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1 O Real em Tela: a sensibilidade da catástrofe nas obras de Siron Franco Eliézer Cardoso de Oliveira Resumo: Esse texto analisa as obras do artista goiano Siron Franco sobre o acidente com o Césio 137, ocorrido em Goiânia em 1987. Em seus quadros, o artista utiliza materiais não-convencionais – ferro, chumbo, terra, etc., demonstrando uma sensibilidade estética pós-moderna, na qual há uma tendência de se misturar elementos realistas – concretos – com os elementos simbólicos da pintura, como uma forma de satisfazer aquilo que Slavoj Zizek denominou de “fome pelo real”. Palavras chaves Siron Franco, estética pós-moderna, Césio 137 Abstract This paper analyzes the Siron Franco´s paiting about the accident with the Cesio 137, it happened in Goiania in 1987. In your paiting, the artist uses the unusual Doutor em Sociologia pela UnB. Professor do curso de História da Universidade Estadual de Goiás – Anápolis – GO.

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O Real em Tela: a sensibilidade da catástrofe nas obras de Siron Franco

Eliézer Cardoso de Oliveira

Resumo:

Esse texto analisa as obras do artista goiano Siron Franco sobre o acidente com o

Césio 137, ocorrido em Goiânia em 1987. Em seus quadros, o artista utiliza materiais

não-convencionais – ferro, chumbo, terra, etc., demonstrando uma sensibilidade estética

pós-moderna, na qual há uma tendência de se misturar elementos realistas – concretos –

com os elementos simbólicos da pintura, como uma forma de satisfazer aquilo que

Slavoj Zizek denominou de “fome pelo real”.

Palavras chaves

Siron Franco, estética pós-moderna, Césio 137

Abstract

This paper analyzes the Siron Franco´s paiting about the accident with the Cesio 137, it

happened in Goiania in 1987. In your paiting, the artist uses the unusual substances –

iron, lead, soil, He is exhibiting the esthetics sensibility postmodern, whic there is a

tendency to mix up realistic elements (factual) with of the paiting´s allegoric elementos,

as a manner to satisfy those that Slavoj Zizek named of the “real hunger”.

Word-keys

Siron Franco, postmodern ahestetic, Cesio 137

Doutor em Sociologia pela UnB. Professor do curso de História da Universidade Estadual de Goiás – Anápolis – GO.

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Introdução

O objetivo desse texto é analisar a produção estética do artista goiano Siron

Franco sobre o acidente com o Césio 137, ocorrido em Goiânia em 1987. Em seus

quadros sobre o acidente, o autor utiliza materiais não-convencionais – ferro, chumbo,

terra, etc. – que passam compor a pintura. Esse tipo de material demonstra uma

sensibilidade específica de uma estética pós-moderna, na qual há uma tendência de se

misturar elementos realistas – concretos – com os elementos simbólicos da pintura.

Assim, enquanto na arte clássica, procura-se imitar a vida; na arte moderna, interpretá-

la, na arte pós-moderna, procura-se fundir a vida com a arte. Essa “fome pelo real”, para

utilizar uma expressão consagrada Slavoj Zizek, é maior nas obras sobre a catástrofe,

pois nesse tipo de arte, a inspiração artística incide sobre um acontecimento real,

abrindo perspectiva para que o autor utilize elementos concretos não-convencionais

como forma de simbolicamente insuflar a sensibilidade do público.

A estética de Siron Franco

Siron Franco nasceu na cidade de Goiás em 1947, mas mudou-se no ano

seguinte para a cidade de Goiânia. Na jovem capital, enfrentou as dificuldades materiais

comuns às famílias de baixa renda da época, agravada pelo fato de ser uma família

grande, composta por dez irmãos. Siron cresceu junto com Goiânia, acompanhando de

perto as transformações e contradições de uma cidade construída com modernas

técnicas urbanísticas e arquitetônicas, mas que era habitada majoritariamente por

pessoas com valores ligados ao mundo rural e as pequenas cidades (Oliveira, 2004).

Mesmo morando em Goiânia, Siron visitava freqüentemente a cidade de Goiás, onde ele

entrava em contato com a arte barroca da cidade centenária. Assim, participou de dois

universos simbólicos que foram importantes na sua formação cultural: o ambiente

barroco da cidade de Goiás, marcado por intensa religiosidade e tradições históricas e o

ambiente moderno da cidade de Goiânia, marcado pela ânsia do novo e do progresso.

