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Page 1: Wolfg~ng Iser o ATO DA LEITURA - AYRTON BECALLE · PDF filema de interpretação teórica da literatura. Na novela de James, tal interpretação, ainda obscura na época, já e~tava

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III"1111

A. ARTEPARCIAL-A INTERPRETAÇÃOUNIVERSALISTA

/

1. HENRYJAMES, THE FIGURE IN THE CARPET

EM LUGAR DE UMA INTRODUÇÃO

J,

Henry Jamespublicouem 1896 sua novelaThe Figurein theCarpet, que, analisada retrospectivamente, aparece como o prog-nóstico de uma ciência que em sua época ainda não existia, na

extensão que nos é hoje habitual. Mas, de lá para cá, essa ciênciaprovocou um tal desconforto que a apreensão explícita desse fatojá se tornou um clichê. Estamos falando da interpretação teóricada literatura que busca as significações aparentemente ocultas nos

textos literários. Se o próprio Henry James tematiza a procura porsignificações ocultas do texto, em uma antecipacão por certo nãoconsciente dos futuros modos de interpretação, pode-se concluirdaí que ele se referiu a pontos de vista que desempenharam um

papel importante em sua época. r:oisJgeralmente, textos ficcionaisresEQ!1dema.situações de sua ép.oca,à.me.dida.q.\lu,Lroduzemalgo

q~e está condicionado pelas normasvigentes,-fIlG6-que..j.áJJ.ãD.pocle..mais ser captado por elas..Quando James converte a relação en-

tre a obra e a interpretação em um sujet literário, evidencia-se queo acesso habitual ao texto tem um lado avesso, cuja elucidação

começa a problematizar esse acesso. Nessa elucidação expressa-se aO menos a suspeita de que a procura por significações, apa-

rentemente tão evidente e, por conseguinte, desprovida de pres-supostos, é orientada, contudo, por normas históricas, ainda quea interpretação se realize como se esse processo fosse um dadonatural. A coisificação de normas históricas, todavia, foi sempre

condição de miséria, que entretanto alcançou também essa for-

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ma de interpretação teórica da literatura. Na novela de James, tal

interpretação, ainda obscura na época, já e~tava presente.

É preciso detalhar? problema que James delineia, para quese faça compreensível a dimensão da crítica. A apreensão da sig-nificação do último romance do protagonista Vereker forja o

ponto de vista orientado r da história. A esse ponto de vista vi-sam duas perspectivas diferentes: a perspectiva do eu-narrador ea de seu amigo Corvick. O meio da narração, porém, distorceesse paralelismo aparente. Pois o que experimentamos das des-

cobertas de Corvick, no que diz respeito à significação oculta,reflete-se na versão do eu-narrador. Mas como Corvick parecehaver encontrado o que o eu-narrador procura em vão, o leitor

d~ssa novela AA~cisaresistir à orientação da perspectiva do nar-rador. Quanto mais o faça, tanto mais compreensivelmente aprocura por significação do eu-narrador se revela como o tema,até que, por fim, se torna objeto de sua crítica. Essa é a estrutu-ração e a estratégia da história.

Logo no começo, o eu-narrado r - que designaremos comoo crítico - exalta-secom o fato de ter desveladoem sua resenha

a significação oculta do último romance de Vereker, motivo peloqual está agora curioso em saber como o autor reage a essa per-da ("loss of his mistery")l. Se a interpretação consiste em arran-car do texto a sua significação oculta, então é lógico que o autorsofre uma perda nesse processo. A partir daí, duas conseqüências

surgem que perpassam toda a história. \O crítico, ao descobrir o sentido oculto, decifrou o enigma.

Em face desse êxito, nada mais resta senão congratular-se com oresultad02. Pois o que se pode fazer agora com esse sentido, após

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1 Henry)ames, The Figure in the Carpet (The Complete Tales IX), Leon

Edel (org.), Philadelphial New York, 1964, p. 276.

2 Diz o crítico acerca de si mesmo, quando encontra Vereker, com oqual gostaria de falar sobre sua resenha: "... he should not remain in ignoranceof the peculiar justice I had done him"(ibidem, p. 276).

24 W olfgang Iser

~

ter-se tornado, enquanto significação desvelada, uma coisa e per-dido o seu caráter de "mistério"? Enquanto a significação este-ve escondida, a meta era procurá-Ia; logo depois de a descobrir-

mos, apenas a habilidade demonstrada se reveste de algum inte-resse. O crítico quer agora estimular esse interesse junto ao seupúblico e ao próprio Vereker3. Não é de espantar, assim, que setorne um pedante.

Contudo, essa conseqüência tem menor importância que a

que se mostrou a partir da orientação indicada. Se a interpreta-ção tem de descobrir a significação oculta de um texto literário,então os pressupostos que lhe são característicos são feitos doseguinte modo:

[..,] o autor encobriria um sentido claro, que man-

te.ria, no entanto, para si, com o intuito de utilizá-lo-daí decorre uma certa arrogância: com a aparição do

crítico chegaria a hora da verdade, poís este afirma terdesvelado o sentido originário e a razão do encobri-menro.4

Com isso, uma primeira norina surge, que dirige essa apreen-

são. Se o autor sofre uIl1aperda através da significação desveladapelo crítico, como aparece no início da novela, então o sentido é

algo que pode ser subtraído do texto. Ao extrair o sentido, enquantonúcleo próprio da obra, esta se esvazia; por isso, a interpretaçãocoincide Coma consumptibilidade da literatura. Tal esvaziamen-

to, contudo, não é fatal apenas para o texto, pois é suscitada apergunta: em que se pode fundar ainda propriamente a função dainterpretação, se ela, através da significação tirada da obra, a aban-

3 Ibidem, pp. 276 ss.

4 Assim ).B. Pontalis (em Nach Freud, trad. para o alemão de PeterAssion et ai., Frankfurt, 1968, p. 297) caracterizava esse fato em sua análisede The Figurein the Carpet de ]ames.

o Ato da Leitura - VoLt 25

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II

II

dona como uma casca vazia? Mostra-se aqui seu caráter parasitá-

rio; e é por isso que James faz o escritor dizer que a resenha do críticocontém tão-somente a lengalenga usual ("the usual twaddle")5.

Com esse julgamento, Vereker desmente quer o esforço "ar-

queológico" da interpretação mais profunda, quer a hipótese deque a significação seja algo que - como é dito explicitamente notexto - simbolize um tesour06 a ser descoberto pela interpretação.

