william de souza martins - snh2013.anpuh.org · william de souza martins 1 poucos anos depois da...

27
Conflitos na cabeça da Igreja fluminense: a contenda entre o deão Pedro José Augusto Flávio de Faria Lemos e o bispo diocesano D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco (c. 1780 – c. 1800) WILLIAM DE SOUZA MARTINS 1 Poucos anos depois da criação do bispado do Rio de Janeiro por meio da bula Romani Pontificis Pastoralis de 16 de novembro de 1676, e da chegada do primeiro bispo D. José de Barros Alarcão, ocorrida em junho de 1682, foi instituído o corpo capitular da nova diocese. A data de criação ocorreu em 19 de janeiro de 1685, na sé de São Sebastião, então situada no Morro do Castelo (ARAÚJO, 1946, v. 4: 7-17; v. 6: 7-8). Em meados do século XVIII, o Cabido do Rio de Janeiro se compunha de cinco dignidades (deão, chantre, tesoureiro-mor, mestre-escola e arcediago); dez cônegos de prebenda inteira; quatro de meia prebenda, “todos com voto em Cabido”; doze capelães; quatro moços do coro; sacristães; um porteiro da massa; um mestre de capela e um organista. Em que pese a importância assumida pelo bispado fluminense no contexto da colonização portuguesa, poucos estudos de conjunto foram tentados para o período colonial, dando conta das respectivas estruturas eclesiásticas e das diretrizes assumidas pelos prelados diocesanos. 2 Com relação ao Cabido da Sé, a instituição em que uma fração dos membros se envolveu em um grave conflito com o ordinário diocesano, na década de 1780, a deficiência de investigações torna- se ainda mais patente. Na prática, a único síntese disponível é aquele elaborada há quase duzentos anos por José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, que constitui o volume 6 das Memórias históricas do Rio de Janeiro. Cônego da sé fluminense e procurador geral da Mesa da Consciência e Ordens durante o período joanino, Pizarro esteve diretamente envolvido no conflito que se propõe analisar aqui. A disputa que mobilizou o alto clero secular da diocese do Rio de Janeiro no princípio da década de 1780 foi alvo de análise da Dissertação de Mestrado de Francisco Javier Müller 1 Professor Adjunto de História Moderna do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A ortografia e a pontuação das fontes foram, em grande parte, atualizadas. Procurou-se manter o uso de maiúsculas no original. Gostaria de agradecer às ex-bolsistas de Iniciação Científica, Marília Barboza da Silva Costa e Ava Christyne Santos Ferreira, pelo auxílio na transcrição de parte das fontes utilizadas no presente trabalho. 2 Assim, na prática, o único estudo de conjunto para o bispado fluminense no século XVIII é o de RUBERT, 1988: 41-59. Uma exceção parcial, na medida em que está circunscrito ao estudo das práticas de celebração de missas, é constituída pelo estudo de CHAHON, 2008. Para o arcebispado da Bahia, os estudos de conjunto são mais satisfatórios: AZZI, 2001; FEITLER e SOUZA, 2011. De forma análoga, a pesquisa acadêmica tem contemplado com mais frequência os bispados de Mariana e de São Paulo, cujos territórios foram desmembrados da diocese do Rio de Janeiro em 1745. Ver, a título de exemplo, SANTOS, 2010; BOSCHI, 2011; ZANON, 2011.

Upload: hoangdat

Post on 12-Feb-2019

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Conflitos na cabeça da Igreja fluminense: a contenda entre o deão Pedro José Augusto Flávio de Faria Lemos e o bispo diocesano D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco

(c. 1780 – c. 1800) WILLIAM DE SOUZA MARTINS1

Poucos anos depois da criação do bispado do Rio de Janeiro por meio da bula Romani

Pontificis Pastoralis de 16 de novembro de 1676, e da chegada do primeiro bispo D. José de Barros

Alarcão, ocorrida em junho de 1682, foi instituído o corpo capitular da nova diocese. A data de

criação ocorreu em 19 de janeiro de 1685, na sé de São Sebastião, então situada no Morro do

Castelo (ARAÚJO, 1946, v. 4: 7-17; v. 6: 7-8). Em meados do século XVIII, o Cabido do Rio de

Janeiro se compunha de cinco dignidades (deão, chantre, tesoureiro-mor, mestre-escola e

arcediago); dez cônegos de prebenda inteira; quatro de meia prebenda, “todos com voto em

Cabido”; doze capelães; quatro moços do coro; sacristães; um porteiro da massa; um mestre de

capela e um organista. Em que pese a importância assumida pelo bispado fluminense no contexto da

colonização portuguesa, poucos estudos de conjunto foram tentados para o período colonial, dando

conta das respectivas estruturas eclesiásticas e das diretrizes assumidas pelos prelados diocesanos.2

Com relação ao Cabido da Sé, a instituição em que uma fração dos membros se envolveu em um

grave conflito com o ordinário diocesano, na década de 1780, a deficiência de investigações torna-

se ainda mais patente. Na prática, a único síntese disponível é aquele elaborada há quase duzentos

anos por José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo, que constitui o volume 6 das Memórias

históricas do Rio de Janeiro. Cônego da sé fluminense e procurador geral da Mesa da Consciência e

Ordens durante o período joanino, Pizarro esteve diretamente envolvido no conflito que se propõe

analisar aqui.

A disputa que mobilizou o alto clero secular da diocese do Rio de Janeiro no princípio da

década de 1780 foi alvo de análise da Dissertação de Mestrado de Francisco Javier Müller

1 Professor Adjunto de História Moderna do Instituto de História e do Programa de Pós-Graduação em História Social

da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A ortografia e a pontuação das fontes foram, em grande parte, atualizadas.

Procurou-se manter o uso de maiúsculas no original. Gostaria de agradecer às ex-bolsistas de Iniciação Científica,

Marília Barboza da Silva Costa e Ava Christyne Santos Ferreira, pelo auxílio na transcrição de parte das fontes

utilizadas no presente trabalho. 2 Assim, na prática, o único estudo de conjunto para o bispado fluminense no século XVIII é o de RUBERT, 1988: 41-59.

Uma exceção parcial, na medida em que está circunscrito ao estudo das práticas de celebração de missas, é

constituída pelo estudo de CHAHON, 2008. Para o arcebispado da Bahia, os estudos de conjunto são mais

satisfatórios: AZZI, 2001; FEITLER e SOUZA, 2011. De forma análoga, a pesquisa acadêmica tem contemplado com

mais frequência os bispados de Mariana e de São Paulo, cujos territórios foram desmembrados da diocese do Rio de

Janeiro em 1745. Ver, a título de exemplo, SANTOS, 2010; BOSCHI, 2011; ZANON, 2011.

2

Galdames. No referido trabalho, o autor examinou as Memórias históricas de Pizarro, bem como a

documentação referente ao conflito depositada no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de

Janeiro (ACMRJ), que também foi transcrita nos anexos (GALDAMES, 2007: 10-17; 99-140).

Deve-se salientar que o autor citado não tinha como objeto de análise as relações entre o cabido e o

episcopado, mas sim a análise da trajetória de José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo. Com o

auxílio da documentação citada, Francisco Galdames reconstitui em linhas gerais o conflito, e

propôs a seguinte interpretação:

ao que tudo indica, o deão e Pizarro vinham com uma formação de Coimbra, e conviviam muito bem com a submissão da Igreja ao Estado, respondendo sempre ao rei, antes de tudo, enquanto que o bispo, formado na Universidade pré-pombalina, e uma parcela do Cabido, há tanto exercendo esses cargos, passaram, por conta do distanciamento físico da Coroa, a criar suas próprias regras (GALDAMES, 2007: 15).

Ao buscar aprofundar as análises do autor citado, o trabalho em pauta espera refletir sobre a

dinâmica institucional existente entre dois órgãos cujas atividades deviam se complementar na

direção da igreja diocesana. Mas durante o conflito em que tomaram parte, de um lado, o deão

Pedro José Augusto Flávio de Faria, o cônego José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo e o cônego

mestre-escola José Coelho Peres de França e, de outro, o diocesano e o restante do Cabido, as

relações entre este e o episcopado encontravam-se estremecidas. Para entender adequadamente o

referido atrito, se faz necessária uma leitura mais fina da documentação depositada no ACMRJ,

como também o acréscimo de outros fundos documentais, particularmente o do Conselho

Ultramarino e de fontes normativas, como os estatutos do Cabido. Por fim, estudos que abordaram a

instituição capitular sob o Antigo Regime, tanto em Portugal quanto na América hispânica,

colocaram questões relevantes, para a análise que se pretende efetuar aqui.

Em primeiro lugar, deve ser mencionada a análise que Hugo Ribeiro da Silva dedicou ao

Cabido da Sé de Coimbra. O autor busca, simultaneamente, traçar uma História social, econômica e

institucional da referida instituição, a partir de uma análise exaustiva das fontes depositadas no

Arquivo da Universidade de Coimbra, bem como do diálogo com uma historiografia recente. Ainda

que o autor enfoque uma instituição capitular situada no Reino de Portugal em meados do século

XVII – a conjuntura da Restauração lusitana – as questões que propõem tangenciam em diversos

aspectos o conflito ocorrido no Rio de Janeiro. Assim, em primeiro lugar, enfoca a tradição de

autonomia do cabido diocesano em relação ao poder episcopal, situação que o Concílio de Trento

3

tentou corrigir. Não obstante, ao longo do seiscentos, a tendência autonomista se perpetua, pois

enquanto o bispo conseguiu apresentar apenas 1,6 % dos novos cônegos, o número de provimentos

alcançado pelo próprio Cabido era de 10,2 %. Entre 1620-1670, a maior parte dos cônegos era

provida pela Santa Sé, pelo monarca e pela Universidade (SILVA, 2010: 80). O absenteísmo dos

cônegos constituía também um problema grave, que os estatutos do Cabido procuravam diminuir,

exigindo uma residência contínua inicial de um ano, durante a qual havia limitados dias de

descanso. Passado esse período probatório, os cônegos podiam, nos anos posteriores, gozar de três

meses de férias, recebendo os proventos do cargo. Mesmo assim, eram comuns os pedidos de

dispensa de residência capitular, quando se ausentavam das obrigações do cargo para solucionar

problemas particulares das suas “casas”, ou simplesmente para visitar familiares. Além desse

absentismo indesejado, o Cabido frequentemente tinha que enviar representantes a Lisboa, para

tratar dos interesses da corporação. Havia ainda uma terceira forma de ausência, caracterizada pelo

pertencimento simultâneo de alguns cônegos à Universidade e ao Tribunal do Santo Ofício de

Coimbra.

