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O que se ensina e se aprende sobre leitura, leitor e livro na Feira do Livro de Porto Alegre/RS – uma análise a partir do jornal Zero Hora
Resumo As representações que circulam em propagandas e em documentos oficiais (pareceres, orientações, programas, manuais) do Ministério da Educação destacam discursos que posicionam a leitura e a formação de leitores como prática central na constituição da cidadania. Esses ganham visibilidade em outras instâncias da mídia e tem, além de papel informativo, inegável caráter pedagógico, ao darem visibilidade e, assim, estabelecem certos estilos, comportamentos, verdades e modos de ser. Neste artigo, destacamos o que se ensina sobre leitores e leitura, no evento Feira do Livro de Porto Alegre/RS, valendo‐nos de matérias e peças publicitárias veiculadas em 4 encartes do Caderno da Feira. Tal estudo integra pesquisa de doutorado em andamento e se ancora na perspectiva teórica dos Estudos Culturais. Autores como Colomer (2003), Chartier (1994; 1999), Hall (1997a), Fischer (2012), entre outros, são centrais nesta pesquisa. Registram‐se ensinamentos que convocam e estimulam o hábito de ler, e de certo modo distinguem – leitores e não leitores –, acentuando marcas identitárias que posicionam os leitores não só como consumidores de livros assíduos, mas como interessados, atentos, capazes de compartilhar suas leituras e até de participar como avaliadores de textos e até escritores quando convocados. Palavras‐chave: Estudos Culturais; mídia; leitor; Feira do Livro de Porto Alegre/RS.
Gisele Massola
UFRGS [email protected]
Maria Lúcia Castagna Wortmann UFRGS/ ULBRA/RS
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Iniciando a leitura...
“Leitores de todos os cantões: grupo de quatro estudantes chineses explorou a Feira no dia da abertura”. Zero Hora, 27/10/2012, p. 01.
“Quem é o leitor? Estudo inédito divulgado revela hábitos de leitura dos gaúchos”. Zero Hora, 27/10/2012, p, 02.
“Grande espaço para pequenos leitores: área reservada às crianças está com infraestrutura renovada e ampliada”. Zero Hora, 30/10/2012, p. 34
“Que tipo de leitor você é?”. Zero Hora, 03/11/2012, p. 01.
“Livros para brincar: produtos da área infantil e juvenil vão além da literatura”. Zero Hora, 01/11/2012, p. 01.
“Livros para leitores de todos os matizes: na tarde de hoje começa a Feira do Livro de Porto Alegre – 17 dias de descontos, debates, palestras e sessões de autógrafos que oferecem atividades para todos os gostos”. Zero Hora, 31/10/2013, p, 01.
“Indicados pela gurizada: histórias sobre deuses, heróis e guerreiros fazem a cabeça dos jovens leitores”. Zero Hora, 8/11/2013, p. 1.
“Para ser leitor não basta saber ler: entre as pessoas que têm pleno entendimento do que leem, os gaúchos levam vantagem em relação ao país”. Zero Hora, 8/11/2013, p. 02.
“À procura dos livros da Nobel de Literatura”. Zero Hora, 12/11/2013, p. 3.
As expressões acima destacadas compuseram, recentemente, os títulos de
reportagens publicadas do jornal Zero Hora, de grande circulação no RS, sendo essas
direcionadas à divulgação de um dos eventos culturais mais expressivos e representativos
da cultura local – A Feira do Livro de Porto Alegre/RS. Elas foram retiradas de um conjunto
de matérias relacionadas à leitura e a sujeitos leitores – notícias, reportagens, entrevistas,
anúncios, manchetes, colunas, informativos – produzidas, publicadas e divulgadas
durante os aproximadamente quinze dias de realização desse Evento. Essas reportagens
e as imagens nelas incluídas focalizam, com freqüência, representações de jovens,
adultos ou crianças, que participam sorridentes das programações do Evento, retratados
frente a estantes ou pilhas de livros variados, ou lendo em bancos de praças; no caso das
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crianças, essas estão, com freqüência, dispostas em rodas de leitura folheando livros
coloridos e ilustrados. Tais excertos foram invocados pelo destaque que dão a
representações positivas do ato de ler, igualmente freqüentes em outras instâncias e
situações, estando entre essas, documentos oficiais (pareceres, orientações, normativas,
decretos, programas, manuais,...) organizados pelo Ministério da Educação brasileiro.
Aliás, é possível dizer que, cada vez mais frequentemente, são colocados em evidência,
em tais documentos, discursos que posicionam a leitura e a formação de leitores como
uma prática central na constituição da cidadania, que deve, ao mesmo tempo,
proporcionar prazer aos leitores e leitoras.