Esse desmentido, que Vereker formula na presença do crític07,conduz inevitavelmente a uma melhor explicação das normas quedirigem a interpretação. Além disso, revela-se o caráter histórico

das normas. A soberba, mostrada no início pelo crítico, justifica-se agora com a exigência da procura pela verdade8. Mas, como averdade do tex!..9tem o caráter de uma coisa e sua validade semostra no fato de existir também independentemente dele, o crí-tico pergunta se o romance de Vereker não contém, como sem-

pre supôs, uma mensagem esotérica, uma certa filosofia, pontosde vista centrais sobre a vida ou uma "extraordinary 'generalintention,,,9, ou ao menos uma figura de estilo impregnada de

significações IO.Com isso está definido. um r~pertório de ;;;Jscaracterístico da concepção literária do século XIX. Para o críti-

co, a significação buscada denota normas desse tipo, e, caso se devadesvelar tais normas como o sentido do texto, o sentido deverá

ser então mais do que apenas o produto do texto, Tal pressupos-'to possui paro o crítico uma tal obviedade que se pode supor tra-tar-se de uma expectativa bastante disseminada entre os leitores

de obras literárias. Parece, pois, natural ao crítico que o sentido

como segredo escondido seja acessível e seja reduzido pelas fer-ramentas da análise discursiva.

A discursividade articula'o sentido a dois âmbitos já consti-

tuídos. Primeiramente ao âmbito da disposição subj~tiva do crí-

tico, ou seja, ao modo de sua percepção, de sua observação e de~eus juízos. O crítico quer explicar a significação que descobriu.'Pontalis observa a propósito:

Tudo o que os críticos tocam se torna trivial. Os

críticos só querem integrar em uso geral, autorizado eestabelecido uma linguagem, cujo próprio ímpeto con-siste em nem poder, nem querer coincidir com aqueleuso, mas sim em encontrar o seu próprio estilo. As ex-

plicações habituais do crítico sobre suas intenções emnada mudam seu procedimento; de fato ele esclarece,

compara e interpreta. Essas palavras podem enlouque-cer alguém.II

1.1

5James, op. cit., p. 279.

6 Ibidem, p. 285.

Tal irritação funda-se, em última análise, em que a crítica

literária, com freqüência, ainda reduz os textos ficcionais a uma

significação referencial, embora isso já houvesse sido questiona-do no final do século passado.

Pode-se supor que havia uma necessidade elementar de ex-

plicação das obras literárias' que o crítico podia cumprir. No sé-culo XIX, ele tinha a importante função de mediar entre a obra e

opúblico, à medida que interpretava o sentido da obra de arte'para -o seu público, como orientação para vida. Carlyle formu--lou de modo paradigmático a relação estreita entre literatura e crí-tica em 1840 em suas conferências sobre Hero- Worship: o críti-

co e o homem de letras eram postos no Panteão dos Imortais com

o seguinte elogio:7Ibidem.

8 Ibidem, p. 281.

\)

\9 Ibidem, pp. 283 ss. e 285.

10Ibidem, p. 284. 11Pontalis, op. cit., p. 297.

26 o Ato da Leitura - Vol. 1 27W olfgang Iser

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Men of letters are a perpetual Priesthood, from

age to age, teaching all men that a God is still presentin their life; that all "Appearance", whatsoever we see

in the world, is but a vestUre for the "Divine Idea of

the World", for "that which lies at the bottom of Ap-

pearance". In the true Literary Man there is thus ever,

acknowledged or not by the world, a sacredness: he is

the light of the world; the world's Priest: - guiding it,

like a sacred Pillar of Fire, in its dark pilgrimage throughthe waste of Time.12

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o queCarlyleexageroupateticamente- ~otar o mundo ~osatributos de Deus - já era, cinqüenta anos depois, para James tyna

norma histórica.: inválida. O crítico que capta as"aparições", capta

para James o vazio. Pois as "aparições" não são mais o véu que

encobre um significado substancial, porque tais "aparições" são

os meios de trazer ao mundo algo que não existia antes e em ne-

~ (nhum outro lugar.! medida, porém, qu~ o crítico s,efixa a_QS.entich.oculto, não é capaz, como o próprio Vereker lhe diz, de ver coi~a-

àlguma. Não surpreende que por fim o crítico considere a obra do

~omancista semvalor13, pois não sedeixa reduzir ao padrão expli-

cativo que o crítico nunca questiona. Em conseqüência, o leitor dessanovela deve decidir se afalta de valor é da obra ou da explicação.

Entra em ce~ agora o segundo quadro de referência queorienta o crític°f-' crítico possuía no século XIX tal importân-cia porque a literatura, enquanto peça central da religião da arte

dessa época, prometia soluções que não podiam ser oferecidas

pelos sistema~ religioso, sócio-político ou científico. Essa situaçãoemprestava à literatura do séculoXIX uma extraordinária signi-ficação histórica. A literatura equilibrou as deficiências resultan-

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)

12Thomas Carlyle, On Heroes, Hero- Worship, and the Heroic in His-

tory (Everyman's Library), London, 1948, p. 385.

13James, op. cit., p. 307.

28 W olfgang Iser

L

tes de sistemas que postulavam validez universal. Em contraste

com épocas passadas, em que dominava uma hierarquia mais oumenos estável de valores, essahierarquia ruiu no século XIX, em

virtude da crescente complexidade dos sistemas particulares de

interpretação, assim como pelo número crescente desses sistemas

e pela concorrência entre eles. Esses sistemas conflitantes de que

se dispunha, da teologia até às ciências, limitavam reciprocamente

suas exigências de valor. Desse modo, a importância da ficçãocomo equilibrador de déficits de saber e de explicação começou

a se ampliar/Ao contrário de séculos anteriores, a literatura ane-xou quase todos ~s sistemas de explicação ao seu próprio meio eos pôs no texto. Ali, onde se mostraram as fronteiras dos siste-

-riías~a literaturã sempre apresentava suas respostas. Não espan-

ta que se buscasse encontrar mensagens na literatura, pois a fic-

ção oferecia aquelas orientações de que se carecia por efeito dos

problemas criados pelos sistemas de explicação. A afirmação de

Carlyle, de que "Litei:ature, so far as it is Literature, is an 'apo-

calypse af Nature', a revealing ofthe 'open secret",14 - que reu-

nia sincreticamente quase todo o idealismo alemão - não era de

modo algum atípica. O crítico da novela de James também está

em busca de um segredo aberto, pois para ele só a mensagem ra-tifica o caráter de arte da obra.

