wittgenstein - roger scruton

10
Wittgenstein Roger Scruton l. A Origem da filosofia "Analítica" Muito se tem escrito nos últimos anos sobre a vida e a filosofia de Ludwig Wittgenstein (1889-1951?. Atualmente, ele é considerado por muitos o filósofo mais importante de nosso século. Todavia, é difícil enquadrar seu pensamento na história da filosofia, em parte devido à sua iconoclasta posterior e, em parte, porque, como Frege, ele parte de reflexões que, à luz dessa história, podem parecer provincianas e até mesmo desprovidas de qualquer importância filosófica. Portanto, à guisa de introdução, é necessário dizer algo sobre o estado da filosofia inglesa quando Wittgenstein veio a se interessar por ela. Tal interesse prenunciou a prolongada influência que as idéias vienenses vieram a exercer sobre o pensamento angloamericano. Devemos retroceder um pouco no tempo, até as doutrinas de Russell e Moore. Bertrand Arthur, terceiro Conde Russell (I872-1970), tem sido até aqui associado à nova lógica, por ele transformada em poderoso instrumento de análise filosófica. Não menos importante, historicamente falando, foi seu amigo G. E. Moore (1873-1958), que escreveu importante tratado sobre ética, o Principia Ethica (I903), e se opôs inexoravelmente a todas as formas de especulação metafísica que parecessem subverter as verdades estabelecidas do senso comum. Juntos, Moore e Russell dedicaram-se à demolição das doutrinas do idealismo britânico, como foram apresentadas por Bradley (em Oxford) e J, M. McTaggart (1866-1925), em sua própria Universidade de Cambridge. Russell, em sua obra inicial sobre os fundamentos da geometria, reconhece a influência da Lógica de Bradley. Isso, porém, não o impediu de discernir, na famosa prova do caráter provisório de objetos e qualidades proposta por Bradley (ver p. 235), uma confusão entre o "é" da predicação e o "é" da identidade, ou de acusar Bradley e McTaggart de prestidigitadores em quase todas as provas que ofereceram da inadequação de nossas concepções de espaço, tempo e matéria baseadas no senso comum. Moore aderiu ao combate, acrescentando mais asserções peculiarmente dramáticas do que argumentos. Fez a seguinte pergunta: Como é possível que minha crença de que tenho duas mãos seja menos certa que a validade de todos os argumentos filosóficos que se têm aduzido para refutá-la? A combinação da volátil lógica de Russell com a vigorosa recusa de Moore a pensar além de seu nariz ou de suas mãos mostrou-se extremamente destrutiva, tornando-se moda descrever a metafísica idealista não como falsa, mas como sem sentido. Outros filósofos - notavelmente Hume - tinham f eito afirmações semelhantes. No entanto, agora, mais do que nunca, parecia possível provar o que fora dito, desenvolvendo-se uma teoria da estrutura da linguagem que mostrasse precisamente o que podia e o que não podia ser dito. E supôs-se que, entre as coisas que não podiam ser ditas, a metafísica era a mais facilmente reconhecível. A primeira teoria desse tipo foi o atomismo lógico, prenunciado por Russell e expresso de modo mais ou menos completo por Wittgenstein, em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Essa obra, que chegou ao ponto de ser mais sucinta que a Monadologia de Leibniz, pretendia responder de forma definitiva as questões da filosofia. Ao escrevê-la,

Upload: padrede

Post on 27-Sep-2015

19 views

Category:

Documents


6 download

DESCRIPTION

w

TRANSCRIPT

  • Wittgenstein Roger Scruton

    l. A Origem da filosofia "Analtica"

    Muito se tem escrito nos ltimos anos sobre a vida e a filosofia de Ludwig Wittgenstein (1889-1951?. Atualmente, ele considerado por muitos o filsofo mais importante de nosso sculo. Todavia, difcil enquadrar seu pensamento na histria da filosofia, em parte devido sua iconoclasta posterior e, em parte, porque, como Frege, ele parte de reflexes que, luz dessa histria, podem parecer provincianas e at mesmo desprovidas de qualquer importncia filosfica. Portanto, guisa de introduo, necessrio dizer algo sobre o estado da filosofia inglesa quando Wittgenstein veio a se interessar por ela. Tal interesse prenunciou a prolongada influncia que as idias vienenses vieram a exercer sobre o pensamento angloamericano. Devemos retroceder um pouco no tempo, at as doutrinas de Russell e Moore.