Assim, é possível dizer que, além de representações de leitor e de leitura terem
ganhado as páginas dos jornais, estão em curso muitas iniciativas patrocinadas tanto pelo
poder publico quanto por instâncias privadas, que se destinam a promover as atividades
de leitura – há Manuais que reproduzem práticas desejáveis e até mesmo roteiros
voltados a incentivar o ato de ler e são oferecidos treinamentos a bibliotecários,
educadores, voluntários e mediadores, com formações diversificadas, objetivando que
esses se ocupem com a formação de leitores.
Além disso, compondo este quadro, de certa forma promissor, o mercado editorial
tem feito expressivos investimentos na composição visual dos livros de modo a torná‐los
cada vez mais atraentes.
Feitas estas considerações, esclarecemos, que estaremos nos detendo nas
iniciativas voltadas à promoção da leitura e dos leitores realizadas no âmbito da Feira do
Livro de Porto Alegre, divulgadas através dos Cadernos da Feira, suplemento publicado
no jornal já referido, durante o período de realização da mesma.
Referências teóricas e propósitos
Ancoradas na perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Educação destacamos
a centralidade que a cultura tem nos processos de produção das visões de mundo
partilhadas pelos sujeitos, tendo presente o quanto assumir tal compreensão modifica os
modos de ver as relações entre as coisas e os artefatos culturais, como indicaram
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Albuquerque Jr (2011), Barbero (2010), Canclini (2007), Costa (2005), Grossberg (2008),
Hall (1997), Sarlo (2007), Yúdice (2006), entre outros autores que nos mostram como a
cultura adentrou intensamente na vida cotidiana. Tal condição resulta, de certo modo, de
um conjunto de transformações presenciadas em diferentes instâncias em esfera global –
a aceleração e a compressão operadas nas relações espaço‐tempo, bem como nas formas
de comunicação procedidas através de aparelhos digitais móveis, e nos espaços de
sociabilidade, cada vez mais confinados aos ambientes virtuais. Além disso, a partir do
borramento de algumas fronteiras nacionais, processou‐se uma maior mobilidade no
fluxo e circulação de pessoas e mercadorias, concomitantemente a outras articulações
entre espaços públicos e privados, que causaram impactos importantes nos sentidos
conferidos às práticas culturais.
A expressão “centralidade da cultura” é essencial à perspectiva que assumimos e
ela diz respeito ao modo como a cultura tem penetrado, interpelado e mediado as
práticas cotidianas. A partir dela, marca‐se a presença da cultura em distintas instâncias
do nosso dia‐a‐dia, bem como o papel produtivo que essa tem na construção de
significados, bem como de formas de ser e estar no mundo.
Nas palavras de Hall (1997a, p. 22), cultura ganha centralidade ao “penetrar em
cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes secundários,
mediando tudo”. E a mídia – o rádio, os jornal e revistas, a TV, os filmes, os quadrinhos
etc. – é um importante espaço de mediação, circulação e divulgação de informações na
contemporaneidade, ocupando, igualmente, papel central não apenas de veiculação, mas
de construção e produção de significados, imagens, discursos, narrativas que se
constituem, tal como sintetizou Fischer (2012), nos “modos contemporâneos de
constituir sujeitos na cultura” (p. 113).
Tomamos, então, as matérias publicadas na mídia impressa como textos culturais
que constituem um peculiar modo de falar sobre e do livro, na Feira do Livro, bem como
das práticas de leitura que, através dela são destacadas.
Para isso, estaremos nos valendo, mais especificamente, da análise de algumas
matérias de capa, reportagens e peças publicitárias produzidas e veiculadas, no ano de
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2013, em 4 Encartes do Caderno da Feira, publicado pelo Jornal Zero Hora1,. Tal estudo é
um recorte de uma pesquisa mais ampla, em desenvolvimento em um curso de
doutorado em Educação. Ressaltamos que a opção de analisar tal artefato decorreu de
ser o jornal Zero Hora gerenciado por um grupo midiático de expressiva atuação na região
sul do Brasil. Além disso, esse Grupo tem concedido espaços cada vez maiores à
divulgação da Feira do Livro, especialmente, a partir dos anos 1990, quando se tornou um
dos principais patrocinadores e apoiadores da Feira. Aliás, a Feira é uma instância na qual
se desenrolam inúmeras ações culturais patrocinadas tanto pela iniciativa privada, quanto
por recursos públicos.
A Feira do Livro: um evento cultural que promove o livro e a leitura e propicia a formação de leitores
A Feira do Livro de Porto Alegre/RS é um evento regional que se realiza
anualmente, desde 1955, interruptamente, e que, neste ano de 2014, completa sua
sexagésima edição. Esta Feira é promovida pela Câmara Rio‐Grandense do Livro (CRL),
em parceria com o Ministério da Cultura (MinC) e a Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
sendo considerada um dos eventos culturais mais expressivos e representativos de Porto
Alegre/RS em termos de extensão, circulação de pessoas, número de expositores, bem
como de programações endereçadas a públicos de diferentes faixas etárias2.
