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https://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/atores/instituicoes/uirn/ UIRN – Universidade Indígena do Rio Negro A Universidade Indígena do Rio Negro (UIRN) ainda se encontra numa fase propositiva. A idéia da criação de uma universidade indígena no Rio Negro ganhou força nos últimos três anos, e o projeto da UIRN é um dos dois projetos nesta região investigados em nosso mapeamento. Este projeto surge da iniciativa de basicamente dois parceiros: o Grupo de Mestres Indígenas do Rio Negro e a Universidade Federal do Amazonas ( UFAM ) . Conta também com a colaboração direta da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro ( FOIRN ) . O intuito é instaurar uma universidade nos moldes interculturais, que permita colocar em prática a autodeterminação dos indígenas rionegrinos. Para tanto, a UFAM entrou em acordo com o Grupo de Mestres para que a UIRN possa usufruir, inicialmente, da estrutura da Licenciatura Indígena Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável da UFAM, realizada na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas. Esta estrutura também será utilizada para o estabelecimento do Instituto Indígena de Estudos Avançados ( IIEA ) , também proposto pelo Grupo de Mestres. A construção da UIRN ganhou força recentemente, assim que foi aprovado o projeto I Simpósio Diálogos Interculturais na Fronteira Panamazônica por edital do Proyecto de Diversidad Cultural y Interculturalidade en Educación Superior en América Latina , que financia propostas deste tipo com subsídios advindos da Organização das Nações Unidas, para a Educação, a Ciência e a Cultura ( UNESCO ) . Tanto a UIRN, quanto o IIEA, irão beneficiar indígenas de três pólos território-linguísticos da região: Tukano , Baniwa e Nheegatu. Fontes: DUTRA, Israel Fontes (2011), Povos Indígenas do Rio Negro: construindo uma Universidade Indígena no Alto Rio Negro. Documento de divulgação da proposta de Universidade Indígena do Rio Negro, Grupo de Mestres Indígenas do Rio Negro, UFAM, FOIRN. São Gabriel da Cachoeira, AM. (mímeo).

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https://ensinosuperiorindigena.wordpress.com/atores/instituicoes/uirn/

UIRN – Universidade Indígena do Rio   Negro A Universidade Indígena do Rio Negro (UIRN) ainda se encontra numa fase propositiva. A idéia da criação de uma universidade indígena no Rio Negro ganhou força nos últimos três anos, e o projeto da UIRN é um dos dois projetos nesta região investigados em nosso mapeamento. Este projeto surge da iniciativa de basicamente dois parceiros: o Grupo de Mestres Indígenas do Rio Negro e a Universidade Federal do Amazonas ( UFAM ) . Conta também com a colaboração direta da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro ( FOIRN ) .O intuito é instaurar uma universidade nos moldes interculturais, que permita colocar em prática a autodeterminação dos indígenas rionegrinos. Para tanto, a UFAM entrou em acordo com o Grupo de Mestres para que a UIRN possa usufruir, inicialmente, da estrutura da Licenciatura Indígena Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável da UFAM, realizada na Terra Indígena Alto Rio Negro, no município de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas. Esta estrutura também será utilizada para o estabelecimento do Instituto Indígena de Estudos Avançados ( IIEA ) , também proposto pelo Grupo de Mestres.A construção da UIRN ganhou força recentemente, assim que foi aprovado o projeto I Simpósio Diálogos Interculturais na Fronteira Panamazônica por edital do Proyecto de Diversidad Cultural y Interculturalidade en Educación Superior en América Latina, que financia propostas deste tipo com subsídios advindos da Organização das Nações Unidas, para a Educação, a Ciência e a Cultura ( UNESCO ) .Tanto a UIRN, quanto o IIEA, irão beneficiar indígenas de três pólos território-linguísticos da região: Tukano, Baniwa e Nheegatu.

Fontes:

DUTRA, Israel Fontes (2011), Povos Indígenas do Rio Negro: construindo uma Universidade Indígena no Alto Rio Negro. Documento de divulgação da proposta de Universidade Indígena do Rio Negro, Grupo de Mestres Indígenas do Rio Negro, UFAM, FOIRN. São Gabriel da Cachoeira, AM. (mímeo).

DUTRA, Israel Fontes (2011), Proposta de Construção do Instituto de Estudos Avançados dos Povos Indígenas do Alto Rio/AM. Documento de divulgação da proposta de criação do IIEA. Grupo de Mestres Indígenas do Rio Negro. (mímeo).

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A CONTROVÉRSIA

No início da década de 2000, eclodiu no Brasil um debate público, frequentemente ríspido e caloroso, acerca da criação de políticas de inclusão diferenciada para segmentos historicamente excluídos do ensino superior no país, o conhecido “debate sobre cotas”. Dentre os segmentos societários pelos quais se propunha tais medidas de ação afirmativa, um deles parece ter sido um alvo menos visado das polêmicas e de um modo geral, das políticas tanto contrárias quanto favoráveis às “cotas”: as populações indígenas residentes em território nacional.

A Controvérsia

A controvérsia sobre ensino superior para indígenas no Brasil, expressa de maneira genérica pela questão acima, parece ganhar maior amplitude de ressonância no debate público da sociedade nacional e na pauta de discussões do movimento indígena e indigenista brasileiro especialmente a partir do começo dos anos 2000, quando uma confluência de fatores inicia sua problematização:

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Por um lado, o processo de avanço da educação escolar indígena produziu o aumento da demanda pelo acesso de indígenas no nível superior de educação. A exigência por formação superior de professores de nível básico (prevista pela lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996) e o aumento do número de estudantes indígenas formados no nível médio que desejavam continuar seus estudos fizeram com que organizações do movimento indígena passassem a formular reivindicações quanto ao acesso ao ensino superior. Como fruto dessa incipiente demanda, surgem já no início da década as primeiras respostas à controvérsia: dois cursos em universidades públicas especificamente dirigidos à formação de professores indígenas: o 3º Grau Indígena da Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT) e o curso de licenciatura da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e a primeira política de acesso diferenciado para povos indígenas em cursos regulares, o vestibular unificado das universidades do Paraná.Por outro lado, o processo de discussão sobre a implementação de políticas de acesso diferenciadas em cursos regulares de universidades públicas dirigidas a determinados segmentos historicamente excluídos da população brasileira passa a ganhar dimensões nacionais na virada do século. É marcante nesse processo a Conferência Internacional de Durban, realizada em 2001 e que contou com a participação do Governo Brasileiro. Os setores populacionais a serem beneficiados pela construção das políticas de ação afirmativa propostas eram os indivíduos auto-declarados negros, os estudantes advindos de escolas de ensino médio públicas e os indígenas, embora este tenha recebido uma atenção consideravelmente menor da opinião pública nas discussões.

Características da ControvérsiaA controvérsia da inserção de populações indígenas no ensino superior brasileiro ganhará então contornos específicos a partir da influência conjunta desses dois processos mais amplos de debates “cosmo-políticos”. Em primeiro lugar, é possível localizar o ponto de acordo mais estabilizado entre aqueles que participam dessa controvérsia: a idéia de que a participação indígena na universidade deve ocorrer e, com efeito, a partir de uma inserção diferenciada. Assim, vinda na esteira das experiências de duas décadas de multiplicação de escolas indígenas “bilíngües, diferenciadas e interculturais”, surgidas em resposta a uma educação escolar imposta aos povos indígenas durante o século XX e voltada à assimilação e ao apagamento de diferenças culturais, a idéia de que a educação formal universitária para estudantes indígenas deve ser realizada e, na medida em

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que acontecer, ocorrer de modo específico e implicar em algum tipo de mudanças na estrutura das instituições de ensino (no modo de acesso, na estrutura física ou pedagógico-acadêmica, etc.) parece constituir um ponto consensual entre os atores envolvidos ou, em outras palavras, uma caixa-preta constitutiva dessa rede de inclusão de indígenas no ensino superior.Nesse sentido, a aceitação ou não desse ponto constituirá um mecanismo de corte ou participação na controvérsia: atores ou opiniões que se posicionam de modo contrário à educação universitária indígena pouco ou nada aparecem nos eventos, documentos e espaços de discussão onde foram inscritos os rastros de agências dos atores envolvidos nas controvérsias (conferir item Documentos); portanto, sequer se constituem como agentes ou sujeitos dessa controvérsia que estamos mapeando/fazendo existir. Tal característica é bem distinta daquela que adquiriu o debate sobre “cotas raciais” para negros, que suscitou um fervoroso embate entre contrários e favoráveis a tais medidas (para um exemplo desse tipo de discussão, conferir manifesto assinado por intelectuais, empresários e ativistas de movimentos sociais contras as “cotas” no ano de 2008). Por razões diversas que caberia explorar de modo mais aprofundado, não se engendrou no cenário público nacional uma reação organizada contrária às ações afirmativas para populações indígenas tal como ocorreu para as políticas pautadas em critérios raciais.Em segundo lugar, e em adição a esse primeiro elemento, a controvérsia não será delimitada pela manifestação de posicionamentos binários entre contrários ou favoráveis ao acesso diferenciado das populações indígenas nas universidades brasileiras, mas sim em torno das modulações ou modos como tal inserção diferenciada será concebida e praticada. A variedade e multiplicidade de respostas e divergências ocorrerão não a partir de um problema maior de “sim ou não”, mas num problema de “Como”, de que maneira e em que intensidade realizar a participação indígena. Programas de concessão de bolsas de estudo, resoluções legais para reserva de vagas em cursos regulares, criação de cursos específicos, criação de universidades propriamente indígenas são algumas das opções construídas em torno desse desafio envolvendo a inserção diferenciada e que são recorrentemente referidas pelos atores da controvérsia como ações afirmativas.