Contudo, o crítico fracassa; ou seja a obra não oferece uma

mensagem dela separável; o sentido não é~11tívpl <'I11m~ignifi- -

cado.r..d~LWsiãre O significado não s~~i~<1 redl17ir a JIIJ1;u;..oisa. )As normas plausíveisdo século XIX já não funcionam, o textoficcional se fecha contra seu consumo.

Essa negação denormas históricas encontra sua perspectiva

oposta na figura de Corvick. Ele parece haver encontrado o "se-gredo" e, quando compreende o romance de Vereker, o impactoé tamanho que não consegue formular a experiência. Em vez disso,

14 Carlyle, op. cit., p. 391.

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começa a mudar sua vida: "It was immense, but it was simple-it was simple, but it was immense, and the final knowledge of 'it

was an experience quite apart,,15. Uma série de acasos impede queo crítico se encontre com Corvick e chegue às razões das mudan-ças16. Quando por fim parece sabê-Ias, Corvick é vítima de um

acidente17. Dessa maneira, como um detetive filológico, o crítico

começa a interrogar a senhora Corvick, assim como sua produçãoliterária e, depois da morte dela, seu segundo marido - DraytonDeane -, no esforço incessante de ençontrar o que ele pensa ser o

segredo afinal revelado. Quando, por ~ nada descobre, passa aadmitir que o próprio Deane desconhec1 a chave do romance deVereker. Contenta-se em cultivar uma vingança latente, à medida

que insinua que a falecida escondera de Deane'o mais importan-te18. A busca inrJlciável da verdade termina por se satisfazer coma vingança!

Mas a descoberta de Corvick é escondida do leitor, pois tam-bém ele é orientado pela perspectiva do crítico. Daí resulta umatensão, que se desmancha apenas à medida que o leitor se distan-

cia da orientação que lhe foi dada. Essa dissolução é notável, poisde modo geral o leitor de textos ficcionais aceita o padrão esta-belecido pelo narrador, no ato de sua "willing suspension of dis-belief". Tal hábito deve se~rrejcit;wQ" p-oisesse é o único modo- -pelo qual o leitor consegue constituir o sentido da novela com o

desmentido ~scente da pe;;pectiva que o orienta. Para o leitor,ler a contrapelo seria particularmente difícil, pois os preconcei-tos do crítico - compreender o sentido como mensagem ou como

significação de uma filosofia para vida -lhe parecem tão natu-rais que até hoje ele os manteve. Em face da arte moderna, tor-

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15 James, op. cit., p. 300.

16Ibidem, pp. 301 ss.

17Ibidem, p. 304.

18Ibidem, pp. 314 ss.

30 W olfgang Iser

~ ~

na-se ainda mais enfática a pergunta: que é que isso quer dizer?

Se se trata, porém, de desmentir a perspectiva orientadora do crí-tico, essa estratégia implica que o leitor leia contra seus próprios

preconceitos. Essa disposição é atualizada apenas se se retira doleitor o que ele deseja saber por meio da própria perspectiva. Se

a perspectiva prévia permite que o leitor perceba, no ato da leitu-ra, as suas insuficiências, isso o leva a cada vez mais voltar àqui-

10em que ele confiava, até que, por fim, consegue ver os seus pró-prios preconceitos. Pois a "willing suspension of disbelief" nãomais se relaciona com as linhas postas pelo autor, mas sim comas orientações que dirigiam o leitor. Liberar-se delas, mesmo que

por apenas um lapso de tempo, não é fácil.A falta de informações sobre o segredo descoberto por Cor-

vick aguça pelo menos a observação, pois não lhe escapam os si-

nais, com que se dispunha a inútil busca pelo sentido oculto. Ocrítico recebe o sinal mais importante do próprio Vereker, sem que,ao contrário de Corvick, o compreenda:

For himself, beyond doubt, the thing we were aliso blank about was vividly there. It was something, I

guessed, in the primal plan, something like a complexfigure in a Persian carpet. He highly approved of thisimagewhen I used it, and he used another himself. "It's

t~e very string", he said, "that my pearls arestrungon!,,19

O crítico, em vez de compreender o sentido como objeto, ape-

nas percebe um lugar vazio. -Esselugar vago, porém, não é preen-chido por 'uma slgnificação-díScursiva e, por isso, toda busca dessetipo termina em um não-sentido. Não obstante, o próprio críticodá a chave para essa qualidade diferente do sentido que James ex-

pressamente sublinha com o título de sua novela, The Figure in

19Ibidem, p. 289.

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- ~

the Carpet, que Vereker canfirma autra vez na presença da críti-ca: a sentida tem a caráter de imagem. Nessa,direção.,desde a prin-cípio., se dão. as hipóteses de Carvick. Cabe então. ao.crítica cam-

preender:" ...there was mare in Vereker thàn met the eye,,20, ao.que a crítica é apenas capaz de respander: "When I remarked thatthe eye seemed what the printed page had been expressly inventedta meet he immediately accused me af bê

j,

' g spiteful because I hadbeen failed21."

O crítica, trabalhando. cam cuidad filalógica, nunca aban-

dan~u em ta da navela a pressupasta de encantrar a sentida far-mulada nas próprias páginas impressas. Par isso.,apenas vê luga-res vazias (blank), que não. lhe respandem ao que ele busca erpvão. nas l"ágina;.~impressasda texto.. Mas a texto. farmulada é-cama Vereker e Carvick campreendem ~antes a madela de in-dicações estrutura das para a imaginação. do. leitar; par issa~ a

~e~tjda pade ser captada apenas cama imagem. Na imagem su-- cede a preenchimento. da que a llladela textual amite e ao. mes-

ma tempo. esbaça par sua estrutura. Tal "preenchimento." apre-senta-se cama candiçãa elementar para a camunicaçãa e, emba-ra a autar nameie esse mada de camunicaçãa, sua explicação. não.

tem efeito. sabre a crítica, pais para ele a sentida apenas pade secanverter em sentida se far apreendida par meia de uma lingua-

gem referencial. Na entanto., a imagem se furta à essa referen-

3a.lidade.~ P';;is ela não. descreve algoextstente de antemaõ:Illassim cancretiza uma representação. daquilo. que não. existe e qu~não.-se-manifesta verbalmente naS páginas impressas da ramance.