    Bertrand Arthur, terceiro Conde Russell (I872-1970), tem sido at aqui associado nova lgica, por ele transformada em poderoso instrumento de anlise filosfica. No menos importante, historicamente falando, foi seu amigo G. E. Moore (1873-1958), que escreveu importante tratado sobre tica, o Principia Ethica (I903), e se ops inexoravelmente a todas as formas de especulao metafsica que parecessem subverter as verdades estabelecidas do senso comum. Juntos, Moore e Russell dedicaram-se demolio das doutrinas do idealismo britnico, como foram apresentadas por Bradley (em Oxford) e J, M. McTaggart (1866-1925), em sua prpria Universidade de Cambridge. Russell, em sua obra inicial sobre os fundamentos da geometria, reconhece a influncia da Lgica de Bradley. Isso, porm, no o impediu de discernir, na famosa prova do carter provisrio de objetos e qualidades proposta por Bradley (ver p. 235), uma confuso entre o "" da predicao e o "" da identidade, ou de acusar Bradley e McTaggart de prestidigitadores em quase todas as provas que ofereceram da inadequao de nossas concepes de espao, tempo e matria baseadas no senso comum. Moore aderiu ao combate, acrescentando mais asseres peculiarmente dramticas do que argumentos. Fez a seguinte pergunta: Como possvel que minha crena de que tenho duas mos seja menos certa que a validade de todos os argumentos filosficos que se tm aduzido para refut-la? A combinao da voltil lgica de Russell com a vigorosa recusa de Moore a pensar alm de seu nariz ou de suas mos mostrou-se extremamente destrutiva, tornando-se moda descrever a metafsica idealista no como falsa, mas como sem sentido. Outros filsofos - notavelmente Hume - tinham f eito afirmaes semelhantes. No entanto, agora, mais do que nunca, parecia possvel provar o que fora dito, desenvolvendo-se uma teoria da estrutura da linguagem que mostrasse precisamente o que podia e o que no podia ser dito. E sups-se que, entre as coisas que no podiam ser ditas, a metafsica era a mais facilmente reconhecvel.

    A primeira teoria desse tipo foi o atomismo lgico, prenunciado por Russell e expresso de modo mais ou menos completo por Wittgenstein, em seu Tractatus Logico-Philosophicus (1921). Essa obra, que chegou ao ponto de ser mais sucinta que a Monadologia de Leibniz, pretendia responder de forma definitiva as questes da filosofia. Ao escrev-la,

  • Wittgenstein inspirou-se, em parte, na famosa teoria das descries, proposta por Russell e publicada num artigo que F. P. Ramsey (I903-1930) descreveu como "paradigma de filosofia". Assim sendo, tal teoria servir como introduo adequada obra de Wittgenstein.

    2. A Teoria das Descries

    estranho, e no entanto verdadeiro, o fato de uma das mais importantes publicaes referentes filosofia moderna ter tido como objetivo aparente explicar o significado do artigo definido. Russell pergunta: qual a diferena entre as sentenas "uma montanha de ouro existe" e ``a montanha de ouro existe"? A primeira expresso assim explicada pela nova lgica: o predicado "montanha de ouro" instanciado ou, de modo mais formal, existe um x tal que x uma montanha de ouro. Essa proposio obviamente falsa. Mas que dizer da segunda proposio? Aqui, a palavra "o" parece transformar o predicado "montanha de ouro" naquilo que Russell chamaria de expresso denotadora (e que Frege chamou de nome). Trata-se de um estranho efeito da gramtica, que tem uma conseqncia lgica ainda mais estranha, ou seja, a de que a sentena parece referir-se a alguma coisa - a montanha de ouro. Mas como isso possvel, se no existe montanha de ouro? Russell alegou que temos aqui um caso paradigmtico de uma forma gramatical que dissimula a forma lgica de uma sentena. Tomando como exemplo sua prpria definio e a implcita definio fregeana de nmeros, oferece uma definio implcita da palavra "o". No podemos dizer explicitamente o que o termo "o" denota, mas podemos mostrar como elimin-lo de todas as sentenas em que ocorre.

    Consideremos a sentena "o Rei da Frana calvo". Para que isso seja verdade, deve existir um rei da Frana e ele deve ser calvo. Ademais, para apreender o sentido distintivo da palavra "o", devemos acrescentar que s existe um rei da Frana. As condies que formam a sentena verdadeira conferem-lhe o significado; conseqentemente, podemos dizer que "o Rei da Frana calvo" eqivale conjuno de trs proposies: "existe um rei da Frana; tudo que rei da Frana calvo; e s existe um rei da Frana''. (Mais formalmente - existe um x tal que x um rei da Frana e x calvo, e, para todo y, se y um rei da Frana, y idntico a x.) Essa anlise leva-nos a concluir que, se no existe um rei da Frana, a sentena original falsa. A expresso "o Rei da Frana", que parecia uma expresso denotadora ou nome, de fato no tal coisa, mas um predicado associado a uma alegao existencial oculta. Como Russell assinala, o Rei da Frana uma fico lgica (Podemos encontrar um antecedente histrico para esse tipo de teoria filosfica na teoria benthamita das fices.)

