william da silva lima (o professor)--comando vermelho 400 contra 1

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  • 8/7/2019 William Da Silva Lima (O Professor)--Comando Vermelho 400 Contra 1

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    o brasil sem d vida possui muitos casos de gente politizada, inteligente e articulada que passou pela pris o ou est nela. william da silva lima est preso em banguiii. escreveu a hist ria de seu tr nsito pelos pres dios e tamb m de suas fugas, e o fez com uma lucidez moral e pol tica poucas vezes vista. h vigor em suas palavras,vale a pena reeditar: convidamos para o pref cio o escritor-crimin logo percival de souza e nos damos o prazer de recolocar disposi o dos leitores um testemunho

    hist rico inte-par voz a quem o infort nio da cadeia >u do fundo do mundo deixou marcas~ ncia editorial anterior-contou favoravelmente para a reedi o deste livro. mais maduro, melhor para trabalhar.decis o tomada, fomos ao rio de janeiro. encontramos debaixo de uma carceragem mal-encarada, num lugarquatrocentos contra um: uma hist ria do comando vermelho

    william da silva limaquatrocentos contra um: uma hist ria do comando vermelholabortextoeditorialcopyright william da silva lima, 2001

    edi o de texto david pereira jo o eduardo pedroso oliveira marina lucy goldmann diagrama o e produ o gr fica edson francisco dos santos capalucio kumedados internacionais de cataloga o na publica o (cip) (c mara brasileira do livro, sp, brasil)lima, william da silvaquatrocentos contra um: uma hist ria do comando vermelho/ w ll am da silva lima - 2. ed.- s o paulo: labortexto editorial, 2001.isbn: 85-87917-07-2cdd - 365,60921. comando vermelho 2. prisioneiros - biografia 3. pris es - brasil i. t tulo. 01.5330

    1 edi o: editora vozes, 1997. todos os direitos reservados Labortexto editorial rua albuquerque fins, 647 cj. 72 o1230-001 s o paulo sp telefone: (11) 3664-7500 fax: 3825-7590 [email protected] para cat logo sistem tico: 1. prisioneiros: biografia 365.6092

    agradecimentos

    gustavo de oliveira percival de souza s mone barros corr a de menezes

    deserto vermelho

    "aqui o cemit rio de todas as poesias", costumava ironizar um ex-diretor da casa de deten o, o maior pres dio da am rica latina, em s o paulo. poesia, aqui, n o no sentido de alma da literatura, mas como descompasso entre as teorias e aspr ticas cotidianas.de fato, as teorias no sistema prisional foram e continuam sendo sepultadas. n o s pelo massacre de 111 presos de uma s vez, em outubro de 1992, mas pela sucess odos fatos.dito isso, passemos ao livro.

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    o comando vermelho nasceu no rio de janeiro e tem em william da silva lima um deseus art fices. mas ele ressalva que n o se trata propriamente do nome de uma organiza oe sim de um comportamento, "uma forma de sobreviver na adversidade".talvez seja este um grande problema na literatura engajada: quando autor epersonagem se fundem. tem sido assim com textos de ex-prisioneiros pol ticos, obcecadosem fixar as diretrizes de uma causa, enfatizar o comportamento pico de uma

    milit ncia, enaltecer os pares e execrar os inimigos. se o texto pretende ser catarse,antes de tudo, podemos at compreender - psicologicamente - as emo es de quem estava no epicentro de um determinado momento, hist rico inclusive.tais limites devem ser levados em considera o na leitura desse livro. coloca-se a vida nos basfond, n o exatamente l mpen, de uma forma direta. o choque t rmico inevit vel: inclui os dramas do c rcere, sua imund cie e viol ncia, as rela es

    conflitivas entre presos, muitas vezes com extrema crueldade, a conviv ncia entreprisioneiros comuns e prisioneiros pol ticos em meios aos anos de chumbo, quando assaltar banco era motivo de enquadramento na lei de seguran a nacional.o livro abre com uma cita o da constitui o do imp rio, na qual um m nimo de dignidade era previsto para pris o e prisioneiros. mas se poderia recuar no tempo:

    os regulamentos das pris es da inquisi o exigiam condi es mais suaves do que as que temos nos c rceres de nosso tempo. a quest o que, como bem observa michel foucault em vigiar e punir, as muralhas dos estabelecimentos penais n o impedem, sozinhas, ningu m de fugir: sua verdadeira fun o esconder o que se passa l dentro.como se a sociedade n o quisesse ver mesmo. da , a prop sito, aquelas id ias sempre de plant o: colocar os presos numa ilha no meio do oceano ou mand -los abrirestradas na amaz nia. traduzindo: quanto mais longe, melhor.compreens vel portanto que, semelhan a de machado de assis (mem rias p stumas de br s cubas), william da silva lima relute em come ar seu relato pelo come o ou pelo fim. machado escreve a hist ria no estilo post mortem. termina com a frase "n o

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    transmiti a ningu m o legado de nossa mis ria". william preferiu transmitir o legado. ainda bem: mergulha no tempo, incluindo passagens pelo antigo rpm, orecolhimentoprovis rio de menores, antecessor da febem, a funda o (apesar de tudo) para o bem-estar do menor, chegando aos primeiros espancamentos, aplicados por umincr velbate chorando (conforme o apelido, um inspetor que batia e chorava). carcereiros emassa carcer ria, escreve, nivelados numa mesma mis ria moral. o vaie-vem por variados pres dios, de bangu Ilha grande, passando pelo dops e o doi-codi. afinal, se roubava bancos, tinha que provar que n o pertencia nenhuma organiza o

    tida como subversiva. a tortura oferecia isonomia para os presos. talvez williamdesagrade alguns ex-militantes pol ticos ortodoxos quando conta que eles "lutavampara isolar-se da massa, comportamento considerado elitista por n s". mas para que brigar com a hist ria? para que exumar o dogma stalinista segundo o qual a verdade

    n o revolucion ria? os presos pol ticos identificavam-se como tal. os outros se chamavam de "presos prolet rios".william foi prisioneiro no sistema dirigido por augusto frederico thompson, dodesipe, departamento do sistema penal. curioso que uma das melhores obras sobre osistema, a quest o penitenci ria, de autoria de thompson. defensor da tese segundo a qual n o existe pres dio sem o alicerce seguran a-disciplina, n o

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    comungouda id ia de nivelar presos antiditadura com os outros presos. o conflito, descrito por william, mostra o quanto o mundo9

    prisional ignorado nos gabinetes onde se tomam decis es sobre ele. ou seja: n o se conhece muito o lugar em que se manda.segundo william, o comando vermelho recebeu esse nome da imprensa e n o de um

    grupo que resolveu estrutur -lo. tudo indica que tenha acontecido exatamente isso.

    frustra quem imaginava uma reuni o secreta, com depoimentos e apartes, ata e assinaturas. o autor sugere que tenha sido uma fic o alimentada para ser vista comorealidade.mas o que realmente importa no quatrocentos contra um o tr nsito do autor em pres dios de seguran a m xima, o c digo de relacionamento entre prisioneiros, a dif cilsobreviv ncia. em alguns pontos, lembra charri re em papillon; em outros, evoca a recorda es da casa dos mortos, de dostoievski, e at Mem rias do c rcere, de gracilianoramos.

    um depoimento recheado de hist rias. n o literatura pura, seria exigir demais de um prisioneiro. mas relato de quem n o apenas ouviu contar, mas viveu com intensidade momentos e situa es cr ticas. tudo imposto pelo estado, exercendo o direito de punir, mas transformando a t o almejada ressocializa o apenas numa fal cia.william nos ajuda, nesse livro, a conhecer e a entender um pouco melhor esse mundopeculiar, essa rede de esgoto invis vel que alimenta as pris es brasileiras. nada consta de processos, inqu ritos, san es administrativas. a burocracia prisional faz de tudo para encobrir tudo aquilo que ela sabe muito bem. os pres dios cheiram

    mal. mais c modo observ -los de longe. a voz de william isolada. como algu m clamando solit rio no deserto rido das id ias e dos sentimentos que empurram a humanidade cada vez mais para dentro do

    po o.eu escrevi que ele est berrando no deserto?pois bem: pelo menos o eco haver de responder.percival de souzacidade de s o paulo, novembro de 2001.

    pref cio primeira edi o

    a edi o deste livro foi tarefa arriscada. n o quer amos fazer a apologia do crime, evidente, e muito menos da sua organiza o. n o pretend amos contribuir parao charme dos bandidos. foi-se o tempo para esse tipo de inoc ncia. mas tampouco quer amos nos deixar possuir pelo furor acusat rio que tem prevalecido nos meios

    de comunica o. a rea o, enfurecida, com as propostas de pena de morte, os esquadr es, as pol cias privadas, as invas es armadas dos bairros populares, a imagemdiabolizante do bandido padr o, tudo isso obscurece o problema. a rea o enfurecida n o solu o, parte do problema. o instituto de estudos da religi o (ser) decidiu h alguns anos interessar-se positivamente por esse mundo da marginalidade. partimos da preocupa o pelos direitoshumanos, herdada das lutas contra a repress o pol tica nos anos de ditadura, e chegamos a uma nova percep o, mais pr pria aos dias atuais. a democracia n o ser

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    confi vel enquanto o comum dos mortais tiver medo da lei. neste sentido, o preso comum mais fundamental do que o preso pol tico. o desafio maior est nos direitoshumanos para as pessoas comuns. o que se nota, no entanto, a deteriora o das rela es do sistema penal com a maioria pobreda popula o e o crescimento das margens desviantes sobre as estruturas normativas. n o pretendemos estar de posse das solu es, mas estamos convencidos de que este

    o problema a ser atacado. a organiza o do crime, de um lado, e as rea es enfurecidas, de outro, acirram os nimos da polariza o. colocam-nos na l gica do apartheid.contra essa tend ncia, estranha cultura brasileira, que situamos o trabalho do

    iser, dentro do qual este livro se insere. buscamos espa os de troca e de comunica oentre a norma e o desvio, na esperan a nem sempre v de que do di logo, como se diz, nas a a luz. as artes e a literatura s o dimens es privilegiadas para este tipode exerc cio.que personagem, ent o, este que comp e a autoria e o objeto deste livro? um tipo duro, com certeza, mas curiosamente pouco afeto a bravatas. como se n o precisasse

    delas. tampouco faz o g nero messi nico de um lampi o, nem passa a imagem de v tima inocente, alvo de uma sorte infeliz ou de um destino maior. n o nasceu t o pobreassim. n o se explica e, o que mais grave, n o se d a julgamento. por isso duro, mas n o maneira de algu m que pretenda estar acima de tudo e de todos. ao contr rio. faz quest o de mostrar que conhece as suas limita es. "n o sei quando nasci, nem quando morri", diz ele ao iniciar sua hist ria.o p blico acostumado ao romantismo do bandido-her i recebe uma surpresa. s o vinte e tantos anos de submundo penal, relatados em poucas palavras, quase semadjetivos.os fatos falam por si. a narrativa se desenvolve retil nea, contida pelas r deas curtas de uma consci ncia que n o se entrega. esta vida dura 14

    demais para o romance, e o autor-personagem n o sepermite deslizar para o sentimentalismo.al m dos fatos, h os valores: o respeito pr prio, a lealdade para com os companheiros, a den ncia das incongru ncias da ordem penal, o sentido da organiza o, aa o bem pensada. segundo o autor, a cria o do comando vermelho representou sobretudo uma mudan a de atitude e de comportamento. deixar de ser barata tonta e afirmar-secomo sujeito, senhor de direitos e poderes, mesmo no interior das execr veis pris es brasileiras. no entanto, depois de m ltiplas tentativas e de dolorosas puni es,quando enfim consegue escapar a primeira coisa que faz assaltar um banco! e

    volta pris o. o nico refresco que o livro nos d vem de uma rela o de amor. em poucas p ginas, com o mesmo pudor orgulhoso que caracteriza o livro inteiro, revela-se a esperan a

    em brasa de uma solu o. ela acredita nele o bastante para se dar e, sendo advogada, percebe ainda, e lhe promete, a possibilidade de uma sa da legal. no entanto,ela, a estagi ria de direitos humanos, que passa a viver na clandestinidade.

    entre fugas e processos, nem o agressor nem a defensora da lei conseguem escaparsmalhas do sistema. que sistema este?

