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Doze Pistas Falsas Título original: Twelve- Red Herrings Jeffrey Archer Nos doze contos que compõem esta obra, Jeffrey Archer faz uso de pistas falsas para conduzir o leitor, de forma elegante e engenhosa, à idéia de que as coisas não são o que realmente parecem ser. Cada desfecho é uma espetacular surpresa. "Jeffrey Archer é mestre em entreter." TIME "Um romancista da classe e estilo de Alexandre Dumas." WASHINGTON POST Jeffrey Archer tem sido aclamado "como, provavelmente, o maior contista de nossa época" Suas istórias são assim descritas pelo Sunday Express.. Leia também: Caim e Abel A Filha Pródiga O Homicídio Perfeito Honra entre Ladrões Primeiro entre Iguais O Vôo do Corvo Doze Pistas Falsas Jeffrey Archer Tradução Maria D. Alexandre BERTRAND BRASIL Copyright (c) 1994 by Jeffrey Archer Título original: Twelve- Red Herrings Capa: projeto gráfico de B4 Comunicação Editoração eletrônica: Imagem Virtual, Nova Friburgo, RJ 1996 Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, ]. Archer, Jeffrey, 1940- A712d Doze Pistas Falsas / feffrey Archer ; tradução Maria D. Alexandre - Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1996. Tradução de: Twelve Red Herrings ISBN 85-280-0576-0 96-1044 1. Ficção inglesa. I. Alexandre, Maria D. II. Título. CDD - 823 CDU - 820-3 Todos os direitos reservados pela: UBCD UNIÃO DE EDITORAS S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20° andar - Centro 20040-004 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021) 263-2082 Fax: (021) 263-6112 Av. Paulista, 2.073 - Conj. Nacional - Horsa I - Salas 1301/2 01311 -300 - São Paulo - SP Tels.: (011)251-2377/285-4941 Fax: (011)285-5409/287-6570 Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal. Para Chris, Carol... e Alyson

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Doze Pistas Falsas Título original: Twelve- Red Herrings Jeffrey Archer

Nos doze contos que compõem esta obra, Jeffrey Archer faz uso de pistas falsas para conduzir o leitor, de forma elegante e engenhosa, à idéia de que as coisas não são o que realmente parecem ser. Cada desfecho é uma espetacular surpresa. "Jeffrey Archer é mestre em entreter." TIME "Um romancista da classe e estilo de Alexandre Dumas." WASHINGTON POST Jeffrey Archer tem sido aclamado "como, provavelmente, o maior contista de nossa época" Suas istórias são assim descritas pelo Sunday Express..

Leia também: Caim e Abel A Filha Pródiga O Homicídio Perfeito Honra entre Ladrões Primeiro entre Iguais O Vôo do Corvo

Doze Pistas Falsas Jeffrey Archer

Tradução Maria D. Alexandre BERTRAND BRASIL Copyright (c) 1994 by Jeffrey Archer Título original: Twelve- Red Herrings Capa: projeto gráfico de B4 Comunicação Editoração eletrônica: Imagem Virtual, Nova Friburgo, RJ 1996 Impresso no Brasil Printed in Brazil CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, ]. Archer, Jeffrey, 1940- A712d Doze Pistas Falsas / feffrey Archer ; tradução Maria D. Alexandre - Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1996. Tradução de: Twelve Red Herrings ISBN 85-280-0576-0 96-1044 1. Ficção inglesa. I. Alexandre, Maria D. II. Título. CDD - 823 CDU - 820-3 Todos os direitos reservados pela: UBCD UNIÃO DE EDITORAS S.A. Av. Rio Branco, 99 - 20° andar - Centro 20040-004 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (021) 263-2082 Fax: (021) 263-6112 Av. Paulista, 2.073 - Conj. Nacional - Horsa I - Salas 1301/2 01311 -300 - São Paulo - SP Tels.: (011)251-2377/285-4941 Fax: (011)285-5409/287-6570 Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora. Atendemos pelo Reembolso Postal.

Para Chris, Carol... e Alyson

Sumário

Erro Judicial 9 Pela Metade do Preço* 75 O Braço Direito de Dougie Mortimer* 91 Passagem Proibida* 113 Sem Luz no Fim do Túnel* 131 O Engraxate* 151 Você não Viverá para se Arrepender* 181 Nunca Pare na Estrada* 197 Nem Tudo Está à Venda 213 "Timeo Danaos..."* 239 Olho por Olho* 255 Como Prefere a Carne? 277

* As histórias, cujo título é seguido de um asterisco, são baseadas em incidentes conhecidos (embora algumas delas tenham sido consideravelmente alteradas). As restantes são produto da minha imaginação. Julho de 1994

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J. A.

ERRO JUDICIAL É DIFÍCIL SABER EXATAMENTE POR ONDE COMEÇAR. Mas, primeiro, vou explicar por que motivo estou na prisão. Foi um julgamento que durou dezoito dias, e, desde o momento em que o juiz entrou na sala do tribunal, os bancos destinados ao público transbordavam de gente. O júri do Tribunal Real de Leeds estivera reunido durante quase dois dias, e corria o boato de que os jurados se encontravam irremediavelmente divididos. Na bancada dos advogados falava-se em jurados demitidos e segundos julgamentos, já que haviam passado mais de oito horas desde que Sua Excelência o juiz Cartwright dissera ao primeiro jurado que o veredicto não precisava ser unânime: seria aceitável uma maioria de dez. Subitamente, constatou-se certa agitação nos corredores, e os membros do júri dirigiram-se em silêncio a seus lugares. A imprensa e o público precipitaram-se para o interior da sala do tribunal. Todos tinham os olhos postos no primeiro jurado, um homenzinho gordo, de aspecto jovial, que envergava jaquetão, camisa listrada e a gravata-borboleta colorida, e que se esforçava por apresentar aspecto solene. Parecia o tipo do sujeito com quem, em circunstâncias normais, eu teria gostado de beber uma cerveja no bar mais próximo. Mas aquela circunstância não era normal. Quando voltei a subir os degraus que levavam ao banco dos réus, meu olhar caiu sobre uma bonita loura que estivera todos os dias na platéia. Perguntei a mim mesmo se ela assistiria a todos os julgamentos sensacionais ou se aquele a fascinava especialmente. 11

Não mostrava o mínimo interesse por mim e, como todo mundo, concentrava toda a sua atenção no primeiro jurado. O escrivão do tribunal, que usava peruca e envergava longa túnica preta, ficou de pé e leu as palavras escritas num cartão, que, segundo penso, já devia saber de cor. - O primeiro jurado queira, por favor, levantar-se. O homenzínho jovial ergueu-se lentamente. - Responda sim ou não à minha pergunta. Os senhores jurados chegaram a algum veredicto com que pelo menos dez membros do júri tenham concordado? - Sim, chegamos. - Senhores jurados, consideram o réu culpado ou inocente da acusação que lhe é imputada? Fez-se total silêncio na sala do tribunal. Meus olhos estavam cravados no jurado da gravatinha colorida. O homem pigarreou e disse... Conheci Jeremy Alexander em 1978, num seminário de treinamento da CBI, em Bristol. Cinqüenta e seis companhias inglesas, em busca de expansão pela Europa, tinham-se reunido para obter esclarecimentos sobre direito comunitário. Quando me inscrevi no seminário, a Cooper, companhia da qual eu era administrador, tinha cento e vinte sete veículos de diversos pesos e tamanhos, e se transformava rapidamente numa das maiores empresas privadas de transportes da Inglaterra. Meu pai havia fundado a firma em 1931, começando com três veículos, dois deles puxados por cavalos, e um limite de crédito de dez libras na filial local do Banco Martins. Na época em que nos tornamos Cooper & Filho, em 1967, a companhia dispunha de dezessete veículos com quatro rodas ou mais e transportava mercadorias para toda a região norte da Inglaterra. Mas o velho continuava recusando resolutamente exceder seu limite de crédito de dez libras. Certa vez, durante uma queda do mercado, manifestei a opinião de que deveríamos tentar expandir-nos, procurando no- 12 vos negócios, talvez até no continente. Mas meu pai não me deu ouvidos. "Não vale a pena correr esse risco", declarou. Não confiava em pessoa alguma que tivesse nascido ao sul do Humber e muito menos nas que haviam nascido do outro lado do canal. "Se Deus colocou aquela água entre nós, sabia o que estava fazendo", foram suas palavras definitivas sobre o assunto, o que me provocaria vontade de rir se não soubesse que ele estava falando sério. Quando se

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aposentou, em 1977, aos setenta anos de idade, e com certa relutância ocupei o lugar de administrador e comecei a pôr em prática algumas idéias que havia elaborado durante a década anterior, apesar de saber que meu pai não as aprovava. A Europa foi apenas o início de meus planos para a expansão da companhia: cinco anos depois, decidi transformá-la em sociedade anônima. Nessa ocasião, percebi que necessitaria de um empréstimo de pelo menos um milhão de libras e, para isso, teria de transferir nossa conta para um banco que reconhecesse que o mundo se estendia além das fronteiras do condado de Yorkshire. Foi então que tomei conhecimento do seminário da CBI, em Bristol, e me inscrevi. O seminário começou na sexta-feira, com o discurso de abertura do presidente do Diretório Europeu da CBI. Depois disso, os delegados dividiram-se em oito pequenos grupos de trabalho, cada um deles presidido por um perito em direito comunitário. Meu grupo era dirigido por Jeremy Alexander. Admirei-o desde o momento em que começou a falar. Na realidade, não seria exagerado afirmar que fiquei assombrado. Era dotado de absoluta auto-segurança e, como eu viria a constatar, capaz de apresentar, sem esforço, algum argumento convincente sobre qualquer assunto, desde a superioridade do Código de Napoleão até a inferioridade da produção inglesa de algodão. Falou durante uma hora sobre as diferenças fundamentais entre as práticas e procedimentos dos estados-membros da Comunidade e, em seguida, respondeu a todas as nossas perguntas sobre direito comercial e empresarial, ainda encontrando tempo para 13 explicar a importância da crise uruguaia. Como eu, os outros membros do grupo não paravam de tomar notas. Fizemos um intervalo para o almoço alguns minutos antes da uma hora, e consegui arranjar um lugar ao lado de Jeremy. Já estava começando a pensar que ele seria a pessoa ideal para me aconselhar quanto à forma de pôr em prática minhas ambições européias. Ouvindo-o falar sobre sua carreira enquanto comíamos empadão de peixe com pimentões vermelhos, me dava conta de que, apesar de termos a mesma idade, não poderíamos ter vindo de extratos mais diferentes. O pai de Jeremy, banqueiro de profissão, tinha fugido da Europa Oriental alguns dias antes de estourar a Segunda Guerra Mundial. Instalou-se na Inglaterra, anglicanizou seu nome e mandou seu filho para Westminster, de onde Jeremy foi para o King's College de Londres e fez o curso de direito, licenciando-se com notas altas. Meu pai foi um homem que se fez à própria custa em Yorkshire Dales e insistiu para que eu parasse de estudar mal terminei o curso secundário. "Eu lhe ensino mais sobre a vida real num mês do que você aprenderia durante uma vida inteira com esses tipos da universidade", costumava dizer. Aceitei sua filosofia sem duvidar dela e deixei o colégio algumas semanas depois de fazer dezesseis anos. Na manhã seguinte, comecei a trabalhar na Coopers como aprendiz e passei os três primeiros anos no armazém, sob o olhar vigilante de Buster Jackson, o chefe das oficinas, que me ensinou a desmontar todos os veículos da companhia e, o que era mais importante, a montá-los de novo. Depois de terminar meu curso de oficina, passei dois anos no departamento de contabilidade, aprendendo a calcular os preços e a cobrar dívidas difíceis. Algumas semanas depois de fazer vinte e um anos, passei no exame de habilitação para conduzir veículos pesados e, durante os três anos seguintes, percorri o norte da Inglaterra, entregando de tudo, de animais a abacaxis, a nossos clientes mais afastados. Jeremy havia passado esse mesmo período preparando uma tese de mestrado, na Sorbonne, sobre o Código de Napoleão. Quando Buster Jackson se aposentou, passei para o armazém 14 de Leeds, como chefe das oficinas. Jeremy estava em Hamburgo, preparando uma tese de doutorado sobre barreiras comerciais internacionais. Na época em que finalmente abandonou o mundo acadêmico e obteve seu primeiro emprego como sócio de uma grande firma de advogados comerciais em Londres, eu estava ganhando um salário de operário havia oito anos. Embora tivesse ficado impressionado com Jeremy durante o seminário, pressenti, velada em sua amabilidade superficial, uma forte mistura de ambição e esnobismo intelectual

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da qual meu pai teria desconfiado. Intuí que ele só aceitara fazer aquela preleção na esperança de, no futuro, obter alguns dividendos. Percebo agora que, desde nosso primeiro encontro, ele pensou que os dividendos seriam grandes. Não contribuiu muito para a impressão que me causou o fato de ele ter mais alguns centímetros de altura do que eu e, na cintura, alguns a menos. Isso para não lembrar que a mulher mais atraente do curso acabou indo parar na sua cama na noite de sábado. Encontramo-nos no domingo pela manhã para jogar squash, e ele me derrotou completamente, sem parecer sequer transpirar muito. -Temos de nos encontrar outra vez - disse Jeremy, enquanto nos dirigíamos para os chuveiros. - Se está realmente pensando em lançar-se na Europa, talvez eu possa ajudá-lo. Meu pai me recomendara que nunca cometesse o erro de imaginar que amigos e colegas fossem necessariamente animais do mesmo tipo (muitas vezes, citava o Conselho de Ministros como exemplo). Por isso, embora não gostasse dele, antes de partir de Bristol, no final da conferência, já tinha em meu poder os diversos números de telefone e de fax de Jeremy. Voltei para Leeds no domingo à noite e, quando cheguei a casa, corri ao andar de cima e me agachei aos pés da cama, deleitando minha sonolenta mulher com o relato de um fim de semana que se revelara proveitoso. Rosemary era minha segunda mulher. A primeira, Helen, estudou no Colégio Feminino de Leeds à mesma época em que eu freqüentava o colégio vizinho. Os dois estabelecimentos 15 partilhavam um único ginásio, e, aos treze anos de idade, apaixonei-me ao vê-lajogar basquete. Depois disso, todas as desculpas me serviam para ir ao ginásio, na esperança de vislumbrar seus calções azuis quando ela pulava para lançar a bola certeira na cesta. Como os dois colégios promoviam diversas atividades conjuntas, comecei a me interessar vivamente por produções teatrais, apesar de não saber representar. Assisti a debates, sem nunca abrir a boca. Inscrevi-me na orquestra conjunta e acabei tocando triângulo. Depois de sair do colégio e ir trabalhar na oficina, continuei a ver Helen, que estava fazendo o segundo grau. Apesar de minha paixão, só fizemos amor quando já tínhamos dezoito anos, e, mesmo assim, não tenho certeza de termos consumado o ato. Seis semanas depois, ela me disse, debulhada em lágrimas, que estava grávida. Contra a vontade dos pais dela, que tinham esperanças de vê-la na universidade, fizemos um casamento apressado. Mas eu, que não pretendia olhar para outra mulher durante o resto de minha vida, sentia-me secretamente encantado com o resultado de nosso pecado juvenil. Helen morreu na noite de 14 de setembro de 1964, ao dar à luz nosso filho, tom, que sobreviveu apenas uma semana. Pensei jamais conseguir vencer o desgosto e não estou certo de que tenha conseguido. Depois de sua morte, não olhei para uma única mulher durante anos, dedicando toda a minha energia à empresa. Depois dos funerais de minha mulher e meu filho, meu pai, que não era homem compassivo ou sentimental (não se encontram muitos no Yorkshire), revelou-me um aspecto sensível de seu caráter, que eu ainda não tivera oportunidade de conhecer. Telefonava-me muitas vezes à noite para saber como eu estava e insistia para que eu fosse com ele regularmente para o camarote da administração em Elland Road, para ver o Leeds United jogar aos sábados à tarde. Comecei a compreender, pela primeira vez, por que motivo minha mãe ainda o adorava depois de mais de vinte anos de casamento. Conheci Rosemary cerca de quatro anos depois, num baile organizado para inaugurar o Festival de Música de Leeds. Não era meu habitat natural, mas, como a Cooper tinha um anúncio de uma página no programa e o brigadeiro Kershaw, o xerife-mor do condado e presidente do comitê do baile, nos havia convidado, 16 não tive alternativa senão vestir meu smoking, raramente usado, e acompanhar meus pais ao baile. Fui colocado na mesa 17, ao lado de uma senhorita Kershaw, que, afinal, era a filha do xerife-mor. Estava elegantemente trajada com um vestido azul sem alças que realçava sua figura graciosa. Tinha cabelos ruivos e um sorriso que me fez sentir que éramos amigos há muitos anos. Enquanto comíamos uma coisa descrita no cardápio como "Abacate com ervas aromáticas",

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contou-me que tinha terminado o curso de inglês na Universidade de Durham e não sabia ao certo o que fazer da vida. - Não quero ser professora - disse. - E não fui feita para ser secretária. - Conversamos durante o segundo e o terceiro pratos sem prestar atenção às pessoas que estavam sentadas ao nosso lado. Depois do café, ela me arrastou para a pista de dança, onde continuou a expor os problemas que enfrentava diante de qualquer espécie de trabalho quando sua agenda estava tão cheia de compromissos sociais. Fiquei muito lisonjeado com o mínimo de interesse que a filha do xerife-mor demonstrou por mim, mas, para falar com franqueza, não a levei a sério quando, no fim da festa, sussurrou ao meu ouvido: - Vamos manter contato. Alguns dias depois, entretanto, ela me telefonou, convidando-me para almoçar com ela e seus pais no domingo seguinte, na casa de campo da família. - Talvez pudéssemos jogar um pouco de tênis depois. Você joga tênis, não joga? No domingo, entrei no carro e fui até Church Fenton, descobrindo que a residência dos Kershaw era exatamente como eu a imaginava... grande e decadente, descrição que, pensando bem, também servia para o pai de Rosemary; um tipo simpático, entretanto. A mãe dela, porém, não era tão fácil de agradar. Tinha nascido em Hampshire e foi incapaz de disfarçar a sensação de que, apesar de eu servir para fazer, de vez em quando, donativos com fins de caridade, não era, de forma alguma, o tipo de pessoa com quem ela pretendia compartilhar seu almoço de domingo. 17

Rosemary fingiu que não ouvia os antipáticos comentários da mãe e continuou conversando comigo sobre meu trabalho. Como choveu durante toda a tarde, nunca chegamos a jogar tênis, e Rosemary utilizou esse tempo para me seduzir, no pequeno pavilhão por trás da quadra. A princípio senti-me nervoso por namorar a filha do xerife-mor, mas logo me habituei à idéia. No entanto, à medida que as semanas passavam, comecei a me questionar se, para ela, aquilo seria mais do que mera "fantasia com um caminhoneiro". Isso, evidentemente, até ela começar a falar em casamento. A senhora Kershaw não conseguiu esconder seu desgosto diante da idéia de que uma pessoa como eu pudesse vir a ser seu genro, mas a opinião dela revelou-se inútil, pois Rosemary mostrava-se inflexível. Casamos dezoito meses mais tarde. Mais de duzentos convidados compareceram ao grandioso casamento campestre, na igreja paroquial de St. Mary. Mas confesso que, quando fiz meia-volta para ver Rosemary avançar pela nave da igreja, meus pensamentos se voltaram para a cerimônia de meu primeiro casamento. Durante alguns anos, Rosemary fez todos os esforços possíveis para ser boa esposa. Interessou-se pela companhia, aprendeu os nomes de todos os empregados, até se fez amiga das mulheres de alguns dos executivos. Mas, como eu trabalhava durante todas as horas que Deus me concedia, receio não lhe ter prestado toda a atenção de que ela necessitava. Rosemary pretendia uma vida feita de idas regulares ao Grand Theatre for Opera North, seguidas de jantares com seus amigos do condado que durassem até a madrugada, enquanto eu preferia trabalhar nos fins de semana e estar na cama antes das onze, na maior parte das vezes. Para Rosemary, eu não estava sendo o marido que dera título à peça de Oscar Wilde* que ela me levara recentemente para ver... e o fato de eu ter adormecido durante o segundo ato não ajudou muito. Ao fim de quatro anos sem filhos (não que Rosemary não fosse ativa na cama), começamos a seguir caminhos separados. Se ela An Ideal Husband ("Um Marido Ideal"). (N. da T.) 18 começou a ter amantes (e eu também, sem dúvida, sempre que tinha tempo para isso), mostrou-se discreta a esse respeito. E, então, conheceu Jeremy Alexander. Devem ter passado cerca de seis semanas após o seminário em Bristol antes que eu tivesse ocasião de telefonar para Jeremy a fim de lhe pedir conselhos. Pretendia fechar negócio com uma companhia francesa de queijos, no sentido de transportar suas mercadorias para supermercados britânicos. No ano anterior, tinha perdido bastante dinheiro em