-Mas i~sa a crítica não. cansegue campreender, e já havendo. acei-tada a apiniãa de Vereker de que a sentida se mastra em uma

imag~m,~ntãa só i capaz 'ae caÍripreender tal imag.eIllcama có-pia de alga dada que, enquanto. caisa, deve preceder tal pracessa.Na entanto., é tão. absurda imaginar alga dâda quanta contar cam

20 Ibidem, p. 287.

21 Ibidem.

que seja dada também sua repraduçãa em imagem. Amedida quea crítica não. campreende esse prablema, permanece cega ante adiferença entre imagem e discursividade: são. duas apreensões demundo., independentes entre si e, par canseguinte, quase irredutí-veis. Em canseqüência, a qualidade específica da sentida se mastra

na fracassa da arientaçãa da crítica. Essa especificidade vem à tanana negação. canstante das quadros de referência, pais é atravésdestes que a crítica tenta traduzir a sentida da ficção.em uma dis..

cursividade referencial. Essa negação. se recanhece na fato.de quesó pela recusa das critérias herdadas passa a existir a passibili-dade de se imaginar aquilo. que é buscada pela sentida da ficção..

Se a sentida da texto. ficcianal tem um caráter de imagem,então. a relação. entre texto. e leitar farçasamente se tarna diversa

> daquela que a crítica busca fixar par suas reduções.Sua apreen-Sãõse carã'cteiiza pela divisão.Sujeita-Objeta, que se estende atadacampa da canhecimenta discursiva. O sentida é a abjeta, a que asujeita se dirige e que tenta definir guiada par um quadra de refe-rência. A validade, que assim se alcança, se caracteriza pela fato.de que a definição. elaborada não. só se afasta das marcas da sub-

jetividade, mas superá a própria sujeita. Essa independência dasujeita canstitui então. a critério. buscada de verdade. É, parém,duvidasa que tal definição. da sentida ainda pade significar para asujeita. Se a sentida tem um caráter de imagem, então. a sujeitanunca desaparecerá dessa relação., ao.contrária da que é em prin-cípio.válida para a mada da canhecimenta discursiva. Os seguin-

tes pantas de vista são.características desse pracessa.le- a princí-pio.é a imagem que estimula a sentida que não. se encantra farmu-

laaonas~pâgmas illlpressas da texto., então. ela se mastra cama apradutôque resulta da camplexa de signas da texto. e das atós de

apreensão. da leitar. O leitar não. cansegue mais se distanciar des-sainteraçãa. Aacantrária, ele relaciana a texto.a uma situação.pela

"ãtlvidade nele despertada; assim estabelece as candições necessá-

rias para que a texto. seja eficaz. Sea leitar realiza as atas de apreen~são.exigidas, produz uma situação. para a texto. e sua relação. cam

ele não.pade ser mais realizada par meia da divisão.discursiva entre

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Sujeito e Objeto. Por conseguinte, o sentido não é mais algo a ser

explicado, mas sim um efeito a ser experimentado.Em sua novela James tematizou essá questão pela perspec-

tiva de Corvick. Depois que este compreendeu o sentido do ro-mance de Vereker, sua vida mudou. Por conseguinte, sabe ape-nas relatar essa transformação extraordinária que se passou com

ele, mas não explicar e comunicar, como o crítico desejaria, seupróprio sentido. Essa transformação afeta também a senhora Cor-vick, que empreende uma nova produção literária depois da mortede seu marido, que desilude o crítico, pois ele não consegue dis-secar as influências que lhe permitiriam algumas conclusões so-

re o sentido oculto do romance de Vereker1.2.

~ É possíV$1que James tenha zxagerado a mudança provoca-da pela literatura, mas não resta renhuma dúvida de que tal exa-gero evidenciou dois caminhos diferentes para os textos ficcionais.

~ O sentido como efeito causa impacto, e tal impacto não é supe-rado pela explicação, mas, ao contrário, a leva ao fracasso. Oefeito depende da participação do leitor e sua leitura; contraria-

- .I mente, a explicação relaciona o texto à realidade dos quadros dereferência e, em conseqüência, nivela com o mundo o que surgiuatravés do texto ficcional. Tendo em vista a oposição entre efeito

e explicação, tem dias contados a função do crítico como'media-slor do significado oculto dos textos ficcionais.

tações da teoria literária. Títulos como Against Interpretation23

ou Validity in Interpretation24 mostram tanto em posição ofen-siva como defensiva que os procedimentos de interpretação já nãopodem se contentar com"Sêusatos de redução aplicados automa-ticamente. Susan Sontag, no seu ensaio" Against Interpretation",

-atacou com veemência a exegese tradicional da obra de arte, quetem por meta a descoberta do significado oculto da obra:

The old style of interpretation was insistent, but

respectful; it erected another meaning on top of the li-teral one. The modern style of interpretation excavates,and as it excavates, destroys; it digs "behind" the text,to find a sub-text which is the true one... To understand

is to interpreto And to interpret is to restate the pheno-menon, in effect to find an equivalent for it. Thus, inter-

pretation is not (as most people assume) an absolute va-lue, a gesture of mind situated in some timeless realm

of capabilities. Interpretation must itself be evaluated,within a historical view of human consciousness.25

2. A SOBREVIVtNCIADA NORMA

CLÁSSICADE INTERPRETAÇÃO

Tudo indica que a arte moderna começa a reagir a uma inter-

pretação que tem por meta a descoberta de sua significação. Issocorresponde a uma observação que se pode fazer desde o romantis-

mo: a literatura e a arte respondem, de diversos modos, às nor-mas das teorias estéticas que as acompanham. Tais respostas mui-tas vezes têm um caráter ruinoso para a teoria. A pop art é um

exemplo extraordinário entre os movimentos da arte contempo-râneos que contam com as expectativas habituais do receptor dearte. De modo particular, a pop art joga com uma certa interpre-

A redução do texto ficcional à uma significação referencial

pode ser descrita como uma fase histórica da interpretação desdea irrupção da arte moderna. Essa consciência começa a penetrarhoje, de forma mais ou menos significativa, também nas interpre- 23S. Sontag, Against Interpretation and other Essays, New York, 1966.