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    em meio fantasmagoria da viol ncia, quatrocentos contra um tem algo positivo e diferente a nos di-15

    zer: apesar de tudo, poss vel n o perder a cabe a e a cren a no amor e no direito. sem demagogia, sem cascatas. parece uma cren a absurda, tal a desmoraliza oque o conceito da lei tem sofrido entre n s. mas sem a cren a n o h lei que se

    sustente. vem da , ameu ju zo, a import ncia deste livro. a transforma o do bandido em autor p e em palavras o dif cil e contradit rio desejo de justi a. rubem c sar fernandes

    as cadeias ser o seguras, limpas e bem arejadas, havendo diversas casas para a separa o dos r us, conforme suas circunst ncias e a natureza de seus crimes. incisoxxi, artigo 17 , constitui o imperial do brasil, 1824.

    coloco o ouvido no batente da cama de concreto e consigo escutar o reco-reco daserra que, no cub culo vizinho, corta o ferro da escada que fica fixa no beliche.estamos num anexo do pres dio milton dias moreira, no complexo da rua frei caneca,

    especialmente constru do h poucos anos para receber os presos pol ticos que aguardavamanistia. eles j foram, deixando vagos os lugares que agora s o nossos. a nova dire o do sistema insiste em nos manter isolados. somos 34 presos e apenas uma certeza:t o cedo n o sairemos daqui, pelo menos por vias legais. h mais de dez anos a maioria de n s roda como pe o pelas cadeias do rio de janeiro. fugir novamente, para n o apodrecer - o que resta. pela frente imposs vel. oito portas de ferro, grandes e pequenas, devidamente guardadas, nos separam daentradaprincipal do complexo, a centenas de metros daqui. no trajeto existem v rias reas descampadas, inclusive o campo de futebol, onde ser amos alvos f ceis para os guardas que passeiam na parte de cima dos muros, protegidos por telas e armados de

    metralhadoras. n o adianta serrar as grades das celas: cair amos no p tio interno,

    tamb m vigiado.ouvido na cama, reco-reco, reco-reco, reco-reco. um dia e meio j se foi nesse trabalho de artes o, feito devagarinho. d nervoso. n o vejo a hora de come ar a agir. mas a serra filha nica de m e solteira, n o pode quebrar. al m disso, preciso que tudo pare a normal na galeria, para n o chamar aten o: nem barulho, nem sil ncio excessivos; nem movimentos suspeitos, nem clima de cemit rio. tudo como sempre.acabou. nada se perde, nada se cria. principalmente na pris o, tudo se transforma. cortamos a escada pela metade e obtivemos um arremedo de picareta: quase doismetros de comprimento, cinco cent metros de largura de puro ferro. agora, m os obra: quebrar o cimento do piso, cavar um bom buraco, fazer mais ou menos quinze

    metros de t nel, passar por baixo do muro que d para o campo de futebol do manic mio judici rio e, finalmente, emergir. sabemos que muito dif cil. mais dif cil,por m, ficar por aqui. se tudo correr bem, passaremos o natal em algum lugar a que chamaremos casa. teremos um ano novo em alguma praia, agradecendo a iemanj .vale a pena. longos anos de pris o suprimem, em muitos, o desejo de ser livre. mas, em outros, aumenta a revolta e a vontade de reconquistar o que se perdeu.muito duro o piso do cub culo 14, o mais bem situado para servir de base

    opera o. imposs vel quebr -lo sem chamar a aten o do guarda que fica no p tio de tr s.precisamos procurar melhor ponto de partida. tum-tum. tum-tum. n o preciso ir

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    muito longe, isso Brasil. no 16 o material de segunda. brincadeira na galeria,

    algum barulho de risos e cantoria, palmas e assovios - e pronto: com leves batidaso ch o se desfaz. agora, n o pode haver retrocesso, nem erro. olhos fixos na terra remexida, ouvidos atentos para o que se passa em torno,pensamento em v o. 20

    assim, ali s, toda a exist ncia do preso. para os que vivem em liberdade, a vis o o sentido mais importante. para n s, a audi o: o molho de chaves que tilinta,

    a porta que range, o assovio do amigo, o pigarro combinado, vozes ao longe, passosnum corredor ao perceb -los e interpret -los rapidamente, ainda pode haver tempo para tomar provid ncias. quando o alarme vem pelos olhos sinal de que a coisa est feia: o preso s v quando foi visto primeiro. algu m achou uma base de enxada velha, devidamente recolocada em uso por meio de um cabo improvisado. de m o em m o, baldes e latas transportam terra mida at uma

    bacia na entrada do t nel, onde enchemos sacos de forro, arrumados depois sob as camas. o isolamento tem essa vantagem: os guardas entram menos na galeria ondeestamos.embaixo da terra, contornamos os alicerces do pr dio e seguimos lentamente

    procurando imaginar a correta dire o. o risco de desabamento pequeno: o teto do nossoprec rio t nel a pr pria camada de cimento do p tio da pris o. liberdade, liberdade, abre as asas sobre n s! mas c mo custa! h dias estamos aqui, sempre em sil ncio, interrompendo o trabalho nas horas do confere, das refei ese noite, de modo a manter a normalidade aparente. raramente ultrapassamos tr s horas de atividade continua. avan amos pouco, s cegas, cansados, sem ar. o esfor oenorme; as ferramentas, inadequadas. para piorar a situa o, cruzamos com um

    olho d' gua que passou a inundar nosso t nel. desde ent o, tr s escavam e os outrosenchem baldes, despejados no esgoto do cub culo l em cima.

    chegamos ao alicerce do muro. o ch o ficou duro demais - uma argila cheia de pedra e p de pedra, parecendo cimento. n o vamos conseguir. dois minutos sem retirar a gua da mina s o suficientes para tornar invi vel a perman ncia aqui embaixo. lama pura, imposs vel cavar. tudo escuro. preciso ter luz, pagando alto pre o: choquesel tricos, cada vez que as partes desencapadas do fio encostam na terra que nos envolve at a alma. paci ncia. agora, alguma coisa se v . n o vamos conseguir. estamos h dias no mesmo lugar. para um lado, para outro, esfor o in til. tentemos para baixo. mais. mais ainda. a terra dura tem que acabar,caralho, nem que seja no inferno. pronto. estamos dois metros mais baixos, maspodemos prosseguir. agora, mais dez metros em linha reta e estaremos no pontoprevisto

    para iniciar a subida. dois dias de trabalho, se nada de errado ocorrer.finalmente, chegamos tampa de concreto que cobre o local onde vamos emergir. ser preciso quebr la sem fazer muito barulho: estamos, ainda, nas cercanias do pres dio,em rea mantida sob permanente vigil ncia. esperamos a sirene tocar, damos uma porrada seca e somos felizes: j podemos ver um peda o de c u e respirar um ar frescoque revigora as esperan as. aguardaremos a noite fechada, para retirar com calma outros peda os de cimento e sair sem confronto com a guarda. mais uma refei o, mais um confere, mais uma espera de poucas horas, cheia de sonhos, e estaremosprontos para as despedidas.

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    - l fora, cada um por si. algum dia a gente se v . duas horas da madrugada, oito de novembro de 1983. come amos a sair do buraco, um a um, rastejan-22

    do na beira do muro, aproveitando os locais de maior escurid o. nossa esquerda, no p do morro de s o carlos, fica estacionada uma patrulha da pol cia militar, em posi o que lhe permite ampla vis o do descampado. n o podemos, portanto,

    simplesmente atravess -lo. rastejamos para a direita e para a esquerda, at atingirum local onde o muro mais baixo.diabos. cachorros e gansos do manic mio come am a fazer barulho. todos parados. o interno que cuida da horta acordou e saiu. somos for ados a domin -lo, exigindo que prenda os cachorros e retorne para casa. a patrulha n o nos percebeu, mas deve ter ficado alertada pelo alarido dos animais. cautela: cinq enta minutos agachados,aguardando tudo voltar ao normal. s ent o saem os demais do buraco, mas os gansos voltam a reagir. que vontade de torcer seus lindos pesco os! os pms ficaram claramenteinquietos, mas, novamente, nada puderam ver: estamos todos im veis no escuro. gemido, tombo, pis o em falso qualquer descuido ser fatal, jogando por terra um

    esfor otremendo. conseguiremos?de repente, algu m na retaguarda resolve subir em uma guarita desativada. n o tem a clara no o do perigo:- n o fa a isso, caralho! v mais para a esquerda, saia da vis o da pol cia! fique quieto, desgra ado!os avisos saem na forma de sussurro: ningu m pode gritar. s o, por isso, in teis. os pms da patrulha d o o alarme e come am a atirar. chegam refor os, deslocados a partir de um ponto-base nas proximidades. salve-se quem puder. cinco de n s conseguem correr at o morro de s o carlos, mas s o recapturados. 23

    os outros - inclusive eu - ficam encurralados na moradia daqueles malditos animaisbarulhentos. paulo da silva sai, com as m os na cabe a, para entregar-se, e cai, morto a tiros. h feridos. sirenes tocam, o cerco se fecha.ok, voc s venceram.caminhamos em fila indiana, carregando nossos feridos, at o p tio do manic mio, onde somos colocados de bru os no ch o. come a o espancamento. um baque seco minhaltima lembran a dessa triste madrugada. deitado de costas, n o vi o golpe desferido, e por isso sequer esbocei rea o de defesa. depois, s v mitos de sangue, tonteirase uma dor de cabe a infernal no hospital em que me depositaram. dizem-me que quase morri e s por milagre n o fiquei imprest vel. esta falta de equilibrio que sinto,

    bem como a labirintite cr nica que desde ent o me acompanha, devo consider -las males menores. dei sorte.a fuga frustrou-se, mas serviu para acabar com nosso isolamento naquele corredor.e agora? voltarei a gua santa, onde nelson morreu? bangu, onde cumpri minhaprimeira pena? ilha grande, de tantas lembran as? lemos de brito, milton dias moreira, h lio gomes - ali s, quem ter o sido esses infelizes personagens que viraramnome de pris o?de molho no hospital, retornou a id ia de escrever um livro, contando o que vi e vivi. velho projeto, tantas vezes iniciado e perdido em fragmentos - cr nicas, poesias,

