC subentende a aplicação dos critérios duma experiência de

aprendizagem humanizada, mediada e pedagogizada, e também, dos

princípios da transmissão cultural intergeracional entre um ser maturo e

um ser imaturo, não se resume apenas a uma exposição directa a perguntas, a

tarefas ou a problemas a resolver que caracterizam os testes psicométricos

tradicionais.

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Na ADC a exposição de situações envolve o sujeito observador num

diálogo e numa interacção intencional e recíproca, explorando as funções de

significação do sujeito observado, mobilizando os seus sentimentos de

competência e favorecendo o uso de processos executivos de processamento,

planificação, auto-regulação, auto-monitorização e auto-controlo.

Na ADC o sujeito observador não cria situações de ameaça, mas sim

situações que provocam curiosidade, interesse e motivação num ambiente e

numa atmosfera de optimismo, pois só assim o observador se pode inteirar do

potencial cognitivo intrínseco do observado.

É bom não esquecer que a ADC (ou qualquer outra avaliação clínica ou

educacional na nossa perspectiva) decorre num contexto de

intersubjectividade, onde coexistem dois sujeitos: o sujeito observador ou

avaliador e o sujeito observado ou avaliado, no sentido de despertar nele a

emergência de funções cognitivas adormecidas, empobrecidas ou pouco

estimuladas ou praticadas no seu dia a dia escolar, familiar ou cultural

(Fonseca, 2017, 2014, 2001).

Não podemos esquecer que muitos indivíduos, crianças e jovens, por

múltiplas razões culturais (diferenças ou privações) não são expostos

frequentemente a experiências de aprendizagem humanizadas, pedagógicas

ou cognitivamente mediadas, isto é, a experiências de interacção confiáveis e

enquadradas em climas emocionais de conforto, de segurança e de cuidado

relacional.

12

A ADC é um procedimento clínico ou educacional que implica

um julgamento clínico qualitativo e individualizado, onde os observadores

não se comportam da mesma maneira como nos testes tradicionais.

A sua finalidade primacial é produzir modificabilidade

cognitiva, caso contrário, a mediatização, a interacção e a pedagogia não

foram apropriadas ou o tempo de interacção não foi o suficiente.

Na ADC o observador deve aproximar-se da criança e não o contrário,

pois nenhuma criança é inavaliável, inanalisável ou ineducável, na medida em

que não se presume que todas as crianças ascendam a um rendimento

cognitivo dito normal ou médio, assume-se antes que toda a criança é capaz de

algum grau de modificabilidade cognitiva.

Que tipo de informação nos pode dar a ADC?

Em primeiro lugar, a qualidade da resposta do observado à

transmissão, à interacção e à intervenção cognitiva criadas pelo observador

(resposta à intervenção - RAI). Em segundo lugar, qual o grau de intensidade

deve ter a interacção observador-observado para produzir mudanças nas

funções cognitivas do sujeito observado. Em terceiro, qual o desenho e a

descrição do perfil cognitivo do observado em áreas fortes, áreas da ZDP e em

áreas fracas. Por último, a formulação de hipóteses de intervenção que

promovam o sucesso na aprendizagem do sujeito observado (Fonseca, 2016,

2001).

A ADC estabelece, portanto, uma ponte entre a avaliação

psicoeducacional e a intervenção (re)educacional ou reabilitacional, o que não

ocorre na psicometria, porque os seus propósitos são diferentes, dado que

tradicionalmente visam mais apurar os níveis de normalização ou de desvio

cognitivo.

Em suma a ADC resgata a informação sobre como a criança ou

jovem aprende a aprender, em resumo, enfoca-se na ecologia do sujeito

aprendente (Mentis et al. 2008).

A AD em comparação com a avaliação psicométrica, está mais

orientada para um processo cognitivo, é mais vocacionada para o

desenvolvimento de habilidades cognitivas de: auto-regulação,

auto-determinação, auto-avaliação, auto-monitorização, ou seja, para a

aplicação de estratégias cognitivas relevantes, para a metacognição, para a

meta-aprendizagem e para o meta-ensino.