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empreendimento semelhante com uma companhia cervejeira alemã e não podia dar-me ao luxo de cometer novamente o mesmo erro. - Mande-me todos os detalhes - disse Jeremy. - Eu estudo a papelada no fim de semana e lhe telefono na segunda pela manhã. Cumpriu a palavra e, quando telefonou, disse-me que estaria em York na quinta-feira seguinte para falar com um cliente, sugerindo-me que nos reuníssemos depois para analisar o contrato. Concordei, e passamos a maior parte daquela sexta-feira fechados na sala de reuniões da Cooper, esmiuçando todos os pontos do contrato. Foi um prazer ver aquele profissional trabalhar, apesar de Jeremy manifestar, de vez em quando, o irritante hábito de tamborilar os dedos sobre a mesa quando eu não compreendia imediatamente onde ele queria chegar. Constatei que Jeremy já havia falado com o advogado da companhia francesa em Toulouse as restrições que poderia ter. Assegurou-me que, embora Monsieur Sisley não falasse inglês, ele já o pusera a par de nossas dúvidas. Recordo-me de ter ficado sobressaltado com o emprego da palavra "nossas". Depois de termos virado a última página do contrato, percebi que todo mundo que trabalhava no edifício já tinha partido para o fim de semana, de modo que sugeri a Jeremy que jantasse em minha casa, comigo e com Rosemary. Ele consultou o relógio, ponderou a oferta durante um momento e depois disse: 19

- Obrigado, é muito gentil de sua parte. Pode deixar-me no Queen's Hotel para mudar de roupa? Rosemary, no entanto, não ficou satisfeita de só ter sido avisada na última hora que eu havia convidado um estranho para jantar, embora eu tivesse garantido que ela iria gostar dele. Jeremy tocou a campainha da porta poucos minutos depois das oito. Quando lhe apresentei Rosemary, fez uma ligeira reverência e beijou-lhe a mão. Depois disso, não tiraram os olhos um do outro durante toda a noite. Só um cego deixaria de ver o que tinha todas as possibilidades de vir a acontecer, e, embora eu não fosse cego, a verdade é que fechei um olho. Logo, Jeremy começou a arranjar desculpas para passar cada vez mais tempo em Leeds, e devo confessar que seu súbito entusiasmo pelo norte da Inglaterra me permitiu fazer progredir minhas ambições para a Cooper muito mais rapidamente do que eu sonhara ser possível. Há algum tempo eu achava que a companhia necessitava de um advogado e, um ano depois de nosso primeiro encontro, ofereci a Jeremy um lugar na diretoria, com a missão de preparar a companhia para se tornar uma sociedade anônima. Durante esse período, passei grande parte do tempo em Madri, Amesterdã e Bruxelas, batalhando novos contratos, e não há dúvida de que Rosemary não me desencorajou. Enquanto isso, Jeremy orientava habilmente a companhia ao longo de uma floresta de problemas legais e financeiros provocados por nossa expansão. Graças à sua diligência e experiência, conseguimos anunciar em 12 de fevereiro de 1980 que a Cooper iria solicitar a inclusão de ações na Bolsa durante esse ano. Foi então que cometi meu primeiro erro: convidei Jeremy para o cargo de administrador da companhia. Segundo os termos do lançamento de ações, cinqüenta e um por cento das ações ficariam em meu poder e de Rosemary. Jeremy explicou-me que, por motivos fiscais, elas deveriam ser divididas igualmente entre nós. Meus contadores concordaram, e, naquela ocasião, não pensei duas vezes. As restantes 4.900.000 ações de uma libra foram rapidamente absorvidas por instituições e pelo público em geral, e poucos dias depois que a companhia 20 começou a fazer parte da Bolsa, seu valor tinha subido para duas libras e oitenta. Meu pai, que morrera no ano anterior, nunca teria compreendido que fosse possível passarmos a valer vários milhões de libras de um dia para o outro. Na realidade, acho que ele teria mesmo desaprovado essa idéia, pois morreu ainda convencido de que um crédito de dez libras era perfeitamente adequado para a condução de um negócio bem gerido. Durante a década de 1980, a economia inglesa revelou crescimento contínuo, e, em março de 1984, as ações da Cooper tinham ultrapassado

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o marco das cinco libras, seguindo-se especulações da imprensa em relação a uma possível redistribuição. Jeremy havia me aconselhado a aceitar uma das ofertas, mas eu lhe dissera que nunca permitiria que a Cooper saísse do controle da família. Depois disso, tivemos de dividir as ações em três ocasiões diferentes, e, por volta de 1989, o Sunday Times avaliou nossa fortuna (minha e de Rosemary em conjunto), em cerca de trinta milhões de libras. Eu nunca tinha pensado a meu respeito em termos de uma pessoa rica... afinal, para mim, as ações não passavam de pedaços de papel nas mãos de Joe Ramsbottom, advogado da companhia. Eu continuava a viver na casa de meu pai, guiava um Jaguar, já com cinco anos, e trabalhava quatorze horas por dia. Nunca tinha dado grande importância às férias e não era extravagante por natureza. A riqueza parecia-me, de certa forma, pouco importante. Eu me sentiria feliz em continuar vivendo da mesma forma se, certa noite, não tivesse chegado em casa inesperadamente. Havia conseguido embarcar no último avião, de regresso a Heathrow após negociações particularmente longas e árduas em Colônia, e de início planejara passar a noite em Londres. Mas já estava farto de hotéis e queria ir logo para casa, apesar de ter de dirigir durante muito tempo. Quando cheguei a Leeds, alguns minutos depois de uma hora da madrugada, encontrei o BMW branco de Jeremy estacionado próximo à minha porta. Se eu tivesse telefonado a Rosemary durante o dia, talvez nunca tivesse ido parar na prisão. 21

Estacionei meu carro ao lado do de Jeremy e já me dirigia para a porta da frente quando notei que havia apenas uma luz acesa na casa... no quarto da frente, no primeiro andar. Não precisaria ser um Sherlock Holmes para deduzir o que estaria acontecendo naquele quarto. Detive-me e fiquei olhando as cortinas cerradas durante algum tempo. Nada se mexia, de modo que era evidente que eles não tinham ouvido o barulho do carro e não tinham percebido a minha presença. Retornei então ao carro e guiei tranqüilamente para o Centro da cidade. Quarldo cheguei ao Queen's Hotel, perguntei ao gerente de plantão se o senhor Jeremy Alexander tinha reservado um quarto para aquela noite. Ele consultou o registro e confirmou que sim. - Então eu fico com a chave dele - disse-lhe. - O senhor Alexander registrou-se em outro hotel para passar a noite. - Meu pai teria ficado orgulhoso com aquela poupança de recursos da companhia. Estendi-me na cama do hotel, sem conseguir dormir, cada vez mais furioso à medida que as horas passavam. Embora já não sentisse muito afeto por Rosemary e até aceitasse a idéia de que talvez nunca tivesse sentido, agora odiava Jeremy. Mas só no dia seguinte descobri até que ponto o odiava. Na manhã seguinte, telefonei para minha secretária e disse-lhe que regressaria ao escritório diretamente de Londres. Ela me recordou que havia uma reunião do conselho marcada para as duas horas e que estava agendado que o senhor Alexander presidiria. Fiquei feliz por ela não poder ver o sorriso de satisfação que se espalhou em meu rosto. Uma rápida consulta à agenda durante o desjejum tornou perfeitamente claro o motivo de Jeremy pretender presidir aquela reunião em particular. Mas seus planos já não me interessavam. Tinha decidido informar os diretores sobre aquilo que ele pretendia exatamente e fazer com que fosse afastado da direção o mais depressa possível. Cheguei à Cooper pouco depois das 13:30h e estacionei o carro no espaço marcado PRESIDENTE. Na hora em que a reunião do conselho deveria começar, já tivera tempo de estudar meus 22 dossiês e perceber, dolorosamente, a quantidade de ações da companhia que era agora controlada por Jeremy, bem como o que ele e Rosemary deviam andar tramando há algum tempo. Jeremy abandonou a cadeira da presidência sem comentários logo que entrei na sala de reuniões e não revelou interesse especial nos procedimentos, até chegarmos ao ponto da agenda que dizia respeito a uma futura emissão de ações. Foi nesse momento que tentou introduzir uma moção aparentemente inócua, mas da qual resultaria

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que Rosemary e eu perdêssemos o controle total da companhia, sem que pudéssemos impedir qualquer oferta de aquisição futura. Eu poderia ter caído naquilo se não tivesse chegado a Leeds na noite anterior e encontrado seu carro estacionado em minha casa e a luz de meu quarto acesa. Precisamente quando ele julgava ter conseguido fazer passar a moção sem votação, pedi aos contadores da companhia que elaborassem um relatório completo para a próxima reunião do conselho, antes de chegarmos a qualquer decisão. Jeremy não revelou sinais de emoção. Limitou-se a olhar para suas anotações e depois a tamborilar com os dedos na mesa. Eu estava decidido a fazer com que o relatório viesse a provocar sua queda. Se eu não estivesse tão furioso, poderia, com tempo, ter preparado uma forma mais sensata de me ver livre dele. Como ninguém tinha "outras questões" a levantar, encerrei a reunião às I7:40h e sugeri que Jeremy e Rosemary jantassem comigo. Queria vê-los juntos. Jeremy não me pareceu muito interessado, mas, depois que fingi não compreender totalmente sua proposta de novas ações e insistir no fato de que minha mulher deveria ser informada a esse respeito, concordou. Quando telefonei para Rosemary comunicando-lhe que Jeremy iria jantar conosco, ela pareceu ainda menos entusiasmada com a idéia do que ele. - Talvez fosse melhor irem os dois a um restaurante sugeriu ela. - Jeremy poderia contar a você o que aconteceu durante sua ausência. - Esforcei-me para não rir. - E também estamos sem nenhuma comida especial - acrescentou. Disse-lhe que não era a comida o que mais me preocupava. Jeremy chegou tarde, o que não era de seu feitio, mas preparei 23 seu habitual uísque com soda logo que ele entrou. Devo dizer que fez uma brilhante representação durante o jantar, embora Rosemary fosse menos convincente. Durante o café, na sala de estar, consegui provocar o confronto que Jeremy tinha tão habilmente evitado durante a reunião do conselho. - Por que está tão interessado em levar adiante essa nova distribuição de ações? - perguntei, quando ele bebia o segundo brandy. - Por certo você sabe que retirará o controle da companhia das minhas mãos e das de Rosemary. Não percebe que seríamos rapidamente substituídos? Ele tentou algumas frases bem ensaiadas. - No melhor interesse da companhia, Richard. Você deve compreender que a Cooper está se expandindo muito rapidamente. Já não é uma sociedade familiar. A longo prazo, é preciso seguir um curso muito prudente para ambos, e isso para não mencionar os acionistas. - Gostaria de saber a que acionistas ele estaria se referindo. Fiquei um pouco surpreso ao constatar que Rosemary não só o apoiava como mostrava compreender perfeitamente os menores detalhes da cessão de quotas, mesmo depois de Jeremy ter franzido a testa de forma demasiado óbvia ao olhar para ela. Para quem nunca revelara o mínimo interesse pelas transações da companhia, parecia extremamente integrada nos argumentos que ele apresentava. Foi então que ela se voltou para mim e disse: "Temos de pensar em nosso futuro, querido". Finalmente perdi a cabeça. Os homens de Yorkshire são famosos por sua franqueza, e minha pergunta seguinte justificou plenamente a reputação do condado. - Por acaso vocês estão tendo um caso amoroso? Rosemary ficou vermelha como um pimentão. Jeremy deixou escapar uma gargalhada curta, excessivamente alta, e depois disse: - Acho que você bebeu demais, Richard. - Nem uma gota - garanti. - Estou sóbrio como um juiz. 24 1 Como estava quando cheguei ontem à noite e encontrei seu carro estacionado à minha porta e a luz do quarto acesa. Pela primeira vez desde que conhecera Jeremy, vi-o perder o equilíbrio, apesar de apenas por um momento. Começou a tamborilar com os dedos na mesa de vidro à sua frente. - Estava simplesmente explicando a Rosemary de que forma a emissão de novas ações a afetaria - disse ele, com toda a calma. - O que é exigido pelos regulamentos da Bolsa. - E existe algum regulamento da Bolsa que exige que essas explicações sejam dadas na cama? - Oh, não seja ridículo! - exclamou Jeremy. - Passei a noite no Hotel Queen. Telefone para o gerente - acrescentou, estendendo o aparelho para mim. - Ele pode confirmar que eu reservei meu quarto habitual. - Pode, com certeza - disse eu. - Mas também confirmará que eu

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passei a noite no seu quarto. No silêncio que se seguiu, tirei a chave do quarto do hotel do bolso do casaco e agitei-a diante dele. Jeremy pôs-se imediatamente de pé. Levantei-me também de minha cadeira, um pouco mais lentamente, e o encarei, perguntando a mim mesmo o que iria ele dizer a seguir. - A culpa é sua, seu idiota! - esbravejou ele finalmente. Devia ter mostrado mais interesse por Rosemary, para começar, em vez de ficar percorrendo toda a Europa. Não se admire de também correr o risco de perder a empresa. Engraçado que o que mais me enfureceu não foi o fato de Jeremy ter dormido com minha mulher, mas a arrogância de pensar que também poderia ficar com minha empresa. Não respondi. Limitei-me a dar um passo à frente e aplicar um murro em seu queixo bem barbeado. Posso ser alguns centímetros mais baixo do que ele, mas em vinte anos de convivência com caminhoneiros aprendi a aplicar um murro eficiente. Jeremy cambaleou, primeiro para trás, depois para frente, antes de cair aos meus pés. Ao cair, bateu com a têmpora direita na quina da mesa de 25 vidro, derramando o brandy no chão. Ficou imóvel na minha frente, com o sangue escorrendo sobre o tapete. Devo confessar que fiquei muito satisfeito comigo mesmo, especialmente quando Rosemary correu para perto dele e começou a gritar barbaridades para mim. - Poupe o fôlego para seu ex-administrador - respondi-lhe - E, quando ele acordar, diga-lhe que não se incomode de ir para o Queen's Hotel, porque vou dormir outra vez na cama dele esta noite. Saí de casa em grandes passadas e voltei de carro para o Centro da cidade, deixando-o no estacionamento do hotel. Quando entrei no Queen's, o vestíbulo estava deserto e entrei no elevador, indo diretamente para o quarto de Jeremy. Deitei-me na cama, mas estava muito agitado para conseguir dormir. Estava finalmente começando a cochilar quando quatro policiais entraram no quarto e me arrancaram da cama. Um deles disse que eu estava preso e leu meus direitos. Sem mais explicações, levaram-me para fora do hotel e conduziram-me para o posto policial de Millgarth. Alguns minutos depois das cinco horas, fui registrado pelo oficial de serviço e retiraram meus pertences, que foram guardados num volumoso envelope pardo. Disseram-me que tinha o direito de dar um telefonema, de modo que liguei para Joe Ramsbottom, acordei a mulher dele e perguntei-lhe se Joe poderia me procurar na prisão o mais depressa possível. Depois trancaram-me numa pequena cela e deixaram-me só. Sentei-me no banco de madeira e tentei compreender por que tinha sido preso. Não podia acreditar que Jeremy tivesse sido tão louco a ponto de me acusar de agressão. Quando Joe chegou, cerca de quarenta minutos depois, contei-lhe exatamente o que tinha acontecido. Ele escutou atentamente, mas não manifestou opinião. Quando terminei, disse que ia tentar descobrir de que me acusava a polícia. Depois que Joe saiu, comecei a temer que Jeremy pudesse ter sofrido um ataque cardíaco ou mesmo que a pancada da cabeça na quina da mesa o tivesse matado. Minha imaginação corria à

26 solta enquanto eu considerava as piores possibilidades. Estava cada vez mais ansioso para saber o que tinha acontecido, quando a porta da cela se abriu e entraram dois detetives à paisana. Joe vinha atrás deles. - Sou o inspetor Bainbridge - disse o mais alto dos dois homens. - Esse é o sargento Harris. - Os dois estavam com os olhos cansados, e seus ternos, amarrotados. Pareciam ter estado de serviço a noite toda, pois ambos estavam com a barba por fazer. Apalpei meu queixo e concluí que o mesmo se passava comigo. - Gostaríamos de fazer algumas perguntas a respeito do que aconteceu em sua casa na noite de ontem - disse o inspetor. Olhei para Joe, que abanou a cabeça. - Se cooperar conosco, ajudará as investigações - prosseguiu ele. - Está disposto a fazer declarações por escrito ou gravadas? - Meu cliente nada tem a dizer neste momento, inspetor disse Joe. - E nada terá a dizer até que eu lhe dê instruções. Fiquei bastante impressionado. Nunca tinha visto Joe ser tão firme com alguém, exceto com os filhos. - Nós só queríamos uma declaração, Dr. Ramsbottom - disse o inspetor

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Bainbridge a Joe, como se eu não existisse. - Não nos importamos de que esteja presente. - Não - disse Joe com firmeza. - Ou acusam formalmente meu cliente ou nos deixam em paz... resolvam logo. O inspetor hesitou um momento e depois fez um sinal com a cabeça ao colega. Partiram ambos sem uma palavra. -Acusar-me? - indaguei, depois que a porta da cela fechouse atrás deles. - De que, pelo amor de Deus? - De homicídio, eu acho - respondeu Joe. - Depois do que Rosemary contou... - Homicídio? - repeti, quase sem conseguir pronunciar a palavra. - Mas... - Escutei com descrença o que Joe disse ter descoberto acerca das declarações que minha mulher fizera à polícia nas primeiras horas da madrugada. - Mas não foi isso o que aconteceu - protestei. - Ninguém iria acreditar numa história tão absurda. 27

- Podem acreditar quando souberem que a polícia encontrou um rastro de sangue que vai da sala até o local onde seu carro esteve estacionado, perto da casa - disse Joe. - Isso não é possível - insisti. - Quando deixei Jeremy, ele ainda estava estendido no chão, inconsciente. - A polícia também encontrou vestígios de sangue na mala de seu carro e parece confiante de que condiz com o de Jeremy. - Oh, meu Deus! - disse eu. - Ele é esperto. É muito esperto. Você não está vendo o que eles tramaram? - Não, para ser franco não estou - confessou Joe. - Isso não é propriamente o pão-nosso-de-cada-dia de um advogado de empresa, como eu. Mas consegui falar com Sir Matthew Roberts, conselheiro da rainha, ao telefone, antes que ele saísse de casa esta manhã. Vai hoje ao Tribunal Real de York e concordou em reunirse conosco logo que termine o julgamento. Se você for inocente, Richard - disse Joe -, com Sir Matthew na defesa não precisa temer nada. Disso você pode estar certo. Naquela tarde fui acusado formalmente do assassinato de Jeremy Anatole Alexander. A polícia confidenciou a meu advogado que ainda não encontrara o corpo, mas que esperava encontrá-lo dentro de poucas horas. Eu sabia que não o encontrariam. Joe me contaria, no dia seguinte, que tinham revolvido mais terra no meu jardim nas últimas vinte e quatro horas do que eu conseguira revolver durante os últimos vinte e quatro anos de minha vida. Por volta das sete horas daquela noite, a porta de minha cela abriu-se outra vez e Joe entrou, acompanhado de um homem forte, de aspecto distinto. Sir Matthew Roberts era mais ou menos da minha altura, mas pelo menos uns cinqüenta quilos mais pesado. Suas faces muito coradas e seu sorriso caloroso davam-lhe o aspecto de quem aprecia regularmente uma boa garrafa de vinho e a companhia de pessoas divertidas. Tinha a cabeça coberta de cabelos escuros, lisos e bem modelados em torno do crânio, como nos anúncios que o velho Denis Compton fazia para o Brylcreem, e envergava o traje característico de sua profissão: terno escuro com colete e gravata cinzento-prateada. Gostei dele 28 mal se apresentou. Suas primeiras palavras foram para expressar o desejo de que nos tivéssemos conhecido em circunstâncias mais agradáveis. Passei parte da noite com Sir Matthew, repassando vezes sem conta minha história. Notei que ele não acreditava numa palavra do que eu dizia, mas parecia não se importar de me representar. Joe e ele saíram alguns minutos depois das onze, e instalei-me para passar minha primeira noite atrás das grades. Foi decidido que eu permanecesse sob custódia até a polícia ter investigado e apresentado todas as suas provas à Promotoria Pública. No dia seguinte, um magistrado convocou-me para o Tribunal Real de Leeds, e, apesar de um eloqüente apelo de Sir Matthew, não me foi concedida fiança. Quarenta minutos depois fui transferido para a prisão de Armley. As horas transformaram-se em dias, os dias em semanas, e as semanas em meses. Quase me cansei de dizer a todo mundo que queria ouvir-me que o cadáver de Jeremy nunca seria encontrado, pois não havia cadáver algum para encontrar. Quando o caso chegou finalmente ao Tribunal Real de Leeds, nove meses depois, os jornalistas que faziam a cobertura policial apareceram em bandos e acompanharam, deliciados, cada palavra do julgamento. Um multimilionário, um caso de