1 Este Jornal, criado na década de 1950, inicialmente de propriedade do jornalista Samuel Weiner, cujo
primeiro título foi Última Hora, destacando‐se por ser um jornal de linha editorial mais esquerdista que encerrou sua publicação (com essa nomenclatura) durante o período de implantação do golpe militar no Brasil, em 1964. Aliás, este periódico foi adquirido pelo também jornalista e empresário Ary Carvalho, que alterou sua denominação, substituindo o termo Útima por Zero e captou novos sócios. Desse modo, o jornal passou a circular com a denominação Zero Hora, sendo editado diariamente, desde 1964. Nos anos 1970, a família Sirotsky adquiriu o controle majoritário da Empresa, constituindo‐se, então, o Grupo da Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS), que se tornou responsável pela edição do Jornal Zero Hora. Em 1982, o Jornal Zero Hora ultrapassou o Correio do Povo, seu maior concorrente, em número de tiragens diárias, vendas e representatividade em termos de comunicação. Atualmente este grupo é apontado como um dos maiores complexos multimídia da região Sul do país, possuindo, no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, oito jornais, vinte e quatro estações de rádio AM e FM, dois portais na internet, dezessete emissoras de televisão afiliadas à Rede Globo, duas emissoras locais denominadas comunitárias e um canal veiculado nacionalmente voltado para o segmento rural. De acordo com informações divulgadas pelo Grupo RBS, através do site institucional, a tiragem do jornal já atingiu o número de 190 mil exemplares por dia.
2 A última edição do evento contou com 140 expositores, mais de 700 sessões de autógrafos, 156 eventos em salas (mesas redondas, palestras seminários), 31 oficinas e encontros relacionados ao livro e à
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A Praça da Alfândega, localizada no centro histórico de Porto Alegre, um dos
pontos de maior circulação de pedestres da cidade, sedia este evento desde a sua
primeira edição: inicialmente a Feira ocupava, apenas, o espaço restrito da Praça,
estendendo‐se, posteriormente, a prédios vizinhos localizados no “Centro Histórico”, tais
como: o Memorial do Rio Grande do Sul, o Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado
Malagoli (MARGS), o Banco Santander Cultural, o Centro Cultural CEEE Érico Veríssimo, a
Casa de Cultura Mário Quintana e a Biblioteca Pública do Estado, ocupando atualmente
cerca de 224 mil metros quadrados.
Cabe referir que a programação deste evento está subdividida em três áreas
centrais (Geral, Internacional e Infanto‐Juvenil), voltadas a atender e a valorizar aspectos
simbólicos associados a imagens, artefatos e formas de identificação da cultura local,
mesmo que uma dimensão mais internacional também oriente essa programação. Nessa
última direção, processa‐se, a cada ano, homenagens a um país, tendo sido a Alemanha a
homenageada na edição de 2013. Mas a dimensão de internacionalização do evento não
se esgota nessa homenagem e se estende à promoção de palestras, das quais participam
autores e escritores de outros países representados na Feira, além de serem feitos
lançamentos de seus livros, debates sobre tradução e digitalização de acervos, mostras
de filmes, seminários sobre literatura e a divulgação das traduções feitas a partir de obras
de autores gaúchos para outros idiomas. Nas últimas edições, visando estender a
programação a convidados externos, foram criados os “dias temáticos”, nos quais são
privilegiadas atividades sobre o foco escolhido em cada ano.
Salientamos que, nos últimos 60 anos, a Feira passou por diversas transformações,
as quais, nem sempre, são associadas a questões internas deste evento, mas articuladas
ao contexto mais amplo da sociedade que vem estabelecendo novas formas de
organização, bem como de negociação dos processos de comunicação, entre os quais
criação literária, 31 eventos artísticos e culturais, 20 sessões de cinema comentadas, presença de autores internacionais e uma área específica dedicada a crianças e jovens (Área Infanto‐Juvenil) com 416 atividades. Cabe ainda indicar que, no evento de 2013, realizado em dezessete dias, totalizou‐se a comercialização de 411.056, registrando‐se a circulação de aproximadamente 1 milhão e quatrocentas mil pessoas. Dados e números apresentados aqui foram fornecidos através de informações divulgadas no site da Câmara Rio‐Grandense do Livro. Disponível em: http://www.feiradolivro‐poa.com.br/. Acesso em: dezembro de 2013.