Ainda na infância, Siron demonstrava grande talento para o desenho. Aos 13

anos já sobrevivia vendendo retratos em Goiânia. Logo entrou em contato com o

ambiente das artes plásticas, por meio da convivência com artistas locais e com

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professores do curso de artes plásticas da Universidade Católica de Goiás (onde ele

assistia aulas como ouvinte). Foi aprimorando sua técnica, criando um estilo próprio que

mais tarde lhe garantiria um espaço privilegiado entre os grandes nomes da arte plástica

brasileira. Sua carreira inicia-se em meados da década de 1960. Na década seguinte já

era um pintor profissionalmente consolidado, ganhador de vários prêmios, destacando-

se o de Melhor Pintor Brasileiro, na Bienal Nacional (1974) e o Prêmio Internacional de

Pintura da Bienal de São Paulo (1975). No entanto, foi apenas após o acidente

radiológico que ganhou visibilidade fora dos círculos estreitos da crítica especializada.

Tornou-o amplamente conhecido no Brasil e no mundo. Antes de 1987, ele não havia

realizado nenhuma exposição individual fora do Brasil, mas depois desse ano foram

várias: Alemanha (1988), Estados Unidos (1991), Argentina (1992), Inglaterra (1992),

França (1993).

A obra de Siron Franco pode ser lida sobre diferentes matizes. Os analistas se

dividem em vinculá-lo ao Expressionismo (Vieira, 2000) ou ao Realismo Maravilhoso

(Pereira, 1990). Afastando-se de um ortodoxia classificatória, é possível vislumbrar

dois elementos centrais na estética de Siron Franco: a deformação intencional das

figuras humanas (o que o aproximaria dos expressionistas) e a denúncia social por meio

da arte (o que o aproximaria dos realistas maravilhosos). Essa simbiose de sua obra foi

bem percebida e formulada por Ferreira Gular:

Há que considerar que, se ele partiu de uma linguagem figurativa que não despreza o

vínculo com a realidade e se valeu dela para imprimir ‘realidade’ as suas figuras de

pesadelo, foi aos poucos, libertando-se desse compromisso ‘realista’ para ampliar

extraordinariamente os limites de seu idioma de pintor. (Gullar, 1999: 23).

Siron é notadamente um crítico do progresso. Um dos poucos intelectuais

goianos a conseguir escapar do embasbacamento provinciano diante da modernidade.

Daí a sua pintura ser uma denúncia contra os efeitos perniciosos da modernização: a

reificação do homem produzida a partir do modo burguês, a destruição da natureza, a

desigualdade social, a violência contra os indígenas, os acidentes tecnológicos. Walter

Benjamim, um dos mais contundentes críticos da ideologia do progresso, iria gostar das

pinturas de Siron Franco.

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Há um anti-antropocentrismo nas pinturas de Siron Franco. Parece que o pintor

pretende enxergar o homem moderno além da sua aparência física, mostrando a sua

alma deformada. No quadro espelho, por exemplo, a imagem refletida é um ser híbrido

de pássaro e animal, um ser monstruoso e asqueroso. Os

antigos egípcios representavam homens metamorfoseados de

animais, mas a intenção era conferir um caráter sagrado as

divindades. Já em Siron, o objetivo é denunciar os demônios

que povoam a alma humana na modernidade.

Essa visão crítica da modernidade é típica do modernismo.

Nos anos 1960, quando Siron Franco iniciou a sua carreira, a

atitude dos modernistas diante da vida moderna pode ser

dividida em três tendências: afirmativo, negativo, ausente.

Siron Franco se insere nessa tendência negativa do modernismo que “busca a violenta

destruição de todos os nossos valores” (Berman, 1996: 28). Sobre a sua arte Siron

afirmou uma vez: “Quero que minha pintura seja uma denúncia do poder que deforma”

(Pereira, 1990: 182). Essa denúncia ao poder e à reificação da vida moderna era feito

por meio de um estilo expressionista, maravilhoso, no qual figuras deformadas fazem

uma leitura crítica do real.

No entanto, a pintura de Siron Franco passou por uma mudança substancial após

o acidente radioativo ocorrido em Goiânia em 1987. A crítica social continuou intensa

nos seus trabalhos, mas apareceu uma característica nova na estética sironiana: ele não

mais se contentou em apenas representar o real, mas trouxe o real para a tela.