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possível adultério e um cadáver desaparecido eram coisas a que não podiam resistir. Os jornais esmeraram-se em descrever Jeremy como o Lorde Lucan de Leeds e a mim como o motorista tarado por sexo. Teria me divertido com essas descrições se não fosse eu o réu. "Na sua fala de abertura, Sir Matthew travou uma extraordinária luta em minha defesa. Sem um cadáver, como poderia seu cliente ser acusado de homicídio? E como eu poderia ter-me livrado do cadáver, se havia passado a noite inteira no Queen's Hotel? Eu lamentava profundamente não me ter registrado da segunda vez, em vez de ir direto ao quarto de Jeremy. Não me 29

ajudou muito o fato de a polícia ter-me encontrado na cama totalmente vestido. "Observei os rostos dos jurados, após o discurso inicial da acusação. Estavam perplexos, e era óbvio que tinham dúvidas quanto à minha culpabilidade. Essa dúvida manteve-se até Rosemary se sentar no banco das testemunhas. Eu não suportava olhar para ela, de modo que virei o rosto para uma loura vistosa que sentava na primeira fila liberada ao público em cada dia do julgamento. Durante uma hora, o advogado de acusação orientou gentilmente minha mulher nas suas respostas sobre o que se passara naquela noite até eu agredir Jeremy. Até aquele momento não poderia refutar uma única palavra do que ela disse. - E, depois, o que aconteceu, senhora Cooper? - sondou o advogado da Coroa. - Meu marido inclinou-se e apalpou o pulso do senhor Alexander - murmurou Rosemary. - Ficou branco e disse apenas: "Está morto. Eu o matei." - E que fez o senhor Cooper em seguida? - Levantou o corpo, colocou-o no ombro e se dirigiu para a porta. Eu gritei: "O que está fazendo, Richard?" - E o que ele respondeu? - Disse que pretendia se livrar do corpo enquanto ainda estava escuro e pediu-me que eliminasse todos os sinais de que Jeremy tinha ido lá em casa. Como já não havia ninguém no escritório quando eles saíram de lá, todo mundo partiria do princípio de que Jeremy havia regressado a Londres durante a tarde. "Cuidado para que não fiquem vestígios de sangue", foram as últimas palavras que ouvi meu marido dizer quando saiu de casa com o corpo de Jeremy. Deve ter sido nesse momento que desmaiei. Sir Matthew olhou interrogativamente para mim, no banco dos réus. Abanei vagarosamente a cabeça. Ele se mostrou sombrio quando o advogado de acusação voltou ao seu lugar. - Deseja interrogar essa testemunha, Sir Matthew? - perguntou o juiz. 30 Sir Matthew ergueu-se lentamente. - Sem dúvida alguma, meritíssimo - respondeu. Estendeu-se em toda a sua altura, ajeitou a toga e olhou de frente para seu adversário. - Senhora Cooper, diria que era amiga do senhor Alexander? - Sim, mas apenas no sentido de que ele era colega de meu marido - respondeu Rosemary calmamente. - Então, não costumavam se ver quando o senhor Cooper estava ausente de Leeds ou fora do país para tratar de negócios? - Apenas em ocasiões sociais, quando acompanhava meu marido, ou quando ia ao escritório recolher sua correspondência. - Tem certeza de que foram essas as únicas vezes em que o viu, senhora Cooper? Não houve outras ocasiões em que passou bastante tempo sozinha com o senhor Alexander? Por exemplo, na noite de 17 de setembro de 1989, antes de seu marido regressar inesperadamente de uma viagem pela Europa, o senhor Alexander não esteve com a senhora várias horas, quando se encontrava sozinha em casa? - Não. Ele apareceu lá em casa depois do expediente a fim de deixar um documento para meu marido, mas não teve tempo nem para tomar uma bebida. - Mas seu marido diz que... - continuou Sir Matthew. - Eu sei o que meu marido diz - respondeu Rosemary, como se tivesse ensaiado aquela resposta uma centena de vezes. - Compreendo - disse Sir Matthew. - Bem, vamos diretamente à questão, senhora Cooper. A senhora tinha um caso com Jeremy Alexander no momento em que ele desapareceu? - Isso é relevante, Sir Matthew? - interrompeu o juiz. - Sem a mínima dúvida, meritíssimo. Contém a chave deste caso - respondeu o consultor da rainha em tom calmo. Todos os olhares estavam cravados em Rosemary. Desejei que ela dissesse a verdade. Ela não

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hesitou. - É evidente que não - respondeu -, embora não fosse a primeira vez que meu marido me acusasse injustamente. - Compreendo - disse Sir Matthew. - O juiz não conseguia 31 ocultar sua irritação e perguntou-lhe novamente: - Isso é relevante?

Sir Matthew explodiu. - Relevante? É absolutamente vital, meritíssimo, e não estou sendo ajudado pelas mal veladas tentativas de Vossa Excelência em favor dessa testemunha. O juiz ia começar a protestar, com indignação, quando Rosemary disse calmamente: - Sempre fui boa esposa e uma mulher fiel, mas não posso, em circunstância alguma, pactuar com um homicídio. Os jurados olharam para mim. A maior parte deles parecia desejar que voltasse a pena de morte. - Sendo assim, devo perguntar-lhe por que motivo esperou duas horas e meia para chamar a polícia - disse Sir Matthew. Especialmente se, como afirma, acreditava que seu marido tinha cometido um homicídio e ia livrar-se do corpo. - Como já expliquei, desmaiei logo que ele saiu da sala. Telefonei à polícia assim que recuperei os sentidos. - Muito conveniente - disse Sir Matthew. - Ou talvez a verdade esteja no fato de que utilizou esse tempo para preparar uma armadilha para seu marido, enquanto seu amante desaparecia. Um murmúrio percorreu a sala de audiências. - Sir Matthew - disse o juiz, interpelando-o novamente. Está indo longe demais. - Não, meritíssimo, com todo o respeito. Na verdade, não estou indo suficientemente longe. - Deu meia-volta e fitou novamente minha mulher. -Afirmo-lhe, senhora Cooper, que Jeremy Alexander era seu amante e ainda é, e que a senhora sabe perfeitamente que ele está vivo e com boa saúde. E que, se quisesse, poderia nos dizer exatamente onde ele se encontra neste momento. Apesar dos protestos do juiz e do tumulto no tribunal, Rosemary tinha sua resposta preparada. - Bem que gostaria que ele estivesse vivo - disse ela. - Para 32 poder entrar neste tribunal e confirmar que estou dizendo a verdade. - A voz era suave e meiga. - Mas a senhora já conhece a verdade, senhora Cooper retrucou Sir Matthew, cuja voz ia gradualmente subindo de tom. - A verdade é que seu marido saiu de casa sozinho. Dirigiu-se ao Queen's Hotel e passou lá o resto da noite, enquanto a senhora e seu amante utilizavam esse tempo para deixar pistas pela cidade de Leeds... pistas, devo acrescentar, que se destinavam a incriminar seu marido. Mas a única coisa que não puderam deixar foi um cadáver, porque, como muito bem sabe, Jeremy Alexander ainda está vivo, e os dois juntos fabricaram toda essa história falsa, com o fim de levar a cabo seus propósitos. Não é essa a verdade, senhora Cooper? - Não, não! - gritou Rosemary, cuja voz falhou, antes de finalmente desatar a soluçar. - Oh, deixe disso, senhora Cooper. Essas lágrimas são falsas, não são? - disse Sir Matthew em voz baixa. - Agora que foi descoberta, os jurados decidirão se seu desgosto é verdadeiro. Olhei para os jurados. Não só tinham acreditado na representação de Rosemary, como agora me desprezavam por ter permitido que meu "bruto e insensível" advogado atacasse uma mulher tão virtuosa e sofredora. A cada uma das perguntas com que Sir Matthew a sondara, Rosemary mostrara-se capaz de dar uma resposta que me revelara todos os sintomas de uma experiente preparação de Jeremy Alexander. Quando chegou minha vez de sentar no banco das testemunhas e Sir Matthew começou a interrogar-me, tive a sensação de que minha história soava muito menos convincente do que a de Rosemary, apesar de corresponder à verdade. A palavra final da acusação foi mortalmente aborrecida, mas, de qualquer jeito, mortal. A de Sir Matthew foi sutil e dramática, mas tive novamente a sensação de que fora menos convincente. Depois de outra noite na prisão de Armley, regressei ao banco dos réus para a decisão final do juiz. Era evidente que ele não tinha dúvida quanto à minha culpa. A escolha das provas que descreveu foi desequilibrada e injusta, e, quando terminou, 33 recordando aos jurados que sua opinião acerca das provas não deveria pesar sobre a decisãp deles, acrescentou hipocrisia à parcialidade. Depois de terem passado um dia inteiro

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deliberando o caso, os jurados tiveram de passar também a noite num hotel, ironicamente, o Queen's, e, no tribunal, quando foi finalmente perguntado ao homenzinho gordo e jovial da gravata-borboleta: - Senhores jurados, consideram o réu culpado ou inocente das acusações que lhe são feitas? -Não me surpreendi ao ouvi-lo dizer claramente, de modo que todos o ouvissem: - Culpado, senhor juiz. Na realidade, o que mais me espantava era o júri não ter chegado a uma decisão unânime. Sempre desejei saber quais tinham sido os dois membros que não se sentiam suficientemente convencidos para declarar minha culpabilidade. Gostaria de lhes agradecer. O juiz olhou para mim. - Richard Wilfred Cooper foi considerado culpado do homicídio de Jeremy Anatole Alexander... - Não o matei, meritíssimo - interrompi com voz calma. Na verdade, ele não está morto. Só posso desejar que o senhor juiz viva o suficiente para perceber a verdade. - Sir Matthew ergueu ansiosamente o olhar, enquanto irrompia um burburinho no tribunal. O juiz pediu silêncio, e sua voz tornou-se ainda mais áspera ao pronunciar: - Condeno-o à prisão perpétua. É a sentença determinada pela lei. Levem-no! Dois guardas carcerários avançaram, agarraram-me firmemente pelos braços e conduziram-me pelos degraus por trás do banco dos réus até a cela que eu ocupara todas as manhãs durante os dezoito dias que durara o julgamento. - Sinto muito, companheiro - disse o policial que tinha se ocupado de mim desde o início do caso. - Foi aquela maldita mulher que voltou todos contra o senhor. - Fechou a porta da cela e girou a chave antes que eu tivesse oportunidade de 34 concordar com ele. Momentos depois a porta abriu-se de novo, e Sir Matthew entrou. Olhou para mim durante algum tempo sem pronunciar uma só palavra. - Foi cometida uma terrível injustiça, senhor Cooper disse afinal. -Vamos apresentar imediatamente um apelo contra sua condenação. Pode estar certo de que não descansarei até ter encontrado Jeremy Alexander. Vamos colocá-lo diante da justiça. Pela primeira vez, percebi que Sir Matthew sabia realmente que eu era inocente. Fui colocado numa cela com um criminoso pequeno chamado "Dedos" Jenkins. É concebível que, à beira do século 21, ainda haja alguém a quem chamem Dedos? Mesmo assim, o nome era merecido. Momentos depois de eu entrar na cela, Dedos já estava usando meu relógio. Devolveu-me logo que dei pelo desaparecimento. - Desculpe - disse. - É o hábito. A prisão poderia ter sido muito pior se meus colegas não tivessem descoberto que eu era milionário - e foi com prazer que paguei por certos privilégios. Todas as manhãs traziam o Financial Times à minha cela, o que me deu a oportunidade de me manter a par do que se passava em Londres. Quase fiquei doente quando soube da oferta de aquisição da Cooper. Não por causa da oferta de £12,50 por ação, que me fazia ainda mais rico, mas porque se tornava dolorosamente óbvio que tinha sido tramada por Rosemary e Jeremy. As ações de Jeremy valeriam agora vários milhões de libras... um dinheiro que ele nunca teria conseguido se eu estivesse presente para evitar a aquisição. Passava horas, todos os dias, estendido no meu catre, esquadrinhando cada palavra do Financial Times, sempre que havia uma referência à Cooper. Lia tantas vezes o parágrafo, que acabava por decorá-lo, A companhia acabou por ser adquirida, mas só depois que a quota das ações atingiu £13,43. Continuei a seguir suas 35

atividades com grande interesse e senti-me cada vez mais apreensivo quanto à qualidade da nova direção, quando ela começou a despedir parte do meu pessoal mais experiente, incluindo Joe Ramsbottom. Uma semana depois, escrevi a meus corretores, dando-lhes instruções para venderem minhas ações se e quando surgisse a oportunidade. Foi no início do quarto mês de prisão que pedi papel para escrever. Decidira que tinha chegado a hora de fazer um registro de tudo o que me acontecera desde aquela noite em que voltara inesperadamente para casa. Todos os dias o guarda de minha ala trazia novas folhas de papel pautado - e fui escrevendo o

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relato que vocês estão lendo neste momento. Além do mais, isso me serviu para planejar meu passo seguinte. A meu pedido, Dedos fez uma pequena sondagem entre os prisioneiros para saber qual era o melhor detetive que haviam conhecido. Três dias depois ele me deu o resultado: o superintendente Donald Hackett, conhecido como Don, foi indicado em primeiro lugar por mais da metade dos respondentes. - Então ele é mais seguro do que uma pesquisa Gallup"*- disse eu a Dedos. - É o que coloca Hackett na frente dos outros? - perguntei. - O cara é honesto, é justo, e a gente não consegue subomálo. E, quando descobre que um tipo é mau, leva o tempo que for preciso até conseguir colocá-lo na prisão. Hackett, segundo me informaram, provinha de Bradford. Corria o boato, entre os outros presos, que ele rejeitara o lugar de assistente do chefe da polícia do Yorkshire Oeste. Como um advogado que não quer vir a ser juiz, preferira ficar mais abaixo. - O ponto fraco do cara é pegar criminosos - disse Dedos, com convicção. - Parece ser o tipo de que eu preciso - afirmei com prazer. - Que idade tem ele? Dedos ponderou um pouco: * Pesquisa de opinião criada por George Horace Gallup (1901-1984), um americano dedicado à estatística. (N. da T.) 36 - Já deve passar dos cinqüenta, agora - respondeu. - O cara me botou atrás das grades por roubar um estojo de ferramentas, e isso foi... - ponderou de novo - há mais de vinte anos. Quando Sir Matthew veio visitar-me na segunda-feira seguinte, disse-lhe o que tinha em mente e perguntei-lhe o que achava de Donald Hackett. Queria a opinião de um profissional. - É uma droga de testemunha para interrogar, isso eu posso dizer - respondeu meu advogado. - Por quê? - Nunca exagera, nunca prevarica, e nunca o peguei mentindo, o que torna muito difícil fazê-lo cair em contradição. Confesso que raramente ou nunca levei a melhor com esse superintendente. Devo dizer, no entanto, que duvido que ele concordasse em envolver-se com um criminoso condenado, independente do que lhe oferecesse. - Mas eu não sou... - Eu sei, senhor Cooper - disse Sir Matthew, que ainda não parecia capaz de me tratar pelo primeiro nome. - Mas Hackett terá de ser convencido disso antes que concorde em falar com você. - Mas como posso convencê-lo de minha inocência se estou enfiado na prisão? - vou tentar influenciá-lo a seu favor - disse Sir Matthew, depois de pensar um pouco. E logo acrescentou: - Pensando bem, ele me deve um favor. Depois de Sir Matthew ter saído naquela noite, pedi mais papel e comecei a redigir cuidadosamente uma carta para o superintendente Hackett; diversas versões, no entanto, acabaram como bolas no chão de minha cela. Todo o meu esforço, afinal, dizia o seguinte: 37 Em resposta a esta carta, é favor escrever no envelope: Número A47283 Nome...COOPER... R..W. TODA A CORRESPONDÊNCIA RECEBIDA DEVERÁ CONTER! NOME E ENDEREÇO DO REMETENTE. NÃO SÃO ACEITAS CARTAS ANÔNIMAS. A PALTA DE COMUnicAÇÃo ComPROmete O CORREIO PRISÃO DE S. MAJESTADE ARMLEY LEEDSLS 122TJ Reli a carta, corrigi um erro de ortografia e garatujei minha assinatura no final. A meu pedido, Sir Matthew entregou a carta a Hackett pessoalmente. - O primeiro estafeta a ganhar mil libras por dia dos Correios Reais - disse-lhe eu. 38 Sir Matthew informou-me, na segunda-feira seguinte, que tinha entregue a carta pessoalmente ao superintendente. Depois de ler uma segunda vez, o único comentário de Hackett foi quê teria de consultar seus superiores. Mas prometeu a Sir Matthew que lhe comunicaria sua decisão em uma semana. Desde o momento em que eu fora condenado, Sir Matthew estava preparando meu apelo e, embora nunca me tivesse dado esperanças, não conseguiu ocultar sua satisfação ao que descobriu numa visita ao Departamento de Homologação de Testamentos. Constatara que, no seu testamento, Jeremy deixava tudo a Rosemary. Isso incluía mais de três milhões de libras de ações da Cooper. Mas, explicou Sir Matthew, a lei não lhe permitia dispor delas durante sete anos. - Os jurados ingleses podem tê-lo declarado culpado - disse ele -, mas os fiscais de impostos são teimosos e não se deixam convencer tão facilmente. Não entregam os bens de Jeremy Alexander sem ver seu cadáver ou, então, só depois de sete anos. - Estarão pensando que Rosemary pode tê-lo matado por

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causa do dinheiro e depois escondido... - Não, não - disse Sir Matthew, rindo de minha sugestão. - É simplesmente porque, como têm direito de esperar sete anos, vão guardar os bens dele para não correr o risco de Alexander ainda estar vivo. De qualquer forma, se sua mulher o tivesse matado, não teria conseguido ter uma resposta pronta para cada uma das minhas perguntas quando estava no banco das testemunhas, isso eu posso garantir. Sorri. Pela primeira vez na minha vida, estava encantado pelo fato de os fiscais terem metido o nariz nos meus assuntos. Sir Matthew prometeu que me informaria se acontecesse alguma coisa. - Boa noite, Richard - disse, ao deixar o parlatório. Outra novidade. 39 Aparentemente, todo o pessoal da prisão sabia que o superintendente Hackett vinha me visitar muito antes de eu saber. Foi Dave Adams, um recluso já antigo da cela ao lado, que me explicou por que motivo os prisioneiros pensavam que Hackett tinha concordado em vir visitar-me. - Um bom tira nunca está satisfeito se alguém é preso por uma coisa que não fez. Hackett telefonou para o diretor na terça-feira passada e falou secretamente com ele, segundo diz Maurice - acrescentou Dave, misteriosamente. Eu gostaria de saber como o homem de confiança do diretor conseguira ouvir ambos os lados da conversa, mas concluí que não era o momento para fazer perguntas impertinentes. -Até mesmo os caras mais empedernidos aqui da casa acham que você é inocente - prosseguiu Dave. - Estão ansiosos para ver Jeremy Alexander ocupar sua cela. Fique certo de que os sujeitos com penas maiores estão preparando uma recepção calorosa para você. Na manhã seguinte chegou uma carta de Bradford. "Caro Cooper", principiava o superintendente, informando depois que pretendia visitar-me às quatro horas da tarde do domingo seguinte. Esclareceu que não demoraria mais de meia hora e insistiu na presença de uma testemunha. Pela primeira vez, desde que fora preso, comecei a contar as horas. E as horas não são muito importantes quando nosso quarto foi reservado para toda a vida. Quando foram me buscar na cela naquela tarde de domingo e me escoltaram ao parlatório, recebi diversas mensagens de meus companheiros, para serem transmitidas ao superintendente. - Dê meus cumprimentos a Don - disse Dedos. - Diga-lhe que lamento não encontrá-lo desta vez. - Quando tiver acabado de conversar com ele, pergunte se ele quer vir à minha cela beber uma xícara de chá e falar dos velhos tempos. - Dê-lhe um pontapé nos bagos por mim e diga que nem me importo de ficar mais tempo aqui por isso. 40 Um dos prisioneiros até sugeriu uma pergunta, para a qual eu já conhecia a resposta: - Pergunte se ele vai se aposentar, porque eu só saio daqui no dia seguinte. Quando entrei na sala e me deparei com o superintendente, pensei que tivesse havido algum engano. Nunca tinha perguntado a Dedos como era o aspecto físico de Don e, ao longo dos últimos dias, tinha formado na minha mente a imagem de uma espécie de super-homem. Mas o homem que se encontrava à minha frente era uns cinco centímetros mais baixo do que eu, e tenho apenas um metro e setenta. Era magro como um espeto e usava óculos de lentes grossas com armação de osso, que lhe dava a impressão de ser meio cego. Só lhe faltava uma capa de gabardine encardida para parecer um cobrador de dívidas. Sir Matthew levantou-se para nos apresentar. Apertei com firmeza a mão do policial. - Obrigado por ter vindo me visitar, superintendente comecei. - Faça o favor de sentar - acrescentei, como se ele tivesse aparecido em minha casa para beber um cálice de xerez. - Sir Matthew é muito persuasivo - disse Hackett, com um sotaque profundo e rouco de Yorkshire, que não parecia condizer com seu corpo franzino. - Diga-me, senhor Cooper, o que pensa que posso fazer por você? - perguntou, sentando-se na cadeira à minha frente. Percebi um leve tom de cinismo em sua voz. Abriu um bloco de notas e colocou-o sobre a mesa, quando eu ia começar a contar a minha história. -É só para meu uso pessoal - explicou. - Para o caso de ter de me recordar de alguns detalhes importantes no futuro. -Vinte minutos depois eu tinha terminado a versão abreviada de minha vida. Já tinha repassado a história diversas vezes na minha cela, durante a semana anterior, para ter a certeza de não levar muito tempo.