    Filosoficamente falando, Russell se ops a certos fenomenologistas (notadamente, Alexius Meinong (1853-1920)), que pretenderam concluir que, se podemos pensar em algo como a montanha de ouro, essa coisa deve, em certo sentido, existir. (Se o leitor no gosta da palavra "existir', ento se oferece outra palavra - "subsistir' - para no ferir suas delicadas suscetibilidades lgicas.) Russell no chegou a compreender totalmente que Meinong e seus companheiros se dedicaram menos investigao da lgica da denotao que ao exame do "objeto" intencional" do pensamento. Entretanto, seja como for, o argumento de Russell presta-se generalizao imediata, proporcionando, nessa forma generalizada, uma base para a filosofia do Tractatus.

  • 3. 0 atomismo lgico e o Tractatus

    De acordo com o Tractatus, tudo que pode ser pensado tambm pode ser dito. 0s limites da linguagem so, portanto, os limites do pensamento, de modo que uma completa filosofia do " do que pode ser dito" ser uma teoria completa do que Kant denominara "o entendimento". Todos os problemas metafsicos decorrem da tentativa de dizer o que no pode ser dito. Uma anlise apropriada da estrutura dos termos utilizados nessa tentativa mostrar tal coisa e, desse modo solucionar ou diluir problemas.

    Ento, qual a estrutura da linguagem? Wittgenstein dividiu todas as sentenas em complexas e atmicas, afirmando que as primeiras eram construdas a partir das segundas mediante regras de formao que podiam ser interpretadas detalhadamente em termos da lgica de Russell. As sentenas atmicas so aquelas que empregam os primitivos da linguagem` isto , os nomes e predicados elementares que, sendo indefinveis, servem para distinguir (ou "descrever") o que Wittgenstein chamou de fatos atmicos. S uma proposio completa pode ser verdadeira ou falsa e, por conseqncia, s uma proposio completa pode dizer-nos algo sobre o mundo. Conseqentemente, o constituinte mais bsico do mundo o que corresponde sentena atmica. Esse constituinte bsico o fato atmico, sendo o mundo, portanto, a totalidade de tais fatos.

    Os fatos complexos correspondem s proposies complexas e, para compreender tais fatos complexos, necessrio que compreendamos a complexidade da linguagem usada para express-los. E essa complexidade inteiramente proporcionada pela lgica fregeana e russelliana. Assim sendo, "o Rei da Frana calvo" (embora no parea) uma sentena complexa, visto que sua verdadeira estrutura (ou seja, sua estrutura como representada pela nova lgica) mostra que ela consiste em trs sentenas incompletas, combinadas e completadas pela quantificao e pelo conectivo "e". Muitas sentenas assemelham-se a essa. Parecem bsicas, mas, de fato, so complexas. Geralmente, muitas coisas a que nos referimos so construes lgicas (ou fices). As sentenas que as descrevem so abreviaes de sentenas mais complexas referentes aos constituintes de fatos totalmente diferentes, porm mais bsicos, em que essas "construes lgicas" no ocorrem. Uma sentena como "um homem mdio tem 2,6 filhos" realmente uma abreviao de uma sentena matemtica complexa que relaciona o nmero de filhos dos homens com o nmero de homens. "0 homem mdio" no caracteriza qualquer sentena atmica, ou seja, no nomeia qualquer constituinte da realidade. Pode-se dizer o mesmo com relao nao inglesa e a muitas entidades ``metafsicas" que aparentemente tm suscitado problemas filosficos. Wittgenstein foi menos especfico que Russell, e certamente menos especficos que os positivistas lgicos, para que, no obstante, o Tractatus proporcionou todo um sistema de argumentao filosfica, no que se refere a que fatos so atmicos e que fatos no o so. Ele pretendia enunciar claramente a estrutura lgica do mundo, no se preocupando com seu contedo real.