Com relação à celebração litúrgica, a função precípua da instituição capitular, as

irregularidades tornavam-se também frequentes, “mesmo em alturas importantes do calendário

litúrgico, como era a Semana Santa”. O próprio Cabido e, mais frequentemente o bispo, tentavam

coibir tais práticas, este último por meio de visitações:

Em 1626, o bispo pediu aos capitulares, bem como aos capelães, que ‘no tempo das horas canônicas assistam no coro com a decência e compostura que convém a lugar tão santo e com a modéstia devida a Deus nosso senhor com quem estão falando, e que guardando-se (sic) de risos, práticas e palavras impertinentes’. De fato, o silêncio nem sempre estava presente no coro, acontecendo também que ‘se deixam alguns beneficiados ficar passeando no antecoro, e falam algumas vezes tão alto que se ouvem mui claramente na igreja’ (SILVA, 2010: 54).

Por fim, dois pontos abordados pelo autor merecem ser aqui destacados: o do parentesco que

unia diversos cônegos entre si e o da exigência de formação universitária. A existência de vínculos

de sangue no âmbito do Cabido tinha reflexos no ingresso de novos cônegos na referida instituição.

Segundo o autor supracitado, por meio de resignações (renúncias) e de coadjutorias, algumas

dignidades e conezias se converteram em “patrimônio familiar que se transmitia ao longo de

algumas gerações”. De modo mais preciso, o autor menciona que alguns vínculos familiares eram

particularmente importantes para a perpetuação de linhagens no âmbito do Cabido coimbrão:

4

Os laços de sangue mais frequentes entre os capitulares de Coimbra são os de tio-sobrinho. O tio clérigo surge aqui a desempenhar um papel importante, ao abrir as portas da catedral a um outro parente e, em particular, ao garantir a colocação de um elemento da geração seguinte, além do que representaria em termos de estratégias familiares, na colocação da filiação excluída do matrimônio (SILVA, 2010: 102).

Quanto à formação universitária, o Concílio de Trento exortava “a que todas as dignidades,

e pelo menos metade dos canonicatos, sejam ocupados apenas por doutores, mestres ou licenciados,

em Teologia ou Direito Canônico”. Esta exigência, segundo o autor supracitado, era vaga. Para as

dignidades – isto é, os cônegos que ocupavam as funções mais honoríficas no âmbito da instituição

capitular – presumivelmente se exigia o grau de doutor. Com relação às conezias de ofício – isto é,

a doutoral, a magistral e a penitenciária – as exigências de formação acadêmica eram mais precisas.

Para ocupar a primeira, era necessária uma formação em Cânones (Direito Canônico). Para a

segunda, a formação exigida era a teológica. Já os cônegos penitenciários podiam ser licenciados ou

doutores, em Teologia ou Cânones (SILVA, 2010: 70).

O trabalho de Leticia Pérez Puente a respeito do cabido da cidade do México vem a

aprofundar algumas questões de natureza institucional, a respeito das relações mantidas entre a

instituição capitular e o arcebispado. Enfocando a segunda metade do século XVII, a autora discute

que o arcebispo e o cabido compartilhavam responsabilidades na administração da igreja

metropolitana.

O cabido era uma corporação com um objetivo espiritual comum: a celebração solene do culto divino no coro da catedral. Não obstante, as funções do cabido transcendiam o mero âmbito litúrgico, pois tinha a seu cargo a administração das rendas eclesiásticas. Da mesma forma, o cabido orientava, assessorava e auxiliava aos arcebispos em sua carga pastoral, assim como na direção dos tribunais eclesiásticos (PUENTE, 2004: 62).

Daí a necessidade de que as relações fossem harmônicas, para que não fosse prejudicado o

conjunto das atividades que os envolviam. “A cabeça do governo arquiepiscopal era um dos

elementos mais importantes para a união do cabido, pois devia ser árbitro nos conflitos, assim como

guia político e espiritual” (PUENTE, 2004:76) Isso explica porque as sedes vacantes – quando o

cabido diocesano governava provisoriamente o arcebispado, enquanto o novo prelado não tomava

posse do cargo – eram períodos particularmente instáveis, propícios à formação de bandos, em que

o organismo capitular podia ficar sujeito à interferência de autoridades externas, como o vice-rei. A

autora em questão utiliza dois conceitos centrais para a análise institucional dos cabidos: o de

“colegialidade” e o de “núcleo capitular”. Fundamental para a análise de qualquer corporação no

5

Antigo Regime, a colegialidade “implica a manutenção de um discurso único, de tradições, de

métodos de administração e governo, fenômenos chave para falar de fortalecimento ou debilidade,

tanto do corpo capitular, como da Igreja em seu conjunto” (PUENTE, 2004: 74). Com relação ao

segundo conceito, delineado pela autora a partir de uma análise prosopográfica de 25 membros do

Cabido do México no período entre 1653 e 1667, contavam para a sua definição o tempo de serviço

na sé metropolitana, os vínculos pessoais mantidos pelos cônegos, as experiências administrativas e

a formação acadêmica de que eram portadores, etc. Assim, “os capitulares eram portadores da

tradição. Eles, mais do que qualquer arcebispo, conheciam a arquidiocese, o funcionamento da

catedral, seu governo, sua liturgia, sua administração” (PUENTE, 2004: 84).

O trabalho de David Brading referente ao bispado de Michoacán, na Nova Espanha, faz coro

às análises da autora supracitada, na medida em que indica que o cabido e o episcopado perfaziam

um único corpo administrativo à frente da diocese. Além das funções litúrgicas, os cônegos

dirigiam diversos tribunais diocesanos, entre os quais se contava aquele que cuidava das capelanias

e testamentos (BRADING, 1994: 195-235). No Rio de Janeiro colonial, os referidos encargos

administrativos também foram assumidos pelos cônegos, como será visto no momento oportuno.

Para a análise do conflito em pauta, existem pelo menos três documentos essenciais que,

mesmo trazendo informações repetidas, em geral se complementam e lançam luz sobre as diferentes

perspectivas dos agentes envolvidos: a) a carta enviada pelo bispo diocesano D. José Joaquim

Justiniano Mascarenhas Castelo Branco a Martinho de Melo e Castro, secretário de Estado da

Marinha e Ultramar, com data de 27 de setembro de 1782;3 b) o ofício expedido pelo vice-rei do

Estado do Brasil, Luís de Vasconcelos e Sousa à já referida autoridade metropolitana, com data de

18 de janeiro de 1783;4 c) a consulta da Mesa da Consciência e Ordens a respeito dos conflitos entre

3 Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ), E-83, f. 104-118. Carta de S. Exa. Rma. ao Ilmo. Sr.

Martinho de Melo e Castro, por ocasião da fuga do R. Dr. Pedro José Augusto, Deão da Santa Igreja Catedral desta

cidade. Esta carta, juntamente com os testemunhos dos cônegos a favor do bispo, foi transcrita por GALDAMES, 2007:

99-140. 4 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Rio de Janeiro (RJ), caixa 120, doc. 9749. Ofício do vice-rei do Estado do Brasil,

Luís de Vasconcelos e Sousa ao secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Mello e Castro, sobre várias

queixas que apresentou o deão da Sé do Rio de Janeiro, Pedro José Augusto, contra o bispo do Rio de Janeiro,

informando as averiguações que mandou fazer e as medidas tomadas acerca da matéria. Disponível em

www.cmd.unb.br. Acesso em outubro de 2012.

6

o deão e o bispo, com data de 13 de março de 1786.5 Os dois primeiros documentos são mais

substanciais e trazem, além da peça principal, apêndices constituídos por testemunhos jurados dos

cônegos do Cabido fluminense, favoráveis à atitude do bispo. Enquanto no primeiro documento não

aparecem informações sobre a versão do conflito dada pelo deão, no segundo é possível reconstituí-

la em parte, quer indiretamente – a partir das declarações do vice-rei – quer diretamente, por meio

do depoimento do próprio eclesiástico. No conflito em pauta, o vice-rei apoia integralmente as

iniciativas do bispo, não procurando se imiscuir na esfera da administração diocesana e capitular. O

respaldo do vice-rei se manifestou não somente nas informações enviadas à soberania régia, mas

também na ajuda de “braço secular” que forneceu ao bispo, que tinha ordenado a prisão do deão

Pedro José Augusto Flávio de Faria no Castelo da cidade, e a do cônego Pizarro na Fortaleza da Ilha

das Cobras. Quanto à consulta da Mesa, esta não traz em anexo a resolução régia, mas existem

elementos em outras fontes que permitem ver a solução final dada ao conflito.

Tendo feito uma apresentação geral das fontes em análise, é o momento de tentar

reconstituir os argumentos e as situações apresentadas em cada uma e, a partir disso, articulá-los às

características da instituição capitular e aos elementos da conjuntura religiosa e política do final do

século XVIII.