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Queria deixar tempo suficiente para Hackett fazer perguntas. - Mesmo se eu acreditar na sua história - disse ele -, e digo apenas "se", ainda não me explicou o que pensa que posso fazer por você. 41

- Vai ter de deixar a polícia dentro de cinco meses - falei. - Gostaria de saber se tem planos para depois da aposentadoria. Ele hesitou. Era óbvio que eu o surpreendera. - Ofereceram-me um emprego no Grupo 4, como gerente de área no Yorkshire Oeste. - E quanto vão lhe pagar? - perguntei, abruptamente. - Não vou trabalhar em tempo integral - disse ele. - Três dias por semana, para começar. - Hesitou de novo. -Vinte mil por ano, garantidos por três anos. - Eu lhe pago cem mil por ano, mas espero que trabalhe sete dias por semana. Acho que precisará de uma secretária e de um assistente... e que o inspetor Williams, que vai sair no mesmo momento, serviria para o lugar... de modo que eu lhe forneceria dinheiro suficiente para o pessoal de apoio, assim como para o aluguel do escritório. Um clarão de respeito surgiu no rosto do superintendente pela primeira vez. Tomou algumas notas em sua agenda. - E o que esperaria que eu fizesse em troca de tanto dinheiro? - perguntou ele. - É simples. Espero que encontre Jeremy Alexander. Dessa vez ele não hesitou. - Meu Deus! - disse. - O senhor está realmente inocente. Sir Matthew e o diretor tentaram me convencer disso. - E, se o descobrir dentro de sete anos - disse eu, sem prestar atenção ao seu comentário -, pago-lhe mais quinhentas mil libras em qualquer banco do mundo que o senhor estipule. - O Midland de Bradford serve perfeitamente - respondeu ele. - Apenas os criminosos têm necessidade de se esconder no exterior. De qualquer forma, tenho de estar em Bradford sábado sim, sábado não, para ver o City perder. - Hackett pôs-se de pé e fitou-me longamente. - Uma última pergunta, senhor Cooper. Por que sete anos? - Porque, passado esse período, minha mulher pode vender as ações de Alexander e ele ficará milionário da noite para o dia. O superintendente acenou afirmativamente com a cabeça, mostrando que compreendera. 42 -Obrigado por ter-me chamado - disse. -Há muito tempo eu não sentia prazer em visitar alguém na cadeia, especialmente uma pessoa condenada por homicídio. vou estudar seriamente sua proposta, senhor Cooper, e o informarei de minha decisão no fim da semana. - Saiu sem dizer mais nada. Hackett escreveu-me três dias depois, aceitando minha oferta. Não tive de esperar cinco meses para ele começar a trabalhar para mim, porque, quinze dias depois, apresentou sua demissão... mas não antes que eu concordasse em continuar a pagar suas contribuições sociais e as de dois colegas que ele queria que saíssem da polícia para trabalhar a seu lado. Tendo vendido todas as minhas ações da Cooper, os juros dessa aplicação davam-me quatrocentos mil por ano, e eu estava vivendo sem despesas, de modo que o pedido de Hackett era coisa de pouca monta. Eu deveria partilhar com os leitores os pormenores de tudo o que me aconteceu durante os meses seguintes, mas, no decurso desse período, estive tão preocupado em contactar Hackett, que enchi apenas três páginas do papel pautado da prisão. No entanto, devo dizer que estudei diversos livros de leis, para ter a certeza de compreender perfeitamente o significado da expressão legal autrefois acquit* A próxima data mais importante de meu diário foi a audiência de apelo. Matthew - a seu pedido, tinha deixado de lhe chamar Sir Matthew - esforçava-se corajosamente para não demonstrar que se sentia cada vez mais confiante no resultado, mas eu começava a conhecê-lo tão bem, que ele já não conseguia disfarçar seus verdadeiros sentimentos. Disse-me que estava encantado com a elaboração da revisão. - Justo e imparcial - repetia constantemente. * Contestação pela qual se alega que o réu já foi anteriormente julgado pelo mesmo delito penal de que está sendo acusado. (N. da T.) 43 Nessa noite contou-me, com grande tristeza, que sua mulher, Victória, tinha morrido de câncer algumas semanas antes. - Uma longa doença e um alívio abençoado -

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explicou ele. Pela primeira vez senti-me culpado em sua presença. Durante os dezoito meses anteriores só tínhamos falado dos meus problemas. Devo ter sido um dos poucos prisioneiros de Armley que chegou a pedir um alfaiate em sua' cela. Matthew sugeriu que eu mandasse fazer um terno novo antes de enfrentar o tribunal de apelação, porque tinha perdido mais de seis quilos desde que estava na prisão. Quando o alfaiate acabou de tirar minhas medidas e estava enrolando o metro, insisti com Dedos para que lhe devolvesse o isqueiro, embora ficasse com os cigarros. Dez dias depois, saí escoltado de minha cela às cinco horas da manhã. Meus companheiros começaram a bater as canecas de folha contra as grades das portas, forma tradicional de indicar ao pessoal da prisão que acreditavam que o homem levado a julgamento estava inocente. Aquele som, como o de uma grande sinfonia, elevou-me o moral. Fui levado a Londres num carro da polícia, acompanhado por dois guardas da prisão. Não paramos uma única vez durante toda a viagem e chegamos à capital poucos minutos depois das nove; recordo-me de olhar pela janela e ver os empregados que chegavam dos subúrbios correndo para seus escritórios, a fim de dar início ao dia de trabalho. Se algum deles me viu no banco traseiro do carro, com meu terno novo, e não reparou nas algemas, deve ter concluído pelo menos que eu era um inspetor-chefe. Matthew estava à minha espera na entrada do Old Bailey, com um monte de papéis sob cada braço. - Gostei do terno - disse ele, antes de subir comigo alguns degraus até a sala onde meu destino ia ser decidido. Voltei a sentar-me impassível no banco dos réus, enquanto Sir Matthew se punha de pé e se dirigia aos três juizes do tribunal de apelação. Sua fala inicial durou cerca de uma hora. Aquela altura, 44 eu já me acreditava capaz de tê-la pronunciado, de maneira perfeitamente adequada, embora sem tanta eloqüência e, com certeza, de forma menos persuasiva. Ele deu grande ênfase ao fato de Jeremy ter deixado todos os seus bens materiais a Rosemary, que, por sua vez, tinha vendido sua casa em Leeds, liquidado todas as ações da Cooper, poucos meses depois da aquisição, obtido rapidamente o divórcio, e depois desaparecido da face da terra com cerca de sete milhões de libras. Eu não conseguia dormir imaginando em quanto desse dinheiro Jeremy já tinha posto as mãos. Sir Matthew recordou repetidas vezes a incapacidade da polícia de apresentar o cadáver, apesar de, naquelas circunstâncias, já ter escavado metade de Leeds. Eu sentia mais esperanças a cada fato novo que Matthew apresentava aos juizes. Mas, quando ele terminou, ainda tive de esperar três dias pelo resultado das deliberações. - Apelo rejeitado. Motivos reservados. Matthew foi até Armley na sexta-feira para me dizer que pensava que o apelo tinha sido rejeitado sem explicações. Achava que os juizes deviam estar divididos e precisavam de mais tempo para dar a impressão de que não estavam. - Quanto tempo? - perguntei. - Meu palpite é que vão lhe dar uma autorização para sair dentro de alguns meses. Ficaram obviamente impressionados pelo fato de que a polícia não conseguiu apresentar um cadáver, não se impressionaram com a exposição do juiz que o julgou, e ficaram impressionados com a força de seu caso. Agradeci a Matthew que, daquela vez, saiu da sala com um sorriso nos lábios. O leitor deve estar se perguntando o que fazia o superintendente Hackett, ou melhor, o ex-superintendente Hackett, enquanto tudo isso se passava. Não tinha estado ocioso. O inspetor Williams e o guarda Kenwright haviam saído da polícia no mesmo dia em que ele. 45

Uma semana depois tinham aberto um pequeno escritório no prédio do Constitutional Club, em Bradford, e começado suas investigações. Don apresentava-me seus relatórios às quatro horas de cada tarde de domingo. Um mês depois tinha compilado um grosso arquivo sobre o caso, com dossiês detalhados sobre Rosemary, Jeremy, a companhia e eu. Passei horas lendo todas as informações que ele reunira, e pude ajudá-lo, preenchendo algumas lacunas. Comecei

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rapidamente a perceber por que motivo Don era tão respeitado pelos colegas. Ele seguia todas as pistas e tomava todos os atalhos, mesmo que lhe parecessem becos sem saída, porque, de vez em quando, concluía que eram auto-estradas. No primeiro domingo de outubro, depois de estar trabalhando há quatro meses, Hackett disse-me que acreditava ter localizado Rosemary. Uma mulher que correspondia aos traços dela estava morando numa pequena propriedade no sul da França, chamada Villa Fleur. - Como conseguiu localizá-la? - perguntei. - Uma carta que a mãe botou no correio local. O carteiro teve a amabilidade de me deixar ver o endereço no envelope antes de seguir seu caminho - disse Hackett. - Não imagina quantas horas tivemos de esperar, quantas cartas tivemos de examinar, e a quantas portas batemos nos últimos quatro meses, só para conseguir essa pista. A senhora Kershaw parece ter mania de escrever cartas, mas essa foi a primeira vez que escreveu à filha. A propósito - acrescentou - sua mulher voltou a usar o nome de solteira. Agora atende por senhorita Kershaw. Acenei com a cabeça, não o querendo interromper. - Williams foi de avião para Cannes na quarta-feira e está hospedado na cidade mais próxima, passando por turista. Já conseguiu descobrir que a casa da senhorita Kershaw é cercada por um muro de pedra de três metros, e que ela tem mais cães de guarda do que árvores. Parece que os habitantes da área sabem ainda menos a respeito dela do que nós. Mas, pelo menos, é um princípio.

Senti, pela primeira vez, que Jeremy Alexander talvez tivesse 46 encontrado alguém à sua altura, mas só cinco domingos e cinco relatórios depois foi que vi surgir um sorriso no rosto geralmente fechado de Hackett. - A senhorita Kershaw pôs um anúncio no jornal local informou ele. - Parece que precisa de um novo mordomo. A princípio, pensei que deveríamos interrogar longamente o antigo mordomo, logo que ele saiu, mas não podia me arriscar a que ela soubesse disso, de modo que decidi que o inspetor Williams teria de candidatar-se ao lugar. - Mas ela logo vai descobrir que ele é totalmente desqualificado para o trabalho! - Não necessariamente - disse Hackett, cujo sorriso se alargou. - Vejam bem, Williams não poderá deixar seu atual emprego junto à Condessa de Rutland sem trabalhar um mês inteiro após a demissão. É nesse período que ele vai freqüentar um curso especial de seis semanas na Escola de Mordomos de Ivor Spencer. Williams sempre foi esperto e aprende com rapidez. - E as referências? - Quando Rosemary Kershaw o entrevistar, ele terá uma série de referências capaz de impressionar uma duquesa. - Disseram-me que o senhor nunca fazia nada clandestino. - É o que acontece quando lido com pessoas honestas. Não quando enfrento um casal de vigaristas como esses. vou metê-los na cadeia, nem que seja a última coisa que faça. Não era o momento para dizer a Hackett que o capítulo final da história, da maneira como eu a tinha elaborado, não terminava com Jeremy na prisão. Logo que Williams se candidatou ao lugar de mordomo de Rosemary, desempenhei meu pequeno papel no sentido de ajudá-lo a conseguir o emprego. Relendo os termos do contrato proposto, tive uma idéia. - Diga a Williams que peça quinze mil francos por mês e cinco semanas de férias - sugeri a Hackett, quando ele e Matthew me visitaram no domingo seguinte. - Por quê? - perguntou o ex-superintendente. - Ela está oferecendo onze mil e três semanas de férias. 47 - Ela pode pagar a diferença. E, com referências como essas - disse eu, consultando de novo meu arquivo -, pode até desconfiar se ele pedir menos. Matthew sorriu e concordou com um aceno de cabeça. Rosemary acabou por oferecer o emprego a Williams a treze mil francos por mês, com quatro semanas de férias por ano, oferta que, depois de pensar durante quarenta e oito horas, Williams aceitou. Mas só foi trabalhar para ela um mês depois, tempo durante o qual aprendeu a passar jornais a ferro, marcar com régua os lugares à mesa e conhecer as diferenças entre os copos para Porto, xerez e licor. Acho que, a partir do momento em que Williams aceitou o lugar de mordomo de Rosemary, fiquei à espera de resultados imediatos.

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Mas, como Hackettme fez ver, domingo após domingo, isso não era muito realista. - Williams precisa de tempo - explicou Don. - Precisa ganhar a confiança dela e não dar motivos para a mínima suspeita. Certa vez foram necessários cinco anos para pegar um passador de drogas que morava a apenas meia milha de distância de mim. Pensei em lembrar-lhe que quem estava na prisão era eu, e que cinco dias eram mais do que eu esperava, mas sabia que todos estavam trabalhando arduamente para mim e tentei não mostrar minha impaciência. Um mês depois, Williams já havia fornecido as fotografias e o histórico de todo o pessoal que trabalhava na casa, bem como descrições de todas as pessoas que visitavam Rosemary - até o pároco local, que tinha ido lá na esperança de obter um donativo para os auxiliares franceses na Somália. A cozinheira: Gabrielle Pascal - não falava inglês, excelente cozinheira, natural de Marselha, família investigada. O jardineiro: Jacques Reni - estúpido e pouco criativo com as roseiras, natural da área e bem conhecido. A criada pessoal de Rosemary: Charlotte Merieux - falava unvpouco de inglês, astuta, sensual, vinda de Paris, ainda em investigação. Todo esse pessoal que trabalhava para Rosemary desde a sua chegada ao sul da França não parecia ter ligações entre si ou com sua vida passada. 48 - Ah - disse Hackett, ao observar a fotografia da criada pessoal de Rosemary. Ergui uma sobrancelha. - Estive pensando por que motivo Williams estava sempre com Charlotte Merieux, todos os dias... e, o mais importante, todas as noites. - Teria chegado a superintendente se não fosse tão mulherengo? Vamos ver se, desta vez, isso conta a nosso favor - explicou. Fiquei estendido no meu catre observando as fotografias do pessoal durante horas a fio. Nada me revelaram. Li e reli as notas sobre todas as pessoas que tinham ido à Villa Fleur, mas, à medida que a semana passava, cada vez mais me parecia que ninguém ligado ao passado de Rosemary, com exceção da mãe, sabia onde ela estava. Ou, se alguém sabia, não fazia qualquer tentativa para entrar em contato com ela. Não havia, sem dúvida, alguma, qualquer sinal de Jeremy Alexander. Começava a recear que ela e Jeremy tivessem se afastado, até Williams informar que havia a fotografia de um homem moreno e bonito na mesinha-de-cabeceira de Rosemary, com a inscrição: "Estaremos sempre juntos, J." Durante as semanas que se seguiram ao julgamento de meu apelo, fui constantemente interrogado por funcionários encarregados da suspensão condicional de penas, assistentes sociais e até pelo psiquiatra da prisão. Esforcei-me por conservar o sorriso caloroso e sincero que Matthew me dissera ser tão necessário para lubrificar as rodas da burocracia. Deviam ter passado cerca de onze semanas depois do apelo ter sido rejeitado, quando a porta da cela se abriu e o guarda superior do meu corredor comunicou: - O diretor quer vê-lo, Cooper. - Dedos mostrou-se desconfiado. Sempre que ouvia aquelas palavras dirigidas a ele, significava inevitavelmente uma dose de solitária. Podia ouvir os batimentos de meu coração enquanto o guarda me conduzia pelo extenso corredor até o gabinete do diretor. Minutos depois, ele bateu suavemente à porta antes de abri-la. O 49 diretor, que estava sentado à escrivaninha, pôs-se de pé, estendeume a mão e disse: - Estou encantado por ser a primeira pessoa a dar-lhe as boas novas. Conduziu-me a uma grande e confortável cadeira do outro lado da escrivaninha e começou a falar dos termos de minha libertação. Enquanto o fazia, serviram-nos café, como se fôssemos velhos amigos. Alguém bateu à porta, e Matthew entrou com um monte de papéis que tinham de ser assinadps. Levantei-me quando ele os colocou sobre a escrivaninha e, sem aviso, voltou-se e abraçou-me com força. Era uma atitude que eu nunca teria esperado da parte dele. Depois que assinei o último documento, Matthew perguntou: - Qual é a primeira coisa que vai fazer quando for libertado? - vou comprar uma pistola - disse eu, com grande naturalidade. Matthew e o diretor começaram a rir. O grande portão da prisão de Armley abriu-se para mim três dias depois. Saí do edifício levando apenas a pequena mala de couro com que chegara. Não olhei para trás. Chamei um táxi e pedi ao motorista que me levasse à estação, pois não desejava permanecer em Leeds mais do que o

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necessário. Comprei um bilhete de primeira classe, telefonei a Hackett para avisá-lo que estava a caminho e tomei o primeiro trem para Bradford. Saboreei o desjejum dos serviços ferroviários britânicos, que não me foi servido em utensílios de folha, e li um exemplar do Financial Times que me foi entregue por uma bonita hospedeira e não por um ladrão de meia-tigela. Ninguém olhou para mim - mas por que haveriam de olhar, se eu estava num vagão de primeira classe e envergava meu terno novo? Olhei para todas as mulheres que passavam, sem me importar com a maneira como estavam vestidas, mas elas não podiam saber por quê. Quando o trem parou em Bradford, Don e sua secretária Jenny 50 Kenwright estavam à minha espera na plataforma. O superintendente tinha alugado, para mim, um pequeno apartamento mobiliado nos arredores da cidade, e, depois de eu ter arrumado minhas roupas - o que levou pouco tempo -, levaram-me para almoçar. Em meio à conversa superficial, e depois de Jenny ter-me servido um copo de vinho, Don fez-me uma pergunta com que eu não contava. - Agora que está livre, ainda quer que procuremos Jeremy Alexander? - Sim - respondi, sem um momento de hesitação. - Estou ainda mais decidido, agora que posso saborear a liberdade que ele gozou nos últimos três anos. Não se esqueçam de que ele roubou minha liberdade, além de minha mulher, minha empresa e mais da metade dos meus bens. Oh, sim, Donald, não descanso até o dia em que me vir frente a frente com Jeremy Alexander. - Ótimo - disse Don. - Porque Williams pensa que Rosemary começa a confiar nele, e, poderá mesmo, com o tempo, vir a fazer-lhe confidencias. Ao que parece, ele se tornou indispensável. Considerei um pouco irônico o fato de que Williams estivesse embolsando dois salários simultaneamente, sendo eu responsável por um deles, e Rosemary pelo outro. Perguntei se havia notícias de Jeremy. - Nada de especial - disse Donald. - Ela nunca telefona para ele de casa, e temos quase certeza de que ele nunca tenta fazer contatos diretos com ela. Mas Williams nos disse que todas as sextas-feiras, ao meio-dia, a deixa no Majestic, o único hotel do vilarejo. Ela entra e só reaparece depois de quarenta minutos, pelo menos. Não ousou segui-la, porque ela lhe deu instruções específicas para esperá-la dentro do carro. E ele não pode perder o emprego por desobedecer às ordens dela. Assenti com a cabeça. - Mas isso não o impediu de beber um copo de vinho de vez em quando no bar do hotel, na sua noite de folga, e conseguir obter pequenas informações. Está convencido de que Rosemary utiliza o tempo que passa no hotel para dar telefonemas - 51 interurbanos. Muitas vezes passa pelo banco antes de ir ao Majestic e sai com um pequeno pacote de moedas. O empregado do bar disse a Williams que ela usa sempre uma das duas cabines telefônicas do corredor em frente à recepção. Nunca permite que a chamada seja feita pela mesa. Liga sempre diretamente. - Então, como vamos descobrir para quem ela telefona? perguntei. - Espero que Williams encontre uma oportunidade para usar uma das experiências que não adquiriu na escola de mordomos. - Mas quanto tempo isso pode levar? - Não há como saber. Mas Williams tem direito a uma licença daqui a algumas semanas, de modo que poderá nos informar melhor. Quando Williams regressou a Bradford no fim do mês, comecei a fazer-lhe perguntas antes mesmo que ele tivesse tempo para arriar a mala. Vinha cheio de informações interessantes sobre Rosemary, e até o menor detalhe me fascinava. Ela havia engordado. Fiquei satisfeito. Parecia solitária e deprimida. Fiquei encantado. Estava gastando rapidamente meu dinheiro. Não fiquei propriamente extasiado. Mais concretamente, Williams estava convencido de que, se Rosemary tinha algum contato com Jeremy Alexander, seria, necessariamente, quando ia ao hotel todas as sextas-feiras e fazia sua ligação telefônica direta. Mas ele ainda não sabia como descobrir para quem ela telefonava nem para que lugar. Quando Williams regressou ao sul da França, duas semanas depois, eu sabia mais acerca de minha ex-mulher do que quando éramos casados. Como tantas vezes acontece na vida real, novo progresso surgiu quando eu menos esperava. Devia ser umas 14h30 de uma segunda-feira quando o telefone tocou. Donald atendeu e ficou