O acidente radioativo ocorreu quando dois autônomos encontraram uma bomba

de Césio 137, usada em exames radiológicos, abandonada num terreno no centro de

Goiânia, onde funcionava um antigo hospital. Depois de retirar a blindagem de chumbo,

os rapazes venderam-na, juntamente com o cilindro contendo Césio 137, a um ferro-

velho das imediações. O fascínio pelo brilho noturno do metal fez com o material fosse

distribuído para amigos e familiares do proprietário do ferro velho, ampliando a

contaminação. As pessoas contaminadas quase que imediatamente passaram sentir os

efeitos da radiação no organismo: perda do paladar, náuseas, vômitos, dores e

queimaduras na pele. De início, os médicos não associaram esses sintomas à

contaminação radioativa, apenas no dia 29 de setembro de 1987, detectou-se a

Fig. 1 -Espelho (1975)Siron Franco –

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contaminação radioativa. Imediatamente as autoridades estaduais – polícia militar e

corpo de bombeiros isolam as áreas contaminadas – o prédio da Vigilância Sanitária e

os ferros-velhos e residências do bairro Popular – levando as famílias para a casa de

parentes. No dia seguinte, 30 de setembro, os técnicos da CNEN vieram para assumir o

controle da situação. No Ginásio Rio Vermelho, milhares de pessoas são monitoradas

com contador geiser a fim de detectar uma possível radiação. As irradiadas são isoladas

e levadas para o prédio da Fundação do Bem Estar do Menor (FEBEM) e para o

Albergue Bom Samaritano. Por outro lado, trabalhadores braçais (de órgão do Estado,

da Prefeitura e da iniciativa privada) são convocados para a tarefa de descontaminação

da cidade. Entre o dia 29 de setembro, quando foi descoberto o acidente pelas

autoridades, e o dia 23 de dezembro de 1987, quando Goiânia foi oficialmente declarada

descontaminada, a população da cidade passou por uma situação extrema angústia.

O Césio marcou a carreira e a vida de Siron Franco. Ele viveu sua infância no

Bairro Popular, local do acidente. Isso explica o impacto que este lhe causou:

Nem a morte de minha mãe me tocou tanto quanto este acidente. Eu vivi lá, na rua 74,

por 22 anos. Lá fiz amor pela primeira vez, me alfabetizei, fiz meus primeiros amigos.

Toda esta coisa cultural eu vivi lá. Lá é meu útero cultural. Todo este acidente mudou a

minha vida de vez, no sentido de que eu não consigo mais ser solidário só pintando.

(Depoimento de Siron Franco, 1987. In. Pereira, 1990: 251).

De fato, o envolvimento de Siron com o acidente radioativo transcendeu o

âmbito artístico: participou de passeatas, produziu máscaras de protestos, denunciou na

televisão e nos jornais o preconceito em relação à cidade de Goiânia. No entanto, foi

através da pintura que sua ação teve maior repercussão. Ele se isolou no seu ateliê e

passou a pintar e esculpir freneticamente durante dias: o resultado foi a série Goiânia

Rua 57, umas das mais conhecidas do autor. Estes quadros e outros que posteriormente

também fizeram referência ao acidente com o Césio serão objetos de análise como

exemplos da estética pós-moderna de Siron Franco.

Inegavelmente, o acidente radioativo provocou mudanças na arte pictórica de

Siron Franco, destacando-se a utilização de materiais inusitados:

Minha primeira experiência de trabalhar com terra foi em 87 durante o acidente

radioativo, quando falaram que tudo estava contaminado e ninguém queria comprar

nada dos produtores de Goiânia. (Entrevista de Siron Franco a Golin, s/d).

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Além da terra, foram utilizados concreto e chumbo. Todos esses materiais estão

relacionados de alguma forma ao acidente radioativo. A utilização de materiais não

tradicionais para produzir novos efeitos pictóricos não é novidade dentro da história da

arte: é impossível entender o aspecto revolucionário da arte renascentista sem levar em

conta a introdução da pintura a óleo. No entanto, no caso de Siron Franco, a introdução

de materiais não-convencionais é sintomática de uma nova concepção pós-moderna de

arte.

Enquanto na arte clássica, procura-se imitar a vida; na arte moderna, interpretá-

la; na arte pós-moderna, procura-se fundir a vida com a arte.

A utilização de terra não tem apenas o objetivo de se conseguir um vermelho-ferrugem forte

nos quadros da Rua 57, uma referência ao “Chão Vermelho1” que estava sendo raspado

pelo trabalhoso processo de descontaminação. O decisivo aqui é que a terra utilizada é

própria a terra de Goiânia. Isso faz com que o próprio material utilizado tenha uma

carga expressiva, interferindo na leitura que se pode fazer dessa obra de arte. É inegável

que para o intérprete que se deparar com o quadro Rua 57 (fig. 2), a informação de que

a terra usada juntamente com o óleo foi colhida em Goiânia na época do acidente

radioativo contribuirá para uma valorização simbólica do quadro, dando-lhe um efeito

quase místico.