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está o crescente domínio da tecnocultura, com suas redes de divulgação de informações,
tais como a internet, os sites, o correio eletrônico, facebook, twitter, entre outros, além
dos canais multimídias, dos telefones celulares etc... Aliás, a partir da utilização das novas
tecnologias de informação, diferentes estratégias para o consumo de imagens,
mercadorias, bem como de eventos culturais têm sido assumidas, e tal adesão está
expressa nas atividades e propostas que integram essa Feira do Livro, que, atualmente,
possui uma estrutura complexa: essa inclui uma ampla gama de ações/proposições entre
as quais estão palestras, mesas‐redondas, oficinas, bate‐papos, sessões de autógrafos,
destaques do dia, opiniões, perguntas para autores, diálogos com escritores, sendo que
tudo isso torna este evento, um dos importantes marcadores culturais da cidade de Porto
Alegre. Mas a Feira também ganhou relevo nas páginas do jornal (bem como em alguns
outros veículos midiáticos), nos quais se fortalece constantemente a ideia de ser esse um
evento que merece ser visitado e desfrutado na sua multiplicidade pela população. Pode‐
se dizer, inclusive, que no jornal são inventados alguns peculiares modos de falar desta
Feira e de valorizá‐la.
Sobre leitura, leitor e livro
Debruçando‐nos mais detidamente sobre questões que dizem respeito à leitura,
ao leitor e ao livro, destacamos ser cada vez mais recorrente a afirmação da centralidade
assumida pelo texto escrito, decorrendo disso o interesse despertado pelos livros. Nessa
direção, encontramos, nas teorizações de Chartier (1994), um importante argumento que
relaciona a história do livro à história da leitura, com seus lugares privilegiados, seus
centros e periferias. E, por essa razão, os esforços empreendidos pelo autor (CHARTIER,
1994) para discutir os significados de leitura estão focados também nos processos de
produção e de transformação do texto escrito, com seus diferentes formatos, suportes e
gêneros. Para ele, ao se falar em leitura, é necessário inscrever está prática em uma
história de longa duração, afirmando, também, este autor, a importância “do leitor nesse
ato de produção cultural” (p. 31). E não se trata de um leitor abstrato, aquele sujeito que
domina certas capacidades de decifrar um texto escrito, mas de leitores vinculados a
práticas específicas e a determinados grupos nos quais esses se constituem como tal.
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Como salientou Chartier (ibid), “qualquer leitor pertence a uma comunidade de
interpretação e se define em relação às capacidades de leitura; entre os analfabetos e os
leitores virtuosos há todo um leque de capacidades que deve ser reconstituído para
entender o ponto de partida de uma comunidade de leitura" (p.32).
Assim, parece‐nos fundamental considerar o contexto sócio‐cultural que dá
materialidade à figura do leitor, bem como ressaltar serem as práticas de leitura
cotidianas inumeráveis, necessitando‐se, para analisá‐las, buscar saber quais são as
condições compartilhadas, a partir das quais os leitores se situam e dão sentido ao ato de
ler. Tal atitude de pesquisa possibilita mostrar, ainda, que o mundo da leitura não é feito
apenas de códigos, de estatísticas, ou de hierarquias entre bons e maus leitores, mas de
diferentes experiências, individuais e compartilhadas frente ao texto.
Salientamos ter sido bastante produtivo aproximar as considerações acima
destacadas, do pensamento de Chartier (ibid), bem como de nelas apoiar as análises que
desenvolvemos acerca de práticas e significados de leitura realizadas na Feira do Livro,
que foram explicitadas nos encartes pesquisados. Tais práticas, de modo geral, estão
sustentadas num conjunto de discursos que posicionam os sujeitos leitores, fixando
verdades, bem como definindo condutas desejáveis de leitura, tal como indicou Chartier
(1999). Ou seja, essas determinam “o que se lê, de que forma se lê ou o que não deve ser
lido” (p.13).
Seguindo na direção de problematizar discursos em torno de práticas de leitura,
leitor e livro, Castro (2007) discute uma formação discursiva que posiciona o livro como o
artefato principal das práticas de leitura. Em suas pesquisas, o autor (ibid) examinou
representações (re)produzidas pela mídia impressa, a partir da seleção de três periódicos
de grande circulação estadual e nacional – os jornais Gazeta do Povo e Folha de São Paulo,
e a revista Veja3 –, entre os anos 1970 e 2000. Ao partir do pressuposto de que as práticas
e hábitos de leitura são adquiridos, primeiramente como ensinamentos escolares, e,
posteriormente, no cotidiano, este autor (ibid) indica que o livro se instituiu como a
forma de leitura “válida”, ou até mesmo como a única forma de ler.
3 Enquanto o primeiro é o principal jornal e de maior circulação no estado do Paraná, os demais,
respectivamente, jornal e revista, fazem parte do conjunto de periódicos mais lidos no Brasil.
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Nas palavras do autor (CASTRO, 2007)
Na verdade, o discurso sobre a centralidade do livro como fonte única da leitura começa na família – até pais não‐leitores cobram que os filhos leiam livros! Fora dela, o discurso ganha força na escola e é também reiterado constantemente em outros ambientes sociais e, principalmente, nos jornais, nas revistas e na televisão (p. 48).