    A caracterstica mais importante das sentenas complexas que os conectivos usados para constru-las devem ser "veri-funcionais", isto , devem ser tais que o valor-de-verdade da sentena complexa seja inteiramente determinado pelos valores de verdade de suas partes. Trata-se do "princpio da extensionalidade, com o qual j nos deparamos ao discutir Frege e que, de acordo com Wittgenstein, uma precondio do pensamento e da anlise lgicos. A

  • lgica ocupa-se apenas da transformao sistemtica de valores-de-verdade; por conseguinte, uma linguagem lgica deve ser transparente aos valores-de-verdade. Deve ser possvel perceber toda operao em termos da transformao da verdade e da falsidade. (A palavra "no" tem o sentido de transformar a verdade em falsidade e a falsidade em verdade: a palavra "se", o de tornar falsa uma sentena complexa se o antecedente verdadeiro e o conseqente, falso; caso contrrio, ela a torna verdadeira; e assim por diante.)

    A noo de linguagem veri-funcional confere exatido e fora alegao de Wittgenstein de que h uma distino real entre sentenas atmicas e no-atmicas. Ele capaz de dizer no apenas o que a distino, mas, o que mais importante como somos capazes de compreend-la. No difcil para uma linguagem veri-funcional explicar de que modo a compreenso de sentenas atmicas leva compreenso de todos os complexos infinitos que podem ser construdos a partir delas. (Essa outra aplicao de um princpio de Frege que discutimos nas pp. 247-48.) As condies-de-verdade de uma sentena complexa formada de maneira veri-funcional podem ser extradas imediatamente das condies-de-verdade de suas partes. E, em conseqncia, se compreendermos as condies-de-verdade das partes, compreenderemos o todo.

    Alm disso, Wittgenstein capaz de proporcionar uma nova e aparentemente clara distino entre o necessrio e o contingente, o analtico e o sinttico, o a priori e o a posteriori. Tais distines reduzem-se distino entre verdade lgica e contingncia. Uma sentena uma verdade lgica caso resulte verdadeira atravs da substituio, pelos termos, dos componentes "primitivos" nela presentes. (Uma parte primitiva aquela que no admite qualquer definio ulterior. ) 0 paradigma de verdade lgica a "tautologia" veri-funcional. Consideremos a sentena "p 0o q". A definio de "ou" : p ou q falso se tanto p quanto q forem falsos e, em caso contrrio, verdadeiro. A definio de "no" a seguinte: no-p verdadeiro se p falso, e falso se p verdadeiro. Isso quer dizer que a sentena "p ou no-p" sempre verdadeira, qualquer que seja o valor-de-verdade de "p". Desse modo no importa como substitumos o termo primitivo "p", pois isso resultar sempre numa sentena verdadeira. As sentenas que assumirem tal forma so portanto, necessariamente verdadeiras, podendo ser consideradas verdadeiras a priori por qualquer um que compreenda as operaes lgicas da linguagem.

    Para Wittgenstein, essa teoria da verdade necessria tem como conseqncia o fato de as verdades necessrias serem vazias: nada dizem porque nada excluem. So compatveis com todo estado de coisas. 0 mundo descrito pela totalidade das proposies atmicas verdadeiras; estas so verdadeiras, mas, sendo atmicas, poderiam ser falsas, j que nada em sua estrutura determina seu valor-de-verdade. Outra maneira de dizer isso que os fatos existem no "espao lgica" que define as possibilidades; as sentenas atmicas verdadeiras descrevem o que real, enquanto as tautologias refletem propriedades do prprio espao lgico.

    Essa avaliao da linguagem suscita profundos problemas metafsicos. Em primeiro lugar, h o problema da relao entre sentenas atmicas e fatos atmicos. Wittgenstein chama essa relao de "figurao", e tal metfora tem enganado muitos dos que tentam coment-las. Ele tambm diz que a relao no pode ser descrita, mas apenas mostrada; de fato, sua

  • concepo era de que se deve mostrar o que mais bsico; caso contrrio, nunca poderamos comear a descrio. E no est claro exatamente o que ele quis dizer com "mostrar". Qui a melhor maneira de compreender essa teoria - s vezes chamada de "teoria figurativa do significado" - seja negar, para usar uma expresso ulterior de Wittgenstein, que podemos usar a linguagem "para nos situarmos entre a linguagem e o mundo". No podemos avaliar com palavras a relao entre um fato atmico e uma proposio atmica, a no ser usando a proposio cuja verdade estamos tentando explicar. No podemos "pensar" no fato atmico sem pensarmos na sentena que o "figura". Os limites do pensamento so os limites da linguagem. Wittgenstein conclui seu livro com o lacnico enunciado: "o de que no se pode falar deve-se calar".