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    documentos, pequenos registros - que se dispersaram e sumiram nas situa es mais diversas. hoje, quando parece ter chegado a hora, conto apenas com minha mem riae ainda vacilo: por que a24

    hist ria de um homem haver de interessar outros homens? voc s v o decidir se vale a pena. para isso, deixem que me apresente: william meu nome. parte de minha vida redundante - tenho uma profiss o, fam lia, filhos

    pequenos, desejos - e por isso n o merece ser contada. outra parte - os sonhos que n o sonhamos, talvez os mais verdadeiros - se passa naquelas regi es de nossa alma onde nenhuma palavra nunca pisou; desconhecida de todo, ou de quase todo, n o pode ser contada. resta pouco: explicar como e porque vivi at hoje, na maiorparte do tempo, sem nome, sem profiss o e sem ver minha fam lia, tendo na viol ncia a maneira de sobreviver entre os homens.vinte e tr s anos passei na cadeia, para onde n o quero voltar. como paulo da silva, fuzilado na fuga frustrada, quase todos os meus companheiros n o podem mais

    oferecer o seu testemunho, e o sil ncio a eles imposto talvez seja o que me mova com mais for a nessa dif cil empreitada. morreram todos ninha volta. um a um - sistematicamente, regularmente, implacavelmente - foram morrendo. de tiro, defome, de v cio. em cada vez, o mesmo pensamento, tardas vezes compartilhado:

    algu mprecisa contar. talvez o saldanha o fa a com mais paix o; nanai, com mais f . com mais humor, o mimoso; nelson, com mais talento; ach e ca , com mais gra a. alkmin o faria com mais cora o.mas todos morreram. quis o destino que me coubesse essa parte. mesmo foragido.25

    ando atento pelas ruas, olhando tudo. n o quero, nem posso, voltar, e o risco que corro o apenas necess rio para sobreviver. ando r pido, mas n o estou indiferente.vejo o menino que dorme seu sono pesado, fraqueza, sob a marquise de um belopr dio, coberto de jornais e de roupas rotas, molhado pelos pingos da chuva que cai.

    que vida lhe devam, irm o!que posso fazer? acord -lo? conversar com ele? dar-lhe trocados? incentiv -lo a n o se entregar, resistir, descobrir seu rumo pr prio? quando dou por mim, j seguiem frente: o fugitivo n o pode parar, nem envolver-se em situa es de que n o conhece o final. mas continuo vendo e, principalmente, pensando. vejo o senhor que

    passeia com seu c o - forte, bonito, bem nutrido, protegido da chuva - e contorna, sem lan ar um olhar, o min sculo corpo retorcido pela a o do frio. como o oper rioda m sica de chico buarque, o menino apenas atrapalha o tr nsito... sigo pensando como dif cil come ar a contar nossa pr pria vida. br s cubas n o sabia se iniciava suas mem rias pela cena de seu nascimento ou a de sua morte. a

    mim n o s o dadas tais op es: personagem real, n o morri e tampouco me recordo de como nasci. minha primeira lembran a, ironicamente, j envolve pol cia e justi a. fui gerado por um daquelesamores fadados ao erro: paraibana do interior, filha de ndia e de campon s, ainda adolescente minha m e fora mandada morar em recife, na casa da fam lia de meu futuro pai. primeiro filho, primeiro neto, primeiro sobrinho, ganhei o nome dewilliam em homenagem aos amigos americanos, que ent o combatiam na segunda guerramundial.26

    durou pouco o casamento de meus pais. separados, passei a ver minha m e em

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    visitas, por decis o da justi a. num belo domingo, levou-me para tomar sorvete e fugiucomigo para a casa de seu pai, cortador de cana numa usina pr xima cidade de escada. eis minha mais forte lembran a de inf ncia: meu pai, um tio, dois policiaisfardados e um homem estranho - creio hoje, oficial de justi a - apareceram por l , uns seis meses depois, e me levaram de volta para a casa dos av s paternos. n o devo ser amargo. .com meu av aprendi a andar com meus pr prios p s pela cidade.

    de minha av recebi aten o e carinho. gostava deles, mas estava com a cabe a confusae o cora o saudoso.meu pai foi tentar a sorte em s o paulo e se casou com uma mo a que conheceu na viagem. meu av morreu em seguida, deixando um vazio imenso e o pretexto necess riopara que meu pai solicitasse, por carta, que eu fosse ter com ele. viajamos - eu,minha av e uma irm de cria o. ambas ficaram no rio, em casa de outra tia, enquantoeu seguia em frente.foi dura essa nova separa o: sentia-me protegido na companhia da av e deslumbravam-me as luzes do rio, vistas pela primeira vez na noite em quedesembarcamos no

    cais. continuei a viagem a contragosto, pressentindo o engano. tinha raz o em meu senti-28

    mento de crian a: em s o paulo, seguiram-se confrontos com a mulher de meu pai; perda de um ano de estudos e, finalmente, um tumultuado retorno ao rio.27

    pilares foi o bairro carioca onde primeiro morei. avenida suburbana, aboli o, m ier, jogo de bola em inha ma - enfim, vida nova, logo consolidada pelo ingresso no instituto lac , onde iniciei o segundo ano prim rio. durou pouco. em fins do mesmo ano, meu pai me reclamou de volta, para nova tentativa. minha av tinha certeza

    de que n o daria certo, mas nada p de fazer. o fracasso n o demorou, e a partir dele fiquei sem um porto seguro: pai, m e e tias tinham, cada qual, suas vidas, seusproblemas, suas limita es. conclu o prim rio, mas, sem vaga em escola p blica, n o pude prosseguir os estudos. com 12 anos, era preciso come ar a ganhar meu pr priosustento, para n o depender de ningu m. meu primeiro emprego foi num laborat rio de pr tese, onde comecei fazendo entregas e pequenos servi os. aos poucos me inteirei do of cio e, fazendo as coisas com gosto, virei ajudante. compreendia ent o que cada um cuidava da pr pria vida e j n o depositava expectativas em grande ajuda do pai, motorista de nibus sempre s voltas com dinheiro de menos. nunca tivemos uma amizade de fato, e prova disso s o os 25 anos que n o o vejo.

    tratei de ganhar meu sustento, pagar minhas pr prias despesas, embora fosse menor. o centro de s o paulo me fascinava. muitas vezes dormi na pra a da s , assistindo ent o, em cada manh , como acorda a grande cidade, como se tensiona gradativamente, como cai esgotada depois que o sol se vai, como renasce na noite.29

    aos 15 anos j desejava trabalhar por conta pr pria, mas me faltava o capital inicial. tive ent o, pela primeira vez, a id ia de que poderia conseguir dinheiro roubando.empregado em um escrit rio de propriet rios de im veis, observei a rotina e arquitetei um plano minucioso, que envolvia dois c mplices, para roubar recibos de

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    pagamentosde alugu is e fazer em seguida as cobran as na rua - essa era a rotina -, antes que percebessem o desfalque. sa do emprego e detonei o plano, que obteve pleno xito,rendendo, para cada um, a fabulosa quantia de vinte mil cruzeiros, dos velhos.pude ent o, finalmente, comer num restaurante cuja vitrine de frangos sempre me fascinara.depois, comprei uma bola de futebol e um par de joelheiras para o time em que

    jogava, escondi o que restou e iniciei meu pr prio neg cio, revendendo, nas feiras,bibel s revestidos de pel cia. bons tempos, cheios de ilus o de independ ncia. independ ncia absoluta: forte desejo, que talvez me tenha reduzido, pela maior parte da vida, condi o de prisioneiro. 30

    com 17 anos de idade, ainda em s o paulo, fui preso pela primeira vez, por suspeita de furto. conduzido ao recolhimento provis rio de menores, na avenida celso garcia,passei quatro desesperados dias, at ser entregue ao meu pai, que assinou o termo de responsabilidade diante do juiz de menores. cessou a sua ajuda. mal a viaturaarrancou, eu tamb m arranquei de volta ao centro da cidade, minha verdadeira

    morada. no dia seguinte, confuso e com raiva, bati a carteira de um transeunte.de volta ao rio por conta pr pria, n o vi mais meu pai. em 1961, com 19 anos, fui condenado no rio, por roubo, a cinco anos, cumpridos na esmeraldino bandeira(bangu)e na lemos de brito (frei caneca), muito diferentes uma da outra. nessa poca, perdi minha av , o nico ponto de apoio com que poderia contar. ela n o chegou a mevisitar na cadeia. doente, mandou recado por uma prima: n o ag entaria. maus tratos e espancamentos faziam parte do diaa-dia em bangu, nivelandocarcereiros e massa carcer ria numa mesma mis ria moral. lembro-me de muitos conflitos,duas tentativas de fuga e, principalmente, de um estranho e temido inspetor quenos batia e chorava. era, por isso, conhecido em todo o pres dio como o bate

    chorando.depois de uma briga com ele, tive meu primeiro contato com as celas de castigo- as surdas - do sistema, muito parecidas entre si, como pude constatar nos anosseguintes. voc s sabem como s o? imaginam como, nelas, se vive? s o celas individuais, hermeticamente fechadas com portas de a o, onde tudo proibido e s se sobrevive por in rcia e teimosia. dependendo do humor do carcereiro,recebe-se ou n o um cal o, de todo in til para sua fun o natural. serve, por m, para tapar o buraco do boi - a instala o sanit ria feita no ch o, sem vaso -, garantindo dessa forma um sono menos importunado pela apari o das mais horrorosas de todas as criaturas noturnas que conosco dividem aqueles espa os sombrios: ratazanas.em bangu, as paredes, salpicadas de cimento at a altura da nuca, eram feitas de

    forma a tornar inc modo o prec rio ato de nelas encostar as costas cansadas. nas partes de cima, desde logo um detalhe chamava a aten o: centenas de pontos e riscos de sangue, finos e curtos. surpreendi-me. tinta? chegaria a esse extremo omaugosto dos construtores daquilo? n o. desta, eram inocentes. cada risco correspondia a um percevejo morto por usu rios anteriores. logo aprendi que matar esses insetosocupa ali boa parte do tempo, pois os pequenos buracos de ventila o, quase no teto, cumprem tamb m outra fun o menos nobre: trazem muito mosquito, c mplices do

    nosso castigo.