24 E.D. Hirsch, Validity in Interpretation, New Haven, 1967.

25 Sontag, pp. 6 sS.22 Ibidem, p. 308.

34 Wolfgang IserO Ato da Leitura - Vol. 1 35

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tação que se interessa pelo "sentido oculto" da obra. Susan Sontagjá notou que a pop art pode ser compreendida como recusa total

da interpretação:

mente condicionadas do receptor. A segunda implicação consis-

te em que, sempre que uma obra de arte usa efeitos exageradosde afirmação, esses efeitos cumprem uma finalidade estratégica,mas não constituem o próprio tema. Sua função é de fato negar

o que aparentemente afirmam. Desse modo, a pop art segue umavelha máxima que Sir Philip Sidney já tinha formulado no séculoXVI em sua Defence of Poesie: "". the Poet, he nothing affir-

meth,,27. Se a afirmação de expectativas comuns se converte na

própria forma da obra, então é fácil imaginar a dimensão de fixa-ção que as normas de interpretação devem ter atingido, pois suacorreção apenas se torna possível se a obra de arte, por meio de

sua estrutura, confirma o que busca o receptor.\Negar por afir~a-

ção é uma estratégia constante quando se trata de realizar ajust§

Abstract painting is the attempt to have, in the ordi-nary sense, no content; since there is no content, there

can be no interpretation. Pop Art works by the oppo-site means to the same result; using a content so blatant,so "what it is", it, too, ends by being uninterpretable.26

Mas em que sentido é a pop art não-interpretável? Ora, elasimula produzir algo como cópia de objetos e assim correspon-

der a uma expectativa que vis~ a uma interptetação interessadaem significaçõe.focultas. Ao meSmotempo, porém, a pop art tornaessa meta tão transparente que o desmentido da cópia pela artese converte em seu próprio tema. À medida que a pop art apre-senta o efeito-de-cópia como objeto de exposição, ela recusa aspossibilidades necessárias para que se realize aquela interpreta-ção que visa traduzir a obra em sua significação. Nesse sentido,ela tematiza uma propriedade específica da arte: a sua resistênciaem ser absorvida em uma significação referencia!. Em conseqüên-cia, pop art confirma seus intérpretes no que parecem buscar na

arte; mas a confirmação é precipitada: o observador fica com asmãos vazias ao insistir nas normas habituais de interpretação. Talefeito de con.tirmação tem um caráter estratégico: ele quer chocaro observador, afetando seus modos automatizados de ver a arte.

- Dessa questão se inferem duas implicações. Em primeiro

, lugar, a pop art, como manifestação da arte moderna, tem comotema a sua interação com as disposições previsíveis do receptor

I de arte. Em outras palavras, a pop art recusa-seexplicitamenteaapresentar um significado referencial e assim chama a atenção para

o fato de que a origem deste se funda nas expectativas historica-

A oposição entre arte contemporânea e normas tradicionaisde interpretação tem um fundamento histórico que parece, noentanto, omitido nas interpretações hoje dominantes. Pois a so-brevivência de uma norma de interpretação que busca na obra dearte sua significação mostra que a arte ainda é compreendida como

organon da verdade, pelo qual a verdade se manifesta. Trata-se,em conseqüência, de mostrar o fundamento histórico, de que se

,originou o desenvolvimento contraposto da arte e de sua inter-pretação. Pois tanto mais a arte assumiu um caráter parcial, tan-to mais se afirmou a universalização da exigência explicativa de

sua interpretação. Dessa maneira, perdeu-se de vista um hiato his-tórico,e é de se perguntar que razões foram decisivas para isso.

É conhecido que Hegel considerava como certoo fim da arte, e não é desconhecido o que ele queria

dizer com essas palavras: ~ arte nãoPQde mais ser vis-ta como manifestaçã-.9apropriada da verdade. Nenhu-

26 Ibidem, p. 10.27Sir Philip Sidney, The Defence af Paesie (TheProse Works III), Albert

Feuillerat (ed.), Cambridge, 1962, p. 29.

36 Wolfgang Iser 37o Ato da Leitura - Vol. 1

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ma obra de arte constituiria, como Schelling desejava,o meio pelo qual o espírito poderia vir a si mesmo e,

imerso na contemplação, ter acesso a sua própria es-sência [...] já o mundo cristão só podia incorporar a arteem um contexto de crença. Por fim, as condições abs-

tratas da vida moderna se revelaram incapazes por simesmas de fundar na arte uma consciência de totali-

dade adequada. A arte não só ficou para trás de outros

modos de conhecimento com que deveria se sintonizar,mas também o seu val~.r se tornou parciaI.28

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i' Esse caráter parcial atinge a todas as formas da arte moder-

na ~~e, ao se definirem com~arte: são manifestações da realida-de~as a realid~e nunca mais se poderá apresentar nas artes par-ciais de maneira direta; pois concebê-Ia como imagem - seja comocópia, seja como reflexo - significaria devolver-lhe um caráter

representativo da totalidade, que, mesmo por ser arte parcial, elaperdera. A arte moderna, interessada em manter o seu poder demediação também como arte parcial, traz consigo as velhas co-

notações da forma como ordem, equilíbrio, harmonia e integra-ção das partes numa unidade, ao mesmo tempo que precisa des-mentir constantemente essas conotações. Pois, sem esse desmen-

tido, ela se comportaria como os movimentos ideológicos da artecontemporâ~a e simularia uma falsa totalidade; sem as cono-

tações de forma, ao invés, a mediação fracassari;!'Na obra dearte parcial, a forma e a ruptura da forma coexistem numa uni-

dade, e nesta oscilam seus elementos de significação contrapos-tos. Cada elementos contesta seu oposto e, entretanto, o faz dedentro de si. "29

"

28Dieter Henrich, "Kunst und Kunstphilosophie der Gegenwart (Überle-

gungen mit Rücksicht aufHegel)", in Wolfgang Iser (org.), Immanente A.sthetik

-A.sthetische Reflexion (Poetik und Hermeneutik 11),München, 1966, p. 15.