    Um dos problemas com que a filosofia do Tractatus se depara reside nesse prprio procedimento. S as sentenas atmicas, os complexos veri-funcionais e as tautologias so significativos. Mas que dizer da teoria que afirma isso? Ela no sentena atmica, nem complexo; no pretende dizer, como as coisa s so, mas como devem ser. Mas no uma tautologia. Ento, sem sentido? Wittgenstein realmente diz "sim", e com esse gesto ousado aproxima-se da concluso de sua doutrina, acrescentando que suas proposies devem servir de escada a ser descartada pelos que por ela subiram.

    4. Wittgenstein e a Anlise Lingustica

    0 Tractatus possui um pouco da fascinao da primeira Crtica de Kant, ou seja, a fascinao de um doutrina que, na medida do possvel, luta para descrever os limites do inteligvel, somente para, ao faz-lo, ser compelida a transcend-los. Em momento algum Wittgenstein reconhece a semelhana de seu pensamento com o de Kant, ou, de fato, com o de qualquer outro, exceto o de Russell, mas a comparao entre os dois filsofos torna-se cada vez mais impressionante, de tal modo que alguns tm considerado a argumentao de sua obra pstuma, intitulada Investigaes Filosficas, o complemento final da Deduo transcendental de Kant.

    A filosofia posterior de Wittgenstein desenvolveu-se a partir de uma reao anterior, ou a determinada interpretao dela extremamente influente. No Tractatus, a metafsica do atomismo lgico apresentada quase que sem referncia a qualquer teoria especfica do conhecimento. A prpria verso de Russell sobre a teoria era decididamente empirista, identificando os "fatos atmicos" como relativos ao contedo imediato da experincia (ou dados sensoriais, como Russell os chamou). Utilizando o aparato da teoria de Wittgenstein, Russell foi capaz de reformular uma verso empirista com o esprito ctico de Hume, propondo interpretar toda entidade no mundo que no seja dado sensorial como "construo lgica". Caso de fato, queiramos, ou no referindo-nos a tabelas referir-nos a construes lgicas a partir de dados sensoriais, isso tudo que, de acordo com Russell, podemos pretender. Como ele assinala, "onde for possvel, as construes lgicas devem ser substitudas por entidades inferidas". Desse modo, a filosofia d um passo na direo do positivismo lgico pelo qual todas as doutrinas metafsicas, ticas e teolgicas so sem sentido, no devido a algum defeito do pensamento lgico, mas por no poderem ser verificadas. 0 slogan do positivismo - o significado de uma sentena seu mtodo de verificao - tirado do Tractatus, como grande parte do aparato mediante o qual se buscou livrar o mundo de entidades metafsicas. Mas estava imbudo do mesmo espirito que Hume,

  • e suas principais teorias eram reformulaes das doutrinas humanas concernentes causalidade, ao mundo fsico e moralidade, em termos no de uma teoria "gentica" do significado, mas de uma teoria "analtica". A poca em que tal programa estava em andamento, com a obra de Rudolf Carnap (1891-1970) e outros pensadores do chamado "Crculo de Viena" (ver especialmente a obra de Carnap intitulada Estrutura Lgica do Mundo, 1928), Wittgenstein renunciou totalmente ao atomismo e seus resultados, parou de publicar e iniciou uma existncia hermtica e nmade, a que assegurou, at sua morte, que sua influncia se exercesse apenas sobre os que tiveram o privilgio de conhec-lo pessoalmente ou que chegaram a ver os manuscritos que ele ocasionalmente nos mostrou. 0 mais famoso desses manuscritos - Os cadernos azuis e marrons - chegou a Oxford na dcada de 1940, precipitando a escola de "anlise lingstica", para a qual J. L. Austin (1911-60) e Gilbert Ryle ( 1900-1977 ) j tinham preparado o terreno. No entanto, no discutirei essa escola, composta por tantas e to inexpressivas figuras que se caracteriza menos por abraar qualquer doutrina que por ter-se recusado a apoiar alguma delas. Nem tecerei consideraes sobre o desenvolvimento ulterior do positivismo lgico na Amrica, onde realizou um casamento prolfico - atravs de Nelson Goodman e Willard von Orman Quine, alunos de Carnap - com o "pragmatismo" local de C. S. Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e C. I. Lewis (1883-1964). Ao contrrio, concluirei este Livro com um esboo de certas doutrinas expressas em Investigaes filosficas (1953), As observaes sobre os fundamentos da matemtica (I956) e outras obras. Em virtude do fato de se relacionarem diretamente com a histria da filosofia tal como a tenho descrito at aqui, essas doutrinas propiciaro alguma indicao, ainda que superficial, de at que ponto a filosofia posterior de Wittgenstein tem transformado e at mesmo destrudo a tradio de investigao intelectual iniciada com Descartes.