Na informação do diocesano do Rio de Janeiro, constam queixas que antecedem o período

em que Pedro José Augusto Flávio de Faria assumira o deado na sé fluminense. De fato, o bispo

principia a exposição informando as desordens que aquele cometera entre 1763-1764, época do

episcopado de D. Fr. Antônio do Desterro Malheiros. Pedro José Augusto Flávio de Faria havia se

comprometido com este bispo a assumir a igreja paroquial de São Francisco Xavier do Engenho

Velho, nos subúrbios da cidade, promessa que acabou não cumprindo. Já ordenado, partiu para

Coimbra onde, segundo ainda as informações do prelado do Rio de Janeiro, “se diz que o Bispo o

fizera ultimamente despejar pelo escândalo que dava em Eiras, fazendo vida conjugal com duas

mulheres irmãs, das quais têm filhos, a quem doou a quinta em que vivia, e procurou legitimar,

assim mesmo sacrílegos e incestuosos como são” (ACMRJ, E-83: f. 104v). O período que vai da

5 AHU, RJ, cx. 137, doc. 21. Consulta da Mesa da Consciência e Ordens à rainha D. Maria I, sobre a carta remetida pelo

bispo do Rio de Janeiro, D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, referentes às desatenções do deão

da Sé daquele bispado, Pedro José Augusto Flávio, que o conduziram à prisão, bem como a do cônego José de Sousa

Pizarro na Fortaleza da Ilha das Cobras. Disponível em www.cmd.unb.br. Acesso em outubro de 2012.

7

ordenação à apresentação no lugar de deão do cabido do Rio de Janeiro (por decreto de 1 de

setembro de 1779) é um pouco obscuro, mas é possível trazer à luz algumas informações a partir de

outras fontes. Segundo a relação de estudantes naturais do Brasil que estudaram na Universidade de

Coimbra, Pedro José Augusto Flávio de Faria obteve a Licenciatura em Cânones no período de

1764 a 1768 (ALVES, 2006: anexos). Obteve também o Doutorado em Cânones, a julgar pela

informação apresentada pelo deputado Francisco Feliciano Velho da Costa Mesquita Castelo

Branco, na consulta citada da Mesa da Consciência e Ordens (AHU, RJ, cx. 137, doc. 21) e pelas

Memórias históricas de Pizarro. De acordo com a mesma consulta, Pedro José Augusto Flávio de

Faria declarou que “tendo sido opositor pela Universidade em a Faculdade de Cânones pelo espaço

de 15 anos, e tendo substituído por muitas vezes o Magistério daquela Disciplina, se Dignara Vossa

Majestade de promover ao suplicante ao Deado da Sé do Rio de Janeiro” (AHU, RJ, cx. 137, doc.

21). Segundo o autor das Memórias, Pedro José Augusto Flávio de Faria se opôs em 1779 “com

assaz erudição” às cadeiras vagas de lentes na Universidade de Coimbra (ARAÚJO, 1946, v. 6: 76).

Em 1780, encontrando-se de passagem em Lisboa, requereu licença à Real Mesa Censória para

adquirir uma obra proibida, as Institutiones Historicae Ecclesiasticae, do barão Jean Laurent de

Moshein (VILLALTA, 1999: 265-267).

Apesar da gravidade das denúncias anteriores, o foco da representação do bispo estava nos

repetidas falhas cometidas pelo deão durante a celebração dos ofícios divinos na Sé do Rio de

Janeiro. Segundo os estatutos do Cabido fluminense, “o deão é a primeira dignidade desta sé depois

do prelado”. Assim, competia a ele celebrar as missas que cabiam ao bispo quando este se

ausentava, como também a presidência do coro e do cabido, fazendo “cumprir e guardar os

estatutos para que cada qual cumpra inteiramente sua obrigação, impondo-lhe as multas e penas”.6

A conduta exemplar esperada pelo deão, tanto pela sua dignidade quanto pela direção das funções

litúrgicas, contrasta com a negligência denunciada pelo bispo. Este relatava que o deão perturbou a

residência amara de seis meses, “de sorte que a observar os Estatutos, que jurou guardar, deveria

principiá-la muitas vezes” (ACMRJ, E-83, f. 105). Os estatutos de 1736, estipulavam que

todo prebendado que novamente entrar nesta sé (segundo o costume já observado nela) é obrigado a fazer residência pessoal sem a quebrar depois de tomar posse por tempo de seis

6 Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), Divisão de Manuscritos, n. 9, 3, 9, Estatutos do Cabido do Rio de

Janeiro, 21 de setembro de 1736, por Fr. Antônio de Guadalupe, bispo da diocese, cap. 3.

8

meses inteiros, assistindo nela todos os dias e todas as horas canônicas, entrando na tal residência os dias que for contado por doente (...) faltando a alguma hora inteira da qual é obrigado a residir, quebra a residência, e a começará de novo tantas vezes quantas a quebrar (BNRJ, Estatutos, cap. 13).7

Segundo o diocesano, o deão ignorava os mínimos fundamentos necessários para a

celebração dos ofícios divinos. Os capelães da catedral é que o haviam ensinado a registrar o

breviário romano. Quanto à missa, aprendeu a recitá-la com o mestre escola da sé. “Tal era o estado

de ignorância, em que se achava depois de 18 anos de sacerdote”, resumiu o bispo ao secretário

ultramarino (ACMRJ, E-83, f. 105). A ignorância relativa aos fundamentos do ofício sacerdotal não

incomodou apenas o prelado diocesano, mas também os outros cônegos. O bispo ficou surpreso

com a decisão dos capitulares de escolherem o deão Pedro José Augusto Flávio de Faria como

procurador do Cabido na Corte de Lisboa. Indagando aos cônegos o motivo de tal escolha, o bispo

constatou que “consistia em desejar livrar-se da presidência do Deão, porque a sua assistência só

servia de perturbar e confundir os direitos do Cabido e o bom serviço do Coro, do Altar, e de todas

as funções cotidianas, a que eu não podia assistir na Igreja, e que poderia ser fizesse ele na Corte

bons ofícios de procurador” (ACMRJ, E-83, f. 110). Pouco depois, “desde que o Cabido pôde

conhecer melhor que o Deão se fazia incorrigível, e que suas intenções só se dirigiam a fugir do

serviço da Igreja e vencer a côngrua do seu Benefício sem a pensão da residência”, os cônegos

revogaram a procuração passada a Pedro José Augusto Flávio de Faria (ACMRJ, E-83, f. 116v).

O que deixava mais incomodado o prelado do diocesano não era apenas a evidente falta de

preparo do deão para ocupar um cargo em que devia servir de exemplo aos demais cônegos, mas

também a resistência em seguir as admoestações do bispo, das quais fazia pouco caso:

No coro, e no Altar não só atropelava tudo mas passava a dar maior escândalo com suas acelerações: algumas vezes o adverti modestamente de palavra: outras em assistências de festividades solenes com as minhas vistas e sinais de pejo: mas ele sem o ter, olhava para os sequazes, que tinha no coro e lhe respondiam com risos” (ACMRJ, E-83, f. 105).

As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, publicadas pela primeira vez em 1719,

e válidas como norma geral para todas as dioceses da América Portuguesa, estabeleciam que, no

coro da sé, os capitulares deviam manter silêncio enquanto durasse a reza, “não falando uns com

outros em coisas estranhas daquele ato, mas estarão com toda a tenção” (VIDE, 2010: 336). Os

estatutos do Cabido fluminense, por sua vez, prescreviam que o deão devia cumprir uma série de 7 A respeito do problema da residência, ver *Tombo do Cabido, f. 77v. Cf. também os estatutos do Cabido da Sé de

Mariana, que seguiam em parte os da sé do Rio de Janeiro (BOSCHI, 2011: 101, 149-150).

9

atribuições referentes às procissões, na ausência do prelado diocesano, tais como a condução da

custódia do Santíssimo Sacramento na solenidade de Corpus Christi, bem como ao ordenamento

das “procissões na ausência do dito Prelado ou do seu Provisor” (BNRJ, Estatutos, cap. 3). Isso

explica em parte o tom negativo adotado pelo prelado na correspondência enviada a Martinho de

Melo e Castro:

A falta de lição dos mesmos estatutos a ninguém era mais nociva que ao mesmo Deão, que não só devia saber suas obrigações pessoais, mas todas as outras, que ele como presidente tinha obrigação de zelar (...). Dessa falta de estudar e saber a sua lei e os seus direitos procedeu um dos maiores escândalos, que deu nesta cidade em 27 de Janeiro de 1783, deixando de acompanhar a procissão Real do Padroeiro São Sebastião, em tempo que gemia este povo com moléstias contagiosas, e tão grande mortandade, que já não cabiam os cadáveres nas Igrejas, e se foi passear pelas ruas da mesma procissão” (ACMRJ, E-83, f. 107v-108).

Como é sabido, desde a Idade Média, o santo mártir Sebastião era reconhecido pelos

devotos como um taumaturgo capaz de proteger contra o contágio da peste (CHRISTIAN JR., 1981:

23-66). Mais à frente, quando serão analisados os testemunhos dos cônegos, aparecerão outros

indícios da aparente falta de sintonia entre o comportamento do cônego e a sensibilidade religiosa

de clérigos e fiéis.

Os principais motivos que levaram o prelado do Rio de Janeiro a passar das palavras de

advertência aos atos contundentes de repressão ao deão e aos cônegos que o apoiavam surgiram nos

rituais litúrgicos da Semana Santa de 1782. Ainda no início da Quaresma, o deão tinha proposto no

Cabido que, no Domingo de Ramos, “se mandassem enfeitar as Palmas que se haviam de dar aos

Cônegos com flores de seda e laços de fita”. Tanto o cabido quanto o bispo não concordaram com a

confecção de tais ornamentos, sendo que o diocesano alegou “que não convinha tal em prejuízo dos

poucos reditos da Fábrica” (ACMRJ, E-83, f. 111). Não conformado com esta resposta, o deão teria

dito ao bispo, na presença dos demais membros do Cabido, que “não quisesse eu embaraçar-me

com os direitos do Cabido, senão queria que o Cabido me mostrasse até onde chegavam os meus,

que tudo se comporia obrigando eu ao Fabriqueiro enfeitasse Palmas para os Cônegos” (ACMRJ,

E-83, F. 112v). O bispo repreendeu “com modéstia” ao deão, argumentando que as receitas do

Cabido não poderiam continuar sendo dilapidadas com “despesas fúteis, qual era agora a de que ele

Deão se lembrava”. Daí a necessidade de cortes de despesas, para “prover-se o Altar, Capela-mor e

10

o Coro do que necessitavam, para o decente serviço que se devia fazer na Igreja” (ACMRJ, E-83, f.