A ADC visa portanto, induzir as manifestações cognitivas mais

básicas da aprendizagem, como: a atenção, a organização perceptiva, a

descodificação, a codificação, a análise, a síntese, a significação, os vários tipos

de memória (trabalho, curto e longo termo), a planificação, o pensamento

estratégico, a imaginação, a ideação, a regulação, a execução, a verificação, etc.

Como é sabido, todas estes processos cognitivos são menos considerados

na avaliação psicométrica.

O modelo básico de ADC deverá colocar em jogo três componentes

interactivos chave: 1º os processos cognitivos do observado; 2º os processos

de mediatização e interacção cognitiva do observador; e finalmente, 3º os

componentes das tarefas de avaliação e ou de intervenção;

Os processos cognitivos do observado devem ter em consideração: a

sua base de conhecimento; o seu estilo de atenção; os tipos de processamento

13

simultâneo e sucessivo da informação (percepção e memória); a sua

capacidade de planificação e as suas funções de execução, isto é, o seu

potencial de modificabilidade cognitiva ou a sua meta-aprendizagem

(Mentis et al. 2008).

Os processos de intervenção, de mediação e de interacção do

observador devem sublinhar as suas estratégias de transmissão cultural, de

transmissão de conhecimentos, de competências, de valores, de atitudes, de

objectivos e de meios para atingir fins, tais como: intencionalidade;

significação; transcendência; partilha; pertença; reciprocidade afectiva e

busca de alternativas optimistas; reforço de sentimentos de competência,

auto-estima, auto-regulação, auto-controlo e auto-eficácia ampliando e

incentivando as áreas fortes do observado e a sua consciencialização da

modificabilidade que deve ocorrer na sua aprendizagem; individualização e

consideração pelo estilo de aprendizagem do observado; diferenciação da sua

ZDP e empoderamento, e não, evitamento das suas áreas fracas; etc., ou seja,

tudo o que pode caber num meta-ensino.

E por último, a selecção e a análise detalhada dos componentes das

tarefas ou propostas, situações-problema, actividades, projectos ou práticas

a serem vivenciadas e experimentadas pelo observado, tendo em vista a

variação ou até mesmo a mudança da experiência de aprendizagem,

identificando o porquê e quando ele evidencia dificuldades cognitivas.

Analisar uma tarefa (de avaliação dinâmica ou de intervenção

reeducativa), exige um pensamento de metatarefa, ou seja, sugere um foco

mais intenso nos aspectos mais específicos da mesma:

- no seu conteúdo ou matéria, o que pressupõe o conhecimento

prévio, a escolaridade, as experiências passadas e o nível de conforto cultural

do observado;

- na sua modalidade preferencial de apresentação (figurativa, gráfica,

não verbal, simbólica, escrita, numérica, etc., ou seja, na modalidade e na

combinação de modalidades que sejam mais compatíveis com estilo de

aprendizagem do observado, ou mais visual, ou mais auditivo, ou mais táctil e

mais cinestésico);

- no nível de abstracção, no grau de familiarização ou novidade, ou

no parâmetro da sua simplicidade ou complexidade, pois as tarefas podem ser

mediadas do simples para o composto antes de se saltar para um nível de

complexidade que bloqueia todo o funcionamento do acto mental do

observado, algo que tem a ver com oportunidades de prática para deixar

emergir a automaticidade e a fluência dos instrumentos cognitivos; e por

último,

- as operações cognitivas ou as competências cognitivas que são

reclamadas pelas tarefas de observação, sejam elas simples como a

identificação do problema ou a comparação e classificação de dados, sejam

complexas como o raciocínio indutivo ou o pensamento transitivo.