    5. O Segundo Wittgenstein

    A nfase da filosofia posterior de Wittgenstein decididamente antropocntrica. Embora ainda estivesse centrada em questes concernentes ao significado e aos limites do proferimento significante, seu ponto de partida se tornaram, no as imutveis abstraes de um ideal lgico, mas os esforos falveis da comunicao humana. Ao mesmo tempo, o elemento humano no seguiu a via usual da epistemologia, mas um caminho totalmente surpreendente. Wittgenstein o introduz por meio de reflexes a priori sobre a natureza da mente humana e sobre o comportamento social que dota essa mente de sua estrutura caracterstica. O que "dado" no so os "dados sensoriais" dos positivistas, mas as "formas de vida" da antropologia filosfica kantiana. Isso quer dizer que o objeto de qualquer teoria do significado e do entendimento a prtica pblica do proferimento e tudo que torna tal prtica possvel. Assim sendo, Wittgenstein inicia suas investigaes ulteriores sobre a natureza da linguagem no ponto em que Frege parou. Ele aceita a tese do "carter pblico" do sentido que j levara Frege a rejeitar as teorias empiristas tradicionais do significado. Isso resultou no apenas em nova avaliao da natureza da linguagem, mas tambm numa revolucionria filosofia da mente. Os problemas metafsicos que Kant, Hegel e Schopenhauer tentaram resolver so re-expressos como dificuldades na interpretao da conscincia. Assim entendidos, repentinamente se afiguraram capazes de serem resolvidos.

    A perspectiva social levou Wittgenstein a afastar-se da nfase fregeana no conceito de verdade ou a considerar que tal nfase reflete uma exigncia mais fundamental, isto , a de

  • que o proferimento humano seja responsvel por um padro de correo. Tal padro no dado por Deus, nem jaz oculto na ordem natural, sendo um artefato humano, que tanto produz as prticas lingsticas que o regem quanto por elas produzido. Isso no quer dizer que um indivduo pode decidir por si mesmo o que certo e o que errado na arte da comunicao. Ao contrrio, o constrangimento da publicidade refreia no somente cada um de ns, mas tambm todos ns; alm disso, tal constrangimento est intimamente vinculado concepo que fazemos de ns mesmos como seres que observam um mundo independente e nele agem. Todavia, verdade que o nico constrangimento envolvido no uso comum o prprio uso. Se nos opomos a verdades que nos parecem necessrias, tal se d apenas porque fomos ns que criamos as regras que as fazem ser assim; e tambm podemos abrir mo daquilo que criamos. A compulso que experimentamos na inferncia lgica, por exemplo, no compulso, independentemente de nossa disposio para experiment-la.

    Esse tipo de reflexo levou Wittgenstein a uma forma muito sofisticada de nominalismo: uma negao que podemos localizar fora da prtica lingstica para a coisa que a rege. Os fatos ltimos so linguagem e as formas de vida que se desenvolvem a partir da linguagem e a tornam possvel. O nominalismo no recente, nem lhe tm faltado representantes em nossa poca. Nelson Goodman (nascido em 1906), por exemplo, tem defendidas, utilizando argumentos que geralmente se assemelham aos de 'Wittgenstein, uma espcie de nominalismo que incorpora toda uma filosofia da cincia a uma teoria do conhecimento. O que caracteriza Wittgenstein a transio que ele realiza no plano da articulao da filosofia da linguagem com a filosofia da mente. Ao realizar tal transio, tenta subverter a principal premissa de quase toda a filosofia ocidental desde Descartes - a premissa da "prioridade do caso da primeira pessoa".

    Wittgenstein usa vrios argumentos destinados a mostrar o que essa premissa realmente significa e, ao faz-lo, tenta demonstrar sua insustentabilidade. Ao serem reunidos, esses argumentos proporcionam o que pode ser descrito como uma "figurao" da conscincia humana. Tal figurao possui muitos aspectos; alguns so metafsicos, outros, epistemolgicos. Ela envolve a rejeio da busca cartesiana da certeza, o aniquilamento da concepo de que os eventos mentais so episdios privados que s podem ser observados pela prpria pessoa e a recusa de todas as tentativas de compreender a mente humana isoladamente das prticas sociais por meio das quais ela encontra expresso. Nesta obra, impossvel apresentar todas as consideraes com que Wittgenstein sustenta ``a prioridade do caso da terceira pessoa". Portanto, mencionarei apenas um ou outro item central da referida argumentao, extraindo algumas concluses com relao importncia histrica e filosfica da tese.