113v). O deão não se deu por vencido e,

mudando de tom me pediu muito de mercê quisesse eu de menos permitir que as palmas dos Cônegos tivessem alguma diferença das outras comuns, pois que também os Rituais Romanos assim o permitiam. Cansado eu já de persuasões, disse-lhe que sim, mas sem despesas da Fábrica, e que eu as mandaria preparar à minha custa.

Chegando o Domingo de Ramos, o bispo continuou informando que

mandei as ditas Palmas em tudo semelhantes a de que usei neste dia, com laços tecidos das mesmas folhas da Palma como se diz no cerimonial dos Bispos, e as pontas e lisos prateados, fingindo fitas de prata; e quando se esperava se estimasse a coerência do ornato com o cerimonial, sucedeu tanto pelo contrário, que se enfureceram e declamaram como loucos, tomando o Deão e o Cônego José de Sousa o partido de se retirarem para suas casas (ACMRJ, E-83, f. 114)

O deão não retornou à sé naquele dia. Durante toda a Semana Santa, o deão e o cônego

Pizarro mantiveram “má residência” no coro da sé, “entrando e saindo inúmeras vezes”. Situação

mais grave ocorreu na noite da Sexta-feira da Paixão, quando o deão

Nos ofícios divinos atropelava tudo para acabar o Coro, de sorte que não se podia conservar igualdade na pausa. A dissonância causava não só escândalo, mas até aflição de espírito; e nas Matinas que se entoavam na noite de sexta-feira para sábado, pôs o Coro em tal desordem, que não só os eclesiásticos, mas todos os seculares cheios de aflição, não apartavam de mim os olhos, senão para os voltar para o Deão; adverti-o eu mesmo de palavra, (por ficar a sua cadeira em pouca distância da minha), e três ou quatro vezes repeti, que fosse mais pausado; e não sendo isto o bastante, então dei três ou quatro golpes de pancada com a mão na cadeira: a este sinal acodiu todo o Coro, e tornei eu a dizer = Senhor Deão certo, certo = . Imediatamente emudeceu, e pouco depois saiu do Coro, e se foi para a sacristia, aonde declamou quanta liberdade contra o Bispo, e que este usurpava os seus direitos; pois que só ele o tinha para bater no Coro (ACMRJ, E-83, f. 115-115v).

Os incidentes da Semana Santa terminaram com o pedido de auxílio do prelado diocesano

ao vice-rei do Estado, ordenando que o vigário geral do bispado conduzisse o deão e o cônego

Pizarro às prisões localizadas, respectivamente, no Castelo da cidade e na Ilha das Cobras. Em

anexo à informação do bispo enviada ao Conselho Ultramarino, existem depoimentos de cinco

cônegos e de dois sacristães da sé fluminense, nos quais sustentavam cabalmente as acusações do

prelado diocesano. Ademais, tais testemunhos acrescentam informações a respeito dos desacatos

rituais cometidos pelo deão. Manoel de Andrade Warnek, o cônego mais experiente entre os

demais, e que na ocasião estava provido na dignidade de chantre, afirmou que durante todo o tempo

de 54 anos em que serviu na sé, “havendo entre eles diversos gênios não houve um único que se

atrevesse nem levemente a desatender a algum dos ditos Prelados, nem a alterar vozes diante deles”.

Entretanto, “esta boa harmonia dos Capitulares entre si e veneração ao Prelado tem pretendido

11

destruir três capitulares que há pouco entraram no dito Cabido”, quais sejam, o deão, o cônego

Pizarro e o mestre-escola José Coelho Peres de França (ACMRJ, E-83, f. 119; AHU, RJ, cx. 120,

doc. 9749). O mesmo topos discursivo foi utilizado no depoimento do arcediago José de Souza

Marmelo: “depois que o Reverendo Deão o Doutor Pedro José Augusto Flávio de Faria Lemos veio

da Corte de Lisboa para esta Sé, tem havido grande desordem, tanto na boa harmonia e sociedade

de que antes gozavam os Reverendos Capitulares, quanto na celebração dos Ofícios Divinos e

Disciplina do Coro” (ACMRJ, E-83, f. 120; AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749). Francisco Gomes Vilas

Boas, cônego magistral da sé, acusava o deão de não assistir ao próprio pai no leito de morte, em

razão de desavença mantida com uma irmã em torno da herança paterna. Além disso, menosprezava

a assistência do prelado à sé,

chegando ao desacordo de dizer dos meninos do Coro em alguns Domingos da Quaresma, que pedissem a Deus desse ao Prelado alguma dor de Cabeça, para que não fosse à Catedral; e muitas vezes chegou a proferir que o Prelado ia à sé por basófia para matar Cônegos e Beneficiados com o canto pausado, que ele não pode aturar; e ao mesmo Excelentíssimo Prelado se atreveu a dizer que Sua Excelência não devia ir tantas vezes à Sé, que era prejudicial à saúde, e que devia fazer o mesmo que faziam os Senhores Bispos do Reino, os quais só iam à sua sé muito por acaso (ACMRJ, E-83, f. 122v-123; AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749).

Ainda que provenha de uma fonte altamente contrária ao deão, há alguns elementos no

depoimento acima que permitem sustentar que as irregularidades cometidas pelo cônego não se

deviam apenas à ignorância na celebração da liturgia ou ao absenteísmo, mas possivelmente

também à irreligiosidade, ao murmúrio contra a religião e os seus pastores. Esse tipo de

comportamento também foi referido pelo cônego Pedro Barbosa Leitão, que finalizou seu

testemunho afirmando que “a murmuração que este Deão faz do nosso Excelentíssimo Bispo, e dos

Catedrais que não são da sua parcialidade é um continuado escândalo que fere os corações pios

desta Cristandade, tendo a todos por ignorantes, e a si pelo maior sábio como lhe representa a sua

fantasia” (ACMRJ, E-83, f. 126). Como seria previsível, nos depoimentos dos sacristães da sé, há

descrições mais minuciosas a respeito das desatenções do deão relativas aos exercícios litúrgicos,

como também quanto ao tom irreligioso do seu discurso. Assim, segundo o sacristão-mor André

Lopes de Carvalho, decepcionado com as palmas que o bispo mandara aprontar com seus próprios

recursos, o deão teria dito ao prelado que “fosse governar as suas Fazendas de negros e bispado, e

não ao Cabido” (ACMRJ, E-83, f. 130; AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749). Em outra ocasião, o deão

12

disse ao bispo, diante dos membros do Cabido, “que o dito Senhor impugnara o fazerem-se os

Ramos, com o pretexto de ser cousa supérflua, e cheia de vaidade, mas que Sua Excelência, sendo

um Prelado, que devia servir de exemplo vivendo more apostolico, vestido de saco e caminhando a

pé, obrava o contrário, pois andava em carruagens e vestia Sedas” (ACMRJ, E-83, f. 130; AHU, RJ,

cx. 120, doc. 9749). Por fim, quanto a José Rodrigues de Bastos Pereira, sacristão-menor da sé,

além de referir a “soltura” da língua do deão, informava que

em Quinta-feira Santa, estando o Senhor Bispo dando a sagrada Comunhão aos Reverendos Capitulares, Clero, Comunidades e mais pessoas, que se juntaram para comungarem de sua mão, saiu o Reverendo Deão em vestes sacerdotais para a sacristia muito enfadado, deixando o Senhor Bispo naquela ação, e foi público dissera nessa mesma ocasião várias palavras – pouco decentes – e entre elas as seguintes: vão chamar todas as quitandeiras para virem comungar da mão do Senhor Bispo (ACMRJ, E-83, f. 130; AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749).

O testemunho do sacristão-mor André Lopes de Carvalho atribui ao cônego Pizarro uma

expressão muito representativa acerca do desgoverno em que se encontrava a sé do Rio de Janeiro,

segundo a ótica dos partidários do deão: “a Catedral se achava desordenada por não haver Cabeça,

pois a que havia era monstruosa” (ACMRJ, E-83, f. 129-130; AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749). A

utilização dessa metáfora de caráter orgânico, associada por diversos autores às estruturas jurídicas

e políticas corporativas, próprias da sociedade do Antigo Regime (HESPANHA, 1994: 299-307;

MARTINS, 2009: 69-84), aponta também para a desejável complementaridade entre o episcopado e

o cabido, que se encontrava rompida na ocasião. Outro aspecto referente ao mesmo contexto

jurídico e político diz respeito à relativa autonomia das diferentes instâncias administrativas. Este

aspecto se torna evidente no discurso atribuído ao deão que, de um modo muito enfático, para dizer

o mínimo, procurava defender a esfera de jurisdição própria do Cabido contra as supostas

interferências do bispo.

Assim, uma vez conhecido, em linhas gerais, o teor das acusações contra o deão Pedro José

Augusto Flávio de Faria e os dois cônegos que o apoiavam, importa reconstituir os argumentos que

este grupo apresentou para agir de tal maneira. Para tanto, as fontes que podem ser utilizadas são a

documentação do Arquivo Histórico Ultramarino e as Memórias históricas do monsenhor Pizarro.