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surpreso ao ouvir a voz de Williams no outro lado da linha. Pressionou o botão do alto-falante e disse: 52 - Nós três estamos ouvindo. É melhor começar a explicar por que está telefonando quando não é seu dia de folga. - Fui despedido - foram as primeiras palavras de Williams. - Por causa do envolvimento com a criada, não foi? - reagiu Donald imediatamente. - Antes fosse isso. Foi muito pior. Eu estava levando a senhorita Kenshaw à cidade, esta manhã, quando tive de parar num sinal vermelho. Enquanto esperava que abrisse, um homem atravessou a rua diante do carro. Parou e olhou para mim. Reconheci-o imediatamente e pedi a Deus que o sinal mudasse para verde antes que ele me reconhecesse. Mas ele recuou, olhou outra vez para mim e sorriu. Abanei a cabeça, mas ele se dirigiu para o lado do chofer, bateu na janela e disse: "Como vai, inspetor Williams?" - Quem era ele? - perguntou Donald. - Neil Case. Lembra-se dele, chefe? - E como poderia esquecê-lo? "Neil-eu-não-estava-lá" disse Donald. - Devia ter imaginado. - Fingi que não o conhecia, evidentemente. E, como a senhorita Kershaw nada disse, pensei que tinha me safado. Mas, mal chegamos em casa, ela me disse que a acompanhasse ao escritório e, sem me pedir explicações, despediu-me. Ordenou que eu fizesse as malas e abandonasse a casa dentro de uma hora, senão chamaria a polícia. - Bolas. Voltamos à estaca zero - disse Donald. - Não inteiramente - disse Williams. - O que quer dizer? Se já não está mais na casa, deixamos de ter um ponto de contato. Pior, não podemos jogar outra vez a cartada do mordomo, porque agora ela está de sobreaviso. - Eu sei tudo isso, chefe - disse Williams. - Mas o fato de suspeitar de que eu era um policial a fez entrar em pânico, tanto que foi direto ao quarto e fez uma chamada. Como eu já não tinha medo de ser descoberto, levantei o gancho da extensão do corredor e escutei a conversa. Só ouvi uma voz de mulher dizendo um número de Cambridge, e, depois, o telefone desligou. Presumi que Rosemary estivesse à espera de que fosse outra pessoa a atender e desligou quando ouviu uma voz estranha. 53 - Qual era o número? - perguntou Donald. - Meia, quatro, zero, sete, qualquer coisa como sete. - O que quer dizer com "qualquer coisa como sete"? bradou Donald, anotando os números. - Eu não tinha com que escrever, chefe, de modo que tive de confiar na minha memória. - Fiquei satisfeito por Williams não poder ver a expressão no rosto de Don. - O que aconteceu depois? - inquiriu o inspetor. - Descobri uma caneta no corredor e anotei na minha mão o que me lembrava do número. Pouco depois levantei outra vez o gancho e ouvi uma mulher diferente na linha, dizendo: "O diretor não está no momento, mas espero que volte dentro de uma hora." Depois tive de desligar rapidamente, porque ouvi passos no corredor. Era Charlotte, a criada de Rosemary. Queria saber por que motivo eu tinha sido despedido. Não consegui pensar numa resposta convincente, e ela me acusou de ter dado em cima da patroa. Deixei que pensasse que isso tinha acontecido e acabei por levar uma bofetada na cara. - Desatei a rir, mas Don e Jenny não mostraram qualquer reação. Depois, Williams perguntou: - O que faço agora, chefe? Volto para a Inglaterra? - Não - disse Donald. - Fique aí, por enquanto. Reserve um quarto no Majestic e vigie-a constantemente. Avise-me se ela fizer qualquer coisa fora do normal. Nós vamos a Cambridge. Logo que estejamos num hotel de lá, telefono para você. - Entendido, chefe - disse Williams, e desligou. - Quando vamos? - perguntei a Donald. - Esta noite - respondeu ele. - Mas só depois que eu der alguns telefonemas. Don ligou para dez números de Cambridge, usando os dígitos que Williams tinha conseguido anotar e inserindo os números de zero a nove no lugar do que ele esquecera. O 00223 640707 era uma escola. - Desculpe, foi engano - disse Donald. O 717 era uma farmácia; o 727, uma garagem; o 737 foi atendido por uma voz masculina idosa. - Desculpe, foi engano - repetiu Donald; o 747 era uma banca de jornais; no 757, atendeu a mulher de um policial 54 local (tentei não rir, mas Donald apenas resmungou); no 767, uma voz de mulher (Desculpe, foi engano) uma vez mais; o 777 era o Colégio de St. Catherine; no 787, uma voz de mulher numa secretária eletrônica; o 797 era um cabeleireiro. Donald consultou sua lista. - Tem de ser 737,

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767 ou 787. Está na hora de mexer uns pauzinhos. Discou um número de Bradford e disseram-lhe que o novo chefe de polícia de Cambridge tinha sido transferido da polícia de Yorkshire Oeste no ano anterior. - Leeke. Allan Leeke - disse Donald, sem que eu lhe perguntasse. Voltou-se para mim. - Era sargento quando fui promovido a inspetor. - Agradeceu a seu contato de Bradford e depois telefonou para o serviço de informações, perguntando o número da central de polícia de Cambridge. Discou outro número com o dedo indicador, repetindo o prefixo 0223. - Polícia de Cambridge. O que deseja? - perguntou uma voz feminina. - Pode me ligar com o delegado, por favor? - pediu Donald. - Quem quer falar? - Donald Hackett. A voz que apareceu na linha exclamou: - Don, que surpresa agradável. Pelo menos espero que seja uma surpresa agradável. Eu o conheço. com certeza não se trata de uma conversa de caráter social. Por acaso anda à procura de trabalho? Soube que saiu da polícia. - Sim, é verdade. Eu me demiti, mas não ando à procura de trabalho, Allan. Não creio que a polícia de Cambridge pudesse me pagar o que estou ganhando. - Então o que posso fazer por você, Don? - Preciso que investigue três números de telefone da área de Cambridge. - Tem autorização? - perguntou o delegado. - Não, mas isso pode levar a uma prisão no seu quintal disse Donald. - Isso e o fato de ser um pedido seu bastam para mim. 55

Donald leu os três números, e Leeke pediu-lhe que aguardasse um momento. Enquanto esperávamos, Donald disse: - Eles só têm de apertar uns botões na sala de controle, e os números aparecem numa tela. As coisas mudaram muito desde que entrei para a polícia. Naquele tempo tínhamos mesmo que usar as pernas. A voz do delegado voltou à linha. - Certo, sai o primeiro número. O 640737 é do comandante da Esquadrilha Danvers-Smith.^O registro indica que é a única pessoa que mora nessa casa. - Indicou um endereço em Great Shelford, que explicou ficar ao sul de Cambridge. Jenny anotou. - No 767 temos o professor e senhora Balcescu, que também moram em Great Shelford. O 787 é de Dame Julie Renaud, uma cantora de ópera. Mora em Grantchester. Conheço-a muito bem. Nunca está em casa, por causa dos concertos que faz pelo mundo inteiro. A casa dela foi assaltada três vezes no ano passado, sempre quando estava no exterior. - Obrigado - disse Donald. - Você foi muito útil. - Mais alguma coisa? - perguntou o delegado, com ar esperançoso. - No momento, não - respondeu Donald. - Mas logo que eu tenha terminado minha investigação, prometo que será a primeira pessoa a ser informada. - Ótimo - foi a resposta, antes de o telefone ser desligado. -- Tudo certo - disse Donald, voltando-se de novo para nós. - Partimos para Cambridge dentro de duas horas. Isso nos dá tempo para fazermos as malas e para Jenny reservar um hotel perto do Centro da cidade. Encontramo-nos aqui às... - consultou o relógio - seis horas. - Saiu da sala sem mais uma palavra. Recordo-me de ter pensado que meu pai teria se dado bem com ele. Cerca de duas horas mais tarde, Jenny nos conduzia a uma velocidade constante de sessenta e nove milhas por hora pela Al. - Agora começa a parte aborrecida do trabalho de detetive disse Donald. - Pesquisa intensiva, seguida de horas de vigilância. Creio que podemos deixar de lado, com segurança, Dame Julia. 56 Jenny, fique com o comandante de esquadrilha. Quero detalhes da carreira dele desde o dia em que saiu da escola até o dia em que se reformou. Amanhã bem cedo, comece por contactar o Colégio Cranwell da RAF e peça detalhes da folha de serviços dele. Eu fico com o professor e vou começar pela biblioteca da universidade. - E eu, o que faço? - perguntei. - No momento, senhor Cooper, mantenha-se fora de cena. É possível que o comandante ou o professor nos levem a Alexander. Não queremos que o senhor esbarre com os suspeitos e os assuste. Concordei com relutância. À noite, instalei-me numa suíte do Hotel Garden House uma espécie de prisão mais requintada. Mas, apesar das almofadas de penas e do colchão confortável, não conseguia dormir. Levantei-me de manhã cedo e passei a maior

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parte do dia vendo inúmeras notícias da Sky News, episódios de diversas telenovelas australianas e um "Filme da Semana" de duas em duas horas. Mas minha mente estava constantemente entre o Cranwell da RAF e a biblioteca da universidade. Quando nos encontramos no quarto de Donald, nessa noite, tanto ele como Jenny confirmaram que suas investigações iniciais sugeriam que ambos os homens eram o que diziam ser. - Tinha certeza de que um deles acabaria por ser Jeremy disse eu, incapaz de ocultar meu desapontamento. - Seria bom que fosse sempre tão fácil, senhor Cooper disse Donald. - Mas isso não quer dizer que um deles não nos leve até Jeremy. - Voltou-se para Jenny. - Em primeiro lugar, vamos saber o que há sobre o comandante. - O comandante de esquadrilha Danvers-Smith, DFC*, terminou seu curso em Cranwell em 1938, serviu no Esquadrão Número Dois de Binbrook, em Lincolnshire, durante a Segunda Guerra Mundial, e realizou diversas missões sobre a Alemanha e a França ocupada. Foi-lhe concedida a DFC por atos de bravura * Distinguished Flying Cross - Cruz de Serviços Relevantes da Força Aérea. (N. da T.) 57 em 1943. Deixou de voar em 1958 e passou a ser instrutor da RAF Cottesmore em Gloucestershire. Sua colocação final foi como segundo-comandante da RAF Locking em Somerset. Reformou-se em 1977, ano em que ele e a mulher se mudaram para Great Shelford, onde ele se criou. - Por que vive sozinho atualmente? - perguntou Donald. - A mulher morreu há três anos. Tem dois filhos, Sam e Pamela, ambos casados, mas nenhum deles mora na região. Visitam-no de vez em quando. Perguntei a Jenny como tinha conseguido saber tanta coisa sobre o comandante em tão pouco tempo. Ela nada disse, pois estava mais interessada em saber o que Don tinha descoberto a respeito do professor Balcescu. Donald pegou uma pilha de anotações que estava no chão, a seus pés. -vou informá-los dos resultados de minha investigação sobre esse distinto professor - principiou. - O professor Balcescu fugiu da Romênia em 1989, depois que Ceausescu o colocou em prisão domiciliar. Foi levado para fora do país por um grupo de estudantes dissidentes, pela Bulgária, e passou para a Grécia. Sua fuga foi bem noticiada pelos jornais da época. Pediu asilo na Inglaterra, e foi-lhe dado um lugar de professor na Universidade Gonville and Caius, em Cambridge, e três anos depois a cadeira de Estudos Europeus Ocidentais. É conselheiro do governo sobre assuntos romenos e escreveu um livro referente ao assunto. No ano passado foi feito CBE* durante as comemorações do aniversário da Rainha. - Como é que algum desses homens poderia conhecer Rosemary? - perguntei. - Williams deve ter-se enganado quando anotou o número. - Williams não comete erros, senhor Cooper - disse Don. - Caso contrário, não o teria contratado. Sua mulher ligou para * Commander (ofthe Order) ofthe Bntish Empire - Comandante (da Ordem) do Império Britânico. (N. da T.) 58 um desses números, e temos de descobrir para qual deles. Desta vez vamos precisar de sua ajuda. Murmurei um pedido de desculpa, mas não estava convencido. Hackett aceitou as desculpas com um breve aceno de cabeça e voltou-se para Jenny. - Quanto tempo até a casa do comandante? - Cerca de quinze minutos. Ele mora numa casa em Great Shelford, a sul de Cambridge. - Vamos começar por ele. Nosso próximo encontro será no vestíbulo às cinco horas, amanhã de manhã. Voltei a dormir agitadamente nessa noite, agora convencido de que a caçada seria infrutífera; mas, pelo menos, ia poder acompanhá-los no dia seguinte, em vez de ficar fechado no meu quarto vendo telenovelas australianas. Não precisei ser despertado às 4h30, pois já estava tomando uma ducha quando o telefone tocou. Pouco depois das cinco, saímos os três do hotel, tentando não dar a impressão de que pretendíamos partir sem pagar a conta. A manhã estava gelada. Eu tremia de frio quando me instalei no banco de trás do carro. Jenny levou-nos para fora da cidade, avançando pela estrada para Londres. Ao fim de uma milha, dobrou à esquerda e chegamos a uma pequena e encantadora aldeia, com casas bem conservadas e espalhadas de ambos os lados da estrada. Passamos por um largo ajardinado à esquerda e percorremos mais meia milha, até que Jenny manobrou bruscamente e estacionou no

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acostamento. Desligou o motor e apontou para uma pequena casa com um porta azul onde se lia "RAF". - É ali que ele mora - disse ela. - Número quarenta e sete. - Donald apontou um minúsculo binóculo na direção da casa. Alguns madrugadores saíam de suas casas e seguiam de carro até a estação para embarcar no primeiro trem para Londres. O distribuidor de jornais era uma velhota que empurrava lentamente sua bicicleta carregada ao longo da aldeia, fazendo as entregas. A seguir veio o leiteiro, avançando estrepitosamente na sua caminhonete - dois litros aqui, um litro acolá, de vez em quando meia 59 dúzia de ovos ou uma embalagem de suco de laranja, que eram deixados nos degraus das portas. Começaram a acender-se luzes em toda a aldeia. - Deixaram um litro de leite de tampa vermelha e um exemplar do Daily Telegraph na porta do comandante - informou Donald. Já haviam saído algumas pessoas das casas de ambos os lados do número quarenta e sete quando se acendeu uma luz no quarto do andar superior da casa do comandante. Logo que essa luz se acendeu, Donald endireitou-se e seus olhos nunca mais abandonaram a casa. Comecei a aborrecer-me e, a certa altura, cochilei no banco de trás. Quando acordei, tive esperanças de que nos fosse concedida, pelo menos, uma pausa para uma pequena refeição, mas essas considerações menores não pareciam interessar aos dois profissionais que estavam à minha frente. Continuaram concentrados em qualquer movimento que ocorresse no quarenta e sete e mal trocavam uma palavra. Às 10hl9, um homem magro e idoso, envergando um casaco de tweed Harris e calças de flanela cinzenta, saiu do número quarenta e sete e começou a descer rapidamente a calçada. A única coisa que pude perceber, àquela distância, foi um enorme e farto bigode branco. Parecia que o resto do corpo tinha sido desenhado em volta dele. Donald manteve o binóculo focalizado nele. -Já o viu alguma vez? - perguntou, passando-me o binóculo. Apontei o binóculo para o comandante e observei-o cuidadosamente. - Nunca - disse, quando ele se deteve junto de um velho e decrépito Austin Allegro. - Como poderia alguém esquecer aquele bigode? - Não há dúvida de que ele não o deixou crescer na semana passada - disse Donald, quando Danvers-Smith fez o carro descer até a estrada principal. Jenny praguejou. - Pensei que, se ele fosse usar o carro, o mais provável seria ir para Cambridge. - Fez habilmente a curva e acelerou atrás do 60 comandante. Minutos depois estava a apenas dois carros atrás dele. Danvers-Smith não demonstrava ser o tipo de pessoa que habitualmente infringe os limites de velocidade. - É óbvio que seus dias de piloto de testes já passaram disse Donald, enquanto perseguíamos o Allegro, a uma distância segura, até o vilarejo seguinte. Cerca de meia milha mais adiante o homem dirigiu-se a um posto de gasolina. - Não o perca - disse Donald. Jenny seguiu o Allegro até o posto e parou junto à bomba, logo atrás de Danvers-Smith. - Mantenha a cabeça baixa, senhor Cooper - disse Don, abrindo sua porta. - Não convém que ele o veja. - O que vai fazer? - perguntei, espreitando entre os bancos da frente. - Arriscar um velho truque - respondeu Donald. Saiu do carro, deu a volta e desatarraxou a tampa da gasolina precisamente quando o comandante introduzia o bocal da mangueira no tanque de seu Allegro. Donald começou lentamente a encher nosso tanque e, de repente, voltou-se para o velho. - Comandante de esquadrilha Danvers-Smith? -perguntou com voz melosa. O comandante ergueu imediatamente o olhar e surgiu uma expressão de surpresa em seu rosto curtido pelo tempo. - Baker, meu comandante - disse Donald. - Tenente-aviador Baker. O senhor me deu aulas na RAF de Locking. Vulcans, se bem me lembro. - Excelente memória, Baker. Muito bem - disse DanversSmith. - Encantado por encontrá-lo, meu velho - disse ele, retirando a mangueira de seu carro e pendurando-a na bomba. - O que faz atualmente? Jenny reprimiu uma gargalhada. - Trabalho para a BA, meu comandante. Não posso voar desde que falhei no teste de vista. Um trabalho de secretaria, infelizmente, mas foi a única coisa que arranjei. - Pouca sorte, meu velho - disse o comandante, enquanto 61 se preparava para pagar a conta. Ficaram mais distantes. Não conseguíamos ouvi-los. Quando voltaram, pouco depois, conversavam como