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    no in cio, nada pude comer. como a gua, s aparecia a cada 12 horas, mijo e merda se acumulavam no boi em quantidade suficiente para tirar qualquer apetite. ali s,n o h como descrever a incom vel comida, servida sem talheres em marmitas gordurosas. mas a necessidade se imp s. ocorreria o mesmo com qual-32

    quer pessoa, estou certo: desejos, sabores e h bitos s o como uma casca fina de verniz aplicada na superf cie do animal que trazemos dentro de n s. ver-se em

    espelho,fazer barba, ter apetite, discriminar cheiros e cores - tudo isso se vai por unstempos, substitu do por estrat gias mais adequadas. uma delas: manter a m o direitano alto, sempre bem lambida, para us -la apenas nas refei es, cabendo esquerda todas as outras tarefas. quest o de higiene.caminha-se muito na solit ria, onde deitar express o do mais absoluto cansa o. quando o corpo derrotado, o bra o desempenha miss o estrat gica, protegendo a cabe a e mantendo os pulm es um pouco afastados do ch o muito mido. quest o de sa de. nas primeiras noites, n o dormi, andando para l e para c , cantando para que o dia amanhecesse e chegasse logo o caf . se o plant o era feito por guarda sujeira, n o entrava nada al m de comida e a porrada estava sempre iminente. - tem mais que morrer, desgra ado, ou ent o ficar maluco de vez!

    n o faz mal: enquanto o pau vai e vem, as costas descansam. sinais de vida aparecem, chamando de volta a esperan a: um guarda limpeza entrega alguns p es, um companheiroenvia um precioso mata-mosquitos, surge um jornal que, depois de lido e relido,ser lido de novo e servir de colch o, cobertor, leque, arma de defesa contra os bichos e - supremo conforto - papel higi nico. n o se trata, apenas, de bem-estar material: esses gestos solid rios e completamente despojados, o mais das vezesfeitos por desconhecidos, trazem o reconhecimento de que ainda somos vistos33

    como uma pessoa. a vida pode seguir adiante. quando surge a prop cia ocasi o, h bitos e valores retomam, e nos sentimos humanos de novo. n o tarda o dia em que pensamos

    novamente no amor, e uma ponta de ci me da velha namorada mostra que, apesar de tudo, continuamos os mesmos. que bom.diferentes tipos de guarda nunca v o deixar de existir, n o s porque refletem a pr pria natureza humana, mas tamb m porque todos s o usados pela administra o, que precisa ter v rias faces. conforme a poca, predomina um ou outro estilo, j que o comando do sistema exerce um papel inibidor sobre os que n o se afinam comsua pol tica em cada momento. s vezes, h choque. s o conhecidas dezenas de hist rias em que carcereiros maus facilitaram fugas apenas para colocar na defensivadiretores liberais ou, at mesmo, derrub -los. em 1963, a viol ncia predominava na esmeraldino bandeira, uma cadeia de tranca dura, na qual s os presos integrados em alguma fun o podiam deixar as galerias, verdadeiros galp es com cerca de cinq enta homens cada. resolvi aprender um

    of cio. era uma maneira de, ao mesmo tempo, obter esse benef cio e combater o sentimentode que estava completamente deriva na vida. tornei-me aprendiz na alfaiataria de l , bem organizada sob o comando de um preso chamado jair ferreira santos, muitocompetente. uns trinta homens - todos presos - trabalhavam com m quinas de porte industrial, fabricando principalmente fardamento sob medida para os guardas. fuiaceito. conheci ent o jos Michel godoy, que j tinha n vel de oficial e me ensinou a costurar, modelar, cortar, chulear,34

    guarnecer, pregar bot o e todos os demais segredos da profiss o. com menos de um

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    m s, me apresentei, confiante, ao jair:- j sei fazer uma cal a. - toma este pano. se voc estragar, voc paga. levei o dobro do tempo de um profissional, mas n o tive que pagar nada. ao contr rio: passei a ser respons vel por uma das m quinas e, sem muita demora, comeceia treinar aprendizes mais novos que eu. um ano depois, quando sa de bangu, dominava o of cio, que se tornou parte da minha vida. tornei-me exce o, pois, de

    modogeral, as oportunidades de trabalho oferecidas ao preso s o simplesmente aviltantes: catam-se chapinhas de cerveja com defeito, separam-se bra os de bonecas e porassim afora.com a transfer ncia para a lemos de brito, fui aproveitado na alfaiataria, onde, al m de fardas para funcion rios, faz amos ternos para ju zes e desembargadores. estava agora na vitrine do sistema penal, um pres dio onde todos trabalhavam, tinham cub culos individuais e podiam participar de uma vida cultural incipiente. demanh cedo, abriam-se as galerias e as celas, e os presos seguiam para suas atividades.em 1964 come aram a chegar os primeiros presos pol ticos atingidos pelo golpe

    militar. de in cio, eram alguns militantes sindicais, mas o contingente logo engrossoucom a chegada dos participantes da rebeli o militar de bras lia, conhecida como revolta dos sargentos, movimento deflagrado antes do golpe para protestar contraa inelegibilidade dos sargentos para cargos eletivos. a eles, se juntaram depoisos in-35

    tegrantes da associa o dos marinheiros, liderada em 1964 pelo cabo anselmo, hoje desmascarado como agente provocador.presos comuns t m, no mundo inteiro, certa tradi o de ades o a movimentos revolucion rios. aqui no brasil, por exemplo, a massa carcer ria extraiu muitas li es

    do contato havido na d cada de 1930 com os membros da alian a nacional libertadora encarcerados na ilha grande. quando os presos pol ticos se beneficiaram da anistia

    que marcou o fim do estado novo, deixaram nas cadeias presos comuns politizados,questionadores das causas da delinq ncia e conhecedores dos ideais do socialismo.

    essas pessoas, por sua vez, de alguma forma permaneceram estudando e passando suasinforma es adiante. sua influ ncia n o foi desprez vel. na d cada de 1960 ainda se encontravam presos assim, que passavam de m o em m o, entre si, artigos e livros que falavam de revolu o. de vez em quando apareciam publica es do partido comunista,ent o na ilegalidade. lembro-me, por exemplo, do velho jo o batista, que, na rua, batia carteiras e, na pris o, ficava lendo e escrevendo pelos cantos do p tio,

    sempre disposto a orientar e ajudar os demais. lembro-me tamb m de mardoqueu, que desde a poca do estado novo freq entava a cadeia, onde alternava as atividades de encadernador de livros e divulgador de id ias de esquerda.havia pequenas bibliotecas dos pr prios presos, e os p tios serviam como locais de encontro para a troca de id ias. meu amigo vandinho me passou os sert es: - se voc quiser conhecer a hist ria do brasil, n o adianta ir escola. tem que ler euclides da cunha.36

    euclides para ser lido em voz alta, especialmente quando se est sozinho. aprendi com ele o valor das palavras e o ritmo da l ngua. fizemos um grupo de

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    poesiae declama o e, com alegria, recebemos mais livros, enviados por paschoal carlos magno, que nos incentivou o teatro. naquela poca os intelectuais se interessavampor coisas assim. li cadernos de bispos do nordeste, diversas cartilhas, jorgeamado, osny duarte pereira. adorei lima barreto.desde logo, por iniciativa do grupo de poesia dirigido por jos Brasil, decidimos n o levar nossa atividade teatral para o campo dram tico: - a situa o aqui j dram tica...

    come amos com uma com dia, passada num manic mio, onde os loucos interpretavam os pap is que desejavam para si. eu era um louco que escolhera viver um pistoleiroarrependido. fizemos muito sucesso.com os desdobramentos pol ticos do golpe, tudo se tornou mais tenso, mas n o a ponto de desarticular o trabalho, que prosseguiu quando fui solto, em 1965, emlivramentocondicional. na cabe a, muito idealismo e poesia; na pr tica, a necessidade de sobreviver sozinho, sendo um marginal.sa decidido a n o procurar a fam lia. levava uma carta de apresenta o de um preso pol tico a uma gr fica e editora onde havia gente de esquerda. consegui trabalhocom eles, mas n o me senti bem. fora contratado por favor, a empresa estava beira da fal ncia. a expectativa de desenvolver meu lado intelectual e pol tico

    frustrou-se.morando num quarto de pens o na rua francisco muratori, na lapa, acumulei decep es, transformadas em desespero quando a gr fica efetiva- 37

    mente fechou. para sobreviver, resolvi assaltar, voltando a trilhar o caminho queme levaria de novo - reincidente - pris o, com mais seis anos pela frente. novamente, bangu. rebelei-me de vez. dizia n o a qualquer pre o, e essa caracter stica - a que se denomina "periculosidade" - o sistema carcer rio n o perdoa. apanheimuito: "me bate, arrebenta meu corpo, mas n o mate minha vontade de ser gente".na frei caneca, prosseguia um trabalho cultural. os presos de l - velhos conhecidos meus - organizaram o i festival de m sica e poesia do sistema

    penitenci riodo estado da guanabara, que recebeu nada menos do que 169 trabalhos. envieipoemas, classificados entre os quarenta primeiros, que foram final diante de um j riformado por 12 intelectuais. participei do festival e, por press o dos companheiros, acabei transferido para a milton dias moreira, onde me tornariaencarregadoda alfaiataria. o vencedor foi andr Borges, que cumpria seu d cimo ano de pris o, mas teve for as para escrever: "enganam-se/os que me julgam vencido./no desterrodestas grades/forjo as armas do combate/da batalha do oprimido./crescem-me naalma/os germens dos proscritos/e irrompe do meu peito/um brado de revanche/emsurdosgritos:/eu n o fui vencido! /repouso no sepulcro sem nunca ter morrido./neste

    desterro/de grades guarnecido/onde s vezes brilham/luzes estelares,/dos livros sorvoo saber/e as li es de lutas milenares./ embora da derrota/a lan a sangre-me ainda o cora o/n o temerei novas batalhas/se empunho agora a arma da raz o. /regressareivida/onde me espera a luta,/no corpo/levo o execr vel estigma das grades,/

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    no cora o/uma esperan a nova,/na alma/uma paix o que arde/liberdade, liberdade!" entre os poemas, estava um de autoria do exsargento ant nio prestes de paula, ent o condenado a 16 anos de reclus o. o entrosamento j era grande e 1968 batia