Na informação enviada por Luís de Vasconcelos a Martinho de Melo e Castro, o vice-rei do Estado

do Brasil contestou, um a um, os 13 capítulos com os quais o deão acusou o bispo D. Joaquim José

Justiniano Castelo Branco. Tais capítulos não foram transcritos na documentação, aparecendo

13

apenas as réplicas do vice-rei. Entre os capítulos, constam problemas relacionados à herança do

antecessor, o bispo D. Fr. Antônio do Desterro Malheiros; à administração da fábrica da sé; ao

suposto favorecimento do prelado diocesano ao secretário do bispado, o bacharel José Rodrigues,

na oposição à cadeira de cônego doutoral. Infelizmente, o conteúdo das acusações do deão não foi

detalhado, na medida em que o propósito principal do vice-rei era o de desacreditá-lo. Em apenas

um caso, as informações da autoridade colonial tornaram-se mais minuciosas: quando tenta

esclarecer a acusação lançada pelo deão, de que o bispo teria “familiaridade” com uma moça.

Segundo Luís de Vasconcelos e Sousa, tal acusação representava “o mais atroz testemunho falso,

que o Deão levanta ao Bispo, sem pejo, sem honra e sem temor de Deus, que a tanto o conduz a sua

cegueira” (AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749). De acordo com o vice-rei, a mulher mencionada pelo

deão

Creio que será uma sobrinha deste, porque não há outra naquela casa, de 42 anos de idade, que na falta de seus Pais, e de um único Irmão Tenente de Cavalaria no Rio Grande, está vivendo na companhia de seus Parentes na Casa da Mãe do dito Prelado, aonde tudo respira a maior decência (...). Pelo que respeita ao mais, que diz o Deão, de que o Bispo tem cama e dorme em casa da dita sua Mãe, quando lhe parece, e que leva a mesma família para a Quinta do Capão e de Santana, aonde se juntam outras moças com toques e cantos: isto procede de que, estando gravemente enferma a Mãe do Prelado, haverá três para quatro anos, e tendo-lhe este levado o Sagrado Viático da sua Freguesia de São José, lhe ficou assistindo, enquanto durava o perigo de vida, dois ou três dias, nos quais pernoitou na mesma casa (...). E procederá ultimamente de que, tendo D. Rosa, mulher do Ajudante das Ordens Camilo Maria Tomelet, pessoas de conhecida honra e probidade, amizade com a Mãe e Irmã do mesmo Prelado, as foi visitar com seu Marido, e estiveram dois dias na dita Quinta de Santana, onde poderia ser que a dita D. Rosa cantasse e tocasse cravo, porque o sabe fazer muito bem (AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749).

Em anexo às informações remetidas pelo vice-rei ao Conselho Ultramarino, consta um

documento elaborado por Pedro José Augusto Flávio de Faria, em que pedia à soberania régia

restituição dos rendimentos do benefício de deão, de que fora privado pelo bispo do Rio de Janeiro,

que redistribuíra tais reditos entre os demais cônegos. Não há data no requerimento, mas deve ter

sido produzido por volta de 1783, quando já tinha se ausentado da cidade do Rio de Janeiro sem

licença do prelado, e partido para o Reino. No documento em pauta, o deão acusava o bispo e o

vigário geral do bispado fluminense, o cônego Francisco Gomes Vilas Boas, de procurar a sua

“última ruína”, até “fazendo-o Inconfidente”. Constatava que “a obediência cega da clerezia

daquele Bispado, já pelas máximas dos ultramontanos, já por verem que as suas fortunas ou

infelicidades estão pendentes do Bispo, como única causa da sua existência, não duvidaram seguir a

14

moral corrupta e Luciferina do seu Vigário Geral”. O deão concluiu a sua súplica acusando os

bispos ultramarinos de se acharem superiores “aos príncipes e ao mundo todo”. Quanto ao bispo do

Rio de Janeiro em particular, considerava-o muito alinhado às “máximas da Cúria”, pois o que esta

“extorque ao orbe cristão a títulos de Indulgências”, extorquia o prelado fluminense “a título de

obras pias no seu Bispado” (AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749).

O que mais chama a atenção no documento analisado acima é a presença, no discurso do

deão, de um pensamento não apenas regalista, mas que se aproximava da heterodoxia. Por outro

lado, existe um silêncio claro a respeito das acusações de imperícia e negligência com que se

conduzia nos atos litúrgicos, inerentes ao ofício capitular. Há um único trecho em que,

indiretamente, aparecem alusões às normas a serem adotadas pelos cônegos: “o chamado estatuto

daquela Sé deve ser confirmado por Sua Majestade para ter força de Lei naquele Cabido; e o Deão,

como presidente, é a quem toca requerer a sua purgação a benefício da religião e dos bens de Sua

Majestade doados àquela Sé” (AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749). Assim, o deão sugeria implicitamente

que não poderia ser culpado de desobediência dos estatutos, na medida em que era um documento

não reconhecido pela soberania régia.

Na consulta de 1786 da Mesa da Consciência e Ordens, o tribunal régio se dividiu, a respeito

do castigo que devia ser aplicado ao deão. O desembargador procurador geral das Ordens

argumentou que o referido eclesiástico “estava incurso não só nas penas dos que mentiam na Real

Presença de Vossa Majestade, mas também nas de caluniador, porque falsamente caluniara e

injuriara o seu Prelado, que devera respeitar”. Além disso, atentou para o fato de que era necessária

uma vigorosa resposta aos atos do deão, sem o que “seriam imensas as desordens para o futuro”.

Acompanhando o tom do procurador, a Mesa foi de parecer que o deão fosse privado do seu

benefício eclesiástico e se recolhesse à cadeia do Limoeiro, na Corte de Lisboa. Porém, tendo em

vista o grau de doutor e a qualidade de deão do acusado, o deputado Francisco Feliciano Velho da

Costa Mesquita Castel Branco sustentou que “é mais próprio (sic) a prisão no Convento de Rilha

Flores por tempo de um ano, sendo no primeiro mês tratado com penas pro gravionibus no cárcere e

em todo o tempo sustentado à sua custa”. Quanto ao deputado Antônio Álvares da Silva, além de

votar pela prisão no Convento, foi contra a pena de privação do benefício aplicada ao deão, na

medida em que este não fora ouvido judicialmente, em contrariedade das Ordenações do Reino, que

15

previam que “ninguém seja condenado sem que primeiro fosse ouvido pela ofensa que se fazia ao

Direito Natural, e com esta Lei concorda o Direito Divino, Canônico e Civil”. De acordo com o

voto do último deputado, o deão devia ficar preso até o tempo da partida do primeiro navio para o

Rio de Janeiro,

Onde deve ser remetido debaixo da mesma prisão, visto se ter ausentado fugitivamente, intimando-se-lhe que logo que chegue àquela Cidade, irá dar uma pública e humilde satisfação ao Bispo, reconhecendo seus erros, e protestando-lhe a devida obediência e emenda que justamente deve ter; e depois fará a mesma demonstração ao governador do estado pela Carta que incurial e ignorantemente lhe escreveu, intimando-se-lhe também que, antes de executadas com humildade estas efetivas diligências, não entrará a exercer o Benefício nem dele perceberá emolumento algum (AHU, RJ, cx. 120, doc. 9749).

Como já foi dito, ainda que a consulta acima não tenha trazido em anexo a resolução régia, é

possível afirmar com toda a segurança que Pedro José Augusto Flávio de Faria não retornou ao Rio

nem foi reempossado na dignidade de deão. Segundo a crônica do monsenhor Pizarro, depois de

alguns anos o deão renunciou ao benefício, tendo recebido no Reino, “por compensação, a Conezia

da Basílica de Santa Maria, em que foi nomeado a 6 de setembro de 1799”. (ARAÚJO, 1946, v. 6:

77). Um pouco antes, em 1797, a indicar que o ex-cônego do Cabido do Rio de Janeiro continuava a

simpatizar com ideias suspeitas à ortodoxia, foi denunciado ao Tribunal do Santo Ofício pelo frei

José de Santa Maria Mascarenhas, religioso franciscano da Província da Conceição do Rio de

Janeiro, assistente no Convento de Lisboa. Dialogando com Pedro José Augusto Flávio de Faria, o

frade

Lamentou a cega libertinagem que vê grassar nesta capital, a indiscrição da plebe que fala em Liberdade, a qual bem entendida não é outra que a da Lei de Deus, que não pratica; e concluindo que debalde procuram os homens esta sonhada Liberdade, pois nunca poderão subtrair-se ao Deus, que no seu Tribunal há de julgá-los, respondeu o dito sacerdote: e quem o sabe? Esta voz tão dissonante, escapada com desacordo a um Eclesiástico iluminado, moveu tal susto e estranheza no Coração do expoente, que não soube corrigi-lo; antes, receoso de que procedesse a novo desatino puxou logo para a outra matéria a sua conversa (ANTT, Denúncia contra Pedro José Augusto, PT-TT-TSO-IL-28-16663).

Em 1802, Pedro José Augusto Flávio de Faria foi promovido a monsenhor da Santa Igreja

Patriarcal de Lisboa, vindo a falecer no ano seguinte (ARAÚJO, 1946, v. 6: 77).

Uma vez conhecido o conteúdo das acusações e alguns elementos sumários da defesa do

deão, cabe aqui procurar aprofundar as impressões obtidas nas fontes a partir da aplicação do

conceito de “núcleo capitular”, desenvolvido por Letícia Pérez Puente. A tabela abaixo procura

sumarizar dados biográficos, formação acadêmica e trajetórias eclesiásticas do “núcleo” dos

16

cônegos favoráveis ao bispo – e inclusive os dados do prelado diocesano – comparando-os ao

“núcleo” oposto, formado pelo “bando” do deão. O critério de seleção dos cônegos do primeiro

grupo foi a apresentação de testemunhos dados a favor da informação do bispo.