Além da palavra “como,” o outro ponto importante de variação de pontos de vistas dentro dessa questão chave é a palavra “especificidade” indígena: se o sistema universitário tem que se adequar à alteridade das populações indígenas em território nacional, o modo como tal alteridade é traduzida será

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outro ponto controverso e influenciará diretamente na construção mecanismos de inserção dessas populações. “Povos historicamente excluídos”, “Etnias”, “Culturas”, “Coletividades Territorializadas”, “Conhecimentos Tradicionais” são algumas das expressões designadas para se referir à alteridade indígena que, no âmbito de discussão sobre o acesso de minorias ao nível superior, são operacionalizadas especialmente para diferenciar o segmento indígena dos outros segmentos alvos de ações afirmativas (negros, estudantes de baixa renda da população nacional) e da população brasileira de modo mais geral.

Cada item da barra de navegação corresponde a uma dimensão em que podem ser acompanhadas as múltiplas respostas forjadas em torno da possibilidade de variação desses dois pontos da controvérsia (“como inserir diferencialmente as populações indígena no ensino superior” e “em que consiste essa alteridade indígena”). No item “Documentos”, são compilados os documentos, websites, livros e artigos acadêmicos através dos quais foi possível acompanhar os rastros que a ação dos atores deixaram na discussão sobre ensino superior indígena. No item “Atores” encontram-se organizados em lista, a miríade de indivíduos, dispositivos legais, eventos, instituições, etc. que participaram e se constituíram enquanto actantes da controvérsia. No item “Redes” a interação desses atores é graficamente representada em fragmentos de redes classificados a partir da construção de três modalidades de mecanismos de inserção diferenciada: as universidades indígenas; as licenciaturas indígenas ou interculturais; e as ações voltadas ao acesso e permanência de estudantes nas universidades. Cada um desses mecanismos configura-se como uma distinta resposta prática à pergunta de “como” realizar a participação de indígenas no ensino superior. E no item “Cosmologia” é apresentado um esboço da linguagem ou código discursivo de entendimento da diferença que perpassa e faz funcionar a rede de interações envolvendo a inserção de populações indígenas no ensino superior brasileiro.

Fontes:

AMARAL, Wagner Roberto do (2009), As trajetórias dos estudantes indígenas nas universidades estaduais do Paraná: sujeitos e pertencimentos. Tese de Doutorado em Educação, Universidade Federal do Paraná.

BARROSO HOFFMANN, M. (2005). Direitos culturais diferenciados, ações afirmativas e etnodesenvolvimento: algumas questões em torno do debate sobre ensino superior para os povos indígenas no Brasil. In: Primer Congreso

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Latinoamericano de Antropologia, Rosário. 1º Congreso Latinoamericano de Antropologia, 2005.BARROSO HOFFMANN, M.; SOUZA LIMA, A. C. (2007) “Universidade e Povos Indígenas. Desafios para uma educação superior universal e diferenciada de qualidade com o reconhecimento dos conhecimentos indígenas“. In: LIMA, Antonio Carlos de Souza & HOFFMAN, M. B. (orgs.). (2007), Seminário Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil. p. 5-32.

GRUPIONI,  Luis Donisete Benzi (consultor do CNE e UNESCO) (2007). Documento Técnico 4: “Com registro e sistematização da análise sobre as políticas de acesso ao ensino superior do ponto de vista das demandas e especificidades das comunidades indígenas”

DAL’ BÓ, T. L.. (2010), Construindo pontes: o ingresso de estudantes indígenas na UFSCar. Uma discussão sobre “cultura” e “conhecimento tradicional”. Dissertação de Mestrado PPGAS-UFSCar.

RedesRespostas em Rede

As interações de diferentes ordens e tipos estabelecidas entre os atores da controvérsia de inserção de populações indígenas no ensino superior brasileiro acabam por convergir numa mesma direção: a construção de mecanismos de inserção diferenciada nas universidades, os denominados programas, projetos ou leis de ação afirmativa. As ações afirmativas constituem, portanto, a modalidade de mediador não humano central da controvérsia: trata-se, por um lado, dos atores cuja criação mobiliza alianças políticas, liberação de recursos financeiros, criação de eventos, espaços de discussão, pesquisas acadêmicas,  e, por outro lado, um dispositivo facilitador de novas relações cuja ação direta permite a participação indígena no nível superior de educação e a inclusão de novos atores na discussão, tais como acadêmicos indígenas beneficiados por tais ações afirmativas, novos eventos e parcerias institucionais, repasse de recursos financeiros, produção de documentos e pesquisas acadêmicas relacionadas ao assunto.

As redes de interação entre os atores foram divididas em fragmentos de rede de acordo com a modalidade de ação afirmativa central em torno da qual os agenciamentos ocorreram; seriam, em outras palavras, as diferentes respostas à questão mais geral de como realizar a inclusão indígena na

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universidade oferecidas pelos atores e visualizadas por meio de sua atuação em rede.

O fragmento de rede I – “Acesso e Permanência: Fundação Ford e Trilhas de Conhecimentos” e o fragmento de rede II – “Acesso e Permanência: FUNAI e PROUNI” têm como eixo central de delineamento o conjunto de ações afirmativas destinadas ao acesso diferenciado e à permanência de estudantes em seus cursos. O fragmento de rede III – “Licenciaturas Interculturais: PROLIND” apresenta as interações em torno da mais importante política de fomento à criação dos cursos diferenciados denominados licenciaturas indígenas ou interculturais, o PROLIND. Por fim, o fragmento de Rede IV – “Projeto de Universidade Indígena no Rio Negro” e o fragmento de Rede V “Universidade da Floresta” se inserem na modalidade de ação afirmativa que consiste na construção de universidades ou instituições de ensino superior diferenciadas.

Rede dos Mecanismos de Acesso   Diferenciado A modalidade de mecanismo de inserção diferenciada que mais recebe atenção no debate público brasileiro em torno de ações afirmativas no ensino superior são os mecanismos de acesso diferenciado em cursos normais ou regulares, conhecidos de maneira mais ampla por “cotas”.Redes Difusas

Em comparação com os demais tipos de ação afirmativa dirigidos a populações indígenas no ensino superior, a criação dos dispositivos de acesso envolve agenciamentos mais intensamente difusos e fragmentados. Tal característica remete, principalmente, à inexistência de um dispositivo jurídico a nível federal que normatize ou possibilite a criação desses mecanismos pelas instituições federais de ensino. A criação de mecanismos de acesso diferenciado ocorre, via de regra, através de resoluções internas a cada universidade, no caso de instituições de federais, e através de legislações relativas a cada unidade federativa ou estado, no caso de instituições de ensino superior públicas estaduais.

Com efeito, embora o debate sobre “cotas” tenha alcançado proporções nacionais no início dos anos 2000, especialmente por conta da participação do Governo Brasileiro na Conferência de Durban em 2001, não existe uma política em âmbito federal que regulamente uma política nacional de cotas. Isso faz com que a rede de relações envolvendo a criação desses dispositivos esteja muito mais centrada em torno de cada universidade e de

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dispositivos jurídicos autônomos uns em relação aos outros, do que  em torno de actantes interligados numa dimensão nacional. Desse modo, ao contrário dos fragmentos de redes envolvendo a criação de universidades indígenas, licenciaturas indígenas e programas de permanência e concessão de bolsas de estudo, não foi viável a realização de um “mapeamento” e a construção gráfica de uma “rede das cotas” indígenas em universidades brasileiras a partir das ferramentas de que dispomos para realizar tal exercício.Dispositivos de Acesso

É possível distinguir três tipos de dispositivos de acesso específico em cursos regulares dirigidos ao segmento indígena: a reserva de vagas, que consiste em destinar uma porcentagem das vagas já existentes para os candidatos beneficiados; a criação de vagas suplementares, que adicionam determinado número de vagas conforme a procura dos candidatos do segmento beneficiado por determinado curso; e a criação de um exame vestibular específico, feito especialmente para o segmento dos candidatos beneficiados. Este último tipo parece ser uma modalidade especialmente dirigida aos estudantes indígenas, pois em muitos casos, a especificidade cultural-lingüística desse segmento impulsiona a criação de exames de admissão também diferenciados (diferentemente de outros segmentos visados pelas ações afirmativas de ensino superior no Brasil, como os estudantes negros e pardos e estudantes advindos de escolas públicas, cuja diferença ou desigualdade em relação à população em geral é traduzida como sendo outra ordem).

As universidades que aplicam vestibulares diferenciados ao público indígena são: a UFMT, a UFRR, a UFSCar e a UnB. No estado do Paraná, destaca-se a existência de um único exame vestibular para as populações indígenas do estado, que unifica as seguintes universidade: Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade Estadual de Maringá (UEM), Universidade Estadual de Guarapuava (UNICENTRO), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Universidade Estadual de Ponta Grossa, as Faculdades Estaduais articuladas pela instituição da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), Universidade Estadual do Norte Pioneiro (UENP) e a Universidade Federal do Paraná ( UFPR ) .