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    sportas. repercutiam fortemente na pris o os movimentos de massa contra a ditadura, e chegavam not cias da prepara o da luta armada. agora, che guevara e regis debrayeram lidos. n o tardaram contatos com esses grupos guerrilheiros em vias de cria o.em 26 de maio de 1969, a fuga, que obteve grande repercuss o. "penitenci ria assaltada, grupo armado ajudou fuga de presos" era a manchete de o globo no dia

    seguinte,cuja reportagem dizia:o ataque armado Penitenci ria foi r pido e o tiroteio irrompeu ao primeiro sinal de rea o contra o grupo que sa a de tr s carros estacionados a pouca dist ncia da pris o. ao final dos tiros, que colheram de surpresaa guarda da cadeia, nove prisioneiros haviam escapado, levados pelo grupo armado... foi o mais audacioso plano de fuga j executado contra uma cadeia no brasil.at a , fatos. depois, como sempre, o del rio: segundo o globo, estava montada na lemos de brito a "c lula comunista encoura ado potemkim". logo depois, os presos pol ticos que estavam no continente foram transferidos para uma galeria da ilha grande, isolados dos demais. foi, para todos, um choque. euconvivia diretamente com cerca de cinq enta deles, a maioria marinheiros, muito

    integrados coletividade, h beis no artesanato, nos esportes e nas ar- 39

    tes. a transfer ncia desses companheiros para a ilha grande modificou nossa rotina. pouco pod amos fazer, mas fizemos, pelo menos simbolicamente: reorganizamos elevamos vit ria o 25 de mar o, time de futebol que lembrava a data do levante que trouxera os marinheiros pris o. como desdobramento natural do nosso trabalho, surgiu a id ia de fazer um jornal, o nossa voz, a princ pio apoiado pelo grupo esp rita que nos visitava e depois pelas

    pr prias autoridades. o ent o secret rio estadual de justi a, dr. cotrin neto, chegou a propor que a publica o alcan asse todos os pres dios, id ia que

    consideramosbem-vinda. mas a lua-de-mel acabou no segundo n mero, quando come amos a dizer tudo o que gostar amos. ca ramos numa armadilha. minha puni o pela ousadia: ilha grande - o lugar onde (conforme diz a tradi o) o filho chora e a m e n o v . fim- de-linha do sistema, caminho sem volta. ningu m passa impune por l . 40

    nada mais revoltante do que uma puni o injusta ou gratuita. em 1971, minha liberdade era quest o de poucos meses. por que devia ser enviado para aquele fim de mundo,sem ter feito nada demais? aprendi a nunca mais confiar no sistema. n o sentia propriamente medo. com 28 anos de idade e dez de cadeia, j estava entrosado com a

    massa. essa n o era, no entanto, a situa o de muitos dos quarenta presos que, algemados entre si, lotavam o cora o-de-m e que partiu de bangu. todos procuravam

    no olhar alheio, na postura dos guardas, na movimenta o geral - um sinal do que estaria por vir. logo percebi que o rapaz ao meu lado iria sofrer: garoto novo -diziase - j chegava na ilha casado.em cambur o superlotado, pessoas e coisas se acomodam como podem, segundo as leis universais da f sica - acelera o e in rcia, principalmente - e o estado de esp ritodo motorista. curvas e freadas contribuem para a arruma o poss vel, sujeita por horas a fio aos sacolejos naturais de qualquer viagem. pouco ar e, pelas frestas,

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    luzes da cidade, peda os de transeuntes, corpos imaginados, imagens fugidias que nos recordam a vida em liberdade. buzinas soam, e tudo parece novo. n o fosse umasimples chapa de ferro, estar amos imersos na vida.lev vamos nossos pertences em sacos, mas para mim isso n o era problema. provis rio no mundo,semprei carreguei pouca coisa: dinheiro mi do, uma cal a, um cal o, pasta e escova de dentes, sabonete e cigarros era tudo o que eu tinha. leve de bagagem,pude

    apressar o passo no transbordo, de modo a ultrapassar sem maiores problemas ocorredor polon s que, no porto de itacuru , precedia ao embarque no por o fedorentode um barco. era praxe.frestas. por elas, continuamos a nos revezar para ver um pouco do mundo, agoratotalmente azul e um pouco enjoativo. foi nessa condi o que, depois de navegar bastante,avistei o para so: montanhas altas e recortadas, enseadas tranq ilas e hospitaleiras. nosso barco recebeu o abra o de uma ba a e, ao longe, apareceu um povoado;logo se p de descortinar uma pequena igreja, um velho cais para embarca es menores, ru nas de um pres dio desativado e algumas casas. frente, um cais de maior

    porte, casinhas pequenas e uma constru o de cor azul, que parecia um grande galp o. logo descobri que era usado alternadamente como clube e como local de revistapara os que chegavam em dire o ao pres dio novo. h muito tempo o destino do belo lugar esteve associado ao sofrimento dos homens. faziam-se ali, clandestinamente, desembarques de escravos, mesmo depois daaboli odo tr fico. em 1880, temendo o cont gio de uma epidemia de c lera em curso na europa, o governo brasileiro iniciou na ilha a constru o de instala es capazes demanter, em quarentena, at 1.500 homens. em 1892, no in cio da rep blica, tornou- se necess rio segregar portadores de outro tipo de c lera, ainda mais assustador para nossa classe dominante: para l foram enviados os sobreviventes da glorio-

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    sa revolta da armada, feitos prisioneiros. em 1903, formalizou-se no lugar aexist ncia de uma col nia correcional, mais tarde - em pleno estado novo - denominadac ndido mendes.o desembarque na vila do abra o era acompanhado pelo segundo corredor polon s: ningu m escapava da pancadaria antes de subir na carroceria do caminh o que, em duashoras de viagem por estradas de barro, cruzaria toda a ilha e nos despejaria nopres dio, ainda algemados. ao, finalmente, chegar, depois de todo um dia de viagem,n o pude deixar de pensar no contraste entre aquele lugar escondido, de frente

    para o oceano aberto, e o complexo da frei caneca, excessivamente vis vel, com seusmuros altos bem no centro do rio.- um-sete-quatro-quatro-quatro-cinco.- william.estava feito o primeiro confere, que servia como senha de entrada numa comunidadefechada, dividida e imersa em hostilidades havia v rias gera es. a ilha n o puni o apenas para presos. para l v o os guardas considerados problem ticos pelo pr prio sistema. al m destes, h filhos e netos de guardas mais antigos, que se fixaram por l em outras pocas, criando ra zes. aprenderam, desde cedo, o of cio dos pais, e cresceram imersos na peculiar cultura local. muitos sequer conheciam

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    o rio. que podiam pensar da vida? como podiam entender aquelas levas de pessoasestranhas, vindas de longe, j na condi o de prisioneiros? passados os muros, nosso caminh o manobrou em um p tio e encostou em um sobrado de dois andares, anexo a um grande pr dio de tr s pavimentos, todo marcado por rachadurase infiltra es. teve in cio novo 43

    confere, nova revista geral e o preenchimento de fichas de entrada. tornou-sepat tico o contraste entre o nervosismo dos rec m-chegados e as atitudes perfeitamenterotineiras dos funcion rios administrativos. passada a porrada, tratam os presos de forma completamente opaca, como se por tr s de cada rosto existisse apenas umn mero de matr cula e um prontu rio, e n o uma hist ria de vida. de vez em quando, um pequeno coment rio:- assaltante, hem?somos, simplesmente, assaltantes. ou estelionat rios. ou homicidas. entre os direitos que perdemos se encontra o de sermos conhecidos pela totalidade dasnossasa es, boas e m s, como qualquer ser humano. o ato criminoso - o nico devidamente divulgado e reproduzido nas fichas - define tudo o que somos, resumindo, de forma

    m gica, passado, presente e futuro. h gente que acredita nisso. desarticular a personalidade do preso o primeiro - e, talvez, o mais importante - papel do sistema. espancados, compulsoriamente banhados, assustados e numerados,

    est vamos prontos. fomos ent o conhecer o refeit rio - sujo, lodoso, infecto - a caminho do espera, uma cela coletiva no terceiro andar do pres dio, onde cada umaguarda para ser distribu do pelas alas e galerias, quase todas coletivas. o ambiente era paran ico, dominado por desconfian a e medo, n o apenas da viol ncia dosguardas, mas tamb m da a o das quadrilhas formadas por presos para roubar, estuprar e matar seus companheiros.piores que os guardas, esses presos violentos eram ali colocados,estrategicamente, por uma administra-

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    o que tinha todo interesse em cultivar o terror. ningu m dormia no espera, pois a qualquer momento o infort nio poderia chegar. quem n o se dispunha a brigar, n o sobrevivia com integridade. tive meu primeiro conflito quando quiseram estuprar o rapaz que viera algemado comigo. os autores da fa anha eram dois sujeitos que,nas andan as pelo sistema, eu j vira ajoelhados e humilhados, pedindo perd o Pol cia. gostavam dos mais fracos, os pulhas.o ambiente nas galerias n o era muito diferente. os presos ainda formavam uma massa amorfa, dividida por quadrilhas rivais. matava-se com freq ncia, por rivalidadesinternas, por diferen as trazidas da rua ou por encomenda da pr pria pol cia, que

    explorava de forma escravagista o trabalho obrigat rio e gratuito. dentro dos muros,havia serraria, sapataria, lavanderia, ferraria e colchoaria; fora, nas cercanias,horta, olaria, lenha, viga, est bulo, oficina de pesca e britador. alguns presosainda faziam trabalhos dom sticos nas casas dos guardas, que estavam sempre prontos a exibir rev lveres e porretes, cheios de ironia. a cada tentativa de fuga, omesmo coment rio.- o preso foge,mas o tubar o come...jogavam, na nossa frente, uns para os outros, o tubar o - um peda o de pau -

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    anunciando assim a morte de mais um companheiro, enterrado informalmente em algumapartedaquela imensa ilha. os fugitivos que, por alguma raz o, escapassem desse destino, tinham pela frente uma lenta morte anunciada, pois a puni o pela ousadia eraum longo per odo - s vezes, tr s anos - no isolamento. n o se passa impunemente por experi ncias assim.45

    mas o maior inimigo da massa da ilha grande era, na poca, ela mesma, que estava dividida e dominada pelo terror. eram presos os que cortavam madeira no mato epreparavamos porretes usados pelos policiais. fabricando caix es, aprendia-se o of cio de marceneiro. era vis vel um cemit rio nos fundos do pr prio pres dio. os laudos cadav ricoseu soube depois - eram assinados por um antigo refugiado nazista que aliencontrara acolhida.dessa primeira vez, fiquei l poucos meses. n o suspeitava, ent o, que, anos depois, da resist ncia a essa situa o, come aria a nascer na ilha grande um novo estadode esp rito entre a massa carcer ria. tamb m n o suspeitava do massacre que atingiria meus melhores amigos, nem da boa surpresa que mudaria minha vida. quando

    retorneiao continente, pensava apenas na liberdade, que no entanto n o veio. sem saber, estava condenado revelia pela justi a de s o paulo. a casa de deten o me esperava.46

    depois de conhecer o espera da deten o, t o pavoroso quanto o da ilha, fui colocado com mais uns trinta homens numa cela feita para cinco, em cuja larguran o cabiauma pessoa esticada. era uma coisa de louco, todo o mundo espremido. se voc n o tivesse conhecimento na massa, ficava padecendo por l . os presos mais fortes vendiampessoas para pederastia, e os guardas vendiam lugares em xadrezes melhores, na

    pr pria deten o. na falta de dinheiro vivo, cigarro era a moeda circulante. fiqueil um ano e oito meses, trabalhando novamente em alfaiataria. finalmente livre, voltei para o rio.embora j tivesse consci ncia da situa o pol tica do pa s, n o pensava em me ligar a nenhuma organiza o revolucion ria. tampouco me interessava acumular propriedades:o neg cio era viver melhor, enquanto fosse poss vel. bater carteiras na rua, fazer pequenos furtos, assaltar transeuntes - isso nunca mais. sa da pris o resolvido a buscar nos bancos, a m o armada, os recursos que n o tinha e que n o obteria por meio de trabalho comum, meramente escravizante. havia riscos, claro, mas medispunha a enfrent -los. a pris o me profissionalizara no crime. com quase trinta anos de vida e mais de dez na cadeia, n o via como voltar atr s.