Quadro 1 – Trajetórias dos cônegos da sé fluminense envolvidos diretamente nos conflitos da década de 1780

Nome Natura-lidade

Orde-nação

Benefícios eclesiásticos exercidos

Conezias exercidas no Rio de Janeiro

Ofícios exercidos no bispado

Formação Acadêmica

Felipe Pinto da Cunha e Souza

Rio de Janeiro

Meia prebenda (1765); Prebenda inteira (1784); Chantre (1799).

Francisco Gomes Vilas Boas

Braga 1765 Magistral (1769); Deão (1788).

Vigário da vara; Provisor.

Bacharel em Leis.

José de Souza Marmelo

Rio de Janeiro

Meia prebenda (1755); Prebenda inteira (1759); Arcediago (1773); Tesoureiro-mor (1784).

Secretário do bispado; Secretário do cabido; Reitor do Seminário São José.

Mestre em Artes pela Cia. De Jesus (1754).

José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco

Rio de Janeiro

1754 Deputado da Inquisição de Évora (1762); Promotor do Tribunal de Évora; Deputado da Inquisição de Lisboa (1769); Bispo (1773-1805)

Deão (1765).

Licenciado em Cânones por Coimbra (1751-1756).

Manoel de Andrade Warnek

Bahia Arcediago (1725); Chantre (1728);

Vigário geral; Governador do bispado (1733); Reitor do Seminário São José (1752); Visitador diocesano

Doutor Canonista por Coimbra.

17

(1757); Fabriqueiro da catedral;

Pedro Barbosa Leitão

Rio de Janeiro

Prebenda inteira (1780)

Egresso da Companhia de Jesus.

José Coelho Peres de França

Rio de Janeiro

Capelão extranumerário e do número da sé (1764);

Prebenda inteira (1778); Conezia mestral (1781).

José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo

Rio de Janeiro

Comissário do Santo Ofício; Conezia na igreja patriarcal de Lisboa (1802).

Prebenda inteira (1780).

Priostado (1792); Visitador do bispado (1794 e 1799).

Bacharel em Cânones por Coimbra. Cursou também Filosofia, Matemática e Direito.

Pedro José Augusto Flávio de Faria Lemos

Rio de Janeiro

1764 Conezia na Basília de Santa Maria (1799); Conezia da igreja patriarcal de Lisboa (1802)

Deão (1779); Examinador sinodal (1781); Procurador do cabido (1781).

Licenciado em Cânones por Coimbra (1764-1768); Doutor em Cânones;

Fontes: ARAÚJO, 1946, v. 6; ALVES, 2006, Anexos; AHU, RJ, cx. 137, doc. 21.

No quadro inserido acima, a partir de algumas rubricas definidoras do “núcleo capitular”,

procurou-se separar com cores distintas o núcleo de cônegos afinado com a administração do bispo,

conjunto assinalado com a cor azul, daquele grupo considerado na documentação como refratário às

diretrizes do diocesano, identificado com a cor laranja. Uma primeira diferença salta aos olhos:

enquanto os cônegos aliados do deão Pedro José Augusto Flávio de Faria tinham ascendido em data

muito recente aos benefícios capitulares, sendo todos apresentados entre 1778-1780, o núcleo de

cônegos que apoiou o bispo na disputa contava com uma larga experiência no Cabido, sinalizada

não apenas pelo número de anos, mas também pelo exercício de inúmeras tarefas acessórias da

administração diocesana. No âmbito do “núcleo capitular” principal, aparecem com destaque três

cônegos, merecedores da estrita confiança do bispo, quer pela experiência, pela habilidade no

exercício do cargo, ou pela soma dessas qualidades: os sacerdotes Francisco Gomes Vilas Boas,

José de Souza Marmelo e Manoel de Andrade Warnek. Tais cônegos carregavam consigo a

18

memória administrativa do Cabido, sendo igualmente essenciais para o funcionamento das

engrenagens diocesanas.

Se a diferença apontada acima parece essencial, para o entendimento das divisões ocorridas

no princípio da década de 1780 entre os cônegos do Rio de Janeiro, não se pode deixar de lado as

semelhanças entre as trajetórias dos cônegos dos dois grupos enfocados. Deve-se observar

primeiramente que uma parte importante dos capitulares obtivera alguma graduação na

Universidade de Coimbra. Há, inclusive, em alguns casos, referências à realização de mais de um

curso superior, ou ainda à obtenção dos graus de mestre e de doutor. Daí se depreende que a diocese

do Rio de Janeiro encontrava-se em certa sintonia com as diretrizes do Concílio de Trento, no ponto

em que este exortava “a que todas as dignidades, ou pelo menos metade dos canonicatos, sejam

ocupadas apenas por doutores, mestres e licenciados, em Teologia ou Direito Canônico” (SILVA,

2010: 70). Em segundo lugar, é patente que, com a exceção de apenas um cônego, o sacerdote

Francisco Gomes Vilas Boas, os demais mencionados eram nascidos no território do bispado do Rio

de Janeiro.

Esse dado não era casual, e pode ser relacionado à legislação que regia o provimento dos

benefícios e dignidades eclesiásticas, sistematizada e atualizada no alvará de 14 de abril de 1781,

conhecido como “alvará das faculdades”. Dirigindo-se ao bispo diocesano D. José Joaquim

Justiniano Mascarenhas Castelo Branco, a soberania régia, enquanto “governadora e perpétua

administradora do mestrado, cavalaria e Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo”, comprometia-se a

apresentar “nas ditas dignidades e benefícios os clérigos que por vós me forem propostos”. Uma vez

que vagasse qualquer benefício eclesiástico, os clérigos do bispado interessados em ocupá-lo teriam

um mês para se apresentarem em concurso. Os opositores seriam examinados pelo bispo que,

levando em conta as letras e virtudes, proporia três nomes para cada cargo, para serem confirmados

pelo padroado régio. Os propostos “seriam preferentemente naturais do bispado e, em igualdade de

circunstâncias, ‘os que forem da antiga nobreza desta capitania, por procederem de seus primeiros

descobridores, que à custa de seu sangue, concorreram para nessas regiões se plantar a nossa Santa

Fé’” (NEVES, 1997: 54-55). Não obstante, a soberania régia se reservava o direito de nomear

eclesiásticos que não constassem nas propostas dos bispos. Ainda que tais diretrizes dessem

continuidade a práticas administrativas anteriores, a soberania régia agora procurava impedir

19

Aos clérigos desse vosso bispado toda ocasião de vagarem por este Reino e fora da própria diocese, como igualmente andam os das outras dioceses do Ultramar, com o fim de obterem benefícios e igrejas dos seus mesmos bispados, quando só deverão procurar merecê-los no serviço de sua mesma igreja, e talvez os que venham pretender fora dela por não terem as qualidades necessárias para poderem consegui-los dos seus respectivos prelados (NEVES, 1997: 56).

A referida dinâmica de apresentação dos benefícios eclesiásticos só não devia valer para as

dignidades mais elevadas existentes nos bispados: o deão e, em algumas dioceses, o arcediago. Em

tais situações, o provimento ficava diretamente reservado ao monarca (RUBERT, 1988, v. 2: 293).

Quando se soma a preferência dada aos eclesiásticos nascidos na própria diocese com a restrição à

abertura de concursos na Corte, no Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, conclui-se que a

legislação reforçava a autoridade dos bispos diocesanos, e do prelado fluminense em particular,

acerca da nomeação dos benefícios vagos nas suas respectivas dioceses.

A partir das informações apresentadas acima, é possível compreender melhor o conjunto de

observações contidas na correspondência do bispo fluminense. Depois de fazer carreira no Tribunal

do Santo Ofício – o que vem a confirmar, para um período posterior, a tese de um autor a respeito

do enlace institucional entre a Inquisição e o episcopado – José Joaquim Justiniano Mascarenhas

Castelo Branco foi nomeado coadjutor e futuro sucessor daquele bispado, a 15 de janeiro de 1773

(PAIVA, 2011: 302-309). Tomou posse da diocese do Rio de Janeiro em 29 de abril do ano de

1774, por meio do seu “procurador e tio, o cônego doutoral Paulo Mascarenhas Coutinho”

(ARAÚJO, 1946, v. 6: 187). Em uma conta que enviou no último ano à soberania régia, o novo

prelado argumentava que “os Bispos meus antecessores neste Bispado do Rio de Janeiro deveram a

Vossa Majestade e aos seus Augustíssimos predecessores a honra de lhes conceder as faculdades

para nomearem e proporem a Vossa Majestade os clérigos mais hábeis para as dignidades e

Cônegos da Santa Igreja Catedral desta diocese”. Não obstante,

A brevidade com que Vossa Majestade foi servido mandar que eu viesse para este Bispado, ou motivos que eu Ignoro deram causa a que me recolhesse sem aquela faculdade, a única que tem os Bispos desta Diocese para moverem aos ânimos dos eclesiásticos a uma aplicação mais exata da Disciplina da Igreja, o que eu não devo deixar de pôr na presença prezada de Vossa majestade, e suplicando humildemente queira Vossa Majestade ser servido ou conceder-me a mesma faculdade que tiveram meus antecessores ou insinuar-me aquela providência que Vossa Majestade parecer mais útil (ACMRJ, E-83, f. 4)

Assim, visando suprir a falta de sacerdotes para diversos benefícios e dignidades que se

encontravam vagos na diocese, propôs, na mesma correspondência, uma lista de candidatos para a

dignidade de deão e para outras conezias vagas. Como é possível apurar no quadro 1, desde 1765

20

José Joaquim Mascarenhas Castelo Branco recebera da soberania régia o deado da sé do Rio de