    6. O Argumento da Linguagem Privada

    O mais famoso argumento desenvolvido pela posio wittgensteiniana o que veio a ser conhecido como "o argumento da linguagem privada". Ele ocorre em diversas verses das Investigaes Filosficas e tem sido objeto de muitos comentrios. Parece-me que, em resumo, o argumento o seguinte: h um "privilgio" peculiar ou "imediatidade" envolvidos no conhecimento das nossas prprias experincias atuais. Em certo sentido, absurdo sugerir que tenho de ou poderia descobrir estar equivocado a respeito delas no

  • curso normal das coisas. (Esse o pensamento que tambm subjaz a tese kantiana da "Unidade Transcendental da Apercepo", ver pp. 141-42. ) Isso tem resultado no que podemos chamar de "iluso da primeira pessoa". Posso ter mais certeza de meus estados mentais que dos seus. Isso s ocorre porque observo diretamente meus estados mentais e, os seus, indiretamente. Quando vejo voc sentir dor, vejo o comportamento fsico, suas causas, determinado estado complexo de um organismo. Mas isso no a dor que voc sente, apenas algo que a acompanha de modo contingente. A prpria dor est oculta por sua expresso, s podendo ser diretamente observada por aquele que a sofre.

    Essa , em suma, a teoria cartesiana do esprito, apresentada como explicao do caso da primeira pessoa. Wittgenstein alega que tanto a teoria quanto aquilo que ela deve explicar so iluses. Suponhamos que a teoria fosse verdadeira. Wittgenstein afirma que, ento, no nos poderamos referir a nossas sensaes por meio de palavras inteligveis numa linguagem pblica. Pois as palavras, numa linguagem pblica, adquirem seu sentido publicamente, ao serem associadas a condies publicamente acessveis que asseguram sua aplicao. Tais condies determinaro no somente seu sentido, mas tambm sua referncia. Wittgenstein alega que a suposio de que essa referncia seja privada (no sentido de, em princpio, s poder ser observada pela prpria pessoa) incompatvel com a hiptese de que o sentido pblico. Por conseguinte, se os eventos mentais so como Descartes os descreve, nenhuma palavra em nossa linguagem pblica poderia realmente referir-se a eles.

    Contudo, realmente os cartesianos e sua prognie empirista tm sempre, intencionalmente ou no, aceito essa concluso e escrito como se cada um de ns descrevesse nossas sensaes ~ outros episdios mentais atuais numa linguagem que, em virtude de seu campo de referncia ser, em princpio, inacessvel a outros, s inteligvel para quem a usa. Wittgenstein ope-se possibilidade de tal linguagem privada. Tenta provar que no pode haver diferena, para quem fala essa linguagem, entre como as coisas lhe parecem e como elas so, pois ele perderia a distino entre ser e parecer. Entretanto, isso significa perder a idia de referncia objetiva. Na realidade, no se visa de maneira alguma a linguagem; ao contrrio, ela torna-se um jogo arbitrrio. O que parece certo o que certo; conseqentemente, no se pode mais falar do certo.

    Isso leva a seguinte concluso: no podemos referir-nos aos eventos mentais cartesianos (objetos particulares) numa linguagem pblica, nem nos referir a eles numa linguagem privada. Em conseqncia, no podemos referir-nos a eles. No entanto, seria possvel dizer que eles, no obstante, podem existir! Wittgenstein ope-se a tal possibilidade de um modo que faz lembrar o ataque kantiano ao noumena, dizendo que um nada desempenhar a mesma funo que um algo sobre o qual nada se possa dizer. Ademais, podemos referir-nos a sensaes; desse modo, o que quer que sejam, as sensaes no so eventos mentais cartesianos.

    Wittgenstein faz acompanhar esse argumento de uma penetrante descrio, a partir do ponto de vista da terceira pessoa, de muitos fenmenos mentais complexos particularmente, os da percepo, inteno, expectativa e desejo. E, como ele reconhece, seus argumentos, se bem-sucedidos, refutam a possibilidade de uma "fenomenologia pura", visto que implicam que nada se pode aprender sobre a essncia do mental ou sobre a

  • essncia de qualquer coisa com o estudo (em isolamento cartesiano) apenas cia primeira pessoa. A "imediatidade" do caso da primeira pessoa unicamente um indcio de sua superficialidade. De fato, conheo meus prprios estados mentais sem observar meu comportamento; mas isso no se deve ao fato de eu estar observando algo mais. simplesmente uma iluso, suscitada pela autoconscincia, de que a autoridade necessria que acompanha o uso pblico do "eu" uma autoridade sobre alguma coisa da qual s o "eu" possui conhecimento.