    n o tardei a ser preso de novo, na fuga de uma a o. ironia: enviaram-me para o doi-codi, organismo do ex rcito encarregado da repress o pol tica, na rua bar o de

    mesquita, onde fui torturado - choques, pau-de-arara - para confessar a queorganiza o pol tica pertencia. quatro dias levaram para se convencer de que eu n o erasubversivo.- sou da organiza o da fuma a. quando isso ocorreu, fui para o dops, todo inchado, com duas costelas quebradas.lei de seguran a nacional. cheguei noite no velho pr dio da rua da rela o e fui

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    colocado no conhecido rat o, um conjunto de pequenas celas individuais, revestidas de chapas de a o, situadas no fundo da carceragem e reservadas aos incomunic veis.

    na manh seguinte, escutei passos e logo um rosto muito branco, com cabelos lisos, se mostrou na portinhola, falando de forma amiga:- se precisar de alguma coisa, s chamar. ficamos amigos e, nos tr s meses seguintes em que l permaneci, tivemos longas conversas. chamava-se janu rio pinto de almeida oliveira - janu - e sua hist ria

    impressionantemerece aten o.janu e seu irm o ant nio marcos haviam sido criados para ser padres, mas desistiram desse destino em 1965, ao completarem o gin sio no semin rio arquidiocesano s ojos . ingressaram na juventude estudantil cat lica e, em 1967, come aram a participar do movimento estudantil que ent o se reorganizava. em fins de 1969, ficou presodois meses, acusado de pertencer Vanguarda armada revolucion ria palmares (var- palmares). novamente em liberdade, sempre em companhia do irm o, passou a viverna48

    semiclandestinidade e conseguiu abrigo numa igreja em oswaldo cruz, sub rbio do rio, onde se integrou ao grupo de jovens que ali atuava. n o tardou nova pris o, com invas o de resid ncias e da pr pria igreja onde se reuniam. em mar o de 1972, um duro golpe: numa casa na avenida suburbana, usada para reuni es do grupo, ant nio marcos foi morto por agentes do doi-codi. janu ficou transtornado.um m s depois, outro golpe: sua irm foi presa e barbaramente torturada. janu permaneceu em liberdade at fevereiro do ano seguinte, quando tamb m foi preso, experimentandoo tratamento ent o dispensado a todos. agora estava ali, no dops, como sempre solid rio com os outros.no in cio de 1975, eu fui transferido para o pres dio h lio gomes (o conhecido pp) e janu retornou liberdade. manteve-se em contato comigo: casou, teve duas

    filhas,chegou a ser subgerente de uma firma distribuidora de cosm ticos, mas n o perdeu o sentido da luta. apoiou deputados progressistas do ent o mdb, integrou-se Associa ode moradores de senador camar , tornou-se - por op o - trocador de nibus. voltou a ser preso em 1981, num carro roubado. condenado a tr s anos e quatro meses,esteve em gua santa, onde redigiu documentos de den ncia sobre as condi es carcer rias. um deles se salvou e chegou at mim: as celas est o superlotadas. em cada xadrez moram, em m dia, trinta homens. as ralas espumas com que forramos o ch o, al m de estarem impregnadas de insetos daninhos,n o s o suficientes para todos. na maioria dos casos, dormem dois homens em cada espuma. para mantermos a higiene somos obrigados a comprar desinfetan-

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    tes e sab o com o nosso pr prio dinheiro, pois nada disso a casa concede. improvisamos panos para a faxina com peda os dos cobertores. a gua s aberta tr s vezesao dia, 15 minutos por vez. permanecemos trancados 24 horas por dia. n o permitido nenhum tipo de comunica o de um xadrez para outro, por mais necess ria queseja. a casa n o d nenhum tipo de ocupa o. se procuramos fazer algum tipo de trabalho de artesanato, pagamos pre os absurdos pelo material, comprado aqui na cantina.

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    estamos em gua santa como se estiv ssemos sepultados vivos. ali s, os que se encontram na galeria a (a mais numerosa) est o literalmente sepultados vivos, j queessa galeria subterr nea ... estamos cansados de assistir cenas em que um companheiro retirado sob espancamento para ser levado inspetoria, onde ser submetidoa mais viol ncia. pelo menor motivo, ou at sem motivo, estamos sujeitos a agress es. basta, por exemplo, uma palavra em voz baixa pronunciada num momento em

    queeles exigem sil ncio. a nica preocupa o deles, no momento, parece ser n o deixar marcas muito reveladoras...em outubro de 1982, j em pris o-albergue, resolveu n o se reapresentar, ficando foragido da justi a. n o conhe o em detalhes a hist ria de janu nessa fase. mas, por testemunho de sua companheira, sei que, na madrugada de 11 de fevereirode 1983, foi preso, degolado e deixado morto nos matagais de s o gon alo, tendo sido enterrado como indigente no cemit rio de pacheco, em niter i. deixou inconcluso um pequeno romance que come ara a escrever.eu estava ent o numa cela da galeria d do pres dio h lio gomes, uma esp cie de centro de triagem de grandes dimens es. apesar de ser dentro do complexo da frei caneca,o pr dio do pp n o fora projetado para servir de pris o. n o sei por que, os

    quatro50

    andares foram adaptados para isso, criando-se celas coletivas que pareciam cofres:portas inteiri as de a o com pequenas vigias que s serviam de fora para dentro, janelas pequenas e altas. nada se via l fora. no ch o, apenas estrados de madeira. onde caberiam dez, moravam quarenta, sem gua na cela: uma vez por dia, receb amoslatas de vinte litros, para todos os usos.por ser um local de tr nsito, o pp sempre teve mais viol ncia: misturavam-se ali pessoas com os mais diversos passados e perspectivas mais diversas ainda,dificultandoao extremo que se criasse uma consci ncia coletiva. pistoleiros de aluguel podiam

    dividir a cela com um preso prim rio. na minha poca, chegou a ter pol cia mineira:preso que batia em preso a mando dos guardas, que n o queriam sujar as m os ou se cansar. isso me enojava. eu passava meu tempo roendo a raiva e fazendo, a l pis,malditas palavras cruzadas, cujo estoque n o podia renovar. fazia e apagava, para recome ar a fazer.desejava, claro, fugir. juntei-me com um rapaz chamado heleno e preparamos uma fuga pelo teto (est vamos no ltimo andar). era preciso conseguir serra, talhadeirae marreta, mas isso se resolvia com o dinheiro que t nhamos. fizemos a encomenda e, depois, chamamos o xerife da cela. medrou e foi destitu do do cargo. era inevit velque todos os companheiros tomassem conhecimento da nova atividade. conversamos com

    um por um:- ningu m se comunica. na hora, vai quem quiser. qualquer vacila o, morte certa. o plano: furar a parede, passar para o corredor, atingir a gaiola onde ficavam osguardas do andar, ar-51

    rebentar o cadeado e subir. uma vez no telhado, procurar o caminho. come amos o tal buraco, tomando o cuidado de preparar com anteced ncia um quadro que o esconderia.com tr s horas de trabalho por dia, em cinco dias terminamos. tudo deu certo. sa mos. escondidos num v o, esperamos a troca de guarda. a noite ia alta quando um

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    companheiro pediu que o pol cia se aproximasse da cela. foi dominado, conforme o previsto. com rapidez, invadimos o alojamento e aprisionamos mais dois.arrebentamosem seguida o cadeado e subimos em dire o ao s t o. a , nada certo. al m de tr s cadeados, a porta de cima tinha uma engrenagem especial, cuja chave - disseram osguardas - estava na seguran a.- vamos sair pela porta da frente.heleno vestiu uma farda e, com esse estratagema, usado sucessivamente em cada

    andar do pres dio, conseguimos atingir a galeria a, perto da ltima porta. merda. talvezalertado por algum barulho estranho, o plantonista de baixo n o confiou na simples aproxima o de heleno fardado:- quem voc ? alarme. tentamos, sem sucesso, arrombar os cadeados, mas chegaram refor os logo. era preciso recuar. para evitar uma invas o imediata, tocamos fogo na galeria econduzimos nove guardas, como ref ns, para o ltimo andar, onde passamos a negociar nossas vidas. se nos rend ssemos em plena madrugada, n o sobraria ningu m paracontar essa hist ria. tr s horas de agonia, com centenas de policiais volta. amea vamos com bombas (que n o t nhamos), mas n o pudemos resistir. come ou a fulminante

    invas o. ferido52

    a tiro na m o, semidesacordado de paulada, enrolado num cobertor, fiz minha primeira entrada no hospital do sistema penitenci rio.noventa dias depois, novamente ilha grande.53

    o que o hospital consertou, a escolta voltou a quebrar, apenas para manter a velhapraxe. cheguei na ilha e, mo do de pau, fui levado direto para o lado b da segundagaleria. era a mesma que, anos antes, recebera os marinheiros e outros presospol ticos da velha gera o, depois da fuga da lemos de brito. gradativamente libertados,

    a partir de 1971 foram substitu dos pelo grupo ao qual me integrei. assalt ramos bancos, mas sem vincula o com as organiza es armadas, que faziam o mesmo num contextode luta contra o regime de exce o. mesmo assim, para preservar o que os juristas chamam de isonomia - mesmo tratamento jur dico para os mesmos crimes -, est vamos entregues a foros militares e submetidos a todos os rigores da lei de seguran a nacional, instrumento de clara inspira o pol tica. essa ambig idade tornou-se nossamarca registrada, inclusive do ponto de vista subjetivo. hoje, vejo que elacontribu ra fortemente para que o grupo tivesse um tr gico destino. nossa marca objetiva era a situa o de isolamento. depois de permanecer algum tempo em quart is militares, a maioria dos presos oriundos das organiza es armadas

    dos anos 70 tamb m tinha regressado Ilha grande. alegando incompatibilidade de h bitos e de ideologias, eles pediram que a galeria fosse di-54

    vidida, o que foi feito, cabendo a n s a parte conhecida como fund o. eram vinte cub culos individuais, ocupados por m por quatro ou cinco pessoas, em regime de tranca dura, com direito de circula o pela galeria apenas nos instantes que antecediam o caf da manh e o almo o, servidos em grandes panelas. abertos os cub culos,faz amos filas para encher nossos pratos com a combina o quase invari vel: feij o-com-arroz e carnecom-batata. al m desses parcos minutos, meia hora de banho

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    desol e curtas visitas quinzenais era o tempo dispon vel fora das celas. quase noventa homens assim permaneciam, isolados duplamente - da comunidade em geral edosdemais presos - e com identidade social e jur dica pouco definida: apesar de submetidos a tribunais de exce o e combatidos pela m quina repressiva do regime, n oramos considerados presos pol ticos.

    os companheiros com quem passei a dividir a morada me receberam muito bem,preparando-me ch s e infus es para aliviar minhas dores. havia forte tens o no ar. o isolamentode todo o grupo era angustiante, mas, mesmo assim - ou por causa disso -,iniciava-se um processo de luta. as portas dos cub culos eram de madeira grossa, pintadasde marrom e trancadas por fora. por cima delas, muito mais altas do que umapessoa, pequenas aberturas gradeadas garantiam a circula o de ar, dando para o pr priocorredor. por ali, um rosto mulato apareceu e sussurrou com pressa:- eu sou o nelson. quero falar com voc . cabe a, cabe a, n o se teleguie. disse essa ltima frase com o dedo apontado para a pr pria testa, indicando que eu deveria pensar, e sumiu. n o entendi o recado, nem tive tempo de responder.