Para uma lista das universidades públicas brasileiras que desenvolvem reserva de vagas ou adicionam vagas suplementares ao público indígena, recomendamos dois levantamentos:

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O levantamento produzido por Rodrigo Cajueiro em 2008 no âmbito do programa Trilhas de Conhecimentos.O levantamento “Placar da Inclusão” (2010) produzido pela organização não-governamental “Educafro”. (PDF)CosmologiaNesta sessão, a controvérsia sobre os modos de inserção de povos indígenas em universidades brasileiras pode ser acompanhada com ênfase numa dimensão que apresenta a “cosmologia” do debate, expressa nos enunciados e reflexões dos atores participantes. Em outras palavras, trata-se da apresentação de alguns contornos do código teórico-discursivo, da linguagem específica que perpassa e faz funcionar as redes de construção de mecanismos de inserção diferenciada apresentadas no item Redes.Experimentando a transposição de algumas ferramentas conceituais criadas por Bruno Latour e outros em contextos de políticas das Ciências e da Tecnologia para um contexto de políticas Culturais e da Diferença, propomos apresentar a cosmologia do debate a partir da abertura de três “caixas pretas”. Isso significa o acompanhamento de três movimentos “cosmopolíticos” gerais da controvérsia, que representam a problematização pelos atores de algum outro modelo geral de entendimento da diferença: o questionamento do modelo assimilador e civilizatório de educação escolar pela veiculação de princípios do multiculturalismo, a complementação da cosmologia multiculturalista pelo programa da interculturalidade e a sugestão de questões e caminhos para efetivar as intenções de simetria previstas pela interculturalidade, que podem ser conferidas nos dois últimos itens.Abrindo a caixa-preta do Universalismo Civilizador: O MulticulturalismoAbrindo a caixa-preta do Multiculturalismo: A InterculturalidadeTentativas de efetivação do princípio de InterculturalidadeSugestões de caminhos para refletir sobre a InterculturalidadeNo item abaixo, pode ser visualizada um diagrama que busca ilustrar de maneira sucinta a conexão entre algumas da nuances da cosmologia que permeia a controvérsia e os diferentes dispositivos de inserção diferenciada de estudantes indígenas nas universidades. Trata-se então de verificar algumas das correspondências entre os tipos de ação afirmativa, cuja rede de construção pode ser acompanhada no item Atores e no item Redes, e as práticas enunciativas delineadas na presente sessão e que fornecem sentido para a construção das primeiras.

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Abrindo a caixa-preta do Universalismo Civilizador: o MulticulturalismoÉ possível reconhecer na controvérsia sobre o ensino superior indígena uma movimentação “cosmopolítica” marcante, que se configura como um ponto de acordo entre quase todos os participantes da controvérsia: o combate à possibilidade de uma inclusão “não diferenciada” ou “homogeneizadora” de estudantes indígenas na educação pública.

Assim, enquanto continuidade das experiências de demanda e construção de uma educação escolar diferenciada para povos indígenas em nível básico no país, as discussões sobre o ensino superior parecem estar fortemente marcadas pela rejeição ao modelo ou padrão de ensino calcado nas idéias de um “igualitarismo” “cego” às diferenças e especificidades de determinados setores sociais aos quais ele é oferecido.Essa rejeição a políticas governamentais no âmbito educacional que não levem em conta as diferenças entre indivíduos pertencentes a diferentes coletividades sociais possui ressonâncias com um movimento mais amplo ocorrido em debates envolvendo inúmeros outros contextos de discussão na esfera de inúmeros outros Estados Nacionais: o “multiculturalismo”. Este pode ser definido de maneira genérica como os movimentos de reivindicação por novas modalidades de relação dos “cidadãos” para com o Estado Liberal, pautadas numa politização da diferença. Isto é, no desvelamento de uma dimensão de disputas políticas envolvendo a relação entre diferentes “culturas” ou diferentes “identidades” inseridas numa sociedade nacional.O multiculturalismo, nesta chave ampla com que estamos lidando com o termo, pode ser tido, então, como uma cosmologia resultante da abertura da caixa-preta representada por outra cosmologia, o “Liberalismo” e parte de seus princípios que nortearam e norteiam a construção e gestão de Estados Nacionais. É possível acompanhar algumas das características do idioma multicultural a partir de alguns enunciados em que atores participantes da controvérsia se utilizam do multiculturalismo e, contextualmente, abrem algumas caixas-pretas do modelo “assimilador”. Nas afirmações reproduzidas a seguir, o antropólogo e gestor público do Ministério da Educação   (MEC)  Eduardo Barnes explicita o objetivo da criação da Secretaria de Educação a Distância, Alfabetização e Diversidade (Secad) , levantando a bandeira mais geral da perspectiva multiculturalista, a passagem do modelo de Estado civilizatório para o modelo pluriétnico e pluricultural:

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A Secad é uma resposta aos modelos calcados em políticas públicas informadas por perspectivas simplesmente universalizantes, populistas, alienadas e alienantes em seus projetos político-pedagógicos sobre a importância e o papel das diferenças socioculturais – históricas, presentes e futuras – no território brasileiro. Estas políticas universalistas foram pautadas pelas ideologias integracionistas das diferenças, desconsiderando e submetendo sociedades com diferentes valores, usos, costumes, tradições e territórios às escalas hierárquicas que impõem aos diferentes posição de inferioridade no processo de constituição da nação, numa perspectiva evolucionista e civilizatória. Com isso, ensejou o ocultamento dos direitos de milhões de pessoas pertencentes a matizes étnicas, culturais e políticas que compõem a pluralidade sociocultural existente no Brasil. (2010: 65; ênfases nossas).

Em outra passagem:

(…) O governo brasileiro, desde o advento da Constituição de 1988, busca reverter as políticas integracionistas de longa duração que previam a extinção e outras distinções culturais dos povos indígenas, demarcando um conjunto de políticas voltadas ao reconhecimento da pluralidade étnica e cultural. O governo brasileiro tem o dever de, principalmente ancorado no artigo 231 da Carta Magna, reconhecer aos índios sua organização social, seus costumes, línguas, crenças e tradições. E, nesse escopo, ancorar a idéia de que a educação indígena é uma modalidade de educação dentro do sistema de ensino regido pelo princípio da interculturalidade e do bilinguismo, do multilinguismo, sem excluir as populações em contato prolongado com a cultura dominante. A noção de incrementar a participação dos povos indígenas nas políticas públicas é outro dispositivo do arcabouço jurídico a ser seguido na construção das políticas públicas setoriais. É com base nessas premissas que a CGEEI, a Secad e o MEC buscamos implementar, formular e reformular as políticas públicas para a educação básica e superior indígena. (Idem: 72; ênfases nossas).

A transformação de um Estado universalizante em um Estado multicultural é marcada, então, pela problematização do princípio de neutralidade radical frente às idiossincrasias dos cidadãos pertinente ao primeiro modelo: ser neutrosignificará, diante da existência evidente de “diferenças” entre os cidadãos, no que tange ao seu pertencimento coletivo sócio-cultural, ser cúmplice e agente de relações políticas “hierárquicas” que se estabelecem entre a cultura dominante e a cultura dos outros grupos. A solução passa

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então pelo reconhecimento das diferenças; a introdução nas políticas públicas de dispositivos sensíveis às diferenças e desigualdades historicamente construídas entre segmentos coletivos da sociedade nacional. A Secad é, nesse sentido, um órgão da estrutura administrativa federal do país especialmente criado para reconhecer essas diferenças e relações culturais assimétricas, e formular políticas de ação afirmativa na área da educação, tal como o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas ( PROLIND ) .

Para sustentar o argumento de que o Brasil é um Estado pluri-étnico que admite a possibilidade de construção de uma educação superior diferenciada para povos indígenas em seu território, dois aliados são recrutados com maior frequência: a Constituição Nacional de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o governo brasileiro é signatário.

A Constituição Federal de 1988 ao reconhecer o caráter pluri-étnico do Estado Brasileiro, garantiu as necessárias bases legais para o estabelecimento de relações menos assimétricas entre os povos indígenas, suas lideranças e suas demandas nas mais diferentes esferas governamentais. Entretanto a característica mais importante dos legisladores, foi a preocupação demonstrada com os povos e culturas indígenas, que saíram da condição de dispositivos isolados para vir a transforma-se em um capítulo específico, expressando respeitosamente uma concepção jurídica, consistente e moderna. Abandonando a postura etnocêntrica que fundamentava a tutela, marcando assim uma nova perspectiva quanto ao reconhecimento e valorização da educação indígena, ainda permeiam a estrutura do Estado Brasileiro, estão entre os fatores que limitam a consolidação de políticas públicas que atendam a demanda por educação escolar em todos os níveis e o desenvolvimento de um sistema nacional de Educação escolar mais coerente com a noção de estado Plural.  (SOUSA, 2009: 3).

Falar de indígenas é, pois, falar de integrantes de coletividades territorializadas, cujos direitos culturalmente diferenciados foram reconhecidos pela Constituição de 1988, sobretudo em seu capítulo VIII, e também em outros dispositivos esparsos. Em junho de 2002, através do Decreto n. 143, o governo de Fernando Henrique Cardoso finalmente assinou a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Mundial do Trabalho, válida a partir de 2003 em nosso país. Isto implica não apenas reconhecer-lhes o direito à auto-definição (é índio

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quem o diz o ser e é identificado enquanto tal por um povo que o engloba), dentre outros itens necessários à sua identificação como indígenas, mas também o direito fundamental de serem respeitados enquanto povos, coletividades cultural e historicamente diferenciadas dentro da nação brasileira, sem que isso signifique pleito à soberania territorial, nos termos do direito internacional. Para um país de larga tradição assimilacionista como o Brasil, cujo corpus jurídico é avesso ao reconhecimento dos direitos de coletividades, estaríamos, se as leis fossem de forma integral e cotidianamente cumpridas, no limiar de algo muito novo. (SOUZA LIMA & BARROSO-HOFFMAN, 2006: 2)

(…) Convenção 169 [da Organização Internacional do Trabalho-OIT] que garante aos povos indígenas que sejam consultados e participem de todo o processo de formulação e implementação das políticas que lhes dizem respeito (FUNAI: 14)