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velhos camaradas, e o comandante já tinha passado um braço em volta dos ombros de Donald. Quando chegaram perto do carro, apertaram as mãos e ouvi Donald dizer: - Então adeus, meu comandante - antes de Danvers-Smith entrar no Allegro. O velho aviador deixou o posto e dirigiu-se novamente para casa. Donald sentou-se ao lado de Jenny e fechou a porta do carro. - Receio que ele não nos leve a Alexander - disse Don, com um suspiro. - Danvers-Smith é um artigo genuíno, sente a falta da mulher, não vê os filhos muitas vezes e sente-se um pouco solitário. Até me pediu que aparecesse para almoçar com ele. - Por que não aceitou? - perguntei. Donald fez uma pausa. - Teria aceitado. Mas, quando eu disse que era de Leeds, ele disse que só tinha estado lá uma vez na vida, para ver um jogo. Não, aquele homem nunca ouviu falar em Rosemary Cooper e nem em Jeremy Alexander... aposto minha aposentadoria. Por isso, é a vez do professor. Vamos voltar para Cambridge, Jenny. E vá devagar, não quero me encontrar com o comandante. Senão vamos acabar almoçando com ele. Jenny manobrou o carro para a pista da direita, dirigindo-se à cidade. Ao fim de algumas milhas, Donald mandou que parasse no acostamento, perto de um letreiro que anunciava o Shelford Rugby Club. - O professor e a mulher moram numa casa atrás daquela sebe - disse Donald, apontando para o outro lado da estrada. Acomode-se, senhor Cooper. Isso pode levar algum tempo. Às 12h30, Jenny saiu para comprar peixe e batatas fritas no vilarejo. Devorei-os vorazmente. Às três horas estava outra vez mortalmente aborrecido e começava a me perguntar quanto tempo mais Donald ficaria ali antes de termos licença para voltar ao 62 hotel. Lembrei-me que às 18h30 a televisão apresentava "Dias Felizes". - Vamos ficar aqui a noite inteira, se for preciso - disse Donald, como se lesse meus pensamentos. - Quarenta e nove horas é o meu recorde sem dormir. Qual é o seu, Jenny? perguntou, sem tirar os olhos da casa. - Trinta e uma - respondeu ela. - Então talvez seja a oportunidade de bater seu próprio recorde - disse ele. Momentos depois uma mulher saiu do caminho de acesso num BMW branco, que parou à beira da calçada. Esperou um pouco, olhou para ambos os lados e depois entrou na estrada e virou para a direita, na direção de Cambridge. Quando passou por nós, vi de relance uma loura com um bonito rosto. -Já a vi antes! - exclamei. - Siga-a, Jenny - disse Donald, bruscamente. -Mas mantenha a distância. -Voltou-se para mim. - Onde é que a viu? - perguntou, passando-me o binóculo. - Não me lembro - disse eu, tentando focalizar a massa de cabelos louros e encaracolados. - Pense, homem. É a melhor oportunidade que já apareceu - disse Donald, esforçando-se para falar como se não estivesse interrogando um velho criminoso. Eu sabia que já havia visto aquele rosto em algum lugar, embora tivesse certeza de nunca ter falado com aquela mulher. Precisava me esforçar, pois já se haviam passado pelo menos cinco anos desde que eu vira qualquer mulher que pudesse reconhecer, quanto mais uma tão vistosa. Mas minha mente permanecia vazia. - Continue a pensar - pediu Don - enquanto eu tento encontrar qualquer coisa um pouco mais simples. E, Jenny, não se aproxime muito dela. Nunca se esqueça de que ela tem um retrovisor; o senhor Cooper pode não se lembrar dela, mas ela pode se lembrar dele. Donald pegou o telefone do carro e digitou dez números. -Tomara que ele não saiba que eu me aposentei - murmurou. - Departamento de Viação de Swansea. Em que posso ser útil? 63 - O sargento Crann, por favor - disse Donald. - vou ligar. - Dave Crann. - Donald Hackett. - Boa tarde, superintendente. Em que posso servi-lo? -Um BMWbranco, K273 SCE - disse Donald, olhando para o carro à sua frente. - Um momento, por favor, não desligue. Donald manteve os olhos cravados no BMW, enquanto aguardava. Estava a uns trinta metros à nossa frente, dirigindo-se a um sinal com luz verde. Jenny acelerou para não ficar presa, caso ele fechasse, e, quando passava com a luz amarela, o sargento Crann voltou ao fone. - Identificamos o carro - disse ele. - A proprietária registrada é Susan Balcescu, The Kendalls, High Street, Great Shelford, Cambridge. Uma multa por velocidade excessiva numa área habitada, em 1991. Trinta libras. Não há mais nada. - Obrigado, sargento. Ajudou muito. - com

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muito prazer, superintendente. - Por que iria Rosemary contactar os Balcescu? - disse Donald, pousando o telefone. - E será apenas um deles ou ambos? - Nenhum de nós tentou responder. - Acho que é hora de largá-la - disse um momento depois. - Preciso confirmar mais umas pistas, antes de nos arriscarmos a enfrentar qualquer deles. Voltemos para o hotel. Vamos pensar no que devemos fazer em seguida. - Eu sei que é apenas uma coincidência - aventurei-me a dizer -, mas, quando o conheci, Jeremy tinha um BMW branco. - F173 BZK - disse Jenny. -Lembro-me de ter visto a placa no dossiê. Donald voltou-se para Jenny. - Há pessoas que não conseguem deixar de fumar. Outras de beber. Mas, com algumas pessoas, o vício é marca de carro - disse. - Embora haja muita gente que dirija BMWs brancos - murmurou quase para si próprio. / Quando voltamos ao quarto de Donald, ele começou a reler o 64 dossiê que compilara sobre o professor Balcescu. O artigo do Times sobre sua fuga da Romênia, disse-nos ele, era o mais pormenorizado: O professor Balcescu notabilizou-se quando ainda era estudante na Universidade de Bucareste, ao defender a derrubada do governo eleito. As autoridades ficaram aliviadas quando lhe foi oferecido um lugar em Oxford, esperando, possivelmente, não voltar a vê-lo. Mas ele regressou à Universidade de Bucareste três anos depois, ocupando o lugar de professor de Política. No ano seguinte, chefiou uma revolta de estudantes em apoio a Nicolae Ceausescu, e, depois que ele se tornou presidente, Balcescu foi recompensado com um lugar no Conselho, vindo a ser ministro da Educação. Mas em breve se sentiu desiludido com o regime de Ceausescu e, dezoito meses depois, tinha-se demitido e regressado à universidade como simples assistente. Três anos mais tarde foi-lhe oferecida a cátedra de Política e Economia. O crescente desapontamento do professor Balcescu em relação ao governo transformou-se finalmente em aberta desaprovação, e, em 1986, começou a escrever uma série de panfletos que denunciavam Ceausescu e seu regime fantoche. Algumas semanas depois de um ataque particularmente agressivo ao regime, foi despedido do cargo na universidade e, logo depois, colocado em prisão domiciliar. Um grupo de historiadores de Oxford escreveu uma carta de protesto a The Times, mas nada mais se soube , acerca daquele erudito professor durante vários anos. Finalmente, em fins de 1989, foi levado para fora da Romênia por um grupo de estudantes, chegando à Inglaterra pela Bulgária e Grécia. Cambridge ganhou a batalha das universidades que tentavam oferecerlhe uma cátedra, e ele se tornou membro da Gonville and Caius em setembro de 1990. Em novembro de 1991, após a aposentadoria de Sir Halford McKay, Balcescu ocupou a cátedra de Estudos Europeus Ocidentais. Donald ergueu o olhar. - Há aqui uma fotografia dele, tirada quando estava na Grécia, mas está muito desgastada para ter alguma utilidade. Observei a fotografia em preto e branco do homem de meiaidade, barbudo, rodeado por estudantes. Não se parecia com Jeremy. Franzi a testa. - Mais um beco sem saída. 65 - Começa a parecer que sim - disse Donald. - Especialmente depois do que descobri ontem. Segundo sua secretária, Balcescu dá sua aula semanal todas as sextas-feiras de manhã, das dez às onze. - Mas isso não o impede de receber uma chamada de Rosemary ao meio-dia - interrompeu Jenny. - Se me permite que termine - disse Hackett severamente. Jenny baixou a cabeça, e ele prosseguiu: - Ao meio-dia preside uma reunião do departamento no seu gabinete, a que assistem todos os funcionários. Estou certo de que concordará, Jenny, que seria muito difícil ele receber uma chamada pessoal a essa hora todas as sextas-feiras, dadas as circunstâncias. Donald voltou-se para mim. - Lamento dizer que estamos de volta ao ponto de partida, a menos que se recorde de onde viu a senhora Balcescu. Abanei a cabeça. - Talvez estivesse enganado - confessei. Donald e Jenny passaram as horas seguintes consultando dossiês, confirmando cada um dos dez telefones uma segunda vez. - Recorda-se da segunda chamada de Rosemary? - perguntou Jenny, já desesperada. - "O diretor não está neste momento"? Poderia ser a pista que procuramos? - Possivelmente - disse Donald. - Se conseguíssemos descobrir quem é o diretor, talvez

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estivéssemos um passo mais próximos de Jeremy Alexander. Recordo-me das últimas palavras de Jenny antes que eu voltasse para meu quarto: - Quantos diretores haverá na Inglaterra? Durante o café no quarto de Donald, na manhã seguinte, ele reviu todas as informações que havia reunido até aquele momento, mas nenhum de nós achou que estivesse mais próximo de uma solução. - E quanto à senhora Balcescu? - perguntei. - Talvez ela seja a pessoa que recebia as chamadas todas as sextas-feiras ao 66 meio-dia, já que é uma hora que ela sabe exatamente onde está o marido. - Concordo. Mas será simplesmente a mensageira de Rosemary. ... ou uma amiga de Jeremy? - opinou Donald. - Talvez tenhamos de grampear o telefone dela para descobrir - disse Jenny. Donald ignorou o comentário e consultou o relógio. - E hora de assistir à palestra de Balcescu. - Para que todo esse trabalho? - perguntei. - Acho que devíamos nos concentrar na senhora Balcescu. - Talvez tenha razão - disse Donald. - Mas não podemos desperdiçar qualquer pista que seja. Como a palestra seguinte só será na próxima semana, talvez seja melhor ouvirmos a de hoje. De qualquer forma, vamos sair às onze. Se descobrirmos que o telefone da senhora Balcescu está ocupado entre as doze e as doze e trinta... Depois de Donald ter pedido a Jenny que trouxesse o carro para a porta do hotel, fui ao meu quarto buscar uma coisa que há muito estava escondida no fundo de minha mala. Minutos depois fui ao encontro deles. Jenny conduziu-nos para fora do estacionamento do hotel, virando à direita para a estrada principal. Donald olhou para mim, desconfiado, pelo espelho retrovisor, enquanto eu me mantinha silencioso no banco de trás. Estarei com ar culpado?, perguntei a mim mesmo. Jenny descobriu uma vaga a algumas centenas de metros do departamento de Estudos Europeus e encostou o carro na calçada. Saltamos e seguimos o fluxo de estudantes que avançava pela calçada e subia pelas escadas. Ninguém olhou para nós. Quando entramos no edifício, Donald tirou a gravata e meteu-a no bolso do casaco. Parecia mais um revolucionário marxista do que a maior parte das pessoas que ia assistir à palestra. A localização do centro de conferências estava claramente indicada. Entramos por uma porta no primeiro andar, que era a única que servia de entrada e saída para o anfiteatro. Donald dirigiu-se imediatamente para a última fila, seguido por mim e por Jenny. A seguir indicou-me um lugar atrás de um estudante 67 que, por seu aspecto, devia treinar todo sábado para os jogos de rúgbi de sua faculdade. Enquanto esperávamos que Balcescu entrasse na sala, comecei a olhar em volta. O anfiteatro consistia em um grande semicírculo, lembrando um teatro grego em miniatura. Calculei que pudesse comportar cerca de trezentos estudantes. No momento em que o relógio da parede do fundo indicava 9:55h quase não havia um lugar vago. Não eram necessárias mais provas acerca da reputação do professor. Senti que se formavam leves gotas de suor na minha testa, enquanto esperava que Balcescu entrasse. Quando bateram dez horas, a porta do anfiteatro abriu-se. Fiquei tão desapontado ao ver o homem que entrou, que gemi alto: ele era totalmente o oposto de Jeremy. - Cor de cabelo diferente, cor dos olhos diferente, cerca de quinze quilos a menos. - Don não reagiu. - Então a ligação tem de ser com a senhora Balcescu sussurrou Jenny. - De acordo - disse Donald entre dentes.- Mas ficaremos presos aqui durante a próxima hora, pois não podemos nos arriscar a atrair as atenções sobre nós se sairmos. Temos que sair assim que a palestra acabar, e ainda ficamos com tempo para ver se ela está em casa para receber a chamada das doze horas. - Fez uma pausa. - Eu deveria ter verificado a planta do edifício antes de entrar. Jenny corou um pouco, porque sabia que o eu naquele caso era você e se referia a ela. De repente, lembrei-me de onde tinha visto a senhora Balcescu. Ia contar a Donald, mas a sala ficou em silêncio quando o professor pronunciou as palavras de abertura. - Esta é a sexta de oito palestras - disse ele - sobre as recentes tendências sociais e econômicas da Europa Oriental. - com acentuado sotaque da Europa Central, começou a desenrolar um discurso que parecia ter .sido feito muitas vezes antes. Os

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estudantes começaram a fazer anotações em seus blocos, mas eu me sentia cada vez mais irritado com o contínuo zumbido das vogais anasaladas do

professor, pois estava impaciente para falar a Hackett sobre a 68 senhora Balcescu e voltar para Great Shelford o mais depressa possível. Percebi-me olhando para o relógio da parede a intervalos de poucos minutos; como fazia nos meus tempos de escola, pensei. Levei a mão ao bolso do casaco. Ainda estava lá, embora, àquela altura, não servisse para nada. No meio da palestra, a intensidade das luzes foi reduzida para que o professor pudesse ilustrar alguns dos pontos abordados por meio de slides. Observei os dois primeiros gráficos que apareceram na tela, mostrando diferentes grupos de rendimento da Europa Oriental relacionados com as respectivas balanças de pagamento e exportações, mas não fiquei sabendo muito mais, e não creio que fosse pelo fato de não ter assistido às primeiras cinco palestras. O assistente encarregado do projetor havia colocado alguns slides ao contrário, mostrando o final da tabela de exportações da Alemanha e a parte superior da tabela da Romênia, o que provocou uma leve onda de risos no anfiteatro. O professor franziu a testa e começou a pronunciar seu discurso cada vez mais depressa. Era cada vez mais difícil para o assistente encontrar os slides que coincidissem com suas afirmações. Voltei a deixar-me vencer pelo tédio, mas fiquei aliviado quando, às cinco para as onze, Balcescu pediu o gráfico final. O anterior fora substituído por uma tela em branco. Todo mundo olhou para o assistente, que procurava desesperadamente o slide. O professor começou a ficar irritado à medida que o ponteiro dos minutos se aproximava das onze. Mas o assistente não conseguia encontrar o slide que faltava. Voltou a acionar o comando, mas nada apareceu na tela, deixando o professor brilhantemente iluminado por um raio de luz. Balcescu deu um passo à frente e começou a tamborilar impacientemente os dedos sobre a estante de madeira. Mas, ao ficar de lado, pude captar seu perfil pela primeira vez. Havia uma pequena cicatriz por cima do olho direito, que devia ter quase desaparecido ao longo dos anos, mas à luz brilhante do foco eu podia vê-la claramente. - É ele! - sussurrei a Donald, no momento em que o relógio marcava onze horas. As luzes acenderam-se e o professor abandonou rapidamente o anfiteatro sem mais uma palavra. 69 Pulei sobre o encosto de minha cadeira e comecei a correr para a saída, no que fui impedido pelos estudantes que já começavam a sair. Empurrei-os até chegar à porta por onde o professor saíra tão abruptamente. Avistei-o no fundo do corredor. Estava abrindo outra porta, e logo desapareceu de minha vista. Corri atrás dele, esbarrando em vários estudantes que conversavam. Quando cheguei à porta que ele fechara, me deparei com um letreiro: PROFESSOR BALCESCU DIRETOR DE ESTUDOS EUROPEUS Abri bruscamente a porta e vi uma mulher sentada a uma mesa, folheando papéis. Outra porta fechava-se atrás dela. - Preciso ver o professor Balcescu imediatamente - gritei, sabendo que, se não o pegasse antes que Hackett me alcançasse, poderia perder minha oportunidade. A mulher parou o que estava fazendo e ergueu o olhar para mim. - O diretor está à espera de uma ligação do exterior a qualquer momento e não pode ser incomodado - respondeu ela. - Sinto muito, mas... Passei por ela, abri a porta e entrei na sala seguinte, onde me vi diante de Jeremy Alexander pela primeira vez desde que o deixara, estendido no chão da minha sala de estar. Ele estava falando animadamente ao telefone, mas ergueu o olhar e me reconheceu imediatamente. Quando tirei a pistola do bolso, largou o telefone. Ao ver a arma, o sangue abandonou seu rosto. - Jeremy? - perguntou uma voz agitada do outro lado da linha. Apesar do tempo que passara, não tive dificuldade em reconhecer a voz estridente de Rosemary. Jeremy começou a gritar: - Não, Richard, não! Eu posso explicar! Acredite! Eu posso explicar! Donald entrou correndo. Deteve-me bruscamente junto à mesa do professor, mas não mostrou interesse algum por Jeremy. 70 - Não faça isso, Richard - suplicou ele. -Vai passar o resto da vida se lamentando. -

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Lembro-me de ter observado que era a primeira vez que ele me chamava de Richard. - Desta vez está errado, Donald - disse eu. - Não vou me queixar por ter matado Jeremy Alexander. Ele já foi declarado morto. Eu sei, porque fui condenado à prisão perpétua por seu assassinato. Tenho certeza de que conhece o significado de autrefois acquit, e por isso sabe que não posso ser acusado uma segunda vez de algo pelo qual já fui condenado. Só que agora vai haver um cadáver. Desloquei a pistola um pouco para a direita e apontei no coração de Jeremy. Apertei o gatilho no momento exato em que Jenny, ao entrar na sala correndo, mergulhou e agarrou-se às minhas pernas. Jeremy e eu caímos ao mesmo tempo no chão. Bem, como disse no início desta narrativa, tenho de explicar por que motivo estou na prisão - ou, para ser mais exato, por que voltei à prisão. Fui julgado uma segunda vez, dessa vez por tentativa de homicídio - apesar de só ter atingido de raspão o ombro daquele miserável. Nunca perdoarei Jenny por isso. Note-se que valeu a pena, só para ouvir a preleção final de Matthew, pois ele entendeu muito bem o significado de autrefois acquit. Foi brilhante na sua descrição de Rosemary como uma Jezebel perversa e calculista, e de Jeremy como um homem motivado pelo rancor e pela ganância, capaz de se fazer passar cinicamente por herói nacional enquanto sua vítima apodrecia na cadeia por toda a vida, sem falar no testemunho falso da esposa, pelo qual ele fora inquestionavelmente o cérebro responsável. Dentro de mais quatro anos, disse aos jurados um exasperado Matthew, teriam embolsado, ambos, mais alguns milhões. Dessa vez os jurados olharam para mim com considerável simpatia. - Não levantarás falso testemunho - foram as últimas palavras 71 de Sir Matthew, e sua voz sonora fez com que as palavras soassem como as de um profeta do Antigo Testamento. Os jornais precisam sempre de um herói e de um vilão. Dessa vez tinham um herói e dois vilões. Pareciam ter esquecido tudo o que haviam escrito durante o julgamento anterior acerca do motorista tarado por sexo, e teria sido ingênuo sugerir que as muitas páginas dedicadas a todos os sórdidos detalhes do embuste de Jeremy e Rosemary não tiveram qualquer influência sobre os jurados. Consideraram-me culpado, evidentemente, mas apenas porque não tinham alternativa. No seu resumo final, o juiz quase lhes ordenou que o fizessem. Mas o primeiro jurado manifestou a esperança dos outros membros do júri de que, em vista das circunstâncias, o juiz pronunciasse uma sentença leve. O juiz Lampton obviamente não lia os jornais, pois me fez um sermão de vários minutos e depois disse que eu teria de cumprir uma pena de cinco anos. Matthew pôs-se imediatamente de pé, apelando por clemência, uma vez que eu já tinha cumprido longa sentença. - Este homem vê o mundo através de uma janela de lágrimas - disse ele ao juiz. - Suplico a Vossa Excelência que não o coloque novamente atrás das grades. - Os aplausos da galeria foram tão barulhentos, que o juiz teve de mandar evacuar a sala antes de conseguir responder a Sir Matthew. - É óbvio que Sua Excelência necessita de algum tempo para pensar - explicou-me Matthew, baixinho, ao passar pelo banco dos réus. Depois de muita deliberação em seu gabinete, o juiz Lampton contentou-se com três anos. Nesse dia fui enviado para a prisão aberta de Ford. Depois de consideráveis comentários na imprensa durante algumas semanas e daquilo que Sir Matthew descreveu no Tribunal de Apelação como "a inigualável provação e exemplar comportamento de meu cliente, acabei ficando na prisão apenas nove meses. Enquanto isso, Jeremy tinha sido preso e enviado para o Hospital Addenbrookes por Allan Leeke, delegado de polícia de 72 Cambridgeshire. Depois de três dias numa enfermaria fortemente guardada, foi acusado de conspiração para denegrir o curso da justiça pública e transferido para a prisão de Armley, a fim de aguardar julgamento. No mês que vem comparecerá ao Tribunal Real de Leeds, e o leitor pode estar certo de que estarei presente naquele tribunal acompanhando o julgamento todos os dias. A propósito, Dedos e os rapazes deram-lhe magníficas boas-vindas. Dizem que já perdeu mais peso do que o que perdera quando andou pela Europa tecendo sua nova identidade. Rosemary também foi presa e