E os discursos que nos posicionam como leitores, igualmente conferem
centralidade ao livro, havendo uma variedade de produções que direta ou indiretamente
abordam a temática da leitura, do livro e do leitor, tais como reportagens, crônicas,
quadros, notas, propagandas, entrevistas, charges, tiras de quadrinhos, tornando alguns
discursos dominantes/hegemônicos. Para Chartier (1994), a centralidade do livro pode
também ser verificada no uso recorrente de representações desse em moedas, em
monumentos, na pintura e na escultura, situação em que esse é veiculado como símbolo
de saber e autoridade.
Quem é o leitor? Constituindo modos de ser leitor nas páginas do Encarte Caderno da Feira do Livro
Direcionando o olhar para as considerações apontadas, e refletindo sobre as
análises que temos realizado ao problematizar o evento cultural Feira do Livro de Porto
Alegre, cujo central é a comercialização de livros, percebe‐se em ação, nessa Feira,
mecanismos/estratégias que dão destaque a políticas de promoção da leitura para a
formação de leitores, sendo essas estruturadas a partir de um discurso que reafirma ser a
leitura a “mola propulsora” da civilidade e da cidadania.
Passamos a apresentar algumas matérias e uma peça publicitária retiradas dos
suplementos do Caderno da Feira do Livro, em diferentes datas, indicando a ênfase
atribuída ao discurso que explicita atributos e práticas desejáveis para a produção de
sujeitos leitores.
Destacamos que os Encartes que abordaram a 59ª Feira do Livro de Porto Alegre
tiveram como mote norteador o lema “Ler é poder”. Poder no sentido de potencializar
ao sujeito leitor ações que possibilitem torná‐lo capaz de “saber, questionar, pensar,
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conscientizar, encantar, influenciar, realizar, imaginar, argumentar e descobrir4”, sendo
esses atributos configurados como desejáveis para a formação em potencial de um leitor.
Ressaltamos que essa mesma expressão compôs peças publicitárias sobre a Feira,
amplamente veiculadas em instâncias da mídia, nas quais imagens focalizavam livros que
inspiraram grandes personalidades, tais como Sigmund Freud, John Lennon e Steve Jobs,
cujos nomes, em formato de palavras cruzadas, se entrecruzam com os títulos dos livros
por eles lidos. Aliás, esta propaganda publicitária tem o formato de um convite que, não
apenas sugere ao público leitor conhecer as atividades desenvolvidas na programação da
Feira, mas que o convoca a visitar outros espaços desse evento. Assim, ela conclama o
público leitor a participar das atividades programadas e a “consumir” livros, enfatizando
os propósitos arrolados para a promoção do evento – a ideia de democratização ao
acesso do livro e às ações de formação de leitores.
Já nos Encartes, há variadas matérias, reportagens, manchetes, crônicas, quadros,
notas, entrevistas, charges, tiras de quadrinhos, fotografias que apresentam a
programação da Feira. E a partir delas, evidenciam‐se algumas das direções que orientam
as políticas de leitura destacadas nesta Feira. Pode‐se dizer que estas abrangem formação
e informação, direcionam‐se a indicar aprendizagens de leitura marcadas como mais
“eficazes”, porque são trabalhadas didaticamente, e que vinculam, ainda, leitura ao
prazer de ler, sempre perseguindo a intenção de cativar os consumidores de livros. Nos
Encartes veiculam‐se discursos que promovem a leitura, enquanto prática desejável, e
apregoa‐se a renovação das ações de valorização dessa prática, bem como de
estimulação ao reconhecimento dos diferentes interesses dos leitores, para que se
proponham eficazes estratégias que os levem a ler. Aliás, muitas são as ações e
estratégias que apelam ao gosto, à sedução, à sensibilidade dos sujeitos, estando essas
indicadas, nas já referidas peças publicitárias e nos documentos oficiais de promoção da
leitura, que incluem campanhas diversas, Portarias e Leis criadas com o objetivo de
contemplar as demandas para a formação de uma população leitora.
Encontramos algumas dessas estratégias na série “Para o seu filho ler”, que, ao
lado da apresentação diária dos destaques da programação endereçada às crianças na
4Disponível em: http://www.feiradolivro‐poa.com.br/ Acesso em: fevereiro de 2014.