Além disso, a pintura sobre o Césio de Siron Franco tornou-se mais comedida,

perdendo os seus matizes agressivos, com figuras monstruosas retratadas na tela. No

quadro Rua 57, por exemplo, o esboço de uma casa vazia transmite melancolia, pois não

há nada mais melancólico do que uma casa despojada de seus moradores e de seus

1 “Chão Vermelho” é nome de um romance de Eli Brasiliense, publicado em 1956, que tem como pano de fundo a Goiânia dos anos 50, ainda inconclusa, na qual se destacava o vermelho do solo. Curiosamente, com os trabalhos de descontaminação do Césio 137, a terra vermelha voltaria a se destacar nas imagens. No entanto, Goiânia não estava sendo mais construída, mas sim destruída. Sobre a imagem de Goiânia presente nesse livro, ver Oliveira, 2004:166-172.

Fig. 2- Rua 57 (1987)Siron Franco – Óleo sobre tela

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móveis. Uma referência as casas vazias que estavam sendo destruídas no processo de

descontaminação em Goiânia. Além disso, há um predomínio de cores sombrias, o

preto, o marrom e o vermelho escuro, contrastando com o brilho prata-azulado da

radioatividade. Há uma obscuridade na figura, quase uma indistinção entre os traços que

indicam a casa e o meio circundante: o vermelho da Rua 57, onde aconteceu o acidente.

Parece que o autor quer mostrar a casa desaparecendo aos poucos, sendo demolida,

tornando-se pó. A estética sironiana pós-Césio é discreta, respeitosa, sublime. Bem

diferente dos seus quadros anteriores.

Em outro quadro pintado em 1996, Outros

Gritos (fig. 3), Siron Franco continuou a

tematizar o acidente radioativo, como se

percebe na referência direta ao acidente no

inferior do quadro, por meio da expressão

invertida: “137OIZE”. O quadro mantém a

discrição do analisado anteriormente,

predominando a cor escura, destacando o

azul em algumas figuras. O elemento pós-

moderno desse quadro é justamente a

colagem das chapas radiográfica, uma referência direta a máquina de radiografia, de

onde foi retirada a bomba do Césio que causou a tragédia em Goiânia.

A utilização da realidade como arte

está presente também no Monumento da Paz

(fig. 4), construído num dos parques de

Goiânia, representando uma imensa

ampulheta cheia de terra. O sentido artístico

mais importante da obra está no fato de

conter terra (que foi realmente colhida, não

interpretada ou representada como tal) dos

cinco continentes. Em termos artísticos, que

diferença faria se a terra fosse colhida em

Goiânia Por que esse trabalho imenso de

sair buscando terra nos quatro cantos do mundo

Fig. 3 – Outros Gritos (1996)Siron Franco – Oléo sobre tela com colagem de chapas radiográficas

Fig. 4 – Monumento à Paz Mundial Siron Franco –

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Conclusão

As indagações anteriores podem ser melhor esclarecidas a partir daquilo que

Slavoj Zizek denominou de “paixão do real”, como característica básica da época atual.

Segundo ele, o final do século XX – ao contrário do século XIX, o século da utopia -

foi uma época em que se tem uma verdadeira paixão pelo o que é real. A causa disso é

porque se vive num ambiente em que não se distingue com facilidade o que é real do

que é virtual. A virtualidade não invadiu apenas o computador e o cinema, mas também

a vida cotidiana:

On today’s market, we find a whole series of products deprived of their malignant

properties: coffee without caffeine, cream without fat, beer without alcohol... And the

list goes on: what about virtual sex as sex without sex (...) (Zizek, 2002:10).

Então, num mundo dominando por coisas parecidas com o real, as experiências

verdadeiramente reais são valorizadas e buscadas. Desse modo, a epidemia dos reality-

shows não poderia ser explicada pela constatação de que as tele-novelas não estão mais

satisfazendo plenamente as pessoas? Zizek, fazendo uma analogia com os cutters

(pessoas que têm um prazer em se cortarem), diz que a conseqüência dessa paixão pelo

real é a valorização da violência “perceived and endorsed as a sign of authenticity”

(idem, 05).

A constatação de que a sociedade atual tem “paixão pelo real” é bastante

frutífera para explicar a obsessão da arte em flertar com coisas reais. Desse modo, os

elementos reais (materiais) presentes nas obras de Siron Franco (a terra de Goiânia,

chapas radiográficas, etc.) podem ser vistos como uma forma de garantir uma maior

autenticidade a arte. Se a reprodutibilidade técnica retirou a aura da arte, é preciso ir

além da mera representação para fazê-la emocionar ou chocar. No caso das obras de

Siron Franco sobre o Césio, o uso de materiais “autênticos” confere as obras um caráter

místico de um memorial. Se a arte surgiu da magia nas cavernas pré-históricas e

gradativamente se tornou um campo autônomo, parece agora necessário um novo

reencantamento da obra de arte.