    56

    logo descobri que nelson nogueira dos santos era um preso singular: tinha cerca detrinta anos de idade, lia muito, falava mais, gostava de m sica cl ssica. exercia uma clara lideran a intelectual sobre os outros. era ele quem redigia os documentos, incentivava os grupos de estudo, fazia um acirrado trabalho deconscientiza o.no primeiro banho de sol, pudemos conversar longamente. ele discorreu sobre asdificuldades do fund o e a necessidade de organizar os companheiros, superando diferen astrazidas da rua, estabelecendo um modo de vida que permitisse liberar nossasenergias para o confronto com a repress o e a luta pela liberdade. temia que eu desse

    for a para os mais renitentes a essa organiza o, que diziam ser meus amigos. - precisamos de pessoas que nos ajudem.concordei plenamente e assumi o compromisso de apoiar o esfor o para manter a unidade e evitar qualquer manifesta o de individualismo. um grupo mais esclarecidofuncionava como organizador do coletivo e havia uma comiss o encarregada de negociar, em nome de todos, com a administra o. na divis o dos cub culos, procurava-secolocar juntos companheiros que tinham e que n o tinham visita, de modo a garantir que todos tivessem acesso a uma cobertura de fora, geralmente refor o alimentarou material de higiene. nas freq entes reuni es discutiam-se problemas internos e problemas gerais, incluindo-se a sess es de leitura coletiva. a hist ria da riqueza

    do homem e vietn : a guerrilha vista por dentro eram dois dos livros que t nhamos l . grupos pequenos conseguiam encontrar-se da seguinte maneira: na hora de pegaro caf ,57

    quando os cub culos eram abertos, os companheiros que fossem participar de uma mesma reuni o manobravam na fila e entravam todos num mesmo cub culo, previamente combinado, onde permaneciam trancados at o almo o, quando as portas novamente se abriam.a unidade, no entanto, j n o ultrapassava mais o port o de ferro que nos separava dos integrantes das organiza es armadas: eles n o se misturavam, rompendo assim,

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    talvez sem saber, uma velha tradi o das cadeias, em que revolucion rios e presos comuns, ao compartilharem o mesmo ch o e o mesmo p o, cresciam juntos num mesmo ideal. tinham suas raz es, mas n o ramos obrigados a aceit -las. para esvaziar a luta pela anistia, a ditadura negava a exist ncia de presos pol ticos no pa s. nesse contexto, interessados em garantir sua visibilidade para a opini op blica nacional e internacional, os membros das organiza es armadas dos anos 70 lutavam para isolar-se da massa, comportamento considerado elitista por n s. seu

    discurso era coerente, mas fr gil: a exist ncia ou n o de presos pol ticos no brasil n o seria uma quest o decidida pelo fato de eles estarem isolados, mas pela

    for a do movimento de oposi o ditadura. o desejo de isolamento indicava, entre eles, a hegemonia da classe m dia, cujos espa os de reintegra o no sistema voltavama se abrir, no contexto da pol tica de distens o do regime. n s n o t nhamos essa perspectiva, nem nos seria dada essa chance. nosso caminho s podia ser o oposto:a integra o na massa carcer ria e a luta pela liberdade, contando com nossos pr prios meios.58

    nelson, ricardo duram de ara jo, apolin rio de souza (nanai), paulo nunes filho

    (fl vio), s rgio t lio ach , carmelindo lima rodrigues (baianinho) e outros companheirospediram que eu fizesse nova tentativa de aproxima o, mas n o tive xito. terminara o per odo de coopera o entre os dois coletivos. "existem trinta presos pol ticosna ilha grande", escreviam em seus documentos. "somos noventa presos prolet rios", respond amos, com uma ponta de m goa e provoca o. ramos testemunhas de que gera esanteriores de ativistas pol ticos tinham feito quest o de conviver com a massa, da qual sentiam-se parte e pela qual desejavam zelar. dessa vez, as condi es eramainda mais favor veis: t nhamos a experi ncia de outros contatos, est vamos organizados, desej vamos ampliar nossa pequena biblioteca, quer amos aprender. mas eles

    n o perceberam - ou n o quiseram perceber - a oportunidade de conviv ncia. participei do grupo de coordena o interna do fund o e, posteriormente, da comiss o de contato com a administra o, escolhidas sempre entre as pessoas mais popularesde todas as quadrilhas, bem como de todas as comunidades, l representadas. est vamos em 1974, e nossas principais lutas eram contra os espancamentos, pela aberturados cub culos ao longo dos dias (com a conseq ente permiss o de tr nsito dentro da galeria) e pelo respeito aos nossos visitantes. estes estavam submetidos a umverdadeiro massacre: sem permiss o para pernoite na pr pria ilha grande, faziam uma estafante viagem de ida e volta num mesmo dia e estavam sujeitos a todo tipode humilha es. assim, nossas fam lias tamb m cumpriam pena. de- 59

    pend amos delas, inclusive, para complementa o alimentar, pois a comida no pres dio era intrag vel. at hoje, forte entre os presos a desconfian a de que partedo or amento destinado ao sistema fica nas m os de quadrilhas de carcereiros profissionais, que desviam alimentos e compram produtos de muito baixa qualidade,agindoem acordo com certos fornecedores.conseguimos uma unidade praticamente total, e a disposi o de luta era grande. a medida de n mero um - que representava uma verdadeira revolu o cultural na cadeia

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    - era a proibi o de qualquer ato de viol ncia de preso contra preso. as incompatibilidades pessoais deveriam ser deixadas de lado, para serem resolvidasna rua,pois era preciso criar, entre n s um ambiente tranq ilo, que nos fortalecesse diante da repress o. assalto, estupro ou qualquer forma de atentado estavam banidos.uso de armas, s para fugir, se surgisse ocasi o. ou melhor: se consegu ssemos fazer a ocasi o. viv amos procurando uma sa da, tentando escapar de qualquer

    jeito.nem animais suportariam passivamente aquele cativeiro cruel, em que tudo nos eradificultado. nossas den ncias e reivindica es, por v rias vezes encaminhadas justi a, definitivamente n o eram levadas em conta. o sofrimento fortaleceu nosso desejo de fuga. a primeira oportunidade foisingular. paulinho chegou do juiz com a boa not cia: fora absolvido, faltava apenas esperaro alvar . a rigor, n o deveriam t -lo trazido de volta: poderia esperar a liberdade no h lio comes. mas o fizeram, e nanai logo pensou que poder amos tirar proveitodesse erro:60

    - se um vai embora, por que n o tentarmos dois? a id ia era simples: alvar s n o trazem fotografias, e, em geral, os guardas n o nos conheciam pelos nomes. que tal?conversamos com paulinho:- nossa lei ajudar um ao outro. de qualquer forma voc vai sair, pois foi absolvido. deixe o j lio se apresentar em seu lugar. ele est cheio de cadeia... - tudo certo.al m de condenado a dezenas de anos, j lio c sar ach foi escolhido por ser parecido com paulo. nosso barbeiro providenciou um corte de cabelo que aumentassea semelhan a.depois, o falso absolvido estudou os dados do outro - pais, anivers rio, n mero de registro - e ficamos esperando. o dia seguinte nem tinha amanhecido quando umguarda chamou paulinho na grade. j lio se apresentou, disse em voz alta os dados e

    saiu, sob intensa, por m contida, torcida de todos n s. o massacre a que est vamos

    submetidos tornava ainda mais saboroso o gosto de vingan a que o estratagema trazia.vinte e quatro horas depois paulinho bateu desesperado na porta, chamando o guardade plant o:- quero ir embora! quero ir embora!- est maluco, rapaz? ir embora a troco de qu ? - meu alvar j chegou! - como teu nome?- paulo de tal.-esse cara saiu ontem.- n o. o j lio me deu um ch e eu dormi at agora. ele n o est mais aqui. foi no

    meu lugar!tr s dias depois, paulinho deixava o fund o, aclamado pela galera. embro-me at hoje do jeito calmo do falecido jorge jord o de ara jo, o ca , finte- 61

    grante da nossa comiss o. mineiro, muitopopular, cheio de conversa, nos banhos de sol batizara nosso time: era o chora nacruz.- como que est , meu irm o ca ? - t chorando na cruz.tinha raz o. n o havia perspectiva vista: num tempo em que as garantias

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    individuais do cidad o nas ruas estavam suspensas, que dizer das mesmas garantias paran s, condenados?mas preciso reconhecer que, em meio a tantas dificuldades, o fund o nos deu um m nimo de estabilidade, condi o para que constru ssemos uma identidade. at ent o

    n o cri ramos ra zes, pois est vamos sempre de passagem em alguma unidade do sistema, jogados daqui para ali, como coisas. de vez em quando sa a um sambinha,

    emgeral puxado por z Saldanha e nanai. cantando e batucando sem ver os demais, nosso coro realizava em paralelo dois desejos profundos de qualquer coletivo depresos:deixar o tempo passar e irritar os carcereiros.em 1974, come aram os choques diretos com a administra o. o primeiro decorreu de um protesto que fizemos contra um duplo homic dio. aproveitando-se do fato de prestaremservi os extramuros, doispresos comuns se embrenharam no mato, tentando fugir. sua aus ncia foi notada na hora do confere, causando a mobiliza o de um contingente que conseguiu localiz - losalguns dias depois. trazidos de volta a socos e pontap s, chegaram agonizantes. o

    subinspetor - m xima autoridade local naquele momento - n o quis receb -los nesse estado. enquanto os funcion rios procuravam a melhor maneira de contornar o impasse, os dois fugitivos ficaram deitados na frente do port o principal do pres dio,onde um veio a falecer, sob protestos de um grupo de presos, que a tudo assistia.o segundo rapaz morreu no transporte para o continente.fizemos uma den ncia formal, conseguindo apoi -la em mais de duzentas assinaturas de presos comuns, al m dos cerca de noventa que estavam no fund o. o coletivo dos presos pol ticos nos ajudou a enviar o documento que, divulgado no exterior, levou puni o de diversos guardas penitenci rios e integrantes da pol cia militar.