29 Ibidem, p. 30.

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~essa estrutura manifesta-se a consciência de que a arte en-quanto representação do todo é coisa do passa~do-ein vis-ta esse estado de coisas, surpreende a sobrevivência de uma nor-ma de interpretação que se formou com o ideal clássico de arte e,em face de uma arte agora parcial, apresenta uma estranha voca-

ção universalista. Cabe perguntar se a interpretação da arte q~erdevolver a ela o que ela abandonara, ou se se recusa a perceber aruptura histórica que as artes parciais manifestam. Tudo indicaque a velha exigência de que a arte represente uma totalidade cris-talizou-se na exegese que se lhe consagra. Isso se reconhece ondequer que as normas clássicas de interpretação são aplicadas àprópria arte parcial. A significação das obras modernas, apreen-dida dessa forma, mostra em princípio um caráter bastante abstru-so, como se pode deduzir dos muitos exemplos intitulados A Rea-

der's Cuide to... Segundo a ótica dessa interpretação, no entan-

,!to, é preciso ver na arte a manifestação representativa de uma .

totalidade, o que obriga a se tomar o moderno como fenômeno,de decadência. Pois, à luz dessas normas, a arte moderna fic~ atrás' ()

do que já se tinha alcançado. Com isso vem à tona algo curioso.

Em nome da sua exigência de explicação universalista, a interpre-tação, originalmente dedicada à arte, começa a ganhar terrenosobre a própria arte. Mostra-se agora o que sucede se a formatradicional de interpretação ignora que a autoconcepção da artetenha mudado e resiste a refletir sobre a norma orientadora. Tal

norma, por isso, em face da arte atual, antes interpreta a si mes-

ma do que interpreta a arte. Assim, na revelação das suas condi-ções históricas, um paradigma da interpretação chega ao seu fim.

Isso ainda se mostra quando a interpretação, interessada nadescoberta de significados ocultos, fundamenta seu modo de pro-

ceder em postulados de teorias hoje assentes, cuja validade a obra yde arte parece representar. E assim não surpreende qU~ texto~"literários foram considerados ora como testemunha do espírito da

epoca, ora como reflexo de condições sociais, ora como expres-são das neuroses do seus autores etc.; os textos foram nivelados

'como documentação e, desse modo, se elimina aquela dimensão

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que os diferencia da mera documentação: a possibilidade privile-giada de experimentar na leitura o espírito da época, as condições'Sociais e as disposições dos seus autores. Pois é característico dos

textos literários que não percam sua capacidade de comunicaçãodepois que seu tempo passou; muitos deles ainda conseguem "fa-lar" mesmo depois que sua "mensagem" se tornou histó.rica e sua

"significação" se trivializoo/

A teoria da literatura, reJpaldada por um corpusteórico-filosófico de fun~penas restauradora, até

hoje tem tido como tarefa principal a anális~ semânti-ca (exegese, definição da significação) de textos sancio-nados pelos [t'lteresses socialmente dominantes. 30

entende a obra como aparição de uma significação representativa,

~ainte!açã~ do texto tanto com as normas sociais quanto com ashistóricas de seu~ambiente, bem como com as expectativas de seus

leitores potenciais, forma um campo de observação privilegiad<V

Contudo, é um fato que o estilo de interpretação do século

XIX se manteve até hoje; se a arte moderna ainda não foi capazde provocar uma mudança profunda nele, deve haver alguma

razão muito forte para que nos mantenhamos ligados àquelasnormas tradicionais. Georg Simmel nos dá uma indicação preciosa:

-~ ;6 potencial de comunicação de um texto literário, contudo,não' pode ser deduzido de um paradigma, que entende a obra dearte como representação de valores socialmente dominantes. Por

causa desse paradigma, a dimensão pragmática do texto permane-ceu oculta. Em conseqüência, nem a função, nem o efeito do texto

literário se tornou objeto de pesquisa. A arte parcial contemporâneafez notar que já não se pode tomar a arte como a cópia represen-tativa de tal totalidade, mas sim que uma das suas funções centrais

está em descobcir e talvez também equilibrar o déficit que os sis-

temas dominantes produzem. Em conseqüência, a arte não pode

mais ser a representação desses sistemas, de modo que aquele es-tilo de interpretação, desenvolvido no século XIX, hoje atua como

se a obra fosse ~egradada à situação de reflexo. Essa impressão podeser considerada como conseqüente, àmedida q!le tal norma de in-

terpretação queria entender a obra no sentido pegeliano de "apa-rição sensível da idéia". A arte moderna ainda cria outro pressupos-

to para a interpretação. Em v~zda correspondência platônica, que

o estágio mais elementar do impulo estético se

manifesta na construção de sistema que reúne os obje-tos em uma imagem simétrica [...] se os objetos são su-bordinados ao sistema, a razão os capta com maiorrapidez e, por assim dizer, com menor resistência. A

forma do sistema se rompe, tão logo nos enfrentamoscom a significação própria do objeto e não necessita-

mos derivá-lo do contexto com outros; nessa fase, porisso, também diminui o estímulo estético da simetria

com que, a princípio, se dispunha os elementos [...] Asimetria significa no estético a dependência de cadaelemento de sua interação em relação a todos os ou-

tros, mas ao mesmo tempo a completude do círculoassim descrito; quanto mais as formas assimétricas con-

cedem individualidade a cada elemento, mais espaço li-vre e relações mais abrangentes.31

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30Dieter Breuer, EÍ1!führung in die pragmatische Texttheorie(UTB106), München, 1974, p. 10.

31Georg Simmel,Brücke und Tür, Mich~eILandmann (org.),Stuttgart,1957, pp. 200 ss e 205. E.H. Gombrich (emNorm and Form, London, 1966)explicou como as normas clássicas, enquanto categorias de orientação, do-minam até hoje a história da arte: "That procession of styles and periodsknown to every beginner - Classic, Romanesque, Gothic, Renaissance,Mannerist, Baroque, Rococo, Neo-Classical and Romantic - represents onlya series of masks for two categories, the classica:land the non-classical" (p.

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Simetria descreve aqui as conotações clássicas da forma:-equi:líbrio,-9rdem e comeletude. Ao mesmo tempo, Simmel descobre,--- - ---porém, a motivação que se realiza na busca de harmonização doselementos preexistentes. Enquanto estrutura de controle, simetriapermite que se alivie a pressão do não-familiar e que se lhe dominedentro da completude de um sistema equilibrado. Sereconhecemosa harmonização como busca de dominar o estranho, torna-se entãomais fácil compreender a sobrevivência da estética clássica na in-

terpretação da arte. As normas clássicas estendefam sua validez paraalém de seu marco histórico, pois assegu~o ato interpretativoum alto grau de certeza. Simmel não deixa dúvida de que a sime-

tria e a construção de sistema decorrem de uma inter;ção estratégica

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e não possuem um caráter ontológico. Os quadros clássicos de

referência pareciam se tornar indispensáveis para a interpretaçãoquanto mais nos períodos pós-clássicos a ordem da arte começava

a se desintegrar. A norma de interpretação, que visaà significação,se converte, em face da arte parcial, em uma estrutura defensiva32.