A atual política indigenista do Governo Federal, regida pela Constituição Federal de 1988, Cap.VIII, fundamenta-se em princípios da autonomia e da participação dos povos indígenas em questões de seu interesse, substituindo o tratamento tutelar e assistencialista e proporcionando aos índios seu desenvolvimento e auto-sustento. (BROSTOLIN, 2009)

A transição, mencionada no fragmento acima, de um tratamento “tutelar e assistencialista” para uma perspectiva que privilegia os “princípios da autonomia e participação” no que tange à relação dos povos indígenas com o Estado Brasileiro qualifica de maneira sintética a reforma multicultural que o movimento indígena e seus aliados no país vêm tentando empreender nas políticas públicas e na estrutura dos órgãos governamentais há algumas décadas. (conferir uma descrição do contexto histórico das políticas indigenistas no Brasil em http://pib.socioambiental.org/pt/c/politicas-indigenistas/orgao-indigenista-oficial/introducao). Se, no regime de administração tutelar, a alteridade de coletividades indígenas foi tida como uma condição transitória, que inevitavelmente passará por processos de integração ou assimilação à sociedade nacional “civilizada”, na perspectiva da autonomia, essa alteridade é prontamente reconhecida como sendo de igual valor à cultura nacional dominante, devendo ser respeitada, valorizada e promovida por medidas de correção das injustiças historicamente cometidas contra tais coletividades.Acabar com a “tutela” para com os índios consiste, portanto, num redimensionamento da cidadania e da amplitude de quem pode ser sujeito de direitos: a autonomia e a tolerância mútua entre os diferentes indivíduos

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cidadãos deverá agora ser considerada num nível mais amplo onde devem também ser reconhecidas a autonomia e a tolerância entre diferentes grupos ou coletivos aos quais os indivíduos têm sua identidade ligada. Nos trechos destacados acima, faz-se constante menção aos dispositivos da Constituição de 1988 que contemplaram essa dimensão coletiva da cidadania e, por consequência, deram às populações indígenas direitos coletivamente diferenciados como garantia de territórios demarcados e educação escolar diferenciada pública fornecida pelo Estado.Eu acho que precisamos fazer uma coisa que é muito importante e muito sutil de ser feita, que é avançar na compreensão do que é o direito indígena. Hoje o Brasil ainda vive preso a dois grandes mitos em relação aos indígenas. Um mito romântico que pretende manter os indígenas num pseudo-estado de natureza e que, portanto, a educação superior não lhes seria adequada. Quase como se assim os fôssemos proteger de um mundo “branco” destrutivo. Um segundo, mas não menos nocivo que este, é o mito que ao identificar as diferenças das comunidades indígenas, desqualifica essas diferenças, o que se traduz em um conjunto de expressões como “índio não gosta de trabalhar”, esse tipo de visão preconceituosa e negativa. Esse universo imaginário acaba obstruindo a visão do direito indígena, e a compreensão de que o papel da educação superior no Brasil também é formar lideranças indígenas para que elas possam exercer os direitos que a Constituição lhes prometeu, com plena responsabilidade. Basta um exemplo óbvio: as populações indígenas têm direito a uma parte expressiva do território nacional, um direito garantido e constituído, e se nós não os ajudarmos para que desenvolvam tecnologias de gestão territorial, nós não estaremos ajudando esses povos a exercerem esse direito. Então eu acho que a primeira parte, muito importante, é a parte do convencimento, da sensibilização e de debate político no âmbito do direito. O Brasil ainda não é um país onde o imperativo do direito esteja garantido, ainda opera sob certas dimensões patrimonialistas e de favor. Eu creio, então, que ainda tenhamos que avançar muito no campo do reconhecimento dos direitos indígenas. (Entrevista com André Lázaro, secretário da Secad)

Não se trata apenas de universalização da escolarização, mas da formação de indígenas altamente qualificados e comprometidos com a defesa dos direitos indígenas, em especial com a promoção da qualidade de vida das suas comunidades de origem, o que inclui a gestão dos territórios e o fortalecimento de suas organizações. (Programa Rede de Saberes, 2007)

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As propostas [de financiamento de cursos de licenciatura intercultural encaminhadas por universidades ao PROLIND] deverão ter como base a manifestação explícita de interesse por parte dos beneficiários, a realidade social e cultural específica de cada povo e diagnóstico sobre o Ensino Fundamental e Médio das comunidades indígenas a serem beneficiadas com os cursos. Serão apoiadas exclusivamente propostas de cursos elaboradas em parceria com as comunidades indígenas a serem beneficiadas pelos Cursos de Licenciaturas Interculturais. (Edital de Convocação do PROLIND, 2009, GRIFO NOSSO)A formação dos professores é uma das grandes preocupações das comunidades indígenas de Roraima, que lutam por isso a fim de que seus próprios membros possam participar da busca de soluções para os projetos de autonomia das comunidades. Nesse sentido, o Núcleo Insikiran foi criado como um instrumento de fortalecimento tanto do processo de formação dos povos indígenas, quanto da UFRR e do ensino superior no Brasil. (CARVALHO & CARVALHO, 2008: 158)

A ruptura com a neutralidade do estado republicano, o reconhecimento das relações de diferenças, por vezes construídas historicamente como assimétricas, entre grupos e segmentos inseridos na sociedade nacional e a consequente concessão de direitos e liberdades para coletividades diferenciadas darão ensejo à construção de algumas das modalidades de ação afirmativa engendradas na controvérsia; fornecerão suporte principalmente para as políticas destinadas ao acesso diferenciado e à permanência de estudantes indígenas nas universidades. Formuladas, de um modo geral, de maneira conjunta com a reivindicação de ações afirmativas para negros e estudantes de escolas públicas, as políticas que prevêem exclusivamente o acesso diferenciado aos cursos regulares das universidades, conhecidas como “cotas”, são comumente tidas como insuficientes para as populações indígenas:2- as condições de permanência dos estudantes indígenas em universidades não são as mesmas de outros grupos sociais, visto que estes, quando vindos das aldeias, não dispõem de condições para permanecer nos centros onde geralmente estão situadas as universidades e outras instituições de ensino superior. Mesmo os indígenas que vivem em centros urbanos, ou nas suas proximidades, enfrentam muitas dificuldades para concluir seus estudos.3- A situação mais preocupante, no entanto, diz respeito aos indígenas que vivem em terras indígenas distantes dos centros urbanos e que necessitam ou pleitearam ingressar em cursos de formação superior. Estes em regra

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necessitam de um tipo de apoio que envolve praticamente as necessidades, e requer um tipo de apoio que envolve praticamente todos os itens já mencionados como habitação, alimentação, transporte e apoio para aquisição de materiais escolares e livros escolares. Muitas vezes as dificuldades que um jovem universitário enfrenta, é o principal motivo que até leva a desistir de cursar a universidade, pois a dificuldade financeira é o principal motivo. Segundo depoimentos de estudantes indígenas em diferentes regiões no Brasil, denunciam a ausência de políticas públicas e um projeto de educação escolar que responda aos interesses pela formação profissional que construam vínculos com a discussão sobre o acesso ao ensino superior e com a garantia de consolidação de políticas de educação básica e superior. Sobretudo os depoimentos apontam para um forte deslocamento do eixo da discussão da formação superior relacionada ao trabalho/emprego para outros aspectos relacionados a uma dimensão mais coletiva, voltados para a vida da comunidade. Estas em geral, ficam esperando e confiando que estes universitários, venha aplicar o que aprendeu em prol de melhorias para a comunidade. (SOUSA, 2009: 25-26)

A construção de ações afirmativas para as populações indígenas no país é permeada e possibilitada pela operacionalização de uma linguagem ou conjunto de enunciados que retira muitos de seus termos da “cosmologia” do Multiculturalismo. Contudo, a controvérsia parece ter seus termos “cosmopolíticos” pautados em cosmologias que tentam ir além da chave multicultural, em especial nas formulações em torno da idéia de Interculturalidade.Abrindo a caixa-preta do Multiculturalismo: a InterculturalidadeTentativas de efetivação do princípio de InterculturalidadeSugestões de caminhos para refletir sobre a Interculturalidade

Fontes:

BARNES, Eduardo Vieira. (2010), “Da Diversidade ao Prolind: reflexões sobre as políticas públicas do MEC para a formação superior e povos indígenas”. In: SOUZA, Cassio Noronha Inglez de (Org.); ALMEIDA, Fábio Vaz Ribeiro de (Org.); LIMA, Antonio Carlos de Souza (Org.); Matos, M. H. O. (Org.). Povos Indígenas: projetos e desenvolvimento II. 1. ed. , 2010, pp 220.

BROSTOLIN, Marta Regina. (2009), Projeto de pesquisa “Rede de Saberes- Permanência Indígena no Ensino Superior”.

CARVALHO, Fabíola & CARVALHO, Fábio de Almeida. (2008), “A Experiência de Formação de Professores Indígenas do Núcleo Insikiran da Universidade

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Federal de Roraima”. In: MATO, Daniel (coord.) Diversidad Cultural e interculturalidad em educacíon superior. Experiencias em America Latina y el Caribe (IESALC). Caracas: Instituto Internacional de la UNESCO para la Educación Superior en América Latina y el Caribe (UNESCO-IESALC), pp. 157-166.

Diário Oficial da União, n.º 79, seção 3, p. 47. Terça-feira, 28 de abril de 2009.Entrevista com André Lazaro, secretário da Secad.

EQUIPE DO PROGRAMA REDES DE SABERES. (2007), 3º RELATÓRIO PARCIAL Janeiro a Novembro de 2007. Encaminhado para o programa Trilhas de Conhecimentos, LACED.

FUNAI, Fundação Nacional do Índio (sem data). Histórico do Processo de Discussão sobre Ensino Superior. Manuscrito, Brasília, sem data, pp. 20. Histórico da Universidade da Floresta.