Com base nestes pressupostos, a ADC pode ser perfeitamente

considerada uma ferramenta de ensino ou de intervenção cognitiva

assistida, onde o observador dá suportes (“scaffoldings”), ajudas,

explicações, dicas, estratégias para o observado evoluir na sua ZDP e revelar

14

efectivamente uma mudança de comportamento, isto é, evoluir duma

aprendizagem inicial assistida a uma aprendizagem final independente

(Bodrova e Leong 2007). Todas as aprendizagens humanas das mais simples

como as autossuficiências, às mais complexas como aprender a ler, todas elas

decorrem duma interacção social consequente entre seres maturos e imaturos.

Nascemos imperitos por alguma razão, não nascemos ensinados,

nascemos sim com propensão para aprender. Convém lembrar que

todas as aprendizagens que caracterizam o neurodesenvolvimento humano

começam sempre por uma inaptidão inicial, como no caso do bebé ou da

criança de tenra idade que ainda não dominam as tarefas de autossuficiência

de alimentação, de higiéne ou do vestuário. Neste exemplo, é a mãe que

assume o papel de mediadora, ela recorre a um conjunto de processos de

facilitação, de interacção afectiva e intersubjectiva onde presta a máxima

assistência para progressivamente permitir, de forma muito lenta e

microgenética, que o seu filho venha a aprender tais competências e atinja

uma performance com assistência mínima.

Quando se verifica portanto o domínio das tarefas, a perfeição máxima

e a verdadeira autonomia por parte dos seres aprendentes, já não é necessário

ensinar ou assistir, a mestria e a perfectibilidade foi atingida pelo sujeito e a

sua ZDP abriu-se para outros patamares de aperfeiçoamento e a excelência.

É com base nestes pressupostos da ADC que se deve colocar a questão

da intervenção na cognição, a ADC é apenas o ponto de partida, o processo

deve continuar com a intervenção individualizada, pois entre a avaliação e a

intervenção deve-se construir uma ponte permanente de dois sentidos.

Como? Pergunta-se.

Com base no perfil cognitivo já evocado atrás, que deve apresentar a

caracterização dinâmica das áreas fortes ou independentes do observado, das

suas áreas da ZDP ou hesitantes, e das áreas fracas ou vulneráveis, o

planeamento das tarefas de intervenção, deverá ser implementado a partir de

tarefas onde criança ou o jovem têm autonomia e motivação intrínseca para

reforçar a auto-estima, a concentração e a recompensa motivacional. De

seguida o planeamento deve entrar na ZDP e explorar e ampliar o reportório

de funções cognitivas, e só posteriormente, deve abordar o campo das suas

disfunções cognitivas.

A intervenção na cognição deve iniciar-se a partir do que a criança ou

jovem aprendente sabe fazer e não concentrar-se naquilo que não sabe fazer,

pois é importante reconhecer as suas áreas fortes e fazer uso delas para

determinar o plano individualizado de intervenção cognitiva.

3. Intervenção na Cognição

Um dos princípios importantes da intervenção na cognição humana é a

necessidade duma interligação contínua e recíproca entre a avaliação e a

intervenção, um processo cíclico que envolva, igualmente: planificação,

implementação, monitorização e reavaliação. É óbvio que a intervenção na

cognição deve seguir os pressupostos de mediação e de interacção pedagógica

15

acima apontados na avaliação dinâmica, neste capítulo particular,

limitar-nos-emos a apontar alguns dos métodos mais conhecidos na literatura

da especialidade.

Os métodos e programas de intervenção cognitiva ou treino cognitivo,

são numerosos e de diversas origens culturais, quase todos eles foram

concebidos para potenciar os vários estádios piagetianos da inteligência

(sensório-motor, préoperacional, operacional e lógico e formal ou abstracto), e

para ampliar, aperfeiçoar e enriquecer o conjunto da tríade das funções

cognitivas já evocada (input-integração/planificação-output).

Tais métodos e programas de intervenção ou educação cognitiva que

em baixo listaremos didacticamente, para além de promoverem as funções

cognitivas, paralelamente induzem, à capacidade de aprender a aprender, à

resolução de problemas e à busca de generalizações (ou de transferência de

competências para outros domínios de conhecimento), respondendo assim a

uma preocupação pedagógica que não é nova e que se enfoca numa ideia base,

isto é, que a inteligência é educável, contrariando as visões tradicionais e

passadistas que ela é fixa, finita ou imutável, quando ela como característica

humana é, efectivamente, plástica, flexível e neurodiversa como

comprovam hoje muitas investigações nas neurociências (Sousa, 2010; Willis,

2010; Posner, 2010).