Um exemplo instrutivo dessa questão é o new criticism, qU

Iassinala um momento crucial da interpretação, pois abandona a

parte decisiva da norma clássica, ou seja, a obra não é mais aqui

vi"a como objeto cm que a an,li" capta a ,ignificação d, valm, ) Ihistoricamente dominantes. Tal busca de significação foi elimina- t

da pelo new criticism, que concentra seu interesse nos elementos\ da obra e suas interações. Desse modo, os procedimentos funcio-

nais do texto ganham primazia. Mas nesse novo campo de análise

continua repercutindo a força da velha norma de interpretação. Ovalor da obra se determina pela harmonia de seus elementos; nou-tras palavras, quanto mais heterogêneos são elesa princípio e quantomai

.

s difícil é interrelacioná-los por causa de:cs... ambigüidades,

tanto maior o valor estético da obra, desde qu or 1 , suas partesse harmonizem. A meta da interpretação, ha . ção e neu-tralização das ambivalências manifesta o débito indisfarçável do

new criticism quanto à norma clássica de interpretação. Mas, aomesmo tempo, a harmonização ganha um valor próprio que des-conhecia quando, na compreensão clássica da arte, tinha de repre-sentar a verossimilhança e a universalidade da significaçãO desco-berta. É certo que o new criticism separou as estruturas formaisda obra e as converteu no seu próprio tema; mas o fato de que se

recusa a busca de uma significação no texto - o que se conhece

como extrinsic approach - não implica, contudo, que se abandone

também a norma clássica de interpretação, interessada na avalia-

83). Em conseqüência, todas as descrições dos estilos não-clássicos tornam-

se "terms of exclusion" (p. 89). Daí deriva, no entanto, um problema para ainterpretação das obras de arte: "For exclusion implies intention, and suchan intention cannot be directly perceived in a family of forms" (p. 90). Àmedida que essas formas constituíam uma referência para a avaliação, asformas não-clássicas só podiam ser descritas "as a catalogue of sins to beavoided" (p. 89). Dessemodo, ressalta a estrutura do procedimento clássicode interpretação que encontra nas normas clássicas- "regala,ordine,misúra,disegno e maniera" (p. 84) - um padrão de referência a,valiadorde todos osfenômenos da arte. O modelo clássico de interpretação é, por conseguinte,um modelo de refetência, pois avalia todos os produtos da arte segundo asnormas estabelecidas. Um modelo de referência, com suas definições norma-tivas, se revela como manifestação histórica da interpretação, pois trabalhacom reconhecimento ou exclusão. No instante em que se trata de compreen-der a particularidade de fenômenos da arte e as suas funções, é necessário

substituir o modelo de referência por um modelo operacional. O caso é queesse modelo se mostra mais apropriado para a análise da arte moderna; aomesmo tempo permite ter acesso à arte do passado, pois revela suas funçõese condições de recepção. É desnecessário dizer que todos os modelos têmlimites. Os limites da norma clássica de interpretação se manifestam nomomento em que sua exigência universalista de explicação tenta estabelecer-se como algo evidente também em face da arte moderna. Pois agora a estéti-ca clássica de contemplação não encontra mais nada para contemplar, semque nessa "consumação" todas as funções da arte já se tenham exaurido.

,32Isso se mostra por exemplo para a interpretação alegorizante de

Beckett. Cf. meu ensaio "Die Figur der Negativitiit", in Hans Mayer & UweJohnson(orgs.),Das Werkvon SamuelBeckett.BerlinerColloquium (Suhr-kamp Taschenbuch 225), Frankfurt, 1975, pp. 54-58, especialmente 63 ss.

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ção dos procedimentos funcionais do texto. Por isso, a harmoniados elementos heterogêneos se manteve em quase todas as varian-

tes do new criticism como o valor último da obra de arte, que re-velava, como valor próprio, a falta de conexão desses elementos e

anunciava, desse modo, a crise dessa forma de interpretação.De qualquer modo, esses fatos são instrutivos. O new cri-

ticism mudou a análise literária, à medida que não maIs visava àSignificação representativa, mas sim às funções presentes na obra.

Mostrou-se nessa mudança sua atualidade; mas ficou para trás aotentar definir a interação das funções com as mesmas normas de

interpretação que valiam para a significação representativa. Inter-pretar a função da arte por meio das mesmas normas desenvolvi-

das para a apreensiftiDda significação, significa, portim, que se per-de o que se ganhava com a descoberta da sua função. Pois umafunção não representa uma significação, mas provoca um efeito.

jante que, através do romance, empreende uma viagem difícil, a

partir de seu ponto de vista flutuante. É evidente que ele combi-na, em sua memória, tudo que vê e estabelece um padrão de con-sistência, cuja confiabilidade depende parcialmente do grau deatenção que manteve em cada fase da viagem. Em nenhum caso,porém, a viagem inteira é disponível para o leitor a cada momento.

Ao analisar as interpretações recentes a respeito de Miltone sobretudo a respeito de Paradise Lost, Philip Hobsbaum usouo conceito de "critério de disponibilidade" para explicar as diver-sas interpretações:

Se a norma tradicional de interpretação não só oculta a rup-tura histórica, como também mostra sua própria eficiência, sem-pre que surgem novas orientações interpretativas, então podemosconcluir que as razões até aqui apontadas ainda não explicam bemessa sobrevivência. Uma razão central da sobrevivência das nor-

mas herdadas de interpretação está no estabelecimento da con-

sistência, necess!!,ia para toda compreensão. Textos maiores como

romances e epopéias não se fazem presentes como um todo, naleitura, com o mesmo grau de intensidade. Já os autores do sé-culo XVIII disso estavam conscientes e, por isso, discutiam nos

seus romances estruturas possíveis para leitura. Um exemplo ca-racterístico é a metáfora da diligência usada por Fielding33 e maistarde por Scott34 e seus discípulos: o leitor é estilizado como via-

Ir is a commonplace, indeed, to say that the lon-

ger the work the less the chance there is of its being flaw-less. But there is a tendency among critics to patch upflaws, to make connections which may not be there forother readers; and this is, no doubt, a result of the veryexigency of criticism and the paradox contained withinit [...] The problem, as I see it, is that, in order to keepthe work in his mind as anything more than detachedfragments, the critic has to make some effort at inter-

pretation, no marter how private, how personal, the re-sult may be. The temptation then is to pass on that resultin tato to the reading public, expressing indignation, asoften as not, at the disagreement such a proceeding will

inevitably arouse. Surely it is more graceful, as well asmore honest, to concede that, however unified a work

may be in intention, it is sadly fragmented in effect? [...]