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Feira, destacava certas obras qualificando‐as como “boa leitura”, divulgando, assim,
livros que deveriam ser lidos pelas crianças. Na matéria selecionada da edição de
03/11/2013, o destaque foi para o escritor Ziraldo, que participou na 59ª edição da Feira,
em duas atividades: a primeira uma sessão de autógrafos da obra A Menina das Estrelas,
na Esquina das Histórias; e a segunda, no projeto O Autor no Palco, organizado pela
Câmara Rio‐Grandense do Livro (CRL) em parceria com as Secretarias Estadual e
Municipal de Educação. Neste Projeto, escolas previamente inscritas deviam listar, por
ordem de preferência, autores que gostariam de encontrar na Feira, sendo essa uma
interessante estratégia de promoção de leitura, pois as crianças deveriam propor
questionamentos a serem feitos ao autor da obra lida, no momento do encontro
presencial. Na fotografia divulgada no Encarte, Ziraldo aparece posicionado no centro da
imagem, rodeado de crianças que vestem camisetas, que reproduzem a figura do
personagem de uma de suas obras mais conhecidas – o menino maluquinho. Mais ao final
da matéria, há uma advertência sobre a participação nas atividades – essa só é possível
caso tenha ocorrido o agendamento antecipado dos grupos de escolares. A pergunta que
finaliza a matéria não deixa de alertar as crianças sobre o envolvimento de sua escola
neste projeto, pois ela questiona: “Será que a sua [escola] fez [o agendamento]?”.
Figura 1. Excerto do Encarte “Para o seu filho ler”. Fonte: Zero Hora, 3/11/ 2013, p. 2
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Os apelos contidos no texto sugerem, pelo menos, dois entendimentos
recorrentes: primeiro, os sujeitos devem ser cada vez mais cedo capturados para
desenvolver hábitos de leitura, servindo isso como uma garantia para que venham a ser
incluídos no grupo de sujeitos leitores, letrados, cultos, conscientes, esclarecidos e até
mesmo capazes de mudar a sociedade; e segundo, a promoção de ações que colocam o
livro em evidência, ao mesmo tempo em que aproximam o leitor da chamada “boa
leitura”, tornam o livro, cada vez mais, um bem de consumo cultural a ser produzido,
divulgado, distribuído e vendido, principalmente ao público escolar. O reconhecimento,
por parte da crítica, da importância de determinadas obras, faz com que essas sejam
constantemente reeditadas e comercializadas. Além disso, a escola (e seus professores) é
sobrecarregada de funções pedagógicas, estando, entre essas, a “missão” de formar
novos leitores e também de perpetuar autores de obras reconhecidas e consagradas da
literatura. Para seduzir um público cada vez mais jovem, escritores e editoras têm
investido em estratégias diferenciadas que se voltam a tornar os livros produtos
vendáveis. E, para tanto, são promovidos bate‐papos, palestras, mediações, sempre que
possível com autores “renomados”, para dar sustentação às práticas de aproximação de
leitores e escritores.
Ainda pensando sobre os ensinamentos contidos no Encarte sobre os modos de
tornar‐ se leitor, destacamos outra matéria divulgada em 08/11/2013. E essa é, tal como a
anteriormente comentada, também ilustrada por uma fotografia que apresenta, nesse
caso, ao centro, uma figura feminina que segura um livro aberto, em posição de leitura,
sendo essa seguida do seguinte título que está em destaque “Para ser leitor, não basta
saber ler”. Nessa matéria é dado destaque a resultados de uma pesquisa recente
(configurada como inédita), que revela índices/números acerca do analfabetismo
funcional, bem como de levantamentos que apontam hábitos de leitura do povo gaúcho.
Tal pesquisa foi realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE),
a pedido da Câmara Rio‐Grandense do Livro (CRL), com o objetivo de entender o quanto
o leitor compreende daquilo que leu. Como a matéria informa, o público alvo da
amostragem foram sujeitos leitores maiores de 15 anos, que receberam em um primeiro
momento uma revista fictícia e responderam a um questionário, contendo em torno de
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vinte perguntas. Constaram da primeira parte questões mais simples, que indagavam
sobre o título e o conteúdo da capa, e da segunda, mais complexa, a interpretação de
textos, com exigência de elaboração de respostas escritas sobre o que fora lido.
Figura 2. Excerto do Encarte “Para ser leitor, não basta saber ler”. Fonte: Zero Hora, 8/11/2013, p.2
É importante observar que os resultados numéricos dessa pesquisa revelam três
aspectos relativos aos índices de analfabetismo, no Rio Grande do Sul, através do
cruzamento dos dados levantados: o primeiro é “positivo” e diz respeito ao fato de “os
gaúchos levarem vantagem entre as pessoas que têm pleno entendimento do que leem!
No Brasil esses correspondem a 25%, e, no Estado, a 30%.” O segundo dado é
“preocupante”: “1/3 dos entrevistados com formação em curso superior não alcançou o
índice de alfabetismo de Nível 3, que correspondia ao estipulado como “completo
entendimento de textos longos”. E o terceiro é mais “esperançoso”, pois aponta que “o
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analfabetismo funcional diminui quanto menor a faixa etária considerada,
correspondendo a 1% entre 15 e 24 anos”.