LIMA, Antonio Carlos de Souza & BARROSO-HOFFMAN, Maria. (2006). “Povos indígenas e ações afirmativas no Brasil”. In: LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – PROGRAMA POLÍTICAS DA COR NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA – Nº 28 – AGOSTO/2006

SOUSA, Jocélia do Nascimento Ramos (2009). Os Desafios dos estudantes e das Instituições no convênio FUNAI-UnB. Monografia de especialização, Universidade de Brasília, Brasília.

Abrindo a caixa-preta do Multiculturalismo: a InterculturalidadeA expressão interculturalidade se encontra amplamente difundida nos enunciados envolvendo a controvérsia sobre indígenas no ensino superior brasileiro, e está presente com intensidade semelhante no contexto mais amplo de debates referentes à educação escolar indígena na América Latina e em determinados contextos de educação para populações imigrantes de países da Europa.

O termo intercultural apresenta uma considerável polissemia na ampla gama de registros inseridos nesses diferentes contextos históricos em que foi utilizado (para uma descrição das origens e modalidades de uso do termo interculturalidade, recomendamos o texto de Collet de 2006, disponível no itemDocumentos).

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Mesmo possuindo um sentido variável e nem sempre reconhecivelmente bem delimitado, o emprego do termo na presente controvérsia parece indicar mais regularmente para certa necessidade de complementar o idioma multiculturalista, em que se assenta parcialmente a pauta do debate, com novas nuances capazes de superar alguns dos dilemas e impasses a que essa cosmologia poderia conduzir as discussões. A operacionalização recorrente da lógica da interculturalidade pode ser considerada, desse modo, como uma outra movimentação “cosmopolítica” da controvérsia, a abertura da caixa-preta da cosmologia multiculturalista.O princípio da interculturalidade não implica em simplesmente reconhecer o valor de cada uma dessas culturas e defender o respeito entre elas. Mais que isso, a interculturalidade apresenta-se como um princípio que fornece elementos consistentes que permitem provocar o desvelamento, o enfrentamento e a posterior busca de soluções para os conflitos desse relacionamento, em todas as suas dimensões. (CARVALHO & CARAVALHO, 2008)

Neste trecho, os professores Fabíola Carvalho e Fabio Almeida de Carvalho do Núcleo Insikiran de Formação Indígena da UFRR, expõem o princípio de interculturalidade que norteia o curso de licenciatura indígena oferecido na universidade. Os autores do fragmento caracterizam este princípio como um “passo adiante” ao patamar de reconhecimento das diferenças e tolerância entre culturas: a interculturalidade consiste num avanço para se pensar as relações e os “conflitos” entre as “culturas” postas em relação. A inflexão sugerida acima expressa a principal proposição dos programas interculturais: a problematização das relações e da interação entre as diferentes coletividades, para além de uma constatação do valor auto-suficiente e da convivência estanque entre culturas. Assim, a partir dos esforços do programa cosmopolítico da interculturalidade, o combate ao paradigma da assimilação e da inserção indiferenciada na educação pública será complementado com um conjunto de palavras e expressões que tentam qualificar ou dar sentido à relação entre culturas: em adição a palavras como tolerância, respeito, autonomia, serão veiculadas expressões como diálogo, articulação, intercâmbio, transformação mútua, etc..Embora possa se verificar essa característica também nas discussões sobre educação escolar indígenas nos níveis fundamental e básico, o “diálogo intercultural” ganha uma forma predominante nos debates sobre o ensino superior: a discussão acerca da relação entre conhecimentos científicos ou acadêmicos e conhecimentos indígenas ou “tradicionais”. Assim, em

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acréscimo ao reconhecimento da especificidade indígena enquanto coletividades possuidoras de direitos territoriais e lingüísticos específicos, a interculturalidade procura dar ênfase à relação entre diferenças de ordem epistemológica existentes entre as populações indígenas e a população nacional e a estrutura educacional estatal com a qual estas estabelecem relação.A LI [licenciatura indígena] visa, por fim, propiciar uma formação para que os professores indígenas possam investigar e refletir sobre a situação e as condições históricas de suas comunidades e de seus povos para que, a partir disso, possam contribuir de forma mais consciente com o desenvolvimento destes. Desse modo, busca tanto valorizar os conhecimentos locais e tradicionais dos povos indígenas, quanto os conhecimentos tidos como necessários para que os povos indígenas possam ter êxito em seus projetos de sustentabilidade. Daí a importância da interculturalidade como princípio. (idem)10. PERFIL DO PROFESSOR FORMADOR

• Apresentar sensibilidade com a discussão da identidade e da diferença, em especial, com as problemáticas contemporâneas vivenciadas pelos povos indígenas;

• Considerar e articular os saberes indígenas com os científicos objetivando a sustentabilidade das comunidades indígenas (…)”

“Projeto Pedagógico do curso de licenciatura em Educação Indígena” UFCG (2007)

Da interculturalidade, que articula conhecimentos e valores sócio-culturais distintos, de forma seletiva, crítica e reflexiva, sem hierarquia de valores.

“Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura Indígena” UFGD (2010)

Com efeito, a adição à gramática multiculturalista de princípios programáticos de interculturalidade introduz na meta de “inserção diferenciada” de indígenas em universidades a necessidade de reformular dimensões ligadas à estrutura de conhecimento das instituições de ensino superior. Isto para que se possa acolher de modo mais adequado a especificidade de tais populações. Tal necessidade se refletirá principalmente na formulação das modalidades de ação afirmativa correspondentes a criação de aportes administrativos e organizacionais para garantir a permanência de estudantes indígenas, a criação de cursos

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diferenciados com estrutura curricular e pedagógica específica (cujo principal exemplo, no Brasil, são as chamadas licenciaturas interculturais ou indígenas) e a criação de universidades indígenas, que seriam instituições de ensino como um todo diferenciadas.“Diversas universidades públicas e comunitárias, atentas às demandas indígenas por ensino superior, desenvolvem experiências voltadas ao acesso diferenciado dos índios aos espaços acadêmicos. Porém, essas experiências sinalizam questões que vão além do debate em torno de cotas para atender as demandas por ensino superior desses e de outros segmentos, pois se trata de povos com saberes e processos sociais e históricos diferenciados.”

“Por isso, emerge como fundamental que ao pensar sobre o tema acesso e permanência de acadêmicos índios no ensino superior não se perca de vista que estão em discussão projetos de futuro de povos e não só de indivíduos. Sob a ótica dos povos indígenas e experiências em andamento o confirmam, a educação superior pode contribuir, significativamente, para criar melhores condições de sustentabilidade e autonomia das populações indígenas no Brasil. Exige, porém, das Universidades repensarem suas metodologias de ensino, superando a fragmentação e questionando o saber academicamente sedimentado, que perpassa e está subjacente em nossas práticas pedagógicas, objetivando o exercício constante da interculturalidade.

O espaço acadêmico, na atualidade, passa por tensões, decorrentes dos desafios em considerar o conhecimento a partir da diferença e de outras lógicas epistemológicas, não produzidas pela cultura ocidental, imposta como condição única de compreensão e concepção de mundo. O acesso e permanência de indígenas nas universidades gera instabilidades de cunho epistemológico e metodológico que dão consistência aos desafios de pensar questões tais como: culturas locais, culturas híbridas e globalização; o território acadêmico com as diversas formas de produção de conhecimento; a academia e a produção de conhecimento sobre as diferenças; a universidade como espaço público requisitado pelos índios como garantia de sustentabilidade étnica e de reelaboração de conhecimento a partir de lógicas de compreensão de mundo, que sejam âncoras para a produção de alternativas de sustentabilidade econômica.” (Trechos retirados do site do evento Povos Indígenas e a Sustentabilidade)

“Para mim, existe um dilema de difícil solução nesse empreendimento, que envolve a idéia de que, por ser algo do branco, os índios não podem querer tratamento diferenciado no processo de escolarização no ensino superior, restando-lhes tão-somente o enquadramento às suas estruturas, conteúdos

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e métodos estabelecidos. Não se trata de diferenciado como sinônimo de isolamento, mas, de espaço plural de convivência e de troca de experiências, conhecimentos e valores. (…) Neste sentido, o grande desafio é articular espaços acadêmicos que criem relações simétricas de produção e reprodução de conhecimentos, tendo como base o fato de que tanto os povos indígenas quanto universidades são portadores e disseminadores de conhecimentos milenares, que de diferentes, poderiam ser complementares, contribuindo definitivamente para o avanço e enriquecimento do conhecimento humano, em vista de soluções para os grandes problemas da vida humana e do planeta.” (Entrevista com Gersem Baniwa, 2006: 4)

“Os intelectuais indígenas têm bastante clareza de que se o acesso às universidades é importantíssimo e que as cotas podem servir como um instrumento valioso tanto para a situação de povos territorializados – ainda que muitos de seus integrantes estejam em trânsito permanente entre esses territórios e ambientes urbanos deles próximos ou distantes, ou que nesses territórios suas aldeias muitas vezes estejam adquirindo o perfil de cidades – quanto para aqueles que, muitas vezes motivados pela busca da educação, se deslocaram para os centros regionais ou mesmo para cidades distantes, como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. (…) Mas cotas, no caso dos indígenas, não são suficientes sem mudanças muito mais amplas nas estruturas universitárias, de modo a que estas reflitam sobre suas práticas a partir da diferença étnica, de um olhar sobre quem se desloca de um mundo sociocultural e, em geral, lingüístico, totalmente distinto, ainda que os estudantes indígenas pareçam e sejam – uns mais outros menos – conhecedores de muito da vida brasileira. Não se trata stricto sensu de um único e mesmo preconceito, nem de uma única e mesma forma de discriminação que também no meio universitário atinge os indígenas, os afro-descendentes e os estudantes classificados como “pobres” rurais e urbanos, negros ou não (e regionalmente muito distintos). Não se trata, tampouco, como no caso dos afro-descendentes e da população de baixa renda, de incluir uma minoria (em termos de poder) de excluídos, dando-lhes acesso e controle aos mesmos instrumentos que historicamente têm servido à manutenção dos poderes das elites governantes no país, mas sim de rever as estruturas universitárias muito mais radicalmente. Ao incluir os indígenas nas universidades há que se repensar as carreiras universitárias, as disciplinas, abrir novas (e inovadoras) áreas de pesquisa, selecionar e repensar os conteúdos curriculares que têm sido ministrados e testar o quanto estruturas, que acabaram se tornando tão burocratizadas e