This is what I have called the concept of availability: justas all of his experience is not available even more to themost gifted'creative writer, so all of the writer's workis not available to even the most interested reader.35

33 Cf. Henry Fielding, Tom fones, XVIII, 1 (Everyman's Livrary), Lon-don, 1957, p. 364.

34Cf. Sir Walter Scott, Waverly (The Nelson Classics), Edinburgh, s.d.,p.44.

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35Philip Hobsbaum, A Theory of Communication, London, 1970, pp.47 ss.

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A falta de acessibilidade da obra inteira durante o ato de apre-ensão que se manifesta como ponto de vista flutuante é o estímulo

para o estabelecimento de consistência na leitura - processo queainda será discutido mais adiante36. O que aqui nos interessa é a

avaliação da necessidade da interpretação, indispensável para acompreensão do texto como um todo articulado. Quanto menos

acessível é toda a epopéia de Milton para o crítico - quaisquerque sejam as razões -, tanto mais absoluta é a consistência queele estabelece. Isso significa, no entanto, que a falta de acessibili-dade é compensada pela introdução de critérios habituais de ava-

liação; estes antes caracterizam o crítico do que a peculiaridade daobra. Se a falta de acessibilidade leva o leitor a utilizar cada vez

mais as orientações habituais, então a consistência estabelecida de-...

pende de tais orienlações. Esse e~tado vale para qualquer processo

de leitura, ou seja, antes de tudo o crítico é um leitor como qual-

1

quer outro que busca apreender, por meio da consistência esta-

I belecida, a obra como um todo articulado. t;J"essepro~essocríti-

\ \ I '-.o~i!or~ !.êqL<LmeSll1acomp!tê~c!.::Asituaçãodo críricõsetorna difícil no momento em que ele exige validez normativa parasua estrutura de apreensão. Nesse caso, as interpretações do crítico

se confrontam com as objeções do público, pois o processo idênti-

co de estabelecimento de consistência pode ser atualizado semprede diversos modos e, em face das orientações habituais, por conteú-

dos diferentes. '~ua indignação com as restrições mostra que o crí-tico não reflete as orientações habituais que o dirigem. Como o leitorem princípio se omite da reflexão, o crítico deveria fundamentar

por que a consistência que ele estabelece seria a forma mais apropria-da de avaliação. Seele aí se refere às normas clássicas de interpreta-ção, pode-se suspeitar de que as normas estéticas servem nesse caso

para justificar os atos subjetivos de apreensão. Pois não devemos

esquecer que as normas clássicas de interpretação se fundam no

pressuposto de que na obra se manifesta a totalidade que precisa

36Cf. a respeito capítulo m, A, 3, no vaI. 2 deste livro.

46 Wolfgang Iser

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da harmonia das formas para o alcance da representação apropria-da. Caso diterente se dá com o estabelecimento da consistência. Esse

estabelecimento é ligado às orientações habituais do leitor. Daí

deriva que muitas obras modernas sejam tão ricas em rupturas deconsistência, e não porque sejam todas mal concebidas, mas simporque tais rupturas dificultam o estabé1ecimento de consistência

necessário para sua apreensão. A função comunicativa dessas rup-turas é provocar o fracasso das orientações habituais e revelar suainadequação.

Razões como as supracitadas evidenciam a sobrevivência das

normas clássicas de interpretação. Pois essas normas não podemser aplicadas apenas para avaliar uma obra, mas também impor-tam para o estabelecimento da consistência. Desse modo as mui-

tas decisões do leitor na busca da consistência parecem ser gover-

nadas pela mesma norma. E se acrescentamos que a norma clássi-ca de interpretação proporciona um quadro de referências que per-mite ter acesso ao não-familiar ou até mesmo dominá-Io, entãotornam-se claras as razões que asseguraram a perduração de talnorma. A norma de interpretação que parecia reger tanto-os atos

de compreensão quanto as estruturas da obra e que oferecia crité-rios para domar o ainda desconhecido só podia se mostrar como

algo naturalmente dado. /1Se a interpretação tinha como tarefa captar a significação do - V'

textõ, pressupunha-se que o próprio texto não podia formular a

~significação.Comoaosignificaçãode um texto pode serexperimen-tada se, conforme supõe a norma clássica de interpretação, já estáaí à espera apenas da explicação referencial? O processo em quetal significação vem a se manifestar antecede toda tentativa deinterpretação. Em conseqüência, a constituição de sentido e não

um determinado sentido, apreendido pela interpretação, deveriater a primazia. Se isso é verdade, a interpretação não deveria re-velar apenas o sentido do texto a seus leitores, mas sim escolher

como seu objeto as condições d;f constituição de sentido. Nesseinstante, ela deixa de explicar uma obra e, em vez disso, revela as

condições de seus possíveis efeitos. Se ela mostrar o potencial deJ

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efeitos de um texto, desaparece a concorrência fatal que teve deenfrentar quando tentou impor ao leitor a significaçãp apreendi-da como a mais correta ou a melhor. T.S. Eliot diz que "[The] criticmust not coerce, and he must not make judgments of worse orbetter. He must simply elucidate: the reader will form the correct

judgment for himself"37. Em face da arte moderna, assim como

de muitas recepções de obras literárias, o leitor não mais pode serinstruído pela interpretação quanto ao sentido do texto, pois ele .

não existe em uma forma sem contexto. Mais instrutivo seria ana-

lisar o que sucede quando lemos um texto. Pois é só na leitura queos textos se tornam efetivos, e isso vale também, como se sabe,

para aqueles cuja "significação" já se tornou tão histórica que jánão tem mais um efeito imediato, ou para aqueles que só nos "to-/li'

cam" quando, ao \!onstituirmos o sentido na leitura, experimen-tamos um mundo que, embora não exista mais, se deixa ver e,embora nos seja estranho, podemos compreender.

37T.S. Eliot, The Sacred Wood (UniversityPaperbacks), London, 1960[1928], p. 11. A observação de Eliot se encontra no ensaio "The PerfectCritic".

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