Observando os resultados explicitados, ao menos uma das expressões chama a
atenção – “os gaúchos levam vantagem entre as pessoas que têm pleno entendimento
do que leem!” Relativamente a isso, ganham destaque conceitos tais como
conscientização e problematização aplicados à leitura e à escrita, configuradas como
ferramentas essenciais à formação de cidadãos capazes de exercerem seus direitos e
deveres de forma plena. E isso implicaria a capacidade de acessar textos diversos, em
situações variadas, bem como de com eles interagir e deles tirar o proveito necessário em
diferentes situações da vida. A leitura – do texto e do contexto – foi marcada em
diretrizes para a formação de leitores, que estão alicerçadas em representações de leitura
como prática redentora: “para ser leitor não basta apenas saber ler”, é necessário
assumir habilidades que possibilitem interpretar, relacionar, argumentar, descobrir,
questionar, para tornar‐se um sujeito leitor pleno, crítico, cidadão e competente. Assim, a
prática da leitura possibilitaria uma ampliação dos limites da ação política, um efetivo
diálogo e o “esclarecimento”. Tal como está explicitado em discursos que orientam
documentos oficiais, concebe‐se a leitura, desse modo, como um “ato emancipatório”! E,
na pesquisa, em relação a essa possibilidade, os leitores gaúchos estariam em condições
privilegiadas por estarem acima da média nacional.
Examinamos, a seguir, mais uma peça publicitária veiculada no Encarte em
09/11/2013, destacando as características de um “sujeito leitor” nela apontadas. Nela
apela‐se para que o leitor se torne, também, doador de suas obras – solidário,
desapegado – enfim, que compartilhe seus livros para colaborar na formação de outros
leitores. Esta peça publicitária, que esteve espalhada nos espaços internos da Feira, mas,
também, nos jornais e em outros materiais de divulgação, em todo o Estado, traz
fotografias de escritores regionais conhecidos: Marta Medeiros, Fabrício Carpinejar e Luís
Augusto Fischer (o patrono da 59º edição da Feira), semelhantes às utilizadas em
processos de identificação – frente e perfil. No lado direito das fotos, há uma legenda
com a seguinte conclamação: “Liberte seus autores da estante. Doe Livros. Postos de
coleta na Feira do livro de Porto Alegre. Safepark, Panvel e Zaffari”.
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Esta foi uma campanha liderada pelo Banco de Livros – uma iniciativa da
Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul (FIERGS) – dentre às direcionadas a
estimular o hábito de ler, valendo‐se da doação/troca de livros entre leitores para colocar
em circulação obras já lidas. Eis o chamamento: “basta levar um livro de casa, que você já
leu, e trocar por qualquer outro que esteja disponível nas prateleiras do estande. Não
precisa pagar nem se cadastrar” (Zero Hora, 09 de novembro de 2013, p. 3). A ressalva é
que a troca só será válida entre livros de obras literárias, não sendo considerado outro
suporte (revistas, jornais, gibis, histórias em quadrinhos, livros didáticos,...) como artefato
de leitura. Cabe referir que esta campanha, em forma de convite, também convoca a
população não só a participar do Evento, Feira do Livro, mas a visitar o estande do grupo
que edita o Encarte, localizado nas dependências da Feira.
Figura 3. Excerto do Encarte campanha publicitária para doação de livros. Fonte: Zero Hora, 09/11/2013, p. 3
Pode‐se considerar que tais apelos fomentam o amor ao livro através do seu
compartilhamento, permitindo experimentar a literatura, mas também atentando para
uma dimensão socializadora, na qual o sujeito se integraria a uma comunidade de leitores
com referências e cumplicidades mútuas – todos seriam apreciadores da leitura literária.
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Pensando sobre concepções acerca da formação do leitor literário, que se inicia na escola
e que se amplia para outras instâncias, Colomer (2007) salienta que a leitura de obras
especificamente literárias contempla aos menos três funções sociais: introduzir o leitor na
cultura escrita e na leitura; desenvolver capacidade interpretativa que permita tanto uma
socialização mais rica e lúdica dos indivíduos, quanto a experimentação de um prazer
literário que se constrói ao longo do processo; e estimular a formação de cidadãos
preparados para enfrentar a diversidade social e cultural do contexto atual.
Ao aproximar esses entendimentos sobre os propósitos de estimular a leitura
literária, da proposta de divulgação expressa na campanha publicitária que referimos,
entendemos estar nessa explicitada a intenção de “pôr obras renomadas nas mãos de
toda a população”. E mais, de tornar cada leitor responsável pela formação de outros
leitores.