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centralizadoras, podem suportar se colocar ao serviço de coletividades vivas histórica e culturalmente diferenciadas.” (2007: 16-17)

Seminário Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil. 2007. Antonio Carlos de Souza Lima e Maria Barroso Hoffmann (orgs.). (disponível em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm)Como destacado no início, embora seja francamente operacionalizado para indicar o sentido que a conjugação entre as instituições escolares e a alteridade indígena deve assumir na controvérsia sobre ensino superior brasileiro, o lema da interculturalidade dificilmente vai além, nos documentos e registros consultados, da característica de uma aspiração ou principio abstrato que orienta os projetos de ação afirmativa para indígenas. Nos itens a seguir, acompanhamos algumas das tentativas dos atores de viabilizar com medidas práticas o programa da interculturalidade (“Tentativas de efetivação do princípio da Interculturalidade”) e indicamos alguns caminhos de reflexões para uma problematização desse princípio (“Sugestões de caminhos para refletir sobre a Interculturalidade”)Abrindo a caixa-preta do Universalismo Civilizador: o Multiculturalismo.Tentativas de efetivação do princípio da InterculturalidadeSugestões de caminhos para refletir sobre a Interculturalidade

Fontes:

CARVALHO, Fabíola & CARVALHO, Fábio de Almeida. (2008), “A Experiência de Formação de Professores Indígenas do Núcleo Insikiran da Universidade Federal de Roraima”. In: MATO, Daniel (coord.) Diversidad Cultural e interculturalidad em educacíon superior. Experiencias em America Latina y el Caribe (IESALC). Caracas: Instituto Internacional de la UNESCO para la Educación Superior en América Latina y el Caribe (UNESCO-IESALC), pp. 157-166.

Entrevista com Gersem Baniwa. In: LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – PROGRAMA POLÍTICAS DA COR NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA – Nº 28 – AGOSTO/2006

LIMA, Antonio Carlos de Souza & HOFFMAN, M. B. (orgs.). (2007), Seminário Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil.

“Projeto Pedagógico do curso de licenciatura em Educação Indígena” UFCG (2007)

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“Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura Indígena” UFGD (2010)

Tentativas de efetivação do princípio de InterculturalidadeA título de cosmologia, a contribuição que tentaremos dar neste tópico, e de certa forma no mapeamento como um todo, tem o sentido de apontar alguns exemplos dos usos do princípio de interculturalidade pelos atores envolvidos em nossa controvérsia. Partimos da idéia que esses exemplos são significativos da tentativa destes atores de viabilizarem este princípio, buscando transformar seu caráter apenas programático.De modo geral os enunciados em torno do princípio da interculturalidade subentendem trocas; é uma constante a menção sobre trocas de saberes científicos e tradicionais nos projetos político-pedagógicos dos cursos de licenciaturas indígenas (ver sessão Documentos), das propostas do que chamamos genericamente Universidades Indígenas, dentre outros. A valorização dos saberes indígenas é uma importante bandeira de todos esses projetos, mas nunca se exclui o interesse também no aprendizado dos saberes científicos. Ou seja, as propostas de ensino intercultural propõem uma troca que permita, simultaneamente, fortalecer os saberes indígenas e gerar uma abertura renovadora nos saberes que circulam no contexto das universidades; chamemo-los de saberes acadêmico-científicos. Observemos alguns desses enunciados:O projeto envolve ações de desenvolvimento de atividades de formação  e capacitação na  área da educação  formal  e não formal através do diálogo intercultural articulando diferentes saberes (tradicionais  indígenas e outros ocidentais) e atores que compõem a comunidade educativa e formação de  lideranças e organizações  indígenas com a  finalidade de  fortalecê-los politicamente e, ao  mesmo  tempo,  permitindo  uma  articulação  entre  os  diversos  setores  sociais  como educação, saúde, comunicação e circulação (DUTRA, 2011: 13)

Este projeto é baseado nos princípios da pluralidade cultural e no respeito à diferença. Propõe respeitar as semelhanças, as diferenças e as relações entre os diversos povos, que se dão, na maioria  das  vezes,  por  meio  de  trocas,  de casamentos, da defesa de direitos e de empréstimos lingüísticos e culturais, implica em  estabelecer  um  diálogo  entre  saberes (PPP da LI UNIR: 30)

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Considerar e articular os saberes indígenas com os científicos objetivando a sustentabilidade das comunidades indígenas (PPP da LI UFCG: 41)Assim, a metodologia busca não somente a valorização dos conhecimentos ancestrais, mas também a pesquisa dos conhecimentos adquiridos pelos povos envolvidos. (PPP da LI UFRR: 19)

Essa demanda advinda dos indígenas por instalar uma troca de saberes, decorrente da insatisfação com o modelo assimilador e civilizador de educação oferecido até então (ver Preâmbulos), manifesta o interesse desses povos de atingir certa autonomia participativa frente às políticas estatais direcionadas a eles, algo que permita evidenciar suas especificidades. Diante disso, a apropriação do idioma da interculturalidade no contexto aqui mapeado demonstra a existência de uma espécie de máxima: alcançar determinados estatutos políticos para os indígena requer capacitação educacional, e capacitação educacional diferenciada.

O exercício dessa especificidade está claro na própria existência de licenciaturas interculturais direcionadas apenas para indígenas. Contudo, vejamos alguns exemplos nos documentos referentes a esses cursos, que podem evidenciar esse exercício.

Uma primeira questão está ligada a realização das provas de seleção. Em alguns casos é permitido que o concorrente faça a prova na sua língua indígena:

4.3 A Produção de Texto escrito e a entrevista poderão ser em Palikur, Patuá, Tiryó, Waiãpi, Aparai, ou em uma variante lingüística do Português resultante do contato entre as línguas indígenas do Amapá e Norte do Pará, indicada pelo candidato no ato da inscrição. (edital da LI UFAP)5.3.10.  A entrevista poderá ser feita na língua portuguesa ou na língua  indígena originária, falada pelo candidato ou nas duas línguas. (edital da LI UFG)

Outra questão está ligada a posição que um aluno universitário indígena passará a exercer frente a sua comunidade. Diferente de um aluno não-indígena que faz um curso regular, um “acadêmico indígena”, sobretudo aqueles cursando licenciaturas interculturais, antes de qualquer coisa, são representantes de determinada cultura indígena. Por isso devem ter o aval desta comunidade para ir fazer o dito curso.

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Declaração de pertencimento a uma comunidade indígena, assinada pelo cacique da respectiva aldeia e pelo aluno (conforme modelo a constar na página www.licenciaturasindigenas.ufsc.br). (edital da LI UFSC)4.9.  No ato da inscrição o candidato deverá entregar: […] c) declaração de vinculação a  uma  etnia  ou  comunidade  indígena  do  Ceará  emitida  por organização  indígena devidamente  constituída ou da  liderança que  represente  a etnia ou comunidade (edital da LI UECE)Declaração de apoio da comunidade indígena ao candidato, (Anexo VI) (edital da LI UNEMAT)

Além do aval da comunidade, em outros casos assumir o compromisso com elas:

Termo de compromisso de que irá contribuir com as atividades educacionais em sua comunidade (Anexo V) (edital da LI UNEMAT)

Seguimos agora com exemplos de conceitos criados com vistas a consolidar o idioma da interculturalidade respeitando as especificidades das demandas indígenas. Dois deles podem ser aqui citados. O primeiro é o da “pedagogia da alternância”, citado no edital de convocação da Licenciatura Intercultural da Universidade Federal de Santa Catarina ( UFSC ) , que reforça a preocupação com o êxodo dos alunos indígenas para fora de suas comunidades. Neste documento se enfatiza a constituição de um curso em duas fases: o “Tempo Comunidade” e o “Tempo Universidade”. Tenta-se evitar esse “esvaziamento das aldeias” através da alternância entre os dois locais, descentralizando o ensino que convencionalmente se concentra nas cidades. Existe até mesmo o exemplo do Curso de Magistério Indígena Superior Intercultural dos Povos Pitaguary, Tapeba, Kanindé, Jenipapo-Kanindé e Anacé (Misi-Pitakaja) da Universidade Federal do Ceará   (UFC)  que é todo realizado no ambiente das comunidades.Uma segunda noção é a de “territorialidade-linguística” (DUTRA, 2011). Utilizada na Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Federal do Amazonas ( UFAM ) , e também no contexto do projeto de construção da Universidade Indígena do Rio Negro ( UIRN ) , essa noção visa obedecer as especificidades lingüísticas dos indígenas da região, em consonância com normas aprovadas legalmente pelo município de São Gabriel da Cachoeira. Em ambos os projetos há uma separação entre três pólos território-linguísticos: Baniwa, Tukano e Nheegatu. Não obstante, o curso da UFAM é realizado nas respectivas terras indígenas, corroborando com os exemplos