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acusada de perjúrio. Não lhe foi concedida fiança, e Donald informou-me de que as prisões francesas, especialmente a de Marselha, são menos confortáveis do que a de Armley - uma das poucas desvantagens de se viver no sul da França. Ela está lutando pela ordem de extradição, evidentemente, mas Matthew assegurou-me que não tem a menor chance de conseguir, agora que assinamos o Tratado de Maastricht. Eu sabia que alguma coisa boa havia de resultar daí. Quanto à senhora Balcescu - tenho certeza de que o leitor descobriu muito antes de mim onde a conheci. No caso de A Rainha versus Alexander e Kershaw, segundo me disseram, ela vai prestar depoimento em favor da Coroa. Jeremy cometeu um pequeno erro para uma pessoa tão calculista e tão astuta quanto ele. Para se proteger de ser identificado, pôs todos os seus bens em nome da mulher. Por isso, a loura vistosa acabou ficando com tudo, e tenho a impressão de que, quando for interrogada, Rosemary não vai ajudar muito Jeremy, pois ele esqueceu de lhe dizer que, enquanto conversava semanalmente com ela pelo telefone, estava vivendo com outra mulher. Tem sido difícil descobrir o paradeiro do verdadeiro professor Balcescu, porque, desde a queda de Ceaucescu, ninguém sabe ao certo o que aconteceu àquele distinto acadêmico. Até mesmo os romenos pensam que ele conseguiu fugir para a Inglaterra e ali iniciou uma nova vida. O Bradford City desceu de divisão, de modo que Donald comprou uma casa na zona ocidental e instalou-se lá para ver o Bath jogar rúgbi. Jenny foi trabalhar em uma agência de detetives 73 particulares em Londres, mas já anda se queixando do salário e das condições de trabalho. Williams regressou a Bradford e decidiu-se por uma aposentadoria antecipada. Foi ele quem nos chamou a atenção para o fato dolorosamente óbvio de que, quando são doze horas na França, são apenas onze na Inglaterra. A propósito, decidi finalmente voltar a Leeds. A Cooper foi liquidada, como pensei que seria, pois a nova equipe de administração não se mostrou muito eficiente quando procurou enfrentar uma recessão. O mentor da falência ficou encantado por aceitar minha oferta de 250.000 libras pelo que restava da companhia, pois ninguém mais mostrava o mínimo interesse por ela. O pobre Jeremy não vai receber praticamente nada por suas ações. Entretanto, procure o leitor as novas ações na Bolsa em meados do próximo ano, e compre algumas, pois serão aquilo a que meu pai chamaria "um risco que vale a pena correr". A propósito, Matthew avisa-me de que acabei de dar ao leitor aquilo que chamam de "informação privilegiada". Por isso peço a vocês que não a transmitam, porque não me agradará ir para a cadeia pela terceira vez. 74 PELA METADE DO PREÇO

AS MULHERES SÃO NATURALMENTE SUPERIORES AOS homens, e Consuela Rosenheim não constituía exceção. Victor Rosenheim, um banqueiro americano, era o terceiro marido de Consuela, e as colunas sociais de ambos os lados do Atlântico sugeriam que, como um fumante inveterado, que acende um cigarro no outro, a ex-modelo colombiana já andava à procura do próximo companheiro antes de sugar o último fôlego do atual. Seus dois primeiros maridos -um árabe e um judeu (Consuela não tinha preconceitos raciais no que dizia respeito a contratos de casamento) - não a haviam deixado ainda em posição que lhe garantisse segurança financeira quando sua beleza natural tivesse desaparecido. Dois outros acordos de divórcio, entretanto, resolveriam esse problema. Isso decidido, Consuela calculava que em cerca de cinco anos estaria em condição de fazer o voto final. Os Rosenheim haviam partido de avião para Londres, provenientes de sua residência em Nova York - ou, para ser mais exato, de suas residências em Nova York. Consuela saíra da mansão nos Hamptons e seguira até o aeroporto num carro com motorista, enquanto o marido partira de seu escritório, na Wall Street, num segundo carro também com motorista. Encontraram-se no salão do Concorde no JFK. Quando aterrissaram em Heathrow, outra limusine transportou-os ao Ritz, onde foram

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conduzidos à sua suíte habitual, sem que lhes fosse sequer sugerida a assinatura de, fichas de registro. 77 O propósito da viagem era duplo. O senhor Rosenheim tinha esperanças de adquirir um pequeno banco comercial que não se beneficiara com a recessão, enquanto a esposa, Consuela, pretendia ocupar seu tempo procurando um conveniente presente de aniversário para si mesma. Apesar de consideráveis investigações, não fui capaz de descobrir que aniversário ela celebrava oficialmente. Depois de uma noite sem dormir, devido à diferença de horários, Victor Rosenheim foi completamente despertado do estado de leseira por uma reunião no início da manhã no Centro de Londres, enquanto Consuela ficava na cama, beliscando o café da manhã. Conseguiu comer uma pequena torrada sem manteiga e a metade de um ovo cozido. Depois de retirada a bandeja do café, Consuela deu alguns telefonemas a fim de confirmar almoços marcados para os dois dias que passaria em Londres. Depois, desapareceu no banheiro. Cinqüenta minutos mais tarde deixou sua suíte, num vestido Olaganie cor-de-rosa com gola azul-escuro, os cabelos louros balançando sobre os ombros. Poucos homens por que passou entre o elevador e as portas giratórias da entrada deixaram de virar a cabeça para admirá-la, de modo que Consuela concluiu que os cinqüenta minutos anteriores não tinham sido desperdiçados. Saiu do hotel para o sol da manhã, a fim de iniciar a caça ao presente de aniversário. Iniciou sua busca na New Bond Street. Como anteriormente, não tinha intenções de se desviar mais do que alguns quarteirões para norte, sul, leste ou oeste daquele reconfortante ponto de referência, apesar de um carro conduzido por motorista segui-la a poucos metros. Passou algum tempo na Asprey, admirando os mais recentes relógios de fina espessura, uma estatueta de ouro com olhos de jade, e um ovo Fabergé, antes de passar à Cartier, onde rejeitou uma salva de prata com brasão, um relógio de pulso de platina e um relógio de sala Luís XIV Caminhou mais alguns metros até a Tiffany, de onde, apesar dos esforços de um vendedor decidido, que lhe mostrou quase tudo que a loja tinha para oferecer, saiu novamente de mãos vazias. 78 Consuela deteve-se na calçada e consultou o relógio. Eram 12h52. Convencida de que a manhã fora infrutífera, deu instruções ao motorista para que a conduzisse ao Harry's Bar, onde a senhora Stavros Kleanthis a aguardava na mesa habitual. Consuela cumprimentou a amiga com um beijo em cada face e sentou-se diante dela. Maria Kleanthis, casada com um armador não propriamente desconhecido - os gregos preferem uma mulher legítima e diversas ligações amorosas -, havia concentrado sua atenção, durante os últimos minutos, no conteúdo do cardápio, para verificar se o restaurante servia os poucos pratos que sua mais recente dieta lhe permitia comer. As duas mulheres tinham lido todos, os livros que alcançaram o topo da lista de besl-sellers do New York Times que incluíssem as palavras "juventude", "orgasmo", "emagrecimento", "boa forma" ou "imortalidade" no título. - Como está Victor? - perguntou Maria, depois de pedirem a refeição. Consuela avaliou a pergunta durante alguns segundos e decidiu dizer a verdade. - Chegando rapidamente à data-limite - respondeu. - E Stavros? -Já ultrapassou a dele, receio - disse Maria. - Mas, como não tenho nem sua beleza, nem seu corpo, para não mencionar o fato de ter três filhos adolescentes, não me parece que possa voltar ao mercado e trocá-lo por algo mais recente. Consuela sorriu, enquanto surgia à sua frente uma salada niçoise. - E o que a trouxe a Londres... além do fato de almoçar com uma velha amiga? - insinuou Maria. - Victor está de olho em mais um banco - respondeu Consuela, como se falasse sobre uma criança que coleciona selos. - E eu vim procurar um bom presente de aniversário. - E o que deseja que Victor dê a você desta vez? - perguntou Maria. - Uma casa no campo? Um cavalo de corrida puro-sangue? Ou talvez o seu próprio jato Lear? - Nada disso - disse Consuela, pousando o garfo ao lado da 79 salada. - Preciso de algo que possa ser negociado no futuro; alguma coisa que qualquer tribunal, em qualquer estado, reconheça como inquestionavelmente minha. -Já encontrou algo adequado? - perguntou Maria. - Ainda não - confessou Consuela. - A Asprey

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não me mostrou nada de interessante, os expositores da Cartier estavam quase vazios, e a única coisa atraente na Tiffany era o empregado, que, indubitavelmente, não tinha um níquel. vou ter de continuar minha busca esta tarde. Os pratos de salada foram habilmente retirados por um garçom que Maria considerou novo demais e magro demais. Um segundo garçom, com o mesmo problema, serviu café para as duas. Consuela recusou o creme e o açúcar, embora sua companheira não se mostrasse tão disciplinada. Em seguida, queixaram-se dos sacrifícios que tinham de fazer por causa da recessão, até serem as únicas clientes que permaneciam na sala. Minutos depois, um garçom pouca coisa mais gordo veio trazer-lhes a conta - extraordinariamente longa, considerando que nenhuma delas pedira um segundo prato nem encomendara mais do que uma Evian ao garçom que trouxera a carta de vinhos. Na calçada da South Audley Street beijaram-se novamente nas faces antes de seguirem caminhos opostos, uma para leste e outra para oeste. Consuela subiu para o banco de trás do carro, e o motorista regressou a New Bond, a uma distância de não mais de meia milha. Quando se viu novamente em território conhecido, desceu e começou a percorrer cuidadosamente o outro lado da rua, parando na Bentley's, onde parecia não ter sido vendida coisa alguma desde o ano anterior, e passando rapidamente à Adler, que, aparentemente, sofria do mesmo mal. Voltou a amaldiçoar a recessão, culpando Bill Clinton, que Victor lhe garantira ser a causa da maior parte dos atuais problemas mundiais. Consuela começava a se irritar por não encontrar alguma coisa que valesse a pena na Bond Street. Preparava-se para iniciar, com Velutância, sua viagem de regresso ao Ritz, convencendo-se de 80 que, provavelmente, não escaparia de uma expedição a Knightsbridge no dia seguinte, quando parou de repente diante da House of Graff. Não se recordava de ter visto aquela loja na sua última visita a Londres, cerca de seis meses antes, e, como conhecia a Bond melhor do que ninguém, concluiu que se tratava com certeza de um estabelecimento novo. Admirou as magníficas jóias em seus luxuosos estojos, fortemente protegidas por vidros à prova de balas. Quando chegou à terceira vitrine, abriu a boca de espanto, permanecendo assim por instantes. A partir desse momento percebeu que não precisaria de novas incursões, porque ali estava, pendurado num fino pescoço de mármore, um incomparável colar de diamantes e rubis. Teve a sensação de já ter visto aquela jóia magnífica em algum lugar, mas afastou rapidamente a idéia, e continuou a admirar os rubis requintadamente montados e rodeados por diamantes de talhe perfeito, que davam ao colar uma beleza inigualável. Sem sequer pensar no quanto custaria o objeto, Consuela dirigiu-se lentamente para a pesada porta de vidro da entrada da loja e apertou um discreto botão de marfim na parede. Obviamente, a House of Graff não estava interessada em visitantes de passagem. A porta foi aberta pelo encarregado da segurança, a quem bastou lançar um rápido olhar à senhora Rosenheim para conduzi-la imediatamente pelos portais interiores, onde se abriu uma segunda porta, e Consuela se viu diante de um homem alto e imponente que vestia um longo casaco preto e calças de risca-de-giz. - Bom-dia, senhora - disse ele, fazendo sutil reverência. Consuela reparou que ele aproveitara para admirar sub-repticiamente seus anéis. - Em que posso servi-la? Embora a sala estivesse cheia de tesouros que, em circunstâncias normais, lhe mereceriam horas de atenção, a mente de Consuela estava voltada para um único objeto. - Gostaria de ver melhor o colar de rubis e diamantes que está exposto na terceira vitrine. - com certeza, senhora - respondeu o gerente, puxando uma cadeira para Consuela. Fez um sinal quase imperceptível com a cabeça para um assistente, que se dirigiu silenciosamente à 81 vitrine, abriu uma pequena porta e retirou o colar. O gerente deslizou para trás do balcão e apertou um botão oculto. Quatro andares acima, uma campainha soou no escritório privado de Laurence Graff, avisando-o de que um cliente tinha pedido para ver uma peça particularmente cara, e que ele talvez desejasse negociar pessoalmente. Laurence Graff ergueu o olhar para a tela da televisão na parede, à sua esquerda, que lhe mostrava o

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que acontecia na loja. - Ah - disse ele, ao ver a senhora de vestido cor-de-rosa sentada junto à mesa Luís XIV - Consuela Rosenheim, se não estou enganado. - Como o presidente da Câmara dos Comuns consegue identificar cada um de seus seiscentos e cinqüenta membros, Laurence Graff reconhecia os seiscentos e cinqüenta clientes que poderiam adquirir seus tesouros mais extravagantes. Abandonou imediatamente a escrivaninha, saiu de seu escritório e tomou o elevador para o andar da loja. O gerente já havia colocado um forro de veludo preto sobre a mesa, diante da senhora Rosenheim, e o assistente pousara delicadamente o colar sobre ele. Consuela fixou o objeto de seus desejos, hipnotizada. - Bom-dia, senhora Rosenheim - disse Laurence Graff, saindo do elevador e caminhando sobre o espesso tapete em direção à sua possível cliente. - Que prazer voltar a vê-la. Na verdade só a tinha visto uma vez - num coquetel em Manhattan. Mas, depois disso, seria capaz de localizá-la a cem passos numa escada rolante em movimento. - Bom-dia, senhor... - Consuela hesitou, sentindo-se insegura pela primeira vez naquele dia. - Laurence Graff - disse ele, apertando-lhe a mão. Conhecemo-nos em Sotheby Parke Benett, no ano passado... numa festa em benefício da Cruz Vermelha, se bem me lembro. - Claro - disse Consuela, sem conseguir recordar-se nem dele, nem da festa. Laurence Graff inclinou-se, reverente, sobre o colar de diamantes e rubis, - O colar Kanemarra, uma herança de família - disse com voz suave, fazendo uma pausa antes de assumir o lugar do gerente à mesa. - Criado em 1936 por Silvio di Larchi - prosseguiu. Todos os rubis foram extraídos de uma única mina na Birmânia, ao longo de vinte anos. Os diamantes foram adquiridos de De Beers por um mercador egípcio que, depois de o colar ter sido confeccionado para ele, ofereceu esta peça única ao rei Faruk, por serviços prestados. Quando o monarca se casou com a princesa Farida, ofereceu-lhe esta jóia no dia do casamento, e, como recompensa, ela lhe deu quatro herdeiros; nenhum deles, infelizmente, estava destinado a subir ao trono. - Graff ergueu o olhar de uma beleza para outra. - Desde então tem passado por diversas mãos antes de chegar à House of Graff - prosseguiu o proprietário. - Sua mais recente proprietária foi uma atriz, mas infelizmente os poços de petróleo do marido secaram. Um leve sorriso iluminou o rosto de Consuela Rosenheim quando finalmente se recordou de onde tinha visto aquele colar. - É magnífico - elogiou, lançando-lhe uma olhadela final. - Eu volto - disse ela, erguendo-se. Graff acompanhou-a à porta. Nove de cada dez clientes que faziam aquela afirmação não tinham intenção de voltar, mas ele sabia pressentir o décimo. - Posso saber qual é o preço? - perguntou Consuela com indiferença, quando ele segurava a porta para ela passar. - Um milhão de libras, minha senhora - respondeu Graff, tão naturalmente como se ela tivesse perguntado o preço de uma bijuteria, numa loja de bugigangas, num balneário qualquer. Quando chegou à calçada, Consuela dispensou o motorista. Sua mente agora trabalhava em velocidade que teria impressionado seu próprio marido. Atravessou a rua, dirigindo-se primeiro à The White House, depois à Yves Saint Laurent e finalmente à Chanel, de onde saiu duas horas depois com todas as armas de que necessitava para a batalha que tinha pela frente. Regressou à suíte no Ritz alguns minutos antes das seis. Consuela constatou com alívio que o marido ainda não voltara do banco. Utilizou o tempo para tomar um longo banho e premeditar sua armadilha. Depois de seca e empoada, aplicou um pouco 83

do perfume novo no pescoço e vestiu um dos trajes que acabara de comprar. Olhava-se no enorme espelho do guarda-roupa quando Victor entrou no quarto, deixando imediatamente cair a pasta no tapete. Consuela voltou-se para ele. - Está espantosa! - declarou seu marido, cujo olhar de desejo era o mesmo com que ela admirara o colar Kanemarra algumas horas antes. - Obrigada, querido - respondeu ela. - Como foi seu dia? - Um triunfo. A aquisição ficou acertada e por metade do preço que me teria custado há um ano. Consuela sorriu. Um bônus

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inesperado. - Quem ainda tem dinheiro não precisa temer a recessão acrescentou Victor com satisfação. Durante um jantar tranqüilo no restaurante do Ritz, Victor descreveu à mulher, com todos os pormenores, o que se passara no banco naquele dia. Durante algumas pausas ocasionais em seu monólogo, Consuela estimulou o marido com observações do gênero "Como você é inteligente, Victor", "Fantástico", "Nunca vou compreender como você consegue isso". Quando ele finalmente pediu uma dose de brandy, acendeu um charuto e se recostou na cadeira, ela começou a passear seu pé direito, envolto em meia finíssima, sobre o lado interno da coxa dele. Pela primeira vez, nessa noite, Victor parou de pensar na aquisição do banco. Quando saíram do salão de refeições e se dirigiram para o elevador, Victor passou o braço em volta da cintura estreita de sua mulher. Quando o elevador chegou ao sexto andar, já tinha despido o casaco e sua mão deslizara um pouco mais para baixo. Consuela deu uma risadinha. Muito antes de chegarem à porta da suíte, ele já estava tirando a gravata. Ao entrarem no quarto, Consuela colocou o letreiro NÃO INCOMODAR do lado de fora da maçaneta da porta. Durante alguns minutos, Victor ficou hipnotizado, vendo sua elegante mulher despir o vestido que havia comprado nessa tarde. D 84 despiu-se então rapidamente e desejou uma vez mais ter levado a cabo suas resoluções de Ano-Novo. Quarenta minutos depois, Victor estava estendido na cama, exausto. Depois de suspirar durante alguns minutos, começou a ressonar. Consuela puxou o lençol por cima de seus corpos nus, mas seus olhos permaneceram abertos. Já estava preparando a segunda fase do plano. Victor acordou na manhã seguinte, com a mulher acariciando suavemente o lado interno de sua perna. Voltou-se para ela, com a recordação ainda bem viva na memória da noite anterior. Fizeram amor pela segunda vez, coisa que há muito ele não se recordava de ter acontecido. Só quando saiu do chuveiro Victor se lembrou de que aquele era o dia do aniversário da mulher e que prometera sair com ela, para lhe comprar um presente. Esperava que ela já tivesse escolhido o que desejava, porque ele precisava passar a maior parte do dia fechado com seus advogados, estudando ponto por ponto o documento da oferta. - Parabéns, minha querida - disse ele, regressando ao quarto. - A propósito, encontrou o presente? - acrescentou, passando os olhos pela primeira página do Financial Times. O redator já fazia especulações sobre a possível aquisição, descrevendo-a como um golpe. Pela segunda vez, nessa manhã, surgiu no rosto de Victor um sorriso de satisfação. - Sim, meu querido - respondeu Consuela. - Vi uma coisinha que eu gostaria de ter. Só espero que não seja muito cara. - E quanto custa essa "coisinha"? - perguntou Victor. Consuela voltou-se para ele. Vestia apenas duas peças de roupa, ambas pretas e ambas notavelmente reduzidas. Victor começou a pensar se ainda teria tempo, mas depois recordou-se dos advogados, que tinham estado toda a noite de pé e estariam pacientemente à sua espera no banco. - Não perguntei o preço - respondeu Consuela. - Nisso, você é muito mais esperto do que eu - acrescentou, enquanto vestia uma blusa de seda azul-marinho. Victor consultou o relógio. 85 - É muito longe daqui? - perguntou. - Do outro lado da rua, na Bond Street, meu querido respondeu Consuela. Você não vai perder muito tempo. - Sabia exatamente o que se passava na cabeça do marido. - Ótimo. Então vamos lá ver essa coisinha, sem perder mais tempo - disse ele, abotoando a camisa. Enquanto Victor acabava de se vestir, Consuela, com a ajuda do Financial Times, conduziu habilmente a conversa para o triunfo do marido no dia anterior. Escutou uma vez mais os pormenores da aquisição, enquanto saíam do hotel e se dirigiam, de braços dados, para a Bond Street. - Provavelmente, poupei alguns milhões - repetiu ele. Consuela sorriu, conduzindo-o até a porta da House of Graff. - Alguns milhões?! - exclamou. - Como você é esperto, Victor. O encarregado da segurança apressou-se a abrir a porta e, dessa vez, Consuela constatou que Graff já estava junto da mesa, à sua espera. Com'uma pequena reverência para ela, voltou-se para Victor: - Permite que o felicite pelo brilhante sucesso, senhor Rosenheim? Em que posso servi-lo? Victor sorriu. - Meu marido