Desde Montaigne no século XVI que preconizava já uma “cabeça bem

feita” em vez duma “cabeça muito cheia”, da procura do milagre da educação

defendido por Itard (1775-1838) em transformar a criança selvagem Victor de

l´Aveyron numa criança civilizada e alfabetizada, passando por Binet

(1857-1911) o pai da medição e quantificação da inteligência que se insurgiu

contra a classificação e categorização de crianças escolarizáveis, até a outros

pioneiros e a novos messias da cognição que o entusiasmo e o fascínio por

programas de educação cognitiva é forte e apetecível (Coulet, 1999).

A criação, a divulgação, a edição e o treino prolongado, e caro, de

especialistas em intervenção cognitiva está na moda em muitos países que

querem resolver as questões quentes da educação: do insucesso e do

abandono escolar; do baixo rendimento ou aproveitamento escolar; da

inclusão de estudantes com privação ou diferenciação cultural; das

dificuldades de aprendizagem específicas (as famigeradas “dis”); das fracas

avaliações em exames internacionais (exº: PISA); etc.; etc..

De uma maneira geral as abordagens cognitivas intervêm

educacionalmente no sentido dos estudantes incorporarem estratégias

cognitivas e metacognitivas, ora para serem aplicadas no contexto das várias

disciplinas curriculares, ora para serem implementadas como intervenção

cognitiva específica ou simultânea em várias funções cognitivas já

mencionadas (Perraudeau, 1996).

Para já, todos os métodos ou programas, são conhecidos cerca de vinte

e três, apresentam vantagens e inconvenientes e a sua arquitectura teórica tem

uma influência e um vínculo conceptual diferente, mesmo um

desenvolvimento histórico e uma filiação evolutiva distintos, daí a necessidade

de os agrupar em três categorias básicas:

16

1) Métodos centrados no desenvolvimento de funções

cognitivas (influência piagetiana);

2) Métodos enfocados nos processos de mediação e interacção

(influência vygostskiana);

3) Métodos compatíveis com o funcionamento do cérebro

(influência luriana).

Por limitações de espaço não é possível fazer uma análise crítica de

todos os métodos de intervenção cognitiva abaixo designados, tentaremos

apenas listá-los e apontar o seu nome e o seu criador ou conceptor:

1) Métodos centrados no desenvolvimento de funções

cognitivas: - ARL ou Ateliers de Raciocínio Lógico de P. Higelé;

- LOGO de S. Pappert;

- RM ou Reconstrução Matemática de H. Planchon;

- Cubos Lógico-matemáticos de P. Mialet;

- O Método de Mobilidade Mental de Ramain;

- PEI ou Programa de Enriquecimento Instrumental de R.

Feuerstein;

- Partida Inteligente (“Bright Start”) de C. Haywood;

2) Métodos enfocados nos processos de mediação e

interacção; - Treino Mental de J. Dumazedier;

- SPPA e SPPE ou Sistemas Pessoais de Pilotagem da Aprendizagem e

do Ensino de G. Lerbet e J. L. Gouzien;

- PADeCA ou Programa de Ajuda ao Desenvolvimento da Capacidade

de Aprendizagem de J. Berbaum;

- Pedagogia Diferenciada de P. Meirieu;

- Gestão Mental de A. De La Garanderie;

- Aprendizagem da Abstracção de B. Barth;

3) Métodos compatíveis com o funcionamento do cérebro

- Pensamento Lateral de E. de Bono;

- Abordagem Sistémica de G. Evéquoz;

- PNL ou Programação Neurolinguística de J. Grinder e R. Bandler;

- Pedagogia Interactiva de G. Racle;

- Mapas Mentais de T. Buzan;

- Dois Cérebros para Aprender de L. Williams;

- O Método Tanagra ou Técnica de ANÁlise GRÁfica de Y. Pimor e H.