Janeiro, cujo cargo não exercera diretamente, na medida em que então se achava ocupado como

deputado no Tribunal da Inquisição de Lisboa. Ao tomar posse do bispado do Rio de Janeiro, o

bispo deixara vaga a dignidade de deão. Entre 1765 e 1773, apesar de ausente, o bispo recebera os

rendimentos pertencentes à dignidade de deão, conforme se pode apurar, com riqueza de detalhes,

nas Memórias históricas de Pizarro:

Em virtude dos privilégios concedidos por Bulas Apostólicas, desde Inocêncio VIII, até Paulo V, ao Tribunal do Santo Ofício da Inquisição e, consequentemente a seus ministros, observados sempre no Reino de Portugal (...), requereu o novo Deão ao seu Cabido que o contasse como presente, e residente às Horas Canônicas, para receber as distribuições cotidianas, e mais proventos, que se costumam repartir pelos interessantes; porém o Cabido, por não lhe constar que os antigos capitulares, comissários do mesmo Tribunal, requeressem esses proventos, ou talvez pouco cientes de uma matéria assaz explanada por Guerreiro (de Privilegiis), Ligório, Van Espen, Reiffenstuel, Zallwein, Ferrari, e outros, repugnou em tais circunstâncias permitir as distribuições pedidas, e seus acessórios, assentindo só ao recebimento da côngrua simples, deduzidas as obrigações pessoais. Conveio nessa resolução o R. Bispo, por quem foi mandado contar o Deão unicamente na côngrua: e correndo essa decisão sem novidade por alguns anos, mandou El-Rei, em provisão do seu Tribunal da Mesa da Consciência e Ordens, datada a 10 de julho de 1771, que assim na côngrua como nas distribuições cotidianas, ofícios e mais emolumentos nos quais eram contempladas as outras dignidades e cônegos da sé, fosse também o Deão dela (ARAÚJO, 1946, v. 5: 321).

O acúmulo efetuado por alguns eclesiásticos de funções simultâneas no aparelho do Santo

Ofício e nos cabidos foi apontado por Bethencourt como uma característica da Inquisição

portuguesa, cuja máquina burocrática era muito desenvolvida no topo, mas não tanto nos níveis

intermediários e na base, em que se situavam, respectivamente, os deputados e os comissários.

Assim, “a nomeação de um inquisidor, de um fiscal ou mesmo de um deputado de distrito em

Portugal é seguida em muitos casos da obtenção de uma pensão, de um benefício ou de um posto de

cônego (se os nomeados já não têm desses privilégios)” (BETHENCOURT, 2000: 129). Ora,

conforme se apura no quadro 1 e nas informações acima, tanto José Joaquim Justiniano

Mascarenhas Castelo Branco quanto José de Sousa Azevedo Pizarro e Araújo eram cônegos com

atribuições no aparelho do Santo Ofício. Assim, nas Memórias históricas, Pizarro lembrava de

prerrogativas que, gozadas pelo deão e futuro bispo do Rio de Janeiro, deviam ser também

garantidas a outros capitulares:

Devendo a Provisão sobredita servir de regra inalterável para casos análogos e da mesma natureza, aplicando-a não só aos cônegos Comissários do Santo Ofício, mas aos clérigos capelães do Coro, nomeados para escrever nas Comissões, pelo tempo em que se

21

ocupavam no serviço do Tribunal, jamais quiseram os capitulares observá-la completamente; porque aferrados aos chamados usos, costumes e estilos contrários a Leis expressas, sustentavam, teimosos, e por capricho, as suas opiniões, sem ceder á razão nem às Leis, além do que se via escrito nos Estatutos da sé (ARAÚJO, 1946, v. 5: 321).

Não é provável que Pizarro tenha aderido ao conflito contra o bispo em virtude da questão

acima, na medida em que o cônego só fora provido como comissário do Santo Ofício em 1786

(GALDAMES, 2007: 9). Tampouco o bispo deixou mais clara a origem da animosidade que lhe

nutria Pizarro: “este cônego José de Sousa Pizarro, que havia experimentado em mim, desde que

chegou a esta cidade, quanto podia ser de benevolência e amizade, se tinha feito indigno de tudo,

por motivos que o pejo e a caridade Cristães (sic) me obriga a calar, e até se tinha feito insensível

aos sentimentos da honra e da modéstia” (ACMRJ, E-83, f. 105v). Talvez uma resposta mais

satisfatória esteja no fato de que Pizarro tenha obtido diretamente da soberania régia a apresentação

na conezia na sé do Rio de Janeiro, sem passar pela proposta do bispo. Essa hipótese pode ser

sustentada tendo em vista que o cônego não tinha nascido no território fluminense, nem tinha

ocupado antes cargos na mesma diocese, condições que o afastavam do perfil dos sacerdotes

preferidos pelos bispos para ocupar os benefícios da sé. Batizado na vila de Santos em 1753, Pizarro

era relativamente novo quando foi designado em 1780 para ocupar uma prebenda inteira na catedral

do Rio de Janeiro (GALDAMES, 2007: 141). Por outro lado, cursando várias cadeiras na

Universidade de Coimbra entre 1774 e 1780, Pizarro pode talvez estabelecer redes de contato e de

proteção no Reino, que poderiam interceder para a concessão de um benefício (ALVES, 2006:

anexos). Por fim, contava certamente a favor de Pizarro o fato de que dois tios, ambos graduados na

Universidade de Coimbra, haviam ocupado anteriormente importantes conezias na sé do Rio de

Janeiro: os cônegos Gaspar Gonçalves de Araújo, que exercera as atividades de deão entre 1715 e

1754, e José de Sousa Ribeiro de Araújo, que foi tesoureiro-mor entre 1748 e 1753 (ARAÚJO,

1946, v. 6: 69-93).

Quando a Pedro José Augusto Flávio de Faria, é possível também conjecturar que o motivo

das divergências com o prelado se devesse a questões que envolviam a nomeação de cargos, para

além da correta celebração dos ofícios litúrgicos na sé. Na proposta que enviara em 1774 à

soberania régia, para o provimento da dignidade de deão, o bispo argumentava que os cônegos

Manoel de Andrade Warnek, chantre da sé, e Inácio de Oliveira Vargas, tesoureiro-mor, seriam

hábeis para ocupar o deado, porque serviam a Igreja “há mais de trinta anos”. Não obstante, o

22

primeiro não era natural da América, “mas sim de Lisboa” – o que contraria a informação de

Pizarro, segundo o qual Warnek era natural da cidade da Bahia – e, além disso, a “experiência tem

mostrado que seus ofícios não influem no corpo do cabido quanto é necessário para conservar a

disciplina”. Quanto ao segundo, ainda que fosse natural do Rio de Janeiro, encontrava-se com a

“idade avançada de 78 anos”. Assim, o bispo propôs para a dignidade de deão a Sebastião

Rodrigues Aires, sacerdote natural do bispado com 53 anos de idade, de costumes exemplares e de

vida recolhida, e com a “melhor instrução da Disciplina Eclesiástica e das obrigações do sacerdócio,

qualidades que se não acham em outros clérigos do mesmo Bispado” (ACMRJ, E-83, f. 105v).

Quatro anos antes, em 1770, o referido padre Sebastião Rodrigues Aires – que vinha a ser irmão de

sangue da famosa beata Jacinta de São José, fundadora do Recolhimento do Desterro do Rio de

Janeiro – já tinha solicitado provimento no deado, para o qual anexou certidões favoráveis emitidas

pelo vice-rei, por desembargadores da Relação, por cônegos, entre outras autoridades (AHU, RJ, cx.

89, doc. 7799, Requerimento...; MARTINS, 2012: 67-100).

A apresentação de Pedro José Augusto Flávio por decreto régio de 1 de setembro de 1779

indicava que a proposta do diocesano fluminense não fora levada em conta, guardando a soberania

régia a prerrogativa de escolher diretamente a dignidade mais elevada da sé do Rio de Janeiro.

Quanto ao mestre-escola José Coelho Peres de França, partidário do deão nos conflitos da década de

1780, também se tinha envolvido em demandas com o bispo, referentes ao exercício de cargos na

catedral. Conforme expôs o próprio prelado diocesano na carta enviada ao Conselho Ultramarino

em 27 de setembro de 1782, José Coelho Peres de França “não se tem podido esquecer de que eu o

castiguei em o ano de 1777, despedindo-o de capelão do Coro da Sé por queixas de rebeldia, que o

cabido me fez dele”. Na esperança de obter o arrependimento do capelão, o bispo mantivera vaga

por muito tempo a capelania. Não obstante, José Luís França, tio do capelão e desembargador da

Casa da Suplicação em Lisboa, onde tinha sido provido por alvará de 3 de setembro de 1776,

“conseguiu para este sobrinho um canonicato e depois a cadeira de mestre escola, uma das

dignidades desta sé” (ACMRJ, E-83, f. 106; ANTT, Registro Geral das Mercês de D. José I, liv. 28,

f. 319, disponível em digitarq.dgarq.gov.pt).

Assim, antes da entrada do deão Pedro José Augusto Flávio de Faria, o bispo parece ter

acumulado ódios com os cônegos Pizarro e José Coelho Peres de França. Além disso, já revelava

23

naquela época preocupações com a disciplina do Cabido e do coro, como o revelam as informações

a respeito do cônego Manoel de Andrade Warnek e do próprio José Coelho Peres de França. A

apresentação e posse, ocorrida entre 1779-1780, do deão da sé fluminense por decreto da rainha D.