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das outras licenciaturas interculturais citadas acima. Podemos pensar que aqui temos um bom exemplo de interculturalidade, uma vez que a noção não-indígena de território é utilizada em prol de valorizar a diferença entre os indígenas para os quais são oferecidos o curso da UFAM e a UIRN.A preocupação com o multilinguísmo, com o êxodo para as cidades, com certa representatividade indígena, e com o respeito às territorialidades instauradas legalmente, como expostos acima, são exemplos da necessária relação de proximidade dos alunos indígenas com suas respectivas comunidade. Esta relação carrega de maneira um tanto explícita um pressuposto chave da relação entre as demandas indígenas por capacitação educacional, e sua presença de fato dentro dos cursos universitários: a valorização cultural. Este pressuposto vem constantemente sendo agenciado nos enunciados indígenas, e mesmo nos documentos dos cursos para indígenas:

Entre as principais metas do novo centro de ensino e pesquisa estão o estímulo à utilização responsável e inteligente dos recursos naturais e a valorização dos conhecimentos tradicionais – a chamada “medicina da floresta” (ver Sobre a Universidade da Floresta: 1)

Que o curso seja contextualizado, incluindo os saberes tradicionais, o estudo da língua materna, a valorização das ciências e artes indígenas. (PPP da LI UEA: 26)

O Projeto Educação Ticuna tem colaborado substancialmente para a construção de uma escola diferenciada, voltada para a valorização da língua e da cultura, a promoção da  saúde,  a defesa  da  terra,  do meio  ambiente  e  da  cidadania (PPP da LI UEA: 8)

Fruto de um trabalho árduo de seus elaboradores e colaboradores, o Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura em Educação Indígena tem como uma das principais marcas ter sido fruto de um contínuo processo de discussão com a efetiva participação do povo Potiguara que, através de oficinas, atividades de pesquisa e seminários, foram atores na construção deste projeto de formação docente, cujo principal objetivo se fundamenta na valorização dos conhecimentos acumulados pela comunidade, figurando, portanto, como um instrumento de transformação social. (PPPda UFCG: 7)

Ter compromisso em valorizar e promover a memória da cultura indígena, a valorização e as diferenças da identidade indígena (PPP da UFCG: 42)

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Nesses enunciados, como podemos ver, quando não está exposta literalmente a valorização cultural aparece como: “valorização dos conhecimentos tradicionais”, “valorização das ciências e artes indígenas”, “valorização da língua e da cultura”, “valorização dos conhecimentos acumulados pela comunidade”, etc., expressões que apresentam, de certo modo, a tentativa de dar um tratamento equitativo entre os saberes indígenas e não-indígenas.

Em nosso mapeamento enfatizamos também o aparecimento recente das propostas de Universidades Indígenas. De certa forma, estas propostas nos apareceram como exemplos mais radicais da tentativa de viabilizar o princípio de interculturalidade no âmbito de inserção de indígenas na universidade. Assim sendo, tomamos um último apontamento referente às tentativas de tradução dos modos de conhecer indígenas no contexto das Universidades Indígenas.Foi na proposta de criação da Universidade da Floresta ( Uniflora )  que surgiu a idéia de “florestania” (ver ALMEIDA, 2008). Esta noção foi sugerida para o antropólogo Mauro Almeida por um de seus interlocutores, quando realizava trabalho de campo na região do Alto Juruá, no Acre. Florestania vem em substituição à cidadania, ampliando o escopo de agentes “políticos” para também entes não-humanos. Dessa forma, a floresta passa a ser entendida de modo diferente, próximo a como os dos povos locais – seringueiros, ribeirinhos e indígenas – se relacionam com ela. Na florestania “[o]s moradores e entes da floresta não são nem mera matéria-prima para alimentar nossas necessidades materiais, nem mero depósito de informação que nos poderá ser útil para fármacos” (Idem: 21). Passar essa idéia para um modelo de universidade exigiria, então, a idéia de uma Universidade Aberta, um conhecimento em constante recriação, e o reconhecimento de que a tradição é antes o método humano para transmitir e inovar (Idem).Entretanto, a dificuldade de um projeto desse tipo é evidente diante dos modelos de universidade convencionais ainda presentes no país. Algo que havia sido observado por Alceu Ranzi, ex-reitor da Universidade Federal do Acre ( UFAC ) , apoiadora da realização do projeto da Uniflora. Dizia:[…] cabe a seguinte pergunta, a Universidade Federal do Acre poderá superar os obstáculos burocráticos, especialmente atualizar seu Estatuto e Regimento, para atuar como uma Universidade da Floresta? Temendo que a resposta seja não, creio que o melhor caminho será o de desvincular a nova Universidade da Floresta do conhecido e antigo sistema de universidade brasileira. (ver Blog do Ambiente Acreano abaixo).

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Mantendo-se vinculada a UFAC, toda especificidade proposta no projeto da Uniflora deixou de existir. A idéia da Uniflora acabou sendo uma espécie de “fracasso instrutivo” (CUNHA, 2009: 11) resultante de quando se pretende instaurar um novo tipo de relacionamento entre saberes tradicionais e saberes acadêmico-científicos.

As contingências de aplicação do projeto da Uniflora, ao que parece, não permitiram a efetivação de uma proposta até então inovadora no país. Duas outras propostas de natureza aparentemente similares à Uniflora, o projeto da UNIR e o projeto de Formação Superior Indígena, Interdisciplinar e Multicultural do Rio Negro, retomam as tentativas de viabilizar de fato o princípio de interculturalidade. Tento em vista que ambos os projetos ainda se encontram em fase germinal, teremos que aguardar para observar seus resultados.

Fontes:

ALMEIDA, Mauro W. B. (2008), “A Enciclopédia da Floresta e a Florestania”. In: Jornal Página 20. Sessão Papo de Índio. Rio Branco, Acre, quinta-feira, 3 de janeiro, p 21.Blog do Ambiente AcreanoCUNHA, Maria Manuela Ligeti Carneiro da. (2009) “Introdução: meu charuto”. In: Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 9-12.DUTRA, Israel Fontes (2011), Povos Indígenas do Rio Negro: construindo uma Universidade Indígena no Alto Rio Negro. Documento de divulgação da proposta de Universidade Indígena do Rio Negro. Grupo de Mestres Indígenas do Rio Negro, UFAM, FOIRN. São Gabriel da Cachoeira, AM. (mímeo).Sobre a Universidade da Floresta – Entrevista com Mauro Almeida (PDF)

Sugestões de caminhos para refletir sobre a InterculturalidadeA questão base da controvérsia, sobre como inserir as populações indígenas no ensino superior brasileiro levando-se em conta sua especificidade, supõe, como pode ser acompanhado na abertura da caixa preta do modelo “assimilador” de educação escolar, a necessidade de uma inserção diferenciada. Ou seja, uma extensão do direito a uma educação pública que reconheça as diferenças sócio-culturais entre os indivíduos. Como argumentado no tópico sobre o programa da interculturalidade, os

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pressupostos “multiculturalista” que subjazem tal ampliação da relação dos indivíduos com o Estado para a pluralidade de pertencimentos coletivos (religiosos, lingüísticos, étnicos, raciais, etc.) ganham na presente controvérsia uma nuance peculiar, que procura adicionar a essa inserção diferenciada uma maneira de adequar o ensino a um tipo de relação ou diálogo ideal entre os conhecimentos indígenas e os conhecimentos acadêmico-científicos.

As discussões e tentativas de viabilização de uma educação intercultural no nível superior, contudo, ainda são muito recentes e se apresentam muito mais como uma meta e um desafio do que como um modelo consolidado pelos atores da controvérsia.

Em que bases fazer a comparação entre conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos? Como traduzir e colocar em relação conhecimentos dos povos indígenas e os conhecimentos propriamente escolares e acadêmicos com os quais os estudantes indígenas irão ter contato quando ingressarem no ensino superior?

Questões como essas evidenciam que o desafio, ao mesmo tempo teórico e prático, parece ser o de construir tipos de metáforas que, ao correlacionar os dois lados da comparação, gerem efeitos positivos de caracterização dos conhecimentos indígenas; positivos no sentido de caracterizar o conhecimento indígena ou tradicional num mesmo patamar de complexidade, importância e legitimidade que o conhecimento escolar-científico.

Na condição de atores da controvérsia, prontamente concedida pelo ato de realização desse mapeamento, propomos neste tópico indicar caminhos e problematizações para esse ponto ainda controverso da interculturalidade. Uma maneira de oferecer uma pequena contribuição a esse imenso e complexo esforço de reflexão que acadêmicos indígenas, acadêmicos não-indígenas, organizações indígenas e indigenistas entre outros atores envolvidos na controvérsia têm a realizar, é problematizar, de um modo bem geral, algumas comparações frequentemente utilizadas que acabam por submeter os conhecimentos tradicionais ou indígenas a caracterizações por vezes empobrecedoras.

A metáfora “patrimonializante”

O ato de modificação dos conteúdos a serem ministrados em aulas ou a serem incluídos em exames vestibulares, realizado com o intuito de tornar

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tais instrumentos escolares mais aptos a dialogar com a especificidade indígena, deve tomar a precaução de não projetar, ao empreender o almejado diálogo intercultural, uma imagem dos conhecimentos indígenas como um conjunto de “elementos” ou “conteúdos” empíricos, que podem ser substituídos pelos conteúdos escolares tradicionais. Os conhecimentos tradicionais acabam por ser veiculados, nesta sorte de comparação, como um patrimônio de bens pertencentes a um sujeito coletivo, que podem ser compilados e manejados segundo a intenção deste. A escola intercultural se configuraria, nesta chave de entendimento, como a flexibilização da instituição escolar para acolher alguns dos traços ou elementos desse patrimônio coletivamente compartilhado, de modo a torná-la um local acolhedor para a diversidade entre as diferentes culturas e os diferentes coletivos que as compartilham.