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A arte, em maior e maior grau, sempre esteve ligada a realidade. Mesmo no

mundo egípcio, onde os artistas imaginavam um ser humano com uma cabeça de uma

ave havia uma conexão com a realidade, já que as obras artísticas reproduziam uma uma

visão de mundo na qual era perfeitamente plausível a existência de seres divinos

antropozoomórficos. Por outro lado, os gregos mantiveram um ideal de que arte deveria,

ao mesmo tempo, manter a fidelidade a natureza e manter o padrão de beleza. De

acordo com Panofsky

Ao lado das anedotas, fontes de infinitas variações, sobre os cachos de uvas pintados

que os pássaros vêm bicar, sobre as pinturas de cavalos diante das quais os cavalos reais

relincham, sobre a cortina pintada capaz de proporcionar, mesmo ao olhar do pintor, a

ilusão da realidade, juntamente com os incontáveis epigramas dedicados à vaca de

Míron, que se assemelhava verdadeiramente a uma vaca real, afirma-se que as obras de

um Policleto haviam dado à aparência uma ‘uma beleza mais verdadeira do que o

natural’; desaprova-se, por outro lado, o pintor Demitrius, por exagerar a fidelidade à

natureza e colocar a semelhança à frente da beleza (...). (Panofsky, 1994: 18-19)

No entanto, na arte contemporânea, radicalizou-se o desejo de imitar a natureza e

perdeu-se o interesse pelo belo clássico. Agora, a utilização freqüente de “pedaços da

realidade” nas obras de arte torna se fluidos os limites entre o que é arte e o que não é.

Ao se abolir a metáfora, o símbolo e a alegoria da obra de arte o que sobra Apenas a

estética do choque é suficiente Alguns acham que não:

La atención de los artistas se ha centrado en los aspectos más violentos y más crudos de

la realidad: los tema de la muerte y del sexo son los que cobran mayor relieve. No se

trata – como en el passado – de una representación lo más verídica posible de estas

realidades, sino de una exposición directa y pobre en mediaciones simbólicas de eventos

que suscitan turbación, repugnância, además de aversión y horror. (Perniola, 2002: 18).

Perniola está se referindo provavelmente a Body art, na qual o sangue e a dor

metafóricos (como na arte barroca, por exemplo) tornam-se reais. Foi o caso do

performer australiano Stelarc que deixou o seu corpo nu suspenso num teto de uma

galeria de arte por meio de 25 anzóis2; ou a exposição de cadáveres pelo mundo afora,

as plásticas visando intencionalmente deformar a aparência. Esse não é um fenômeno

restrito às artes plásticas: muitos cinemas-pornôs (onde a representação do sexo bastava

2 O exemplo foi retirado de Selligman-Silva (2003:37).

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para os freqüentadores) atualmente só sobrevivem mostrando espetáculos de sexo ao

vivo.

Enfim, a obra de Siron Franco ajuda a pensar nessas questões, ao permitir as

transformações que marcam as preferências estéticas de artistas e apreciadores

contemporâneos.

Bibliografia

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996.

GULLAR, Ferreira. “A pintura e a vida de Siron Franco”. In: MARGS. Siron Franco pinturas. Porto Alegre, 1999. P. 21-25.

OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. História Cultural de Goiânia. Goiânia: Editora Alternativa, 2003.

_________. “As imagens de Goiânia na literatura mudancista”. In CHAUL, Nasr Fayad; DUARTE, Luís Sérgio. As cidades dos sonhos. Goiânia: editora da UFG, 2004. P. 137-202.

PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito de belo. São Paulo: Martins Fontes,

1994.

PEREIRA, Eliane Martins Camargo Manso. O realismo maravilhoso de Siron Franco. Goiânia, Dissertação (Mestrado em História), UFG, 1990.

PERNIOLA, Mario. El arte y su sombra. Madri: Cátedra, 2002.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. “Arte, dor e Kátharsis ou Variações sobre a arte de pintar o grito”. In. ALEA, v.5, n. 1. Jan/jun, 2003; p. 29-46.

VIEIRA, Emílio. O expressionismo em Bernardo Élis e Siron Franco. Goiânia: Editora da UFG, 2000.

ZIZEK, Slavoj. Welcome to the desert of the real. London: Verso, 2002.