Maria I, constituía mais uma nomeação feita em oposição às preferências do bispo. Pedro José

Augusto Flávio de Faria e Pizarro tinham uma carreira semelhante: saída precoce da América

portuguesa, onde não haviam servido cargos na Igreja; permanência relativamente longa no Reino,

onde frequentaram cursos superiores na Universidade; e retorno ao território americano, para

ocupar postos relativamente elevados na sé de um importante bispado. Não obstante tal promoção,

os canonicatos que ocuparam na catedral do Rio de Janeiro parecem ter constituído apenas uma

etapa para a aquisição de sinecuras mais vantajosas. Assim, depois de desistir do deado do Rio de

Janeiro, Pedro José Augusto Flávio de Faria recebera uma conezia na Basílica de Santa Maria,

sendo a 2 de junho 1802 promovido para a dignidade de monsenhor acólito da Santa Igreja

Patriarcal de Lisboa. Naquele mesmo dia, Pizarro foi promovido para uma conezia vaga na mesma

Igreja Patriarcal, uma indicação inequívoca de que a trajetória de ambos os cônegos continuava

próxima.

A elaboração em 1781 do alvará das faculdades pela soberania régia, que pretendia a

regulamentação dos provimentos eclesiásticos do bispado do Rio de Janeiro e de outras dioceses

ultramarinas, constituiu um valioso trunfo para o bispo D. José Joaquim Mascarenhas Castelo

Branco. A partir da referida legislação, o bispo podia contar com a chancela da monarquia relativa à

política de provimentos praticada pelos diocesanos, que valorizava a naturalidade dos que

postulavam novos benefícios, bem como os serviços que os mesmos haviam exercido nas

respectivas dioceses de nascimento. Este último predicado foi muito mais valorizado pelo diocesano

fluminense. Em dezembro de 1781, o bispo notificou à soberania régia que ficaria vago o lugar de

arcediago da sé. Julgaria digno de promover à referida conezia o cônego magistral Francisco Gomes

Vilas Boas, bacharel formado em Cânones. Entretanto, após a publicação da lei, “não devo dizê-lo

assim em atenção e respeito ao dito Alvará de 9 de Abril; porque neste se manda expressamente só

serão admitidos aos Benefícios os naturais deste Bispado”. Segundo o bispo, o cônego magistral era

natural do arcebispado de Braga, circunstância que o inabilitava “para o propor à Sua Majestade em

concurso de benefícios deste bispado”. Na correspondência, o bispo pretendia fazer chegar à

24

soberania régia o merecimento e os serviços do referido eclesiástico, para que “fora de concurso” a

“Régia benevolência o queira habilitar para poder ser opositor ou provê-lo na Dignidade de

Arcediago, ou outra que vagar nesta Sé”. Quanto aos serviços do eclesiástico, além do desempenho

da conezia magistral, era

atualmente provisor, Vigário Geral, Juiz dos Casamentos e resíduos de justificações de genere (e dispensas apostólicas); o Ministro que me ajuda a suportar o peso deste Bispado por duas razões: a primeira , cada um desses lugares não tem rendimento suficiente para sustentar quem o servir, e ainda unidos todos apenas darão para o necessário; a segunda por ser eclesiástico de maior literatura, experiência e [ileg.] que tenho em todo este Bispado para servir lugares de tanta ponderação como estes, de que depende a boa administração da Justiça Eclesiástica (ACMRJ, E-83, f. 74v-75).

Ainda que não tenha sido atendido de imediato pela monarquia, a estratégia do bispo se

revelou frutífera em médio prazo. Em 16 de julho de 1788, em que pese a naturalidade portuguesa,

Francisco Gomes Vilas Boas foi apresentado na primeira dignidade da sé, a de deão, justamente

aquela que ficara anos antes no centro do conflito com o bispo. Com relação à estima de que

gozavam junto a este prelado, fica difícil pensar em um contraste maior do que o existente entre

Pedro José Augusto Flávio de Faria e Francisco Gomes Vilas Boas. Para o diocesano do Rio de

Janeiro, a exigência da naturalidade contida no alvará das faculdades devia ser relativizada, em prol

de qualidades mais substantivas:

eu também nasci nesta cidade, e na Igreja de que, ainda que destituído de merecimentos, estou Bispo; amo naturalmente minha pátria, e os meus Patrícios: mas não posso compreender se lhes faça ofensa em observar os Cânones, que exigem sempre os mais dignos para o Serviço da Igreja, e só inculcam preferência no caso de igualdade de merecimentos, ou ainda de pouco considerável desigualdade (ACMRJ, E-83, f. 75).

Ainda que já existissem tensões no culto divino praticado na sé do Rio de Janeiro, sem

dúvida a situação se agravou após a instalação do deão Pedro José Augusto Flávio de Faria, em

dezembro de 1781 (ARAÚJO, 1946, v. 6: 76). Conforme já foi extensamente analisado acima, o

novo cônego acrescentou um ingrediente novo ao estado, talvez recorrente, de indisciplina no coro:

a marca da dúvida religiosa. Ainda que tenha obtido a formação em Cânones entre 1764-1768, antes

das reformas pombalinas na Universidade de Coimbra, a permanência por vários anos no Reino

provavelmente lhe tinha facultado contato com ideias de caráter regalista e heterodoxo.

Evidentemente, Pedro José Augusto Flávio de Faria Lemos conhecera de perto o episódio da

deposição e prisão do bispo de Coimbra, D. Miguel da Anunciação. Este, por meio de uma carta

pastoral publicada em 1768, condenou a leitura de diversas obras ligadas ao Iluminismo, entrando

25

em atrito com a jurisdição da Real Mesa Censória (MAXWELL, 1996: 103; RODRIGUES, 1982:

207-298). No caso de Pizarro, o período de permanência em Coimbra ocorrera entre 1774 e 1780,

contexto em que as diretrizes pombalinas de ensino se encontravam plenamente em vigor,

executadas pelo novo bispo e reitor da Universidade, D. Francisco de Lemos de Faria Pereira

Coutinho. É provável que Pizarro tenha entrado em contato com um círculo de estudantes de

Coimbra que partilhava ideias heterodoxas, e que foi denunciado ao Santo Ofício da Inquisição por

Antônio de Morais da Silva, em 1779 (VILLALTA, 1999: 128, 330-361, 384).

O deão envolvido nos conflitos da década de 1780 teve como rival um bispo diocesano

zeloso, preocupado antes de tudo com a formação e os costumes dos sacerdotes. Assim, logo no

início do episcopado, em 1775, convocou o clero secular e regular para conferências de moral.

Introduziu aulas desta disciplina no Seminário diocesano de São José, cujos estudos foram por ele

reformados, por meio do acréscimo das disciplinas de “Geografia, Cosmologia, História Natural,

Retórica e Filosofia” (RUBERT, 1988, v. 3: 52). O exame de Teologia Moral começou a ser

realizado em 1775 em uma mesa sinodal escolhida pelo próprio prelado, composta por dez

membros, sendo 5 cônegos do Cabido e cinco religiosos das ordens regulares. A resistência dos

franciscanos em comparecer aos exames, necessários para habilitá-los à pregação e à confissão no

bispado, fez com que o bispo procedesse contra os mesmos. (ACMRJ, E-83, f. 27v-29). Tirando as

visitas pastorais, que em poucos casos pôde realizar pessoalmente, delegando-as a outros

eclesiásticos, D. José Joaquim Justiniano Mascarenhas Castelo Branco aproxima-se do protótipo do

“bispo pastor”. Tal tipologia, elaborada por José Pedro Paiva, caracterizava o bispo estreitamente

afinado com as diretrizes do Concílio de Trento:

O seu empenho pessoal no governo, a residência na diocese, a atenção para com o clero (comportamento e formação), a intensa atividade legislativa (realização de sínodos e constituições), a criação de novos e mais eficazes meios de administração, o cuidado posto no conhecimento, vigilância e emenda de párocos e fiéis através de visitas pastorais que pessoalmente devia realizar, a difusão da mensagem cristã por via da pregação e da pastoral, o zelo na administração dos sacramentos – particularmente com a celebração pessoal da eucaristia e a administração da confirmação (PAIVA, 2006: 132-133).

Evidentemente, no contexto em pauta, marcado pela subordinação das instituições

eclesiásticas aos ditames da soberania régia, o bispo estava também afinado com as diretrizes

reformistas, alinhando os estudos do seminário diocesano à valorização das ciências experimentais,

26

nos moldes da Universidade de Coimbra, e sendo nomeado interventor, entre 1785 e 1800, da

província dos carmelitas calçados do Rio de Janeiro (BENEDETTI Fº, 1990).

Para concluir, seria importante deixar patente que o conflito do início da década de 1780,

que opôs o bispo e a maioria do Cabido fluminense a um grupo de cônegos recém-nomeados para o

bispado, não pode ser visto apenas como uma decorrência de imperfeições e ausências relativas às

cerimônias litúrgicas da sé. Assim, em paralelo a essa narrativa principal, presente de modo

marcante nas fontes emanadas do bispo e dos cônegos próximos a ele, procurou-se chamar a

atenção para possíveis motivações implícitas, que envolviam desde as questões ligadas ao

provimento dos cônegos; às trajetórias dos mesmos, representada pelos laços de proteção

estabelecidos no Rio de Janeiro e no Reino de Portugal; à constituição de um “núcleo capitular” que

detinha a posse da memória administrativa do Cabido e do bispado; e, por fim, aos elementos de

uma conjuntura marcada pela afirmação do regalismo e pela difusão de ideias ilustradas.

Bibliografia

ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de

Janeiro: Imprensa Nacional, 1946, v. 5 e 6.

GALDAMES, Francisco Xavier Müller. Entre a cruz e a coroa: a trajetória de mons. Pizarro

(1753 – 1830). Dissertação de Mestrado apresentada ao PPGH da Universidade Federal

Fluminense, 2007.

SILVA, Hugo Ribeiro. O cabido da Sé de Coimbra: os homens e a instituição, 1620 – 1670.

Lisboa: ICS, 2010.

AZZI,

CHAHON,

FEITLER E SOUZA,

SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em

Mariana (1748 – 1764)

BOSCHI,

ZANON, Dalila. Bispos de São Paulo: as diretrizes da Igreja Católica no século XVIII. São Paulo:

Annablume; Fapesp, 2012.

27