    7. A prioridade da terceira pessoa

    Apesar de ter rejeitado assim o "mtodo" da fenomenologia, Wittgenstein manifestou, contudo, simpatia para com uma postura terica que se torna - mediante uma srie de acidentes histricos - aliada deste mtodo. Pensadores como o kantiano Dilthey (ver p. 259) buscaram os fundamentos de uma compreenso peculiarmente "humana", pela qual o mundo seria considerado, no cientificamente, mas sob o aspecto do "significado". Como alguns fenomenologistas, tais como Merleau-Ponty e Sartre, Wittgenstein argumentou que percebemos e compreendemos o comportamento humano de maneira diferente daquela pela qual percebemos e compreendemos o mundo natural. Explicamos o comportamento humano apresentando razes e no causas. Dirigimo-nos ao nosso futuro tomando decises e no fazendo predies. Compreendemos o passado e o presente da humanidade por meio de nossos objetivos, emoes e atividade, e no mediante teorias preditivas. Todas essas distines parecem suscitar a idia;, se no de um mundo especificamente humano, pelo menos de um modo especificamente humano de conceber as coisas. Grande parte da filosofia posterior de Wittgenstein volta-se para a tarefa de descrever e analisar as caractersticas do entendimento humano, bem como de aniquilar o que ele considerou a vulgar iluso de que a cincia poderia produzir uma descrio de todas essas coisas com as quais nossa humanidade (ou, para falar de maneira mais filosfica, nossa existncia como agentes racionais) est mesclada. Ele defende no somente a posio de que nosso conhecimento de nossas prprias mentes pressupe o conhecimento das mentes de outros, mas tambm a de que como assinala o fenomenologista Max Scheler (1874-1928) "a convico que temos da existncia das mentes de outros anterior e mais profunda que nassa crena na existncia da natureza". Em outras palavras, apesar de ter atacado o mtodo e a metafsica da fenomenologia, Wittgenstein compartilha com os fenomenologistas o sentido de que h um mistrio nas coisas humanas que no ser revelado pela investigao cientfica. Tal mistrio no dissipado pela explicao, mas apenas pela cuidadosa descrio filosfica do "dado". Para Wittgenstein, a diferena reside no fato de que o que "dado" no o contedo da experincia imediata, mas as formas de vida que tornam possvel a experincia.

    A destruio da iluso da primeira pessoa tem duas conseqncias. Em primeiro lugar, no podemos iniciar nossas investigaes a partir do caso da primeira pessoa e pensar que ela nos proporciona um paradigma de certeza. Pois, considerada isoladamente, ela nada nos proporciona. Em segundo lugar, embora a distino entre ser e parecer no exista para mim no momento em que contemplo minhas prprias sensaes, isso s ocorre porque falo uma linguagem pblica que determina essa propriedade peculiar do conhecimento da primeira pessoa. O colapso do ser e parecer um caso "degenerado". Assim sendo, posso saber que, se esse colapso possvel, porque h outras pessoas no mundo alm de mim e porque

  • tenho em comum com elas uma natureza e uma forma de vida. De fato, habito um mundo objetivo em que as coisas so ou podem ser diferentes do que parecem. Desse modo, de maneira surpreendente, o argumento da Deduo Transcendental de Kant acaba fundamentado. A precondio do autoconhecimento (da Unidade Transcendental da Apercepo) , afinal de contas, o conhecimento dos outros e do mundo objetivo que os contm.

    Muita coisa mudou na filosofia desde que Wittgenstein produziu seus argumentos, e muita coisa no mudou. Entretanto, de uma coisa se pode ter certeza. A suposio de que existe a certeza da primeira pessoa, que proporciona um ponto de partida para a investigao filosfica e que levou ao racionalismo de Descartes e ao empirismo de Hume, bem como a grande parte da epistemologia e da metafsica modernas, foi finalmente deslocada do centro da filosofia. A ambio de Kant e Hegel de obter uma filosofia que remova o "eu" [self ] do limiar do conhecimento; de modo a finalmente transform-la numa forma enriquecida acabada, talvez tenha sido agora realizada.

    (escaneado por Marco Antonio Frangiotti de

    Scruton (1982): Introduo Filosofia Moderna, Rio de Janeiro: Zahar, pgs. 268-281)