Cottin;

- Análise Transaccional de E. Berne;

- PAD ou Programação de Acções Didáctias de M. Roger;

- PREP ou Programa de Rabilitação PASS (Planificação, Atenção,

processamento Simultâneo e Sucessivo de informação) de J. P. Das.

17

Por esta listagem verificamos que não há um método único ou

milagroso, mesmo que os seus criadores e seus promotores o defendam com

argumentos teóricos convincentes e com estudos empíricos. A intervenção

cognitiva não cabe, portanto, num conceito de unanimidade universal, pois

todos eles têm vantagens e limitações visto pertencerem a várias escolas de

pensamento, umas piagetianas, outras vygotskianas e outras ainda

neuropsicopedagógicas.

Está por criar um método que integre as três abordagens, uma vez que

estamos intervindo num dom muito especial da natureza humana, isto é,

provocar processos de modificabilidade cognitiva numa dinâmica de

transmissão cultural intergeracional e sociocognitiva.

Temos que aumentar o nosso conhecimento sobre a cognição, a

aprendizagem, a aquisição do conhecimento e o funcionamento do cérebro,

apesar dos enormes avanços nas neurociências educacionais.

É ilusório postular que um determinado método ou programa de

intervenção cognitiva vai actuar favoravelmente no processo de aprendizagem

dum sujeito ou induzir mudanças nos seus instrumentos cognitivos centrais

que processam, integram e comunicam o conhecimento, porque tais processos

não são aplicáveis a todas as circunstâncias, nem a todos os domínios de

conhecimento. Não há métodos de intervenção cognitiva únicos ou infalíveis

(Mcguiness, 2005; Fonseca, 2001, 2014, 2017).

Nenhum método ou programa de intervenção cognitiva pode garantir,

com toda a certeza, que no fim da sua aplicação criteriosa, todos os sujeitos

envolvidos vão superar todas as suas dificuldades e ultrapassar todos os seus

bloqueios. Como sabemos todos os processos cognitivos estão intimamente

relacionados a conteúdos distintos, não é possível atingir ganhos

generalizados em todas as disciplinas escolares somente com a intervenção

cognitiva.

O objectivo da intervenção cognitiva é educar a cognição, visa abranger

um conjunto de funções cognitivas que captam, processam, elaboram e

comunicam competências e conhecimentos, é por analogia, lapidar um

diamante da natureza e acrescentar-lhe valor cultural no seu sentido mais

lato e transcendente.

A intervenção cognitiva não visa apenas a aquisição e manipulação

mental de conhecimentos específicos como os que são consagrados nas

diversas disciplinas curriculares (Português, Literatura, Poesia, Matemática,

Ciências, Geografia, Filosofia, Línguas Estrangeiras, etc.).

Como método pedagógico inovador e mediatizador de interacções

sociocognitivas ela vai mais longe, ela pretende abranger, não só o conjunto

sistémico das funções cognitivas, como a aprendizagem de estratégias de

estudo, de processamento de informação, de resolução de problemas, de

apropriação e reorganização de instrumentos mentais críticos e criativos de

elaboração e utilização do conhecimento, e igualmente, de capacidades para

aprender a aprender, ou sejam, funções cognitivas que são transversais a

todas as matérias e conteúdos e a todas as situações de adaptabilidade da sua

vida quotidiana (Perraudeau, 1996; Fonseca, 2001, 2014, 2017).

A intervenção cognitiva continuada, deliberada e praticada num tempo

prolongado pode, efectivamente, gerar muitos benefícios pessoais e sociais e

18

provocar a emergência, a optimização e a modificabilidade de habilidades

cognitivas em todos os estudantes independentemente das suas diferenças

culturais e da sua neurodiversidade, algo de grande relevância cultural que,

quanto a nós, não pode continuar a ser negligenciável pelas escolas.

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