Mas outra interessante estratégia de formação de leitores está proposta no
Encarte de 13/11/2013. Ela diz respeito à escrita colaborativa – a organização de uma
História Coletiva –, da qual participaram dezenas de leitores‐autores, a partir de desafio
lançado pelo escritor, e também colunista do jornal Zero Hora, Fabrício Carpinejar. Ele
convocou os leitores a darem continuidade à trama por ele inicializada e intitulada Diabo
Verde, em um período de cinco dias. Carpinejar iniciou uma história que se passava em
uma casa impregnada por um terrível odor, em quatro parágrafos. A história e cinco
trechos enviados por leitores deram continuidade à trama cujo desfecho estava em
aberto. Ao final de cada dia, um trecho de até 1,4 mil caracteres, foi divulgado através do
site institucional do Grupo RBS (www.zerohora.com/feiradolivro2013), na aba dedicada à
cobertura da Feira.
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Figura 4. Excerto do Encarte “Experiência Coletiva”. Fonte: Zero Hora, 13/11/2013, p. 3
A partir da proposta explicitada, e reproduzida no excerto acima, pode‐se pensar
que o leitor capturado por tal desafio, não somente necessitaria estar imbuído do desejo
de desenvolver o domínio de práticas de leitura – ter domínio da língua escrita, saber
reconhecer estruturas textuais, buscar ampliar o conhecimento, desenvolver o
hábito/gosto pela leitura para querer ler, por exemplo –, mas, também, sentir‐se
estimulado a desenvolver atividades de escrita individuais e coletivas, que lhe
permitissem experimentar a escrita de contos, poemas, fábulas, ou como no exemplo
destacado, de uma narrativa. A proposta envolveu levar os leitores a assumirem o papel
de escritores. Esses foram estimulados a integrarem‐se na construção da trama, na
indicação e composição dos personagens, bem como incitados a se embrenharem nos
enredos, buscando resoluções para as situações narradas. Certamente tal experiência de
escrita visa aumentar a conexão entre leitura e escrita, ao possibilitar que o leitor inclua a
sua produção textual no texto de um autor já reconhecido. Ou seja, tal experiência
permite o trânsito na dimensão criativa do ato de escrever, permitindo ao sujeito
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anteriormente posicionado apenas como leitor a descoberta da força expressiva de seus
próprios textos.
Cabe registrar, ainda, relativamente a essa proposta de escrita coletiva, os
comentários de dois participantes que tiveram suas narrativas selecionadas: o jornalista
Paulo Roberto e a uma dona de casa Denise Flores, cujos comentários acerca do desafio
de participar dessa experiência, transcrevemos a seguir. Disse o jornalista: “(...) logo
pensei em colocar mais personagens para ampliar as possibilidades de desfecho. E, como
o cheiro era tão diferente, achei que ele só poderia ser sobrenatural” (Zero Hora,
13/11/2013, p. 2). Já a dona de casa expôs: “aquela altura, duas coisas tinham que ser
resolvidas: de onde estava vindo o cheiro e o que estaria causando. Como o teor estava
beirando o fantasioso, escolhi o porão da casa que remete a histórias sobrenaturais”
(Zero Hora, 13/11/2013, p. 2). Além disso, ambos encerram a matéria externando sua
satisfação de terem participado de um desafio que lhes oportunizou dividir um espaço de
escrita com um escritor local de quem se tornaram apreciadores e fãs.
Algumas palavras finais
Ao finalizar este texto voltamos a destacar que, apesar deste evento cultural – a
Feira do Livro de Porto Alegre – ter como finalidade principal a comercialização e a venda
de livros, nela tem sido colocadas em ação, em cada uma das edições, um conjunto
variado de estratégias voltadas não, apenas, à convocação da população (e dos leitores)
de diferentes faixas etárias para circular por esse Evento, mas, também, direcionadas à
estimulá‐la a envolver‐se com uma ampla gama de atividades que incluem, por exemplo,
mostras e exibições fotográficas, oficinas de criação literária, palestras, entrevistas com
autores, apresentações de grupos musicais diversos, sessões de autógrafos, mediações
de leitura, debates, mesas redondas, exposições de pintura e escultura, entre outras.
Pensando mais detidamente acerca do que se tem dito sobre os sujeitos leitores
através das páginas do suplemento Encarte da Feira, argumentamos, ao longo do texto,
que neles são destacadas muitas representações sobre leitura, leitor e livro.
Notadamente nas últimas edições deste Encarte, importantes estratégias de convocação
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à leitura têm sido destacadas, estando entre essas o oferecimento de leituras
comentadas, o encontro com escritores e a possibilidade de criação de textos
desafiadoramente coletivos. Portanto, para além da possibilidade de formarem‐se
consumidores de livros, o Encarte e as atividades que esse tem vinculado à Feira do livro
tem ampliado as formas de estimulação dos hábitos de leitura. Assim, mesmo que a Feira
cada vez mais amplie o oferecimento à população de uma variada gama de produtos da
cultura que incluem outras modalidades de vivenciá‐la, o livro e a leitura não deixaram de
ser as grandes estrelas deste acontecimento já tão ligado à vida do povo gaúcho. E as
estratégias que tão brevemente focalizamos neste texto possuem uma parte
considerável de responsabilidade nisso.
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