    foi um fato extraordin rio, que provocou um acirramento no dio que os agentes da repress o nutriam contra n s. aumentaram o controle e os conflitos, e, com eles, nossa disposi o para fugir a qualquer pre o. com o in cio dessas tentativas,

    come amos a sofrer as primeiras baixas.em dezembro de 1974, tr s de n s - ant nio de barros cavalcante (ant nio branco), francisco rosa da silva (horroroso) e rivaldo carneiro de moraes (marta rocha)- foram embarcados para uma audi ncia judicial, sendo instalados provisoriamente no galp o da quinta da boa vista. entenderam ent o que era chegada a hora de uma tentativa de fuga, que terminou tragicamente. impedidos de sair pela guarda,64

    tomaram como ref m o diretor do pres dio, coronel darci bittencourt da costa, e durante oito horas e meia, sitiados na cela oito da galeria b, negociaram aliberdade,na forma de um salvoconduto para o m xico, tal como havia sido feito, anos antes, com presos pol ticos trocados pela vida de diplomatas estrangeiros. desta vez,

    a decis o do governo foi outra. o galp o foi invadido por forte contingente policial que atirou em todas as dire es, matando uma dezena de presos - a maioria dosquais sem participa o alguma no epis dio - e o pr prio coronel. segundo os jornais do dia seguinte, a invas o da galeria ocorreu s 17h e foi fulminante. s 17h15min, por m, quando tudo j estava dominado e a imprensa era mantida do lado de fora, "recome aram os tiros [entre quem?], que duraram mais um minuto, de formaesparsa, at que a situa o foi dada como dominada". n o ficou testemunha do que se passou. a fam lia do coronel, sintomaticamente, dispensou as honras militaresde praxe, que chegaram a ser anunciadas pelo comandante da pol cia militar.

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    a invas o do galp o foi fartamente documentada pela imprensa. n o posso lembrar daquelas cenas sem ver tudo como espet culo, exibi o de poder. sab amos que ant niobranco era impetuoso em a o e tinha sede de liberdade, mas estava isolado, dominado, querendo negociar. no fund o, esse antigo funcion rio p blico - n o sei sedos correios ou do banco do brasil - conquistara nossa amizade com seu jeito desonhador. tendo sido pintor, retratara lampi o na cabeceira de seu beliche -

    costumavadizer que ramos os "cangaceiros da era das m quinas" - e fizera, no outro lado, um desenho impressionante, em que se65

    misturavam um cogumelo at mico, flores e crian as despeda adas: " como eu vejo este mundo", disse-me um dia.sobre sua transfer ncia para o galp o, houve muita especula o. a verdade que fora mandado para l por existirem suspeitas de que havia um plano de fuga do pres dioh lio gomes, envolvendo l cio fl vio e o pessoal do fund o (que normalmente ficava alojado l quando vinha ao continente para alguma audi ncia judicial). o tal plano

    era completamente fict cio, mas a dire o do pres dio resolveu transferir nossos companheiros para o galp o, onde paradoxalmente a seguran a era muito menor. da a id ia de aproveitar a ocasi o para fugir. enquanto o plano amadurecia, eu mesmo passei pelo galp o, onde ant nio branco j preparava o esquema, tendo adiantado o pagamento do necess rio suborno a quem de direito. quando voltei do juiz, passamos a noite inteira aguardando para qualquer momento a entrada das armasencomendadas.na manh seguinte, quando os presos do conv vio fossem para o banho de sol, render amos o guarda e manter amos a guarita sob fogo, para lan ar uma corda sobre omuro e alcan ar a quinta da boa vista, onde um carro nos esperaria. por algum motivo, as armas n o chegaram na noite combinada. frustrados, retornamos Ilha grande.

    em mangaratiba, na baldea o, cruzamos com marta rocha e horroroso, que desciam para ju zo. tr s dias depois, ant nio branco retornou ao continente e reencontrou os dois no galp o, detonando o plano, com um final infeliz. a morte, mais uma vez, cruzara comigo de perto, mas n o me escolhera.66

    a morte dos tr s companheiros nos abalou e intimidou a coletividade carcer ria. no fund o, acentuaram-se os maus tratos e, nas viagens ao continente, os espancamentosse tornaram mais abusivos. depois de muitas den ncias na justi a militar, conseguimos que as portas dos cub culos permanecessem abertas durante os dias, de modoque todos pudessem transitar pela galeria. pouco depois, o superior tribunal

    militar enviou um juiz auditor para verificar in loco o tratamento que receb amos. aleluia,o poder, finalmente, se movia, pelo menos na apar ncia. em reuni o conosco, o juiz ouviu as den ncias, formalizadas por nelson em nome de todos, e reconheceu nossadif cil situa o, bem como de nossas fam lias, afirmando que tomaria as provid ncias necess rias. houve esperan as, mas o tempo passou e tudo ficou na mesma. recebemos depois a visita do secret rio estadual de justi a, laudo de almeida camargo, e do diretor- geraldo departamento do sistema penal (desipe), augusto frederico thompson. diante denossa comiss o, este ltimo afirmou que n o poder amos mais viver como um grupo

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    "estanque e problem tico"; ramos presos comuns e ser amos distribu dos no conv vio de forma gradativa, de acordo com o nosso comportamento, de modo a evitar choquescoma massa. solicitou que fiz ssemos requerimentos individuais, reivindicando essa integra o. na ocasi o, para nos definir usou um termo que repudiamos imediatamente:cancro.

    a reafirma o de nossa condi o de presos comuns n o era casual. n o reivindic vamos para n s o estatuto de presos pol ticos, mas quer amos que se mantivesse a coer ncia,em nome da qual hav amos sido enquadrados numa lei mais severa, feita para castigar opositores do regime. como justificar, por exemplo, que durante ocumprimentoda pena tiv ssemos negados os mesmos benef cios a eles concedidos? a isonomia s funcionaria contra n s? que tipo de presos ramos, afinal? explicamos ao dr. thompson que n o haveria nenhum choque com a massa, pois nos sent amos parte dela. quase todos t nhamos passado pelas penitenci rias, inclusive

    pela pr pria ilha grande. al m disso, nossa transfer ncia para o conv vio n o seria opera o complicada: bastava abrir um port o para nos livrar do isolamento,

    queconfigurava uma situa o de castigo permanente e injustificado. mas - explicamos - n o far amos os tais requerimentos. em primeiro lugar, porque cabia aos carcereirosassumir a responsabilidade de seus atos. em segundo lugar, isolados ou n o, continuar amos a reivindicar, para n s, a extens o de quaisquer direitos que viessema ser concedidos a pessoas que, afinal, objetivamente, haviam cometido os mesmoscrimes que n s - principalmente assaltos a bancos - e estavam enquadradas conoscona mesma lei.este era o x da quest o. est vamos nesse momento vivendo mudan as pol ticas no pa s. crescia a pos-68

    sibilidade de revis o da lei de seguran a nacional e de anistia aos presos pol ticos. paradoxalmente, a quebra do nosso isolamento aparecia agora como uma manobrapreparat ria para nos excluir dos benef cios jur dicos que viessem a alcan ar outros condenados. era curioso. a isonomia funcionara plenamente contra n s, na formade tribunais militares, penas maiores, condi es carcer rias mais duras. mas n o funcionaria a nosso favor. o que se passou mais tarde veio confirmar nossassuspeitas:aos presos pol ticos foi dada anistia, enquanto n s fomos lentamente aniquilados. justamente nesse delicado per odo de negocia es e impasses, tivemos um grave problema interno: considerando ser iminente a reintegra o no conv vio, um preso

    donosso coletivo assaltou um companheiro, rompendo o pacto de n o-viol ncia que hav amos estabelecido entre n s. como agravante, assumiu uma posi o desafiadora quandoo assunto foi trazido luz: estava inspirado e apoiado pela quadrilha que ent o dominava toda a ilha grande, cobrando ped gios, matando e estuprando. o produtodo roubo, quando investigamos, j fora enviado para fora do fund o. era uma provoca o.que fazer? aceitar sua impunidade seria uma confiss o de fraqueza, desuni o e pusilanimidade. por outro lado, a nica puni o pass vel de ser sustentada com xito

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    era a mais radical e definitiva de todas: a morte. ao contr rio dos poderes constitu dos, n o ter amos autoridade para executar qualquer outra pena ou castigo. quefazer?nesses momentos cr ticos que a vida de um coletivo qualquer se p e prova. em nosso caso, o ca-69

    d ver do preso assaltante, retirado ainda ensang entado e quente, pelos guardas, ao longo das galerias, anunciou a toda ilha grande que n o est vamos intimidados, nem rendidos, nem brincando. quem, diante de n s, quisesse manter os velhos h bitos das cadeias - estuprando, assaltando e matando -, que se preparasse para enfrentarconseq ncias.como prev amos, a imprensa e o sistema penal logo capitalizaram os acontecimentos: quer amos status de presos pol ticos, mas ramos apenas bandidos sang in rios, capazes de eliminar friamente quem a n s se opusesse. a repress o se acentuou. rasparam a cabe a de tr s companheiros. em resposta, raspamos as nossas tamb m, formandouma galeria de noventa carecas solid rios. foi o limite. depois de retirar os presos pol ticos da vizinhan a, invadiram nossas celas, dispostos a tudo. como n o

    pod amos enfrent los fisicamente, entramos em greve de fome, mesmo sem ter apoios externos. mais uma vez, os acontecimentos nos impunham o caminho. come ou ent o, em plena crise, nossa dispers o pelo sistema, combinada com uma pol tica mais ou menos expl cita de elimina o f sica, mental e moral das chamadas lideran as. 70

    para esvaziar o movimento, o desipe transferiu alguns de n s, em grupos, para estabelecimentos do continente, cortou nossas comunica es com o exterior, tirou nossopequeno estoque de sal e a car e fechou a gua corrente. que diferen a! a greve de fome dos presos pol ticos tivera a presen a de m dicos e soro, com ampla divulga o!

    eu fui para gua santa, um pr dio constru do em rea desnivelada e, por isso, parcialmente encravado no ch o. quiseram fazer ali uma c pia daquelas cadeias americanas,que a gente v nos filmes: do centro, o guarda controla tudo. n o deu certo. talvez pela topografia, a arquitetura n o cil ndrica, mas em forma de cubo, e o excessode ferro usado na constru o d a todo o conjunto um aspecto de amontoado de gaiolas. um circuito interno de televis o chegou a ser instalado, mas nunca funcionou.a percentagem de guardas problem ticos, corruptos, agressores, era bem maior ali do que na m dia dos pres dios do continente. responderia isso a uma pol tica deliberadado sistema? seria resultado natural de uma cultura desenvolvida no pr prio local?

    o terror era levado ao extremo para compensar a relativa inseguran a de um pres diosem muros externos? n o sei dizer. mas era ruim estar ali dentro. n o se safa das celas, sequer para tomar banho de sol. tenta-71

    va-se aproveitar a claridade que,