Contudo, seria importante situar a reflexão a cerca da relação entre conhecimentos indígenas e conhecimentos escolares numa dimensão que considere cada um deles, menos como uma reunião de conteúdos coletivamente compartilhados e transmitidos, e mais como sistemas de relações que fornecem sentido e gerem diferencialmente a criação e a circulação desses elementos ou produtos. Assim, “elementos indígenas” como objetos cerimoniais, narrativas orais, rituais, etc. e objetos de conhecimentos escolares não podem ser comparados isoladamente, mas apenas quando situados dentro das lógicas relacionais que lhe dão sentido enquanto tais. A especificidade indígena fica marcada, então, não por uma diferença nos produtos culturais que sustenta, mas por uma outra maneira de relacionar, fazer circular, conferir legitimidade e criar esses produtos.A metáfora do tesouroA comparação “intercultural” feita sob a base das diferenças entre conjuntos de produtos compartilhados costuma ser frequentemente derivada para uma caracterização de conhecimentos indígenas como uma espécie de tesouro, um acervo que, para garantir seu valor, deve ter os conteúdos que o compõem mantidos intactos e imutáveis.Ao invés dessa comparação entre conhecimentos tradicionais imutáveis e conhecimentos científico-acadêmicos constantemente inovadores, é fundamental estabelecer para o diálogo entre esses tipos de conhecimentos uma base simétrica de criatividade generalizada: tanto conhecimentos indígenas quanto conhecimentos científicos seriam, nessa metáfora criativa, maneiras distintas de inventar e transformar; regimes de criatividade distintos poderia se dizer.

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É importante considerar, então, que a valorização de conhecimentos indígenas pela instituição escolar deve incidir, não no sentido da criação de ferramentas de preservação ou resgate de elementos mantidos idênticos a si mesmo, mas no sentido do advento de instrumentos de reflexão e garantia das condições contextuais em que os conhecimentos indígenas se inovam e se transformam permanentemente.A metáfora da classificação generalizante

A tentativa de construir pontes de conexão entre os conhecimentos indígenas e conhecimentos acadêmico-científicos esbarra também numa outra dificuldade advinda principalmente de analogias que se estabelecem num grau de abstração que veiculam os conhecimentos indígenas como pertencentes e partilhados por um coletivo genérico.

Embora a constituição de coletivos étnicos figure como uma importante ocorrência contemporânea da relação entre o Estado brasileiro e essas populações, é preciso levar em conta que, enquanto sistemas ou complexos de relações, os conhecimentos indígenas possuem maneiras de gerir sua circulação que nem sempre correspondem ao pertencimento de um coletivo étnico rigidamente delimitado: o valor de tais conhecimentos pode, por vezes, derivar do uso diferencial por determinados segmentos reunidos dentro dessa classificação coletiva (pessoas, famílias, grupos) ou de uma circulação que a extrapola (redes de relação e circulação que envolvem populações de toda uma região, por exemplo). Nesse sentido, a eleição de um único saber como sendo representativo e compartilhado por todo um povo ou uma cultura leva ao risco de apagar, sob essa referência genérica, uma série de outras variações na forma e na circulação desse saber que frequentemente são as responsáveis pelo seu valor nos regimes de uso específico em que vigoram.

O sistema de patentes ligado a inovações tecnológicas e científicas criadas por universidades pode ser uma importante referência comparativa, já que se trata de uma determinada maneira de abrir ou fechar a divulgação de conhecimento em situações e contextos determinados; as diferenças interculturais entre conhecimentos científicos e indígenas seriam percebidas, desse modo, como diferentes regimes de circulação de conhecimento, diferentes formas de gerir a transmissão e a utilização de saberes.

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Essas seriam algumas dificuldades a serem superadas na construção de conexões entre conhecimentos indígenas e conhecimentos científicos

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almejada pelos princípios de interculturalidade. Para o início de um aprofundamento maior dos apontamentos realizados acima, recomendamos os seguintes textos:

CARNEIRO DA CUNHA, Maria Manuela. 2009. Relações e dissensões entre saberes tradicionais e saber científico. In: Cultura com aspas, Cosac Naify..

_______________________________. 2009. “Cultura” e cultura: conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais. in: Cultura com aspas, Cosac Naify.

HARRISON, Simon. (1995) “Anthropological perspectives on the management of

knowledge”. Anthropology Today, vol.11/5 (10-14)

HIRSCH, E. & STRATHERN, M. (2004) Transactions and Creations. Property

debates and the stimulus of Melanesia. New York/Oxford: Bergham Books.

GALLOIS, Dominique Tilkin (2010) “Materializando saberes imateriais: experiências indígenas na Amazônia Ocidental”. In: Revista de Estudos e Pesquisas (Fundação Nacional do Índio),

v. 4, p. 10-20.

GALLOIS, Dominique Tilkin (Org.) (2005), Redes de relações nas Guianas. 1. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, v. 1. 328 p.

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Extrapolando os limites: além de multiculturalismos, porque não multinaturalismos?

Como argumentado no item Abrindo a caixa-preta do Universalismo Civilizador: o Multiculturalismo, perpassa a controvérsia certo idioma de entendimento das diferenças que

retira muito de seus termos de situações ocorridas em outros contextos de debates análogos, onde também se passou a reivindicar junto a Estados nacionais o reconhecimento de

diferenças sócio-culturais. Essa linguagem, que temos denominado de um modo genérico de Multiculturalismo, parece recorrentemente implicar numa tentativa de conjugar certos

pólos “cosmológicos” duais como universalismo republicano e relativismo cultural, identidade e diferença, civilização e cultura, etc.

Tal conciliação poderia ser mais bem definida como um duplo movimento de relativização e estabilização: se, de um lado, introduz-se a possibilidade de diferenciação num dos termos

(tem-se múltiplas culturas), no outro se consolida a idéia de um termo que não varia, que é uno e capaz de acolher sobre sua unidade a multiplicidade do outro termo (a condição de

humanidade sob a qual podem se encontrar). Assim, no caso da educação pública oferecida pelo Estado, esse duplo movimento parece configurar-se como a introdução da variabilidade

sócio-cultural no Estado de Direito: uma educação escolar pública una, regulamentada pelo Estado, mas que é flexível o suficiente para tolerar e, mais do que isso, estimular a

diversidade sócio-cultural dos sujeitos de direitos individuais e coletivos aos quais ela é oferecida.

Contudo, caberia sugerir, situando-nos talvez numa perspectiva demasiadamente especulativa, a possibilidade de incrementar as linguagens cosmopolíticas da diferença mobilizadas na

controvérsia com um movimento de relativização geral: ao invés da conjugação de um termo natural estável e de um termo cultural variável, por que não instalar uma multiplicidade

generalizada que permitiria enxergar a diferença também naquilo que aparece como estabilizado e não-problemático?

A idéia de um Multinaturalismo, forjada num debate entre Bruno Latour, Philipe Descola e Eduardo Viveiros de Castro (os dois últimos antropólogos que desenvolvem trabalhos de longa

data com populações indígenas da América do Sul; respectivamente os Achuar, habitantes da região do Equador e os Araweté, do Parque Indígena do Xingu) parece ser um

experimento reflexivo que aponta na direção que estamos sugerindo, especialmente na medida em que, ao problematizar a idéia firmemente estabelecida da unidade e totalidade da

Natureza, acaba por sugerir a possibilidade de existência de múltiplos regimes de gestão da distinção Natureza e Cultura. Seria esse o espírito da “Constituição Não-moderna”

profetizada por Latour: a criação de um novo regime de funcionamento do ocidente moderno, a um só tempo epistemológico e ontológico, capaz de dar voz e representação política aos

mais diversos atores, humanos e não humanos, naturais e culturais, políticos e científicos.

O alargamento dos limites do modelo “cosmoprático” que pautou o relativismo cultural antropológico realizado por esses e outros autores em discussões semelhantes poderia ser,

então, testado para os contextos de politização desse mesmo relativismo, que temos denominado de multiculturalismo. Em outras palavras, a evocação da idéia de um

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“multinaturalismo” serve menos para indicar a necessidade de compilar e indicar quais são em absoluto essas novas naturezas, e mais para sugerir a possibilidade de estender as

fronteiras de políticas públicas para além de modelos limitadores de entendimento das diferenças culturais sobre os quais parecem estar firmadas. Construir políticas para a inserção de

populações indígenas no ensino superior, por conseguinte, deveria ser pautado em concepções de alteridade que vão muito além de noções correntemente utilizadas como cultura,

natureza, sociedade, coletividade, identidade, indivíduo,m entre outras.

Para mais idéias em torno da possibilidade de regimes ontológicos “multinaturalistas”, no Ocidente e na América Indígena que possam inspirar as discussões sobre o mutlitculturalismo

e as políticas públicas ligadas ao ensino superior par indígenas indicamos os seguintes ensaios:

LATOUR, Bruno. (1994) [1991] Jamais Fomos Modernos. Ensaio de Antropologia Simétrica. Tradução de Carlos Irineu da Costa. RJ: Editora 34.

LATOUR, Bruno. (2011) Perspectivismo: “tipo” ou “bomba”?. In: Primeiros Estudos. Revista de Graduação em Ciências Sociais. Edição 1, Ano 1, março-agosto. São Paulo,

USP. BARCELLOS, Larissa (trad.).

LIMA, Tânia Stolze. (1996), “O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi”. In: Mana, 2 (2), pp. 21-47.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. (2002), “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”. In:  A inconstância da Alma Selvagem e outros ensaios de antropologia . São Paulo:

Cosac & Naify, pp. 345-399.