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gostaria de ver o colar Kanemarra - disse Consuela, antes que Victor tivesse oportunidade de responder. - Naturalmente, minha senhora - disse o proprietário. Deu um passo atrás e estendeu o veludo negro sobre a mesa. O assistente voltou, uma vez mais, a retirar o magnífico colar da terceira vitrine e a colocá-lo cuidadosamente no centro do forro de veludo, para exibir a jóia em todo o seu esplendor. Graff ia começar a contar a história da peça, quando Victor perguntou simplesmente: - Quanto custa? Graff ergueu a cabeça. - Não se trata de uma jóia comum. Eu acho que... - Quanto? - repetiu Victor. - A sua proveniência garante... - Quanto? - Sua extraordinária beleza, para não falar no trabalho... 86 - Quanto? - perguntou Victor, cuja voz subia de tom. - ... a palavra "único" não seria inadequada. - Talvez tenha razão, mas eu preciso saber quanto a peça vai me custar - disse Victor, que começava a mostrar-se impaciente. - Um milhão de libras - disse Graff em tom neutro, percebendo que não devia arriscar mais adjetivos. - Compro-o por meio milhão, não mais - foi a resposta imediata. - Lamento dizer - declarou Graff - que, em relação a esta peça em especial, não há espaço para negociar. - Há sempre espaço para negociar, seja o que for que se venda - disse Victor. - Repito a minha oferta. Meio milhão. - Receio que, nesse caso... - Confio que possa ver as coisas à minha maneira, se pensar um pouco - disse Victor. - Mas esta manhã não tenho muito tempo livre, de modo que vou dar-lhe um cheque de meio milhão e deixo-o com liberdade para descontá-lo ou não. - Receio que esteja perdendo seu tempo - disse Graff. Não posso vender o colar Kanemarra por menos de um milhão. Victor retirou um talão de cheques do bolso interno do paletó, desenroscou a tampa da caneta e escreveu "quinhentas mil libras" sob o nome do banco que tinha o seu nome. A mulher deu um discreto passo para trás. Graff ia repetir seu comentário anterior quando, ao erguer o olhar, notou que a senhora Rosenheim lhe pedia silenciosamente que aceitasse o cheque. Surgiu em seu rosto uma expressão de curiosidade, enquanto Consuela repetia seu gesto. Victor destacou o cheque e deixou-o sobre a mesa. - Dou-lhe vinte e quatro horas para decidir - disse. Voltamos para Nova York amanhã de manhã... com ou sem o colar Kanemarra. A decisão é sua. Graff deixou o cheque sobre a mesa, enquanto acompanhava o senhor e a senhora Rosenheim à porta da frente e, com uma reverência, os viu sair para a rua. 87

- Você foi brilhante, meu querido! - disse Consuela, enquanto o motorista abria a porta do carro para seu patrão. - Para o banco - disse Rosenheim, deixando-se cair no assento de trás. -Você vai ter sua coisinha, Consuela. Elevai sacar o cheque antes que terminem as vinte quatro horas, tenho certeza. - O motorista fechou a porta de trás e o vidro desceu suavemente, enquanto Victor acrescentava, com um sorriso: - Parabéns, minha querida. Consuela devolveu-lhe o sorriso e atirou-lhe um beijo, enquanto o carro entrava no trânsito e se dirigia para Piccadilly. A manhã não havia passado exatamente como ela planejara, pois não concordava com a avaliação do marido... mas ainda tinha vinte e quatro horas para jogar. Consuela regressou à suíte do Ritz, despiu-se, tomou uma ducha, abriu outro frasco de perfume e começou lentamente a vestir o segundo traje que comprara no dia anterior.Antes de sair do quarto, consultou a seção de mercadorias do Financial Times e informou-se do preço do café verde. Saiu da entrada do Ritz na Arlington Street, usando um vestido azul-escuro de dois bolsos de Yves Saint Laurent e um chapéu vermelho e branco de aba larga. Sem solicitar o motorista, chamou um táxi, pedindo ao chofer que a levasse a um pequeno e discreto hotel de Knightsbridge. Quinze minutos mais tarde entrou no vestíbulo de cabeça baixa e, depois de indicar ao gerente o nome da reserva, foi acompanhada a uma suíte no quarto andar. Seu companheiro de almoço pôs-se de pé quando ela entrou no quarto, encaminhou-se para ela, beijou-a nas faces e deu-lhe os parabéns. Depois de um almoço íntimo e uma hora ainda mais

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íntima passada no quarto ao lado, o companheiro de Consuela escutou seu pedido e, tendo consultado o relógio, concordou em acompanhá-la a Mayfair. Não lhe disse que teria de estar no escritório às quatro horas para receber um telefonema importante da América do Sul. Desde a queda do presidente do Brasil, os preços do café tinham disparado. Enquanto o carro descia a Brompton Road, o companheiro de Consuela telefonou para se informar da última cotação do café PELA METADE DO PREÇO verde em Nova York (apenas a mestria de Consuela na cama o impedira de telefonar mais cedo). Ficou satisfeito por saber que subira mais dois cêntimos, mas não tão satisfeito quanto ela. Minutos depois, o carro os deixava diante da House of Graff. Quando entraram no estabelecimento de braços dados, Graff não ergueu sequer uma sobrancelha. - Boa tarde, senhor Carvalho - disse. - Espero que suas propriedades tenham produzido abundante colheita este ano. O senhor Carvalho sorriu e respondeu. - Não posso me queixar. - Em que posso servi-lo? - inquiriu o proprietário. - Gostaríamos de ver o colar de diamantes da terceira vitrine - disse Consuela sem um momento de hesitação. - Naturalmente, minha senhora - disse Graff, como se se dirigisse a uma pessoa totalmente desconhecida. Uma vez mais foi estendido o veludo negro, sobre o qual mais uma vez o assistente colocou o colar Kanemarra. Dessa vez Graff pôde contar a história do colar, antes que Carvalho perguntasse delicadamente qual era seu preço. - Um milhão de libras - disse Graff. Após um momento de hesitação, Carvalho ofereceu: - Estou disposto a pagar meio milhão. - Não se trata de uma peça comum - respondeu o proprietário. - Penso que... - Talvez não, mas meio milhão é a minha melhor oferta disse Carvalho. - A sua espantosa beleza, para não falar do trabalho... - No entanto, eu não ultrapasso o meio milhão. - ... a palavra "único" não seria inadequada. - Meio milhão, não mais - insistiu Carvalho. - Lamento dizer - declarou Graff - que, em relação a essa peça, não há possibilidade de negociação. - Há sempre possibilidade de negociação, seja o que for que se venda - insistiu o plantador de café. - Receio que não neste caso. Bem vê... - Penso que acabará por se dar conta - disse Carvalho. - 89 Mas, infelizmente, não disponho de muito tempo esta tarde. vou dar-lhe um cheque de meio milhão de libras, e o senhor decidirá se deve sacá-lo ou não. Carvalho retirou um talão de cheques do bolso interno do paletó, desenroscou a tampa da caneta e escreveu "quinhentas mil libras". Consuela fitava-o em silêncio. Carvalho destacou o cheque e deixou-o sobre o balcão. - Dou-lhe vinte e quatro horas para decidir. Parto para Chicago no primeiro avião de amanhã. Se o cheque não tiver sido descontado quando chegar ao meu'escritório... Graff fez uma ligeira reverência e deixou o cheque onde estava. Acompanhou-os à porta e fez nova reverência quando saíram para a rua. -Você foi brilhante, meu querido! - disse Consuela, quando o motorista abriu a porta do carro para seu patrão. - Para a Bolsa - disse Carvalho. Voltando-se para a amante, disse: -Você vai ter seu colar antes do fim do dia, tenho certeza disso, minha querida. Consuela sorriu e acenou, enquanto o carro desaparecia na direção de Piccadilly, e, a essa altura, já podia concordar com a opinião de seu amante. Mal o carro dobrou a esquina, entrou novamente na House of Graff. O proprietário sorriu e entregou-lhe o presente belamente embrulhado. Fez uma demorada reverência e disse simplesmente: - Feliz aniversário, senhora Rosenheim.

O BRAÇO DIREITO DE DOUGIE MORTIMER 90 Re JXOBERT HENRY KEFFORD in, BOB PARA OS AMIGOS, estava na cama com uma jovem chamada Helen quando ouviu falar, pela primeira vez, do braço direito de Dougie Mortimer. Bob estava com pena de deixar Cambridge. Havia passado três magníficos anos em St. John e, embora não tivesse lido tantos livros quanto lera para o mestrado na Universidade de Chicago, fizera o máximo esforço possível para ser o primeiro colocado no rio. Não era comum um americano ganhar uma regata no início da

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década de 1970, mas ter levado um barco de oito homens à vitória, como remador de popa, durante três anos seguidos, era considerado um recorde. O pai de Bob, Robert Henry Kefford II, Robert para os amigos, tinha ido à Inglaterra para ver o filho participar das três regatas entre Putney e Mortlake. Depois de Bob ter levado Cambridge à vitória pela terceira vez, o pai tinha-lhe dito que não deveria regressar à sua Illinois nativa sem ter presenteado o Clube Náutico da Universidade com uma recordação sua. - E não esqueça, meu rapaz - declarou Robert Henry Kefford II -, não deve ser um presente ostensivo. É melhor mostrar que você se esforçou para lhes oferecer um objeto de valor histórico do que lhes dar qualquer coisa que tenha obviamente custado muito dinheiro. Os ingleses apreciam esse tipo de coisas. Bob passou muitas horas refletindo sobre as palavras do pai, mas não conseguia ter uma idéia de como agir. Afinal, o Clube 93

Náutico da Universidade de Cambridge tinha mais taças de prata e troféus do que conseguia exibir. Foi num domingo de manhã que Helen pronunciou pela primeira vez o nome de Dougie Mortimer. Estavam os dois deitados, um nos braços do outro, quando ela começou a pressionar os bíceps de Bob. - Isso é alguma espécie de antigo jogo erótico britânico que eu desconheço? - perguntou Bob, passando o braço livre em volta dos ombros da jovem. - É claro que não - respondeu Helen. - Estava simplesmente tentando descobrir se seus bíceps eram tão grandes como os de Dougie Mortimer. Como Bob nunca tinha ouvido uma garota falar de outro homem enquanto estava na cama com ele, não conseguiu pensar numa resposta imediata. - E são? - acabou por perguntar, tensionando os músculos. - É difícil dizer - respondeu Helen. - Nunca toquei o braço de Dougie, só o vi a distância. - E onde você encontrou esse magnífico espécime masculino? - Está pendurado acima do balcão do bar de meu pai, em Hull. - E Dougie Mortimer não acha isso um pouco incômodo? perguntou Bob, rindo. - Duvido que se preocupe muito com isso - disse Helen. Afinal, está morto há mais de sessenta anos. - E o braço dele ainda está pendurado acima do balcão de um bar? - perguntou Bob, incrédulo. - Não terá começado a cheirar um pouco mal? Foi a vez de Helen rir. - Não, seu americano idiota! É um molde de bronze do braço dele. Antigamente, quando se fazia parte da equipe de remo da universidade durante três anos seguidos, confeccionava-se um molde do braço para pendurar no clube. Sem falar de um cartão com a fotografia do indivíduo em cada maço de cigarros Player's. Pensando bem, nunca vi a fotografia dele num maço de cigarros - disse Hela puxando o lençol para cima da cabeça. 94 - Ele remava por Oxford ou Cambridge? - perguntou Bob. - Não tenho idéia. - Como é que se chama esse bar em Hull? - O Rei Guilherme - respondeu Helen, enquanto Bob retirava o braço que lhe rodeava os ombros. - Isto é um jogo erótico americano? -perguntou ela, minutos depois. Ao fim dessa manhã, depois de Helen ter partido para Newham, Bob começou a procurar na sua estante um livro de capa azul. Retirou da prateleira a sua muito folheada História das Regatas e percorreu o índice, para ver se havia Mortimers na lista. Cinco tinham remado por Oxford, dois por Cambridge. Começou a rezar, enquanto verificava as suas iniciais. Mortimer, A. J. (Westminster e Wadham, Oxon), Mortimer, C.K. (Uppingham e Oriel, Oxon), Mortimer, D.J.T. (Garrow e St. Catherine, Cantab.), Mortimer, E.L. (Oundle e Magdalen, Oxon.). Bob voltou sua atenção para Mortimer, D.J.T., biografia na p. 129, e folheou as páginas até chegar à que procurava. Douglas John Townsend-Mortimer (St. Catherine), Cambridge 1907-08-09, remador de popa. Depois leu o curto resumo da carreira de Mortimer como remador. DOUGIK MORTIMER levou um barco de Cambridge à vitória, como remador de popa, em 1907, feito esse que repetiu em 1908. Mas, em 1909, quando os peritos eram de opinião que Cambridge possuía uma das melhores tripulações em muitos anos, os azul-claros perderam uma regata contra Oxford, cuja equipe era considerada inferior. Embora

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tenham sido adiantadas pela imprensa muitas explicações, o resultado da corrida continua a ser um mistério até hoje. Mortimer morreu em 1914. Bob fechou o livro e voltou a colocá-lo na estante, partindo do princípio de que o grande remador morrera na Primeira Guerra Mundial. Sentou-se na beira da cama, pensando nas informações que recolhera. Se conseguisse trazer o braço direito de Dougie Mortimer de volta para Cambridge e o oferecesse ao Clube 95 durante o Jantar Anual dos Azuis*, teria, com certeza, um presente à altura do exigente critério do pai. Vestiu-se rapidamente e desceu ao andar térreo, dirigindo-se à cabine telefônica do corredor. Logo que lhe deram o número de quatro algarismos que solicitara, propôs-se a transpor o obstáculo seguinte. As primeiras chamadas que fez foram para o Rei Guilherme ou, mais precisamente, para os Rei Guilherme, porque havia três bares com esse nome na lista telefônica de Hull. Quando conseguiu a ligação com o primeiro, perguntou: - O braço direito de Dougie Mortimer está pendurado acima de seu balcão? - Não conseguiu entender todas as palavras do forte sotaque do norte com que lhe responderam, mas não restavam dúvidas de que a resposta tinha sido negativa. A segunda chamada foi atendida por uma moça, que disse: - Refere-se àquela coisa que está pendurada na parede por trás do balcão? - Sim, acho que é isso - disse Bob. - Bem, então este é o bar que procura. Depois de Bob ter anotado o endereço e o horário de abertura do bar, fez uma terceira chamada. - Sim, é possível - disseram-lhe. - Pode tomar o das 3h 17 para Peterborough, onde terá de saltar e pegar o das 4h09 para Doncaster e, depois, mudar outra vez. Chega a Hull às 6h32. - Depois disso, qual é o primeiro trem de regresso? perguntou Bob. - Oito e vinte e cinco, baldeação em Doncaster e Peterborough. Deve estar de volta a Cambridge pouco depois da meianoite. - Obrigado - disse Bob. Saiu e dirigiu-se à sua faculdade para almoçar. Sentou-se à grande mesa central, mas revelou-se uma péssima companhia para os que se sentaram à sua volta. * Chama-se Blue (Azul), na Inglaterra, a um desportista que representa ou representou as universidades de Oxford ou Cambridge e tem o direito de usar a cor de sua universidade (azul-escuro para Oxford, azul-claro para Cambridere). (N. da T.) V 5 96 Tomou o trem para Peterborough nessa tarde, ainda pensando em como poderia convencer os proprietários do bar a cederem o valioso objeto. Em Peterborough, desceu do trem, dirigiu-se a outro que aguardava junto da plataforma três e embarcou, ainda profundamente mergulhado em seus pensamentos. Quando o trem chegou a Hull, duas horas mais tarde, não avançara na resolução do problema. Pediu ao primeiro táxi da fila que o levasse ao Rei Guilherme. - Praça do Mercado, esquina da Harold ou rua Percy? perguntou o motorista. - Rua Percy, por favor - respondeu Bob. - Só abrem às sete, meu rapaz - disse-lhe o motorista, depois de ter deixado Bob diante da porta. Bob consultou o relógio. Tinha que esperar vinte minutos. Começou a descer uma rua lateral nos fundos do bar e parou para ver alguns rapazes jogando futebol. Utilizavam como balizas as paredes fronteiras de duas casas, uma de cada lado da rua, e demonstravam espantosa habilidade em não atingir as janelas. Bob perguntou a si mesmo se aquele jogo viria a pegar na América. Ficou tão entusiasmado com a habilidade dos garotos, que eles pararam e lhe perguntaram se queria jogar. Respondeu: "Não, obrigado", convencido de que, se jogasse com eles, seria o primeiro a quebrar uma vidraça. Regressou à porta do Rei Guilherme alguns minutos depois das sete e entrou no bar vazio, na esperança de que ninguém prestasse atenção em sua presença. Mas, com um metro e noventa de altura, envergando um blazer azul de dois bolsos, calças cinza, camisa azul e gravata da universidade, as três pessoas que estavam atrás do balcão bem podiam perguntar a si mesmas se ele teria caído do outro planeta. Absteve-se de olhar para a parte superior do balcão, quando uma jovem loura se aproximou e lhe perguntou o que desejava. - Um chope bem tirado, do escuro - disse Bob, esforçando-se para falar como seus colegas britânicos quando pediam uma bebida na cantina da universidade. O dono do bar olhou para Bob desconfiado quando ele levou 97 seu copo

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para uma pequena mesa redonda a um canto e se sentou num banco. Bob ficou satisfeito quando entraram mais dois homens no bar, desviando as atenções do proprietário de sua pessoa. Bebeu um gole do líquido escuro e quase se engasgou. Quando se recuperou, passeou o olhar pela parede acima do balcão. Tentou ocultar sua excitação ao ver um braço maciço em bronze pregado num grande retângulo de madeira envernizada. Achou o objeto simultaneamente horrível e inspirador. Seus olhos desceram para as letras gravadas em ouro sob o braço: D. J. T. MORTIMER 1907-08-09 (ST. CATHERINE, REMADOR DE POPA) Bob não perdeu de vista o proprietário, enquanto o bar se enchia, mas logo percebeu que era a mulher dele - todos a chamavam de Nora - quem não só mandava no estabelecimento, como servia a maior parte dos fregueses. Quando terminou a bebida, dirigiu-se para a extremidade do balcão onde ela se encontrava. - Em que posso servi-lo, meu rapaz? - perguntou Nora. - Queria outro, por favor - disse Bob. - Americano - disse ela, enquanto manejava a bomba e recomeçava a encher o copo. - Não aparecem muitos por aqui, pelo menos desde que as bases fecharam. Colocou o chope sobre o balcão, diante dele. - Então, o que o traz a Hull? -A senhora - respondeu Bob, sem prestar atenção à bebida. Nora olhou desconfiada para aquele estranho que tinha idade suficiente para ser seu filho. Bob sorriu. - Para ser mais exato, Dougie Mortimer. - Agora já sei quem é - disse Nora. - Telefonou para cá esta manhã, não foi? Minha Christie falou-me. Devia ter imaginado. Bob acenou afirmativamente com a cabeça. - Como é que aquele braço veio parar em Hull? - perguntou 98 - É uma história muito comprida - disse Nora. - Era do meu avô, sabe? Nasceu em Ely e passava as férias pescando no Cam. Disse que foi a única coisa que pescou naquele ano, o que sempre me pareceu melhor do que dizer que aquilo caiu da caçamba de um caminhão. Quando ele morreu, meu pai queria jogar essa porcaria fora com o resto do lixo, mas eu não deixei. Disse que ia pendurar no bar. E foi o que fiz. Limpei, poli e ficou bem bonito. E depois pendurei na parede atrás do balcão. Mas vejo que percorreu uma grande distância só para ver essa tralha velha. Bob ergueu o olhar e admirou novamente o braço. Reteve a respiração. - Não vim só para isso. - Então o que veio fazer? - perguntou ela. - Vim para comprá-lo. - Vamos trabalhar, Nora - disse o dono. - Não vê que há fregueses à espera? Nora voltou-se para ele e disse: - Cale a boca, Cyril Barnsworth. Este rapaz veio aqui só para ver o braço de Dougie Mortimer. E mais: quer comprá-lo. - Isso provocou diversas gargalhadas entre os fregueses que estavam junto ao balcão. Mas, como Nora não riu, os risos cessaram rapidamente. - Então foi uma viagem em vão, não acha? - disse o dono. - Aquilo não está à venda. - Não é seu, você é que não pode vendê-lo - disse Nora, pousando as mãos nas ancas. Porém, voltando-se de novo para Bob: - Repare, meu rapaz: ele tem razão. Não me separaria dele nem por cem libras. - Diversos fregueses começavam a interessar-se pela conversa. - E por duzentas? - perguntou Bob tranqüilamente. Dessa vez Nora gargalhou, mas Bob nem sequer mexeu o lábio. Quando Nora parou de rir, fitou o estranho jovem. - Meu Deus, você está falando sério! - disse ela. - Estou mesmo - disse Bob. - Gostaria que o braço regressasse 99 ao lugar que lhe pertence em Cambridge e estou disposto a pagar duzentas libras por essa honra. O dono do bar olhou para a mulher, como se não acreditasse no que estava ouvindo. - Poderíamos comprar aquele carro usado em que eu ando de olho - disse. - Para não falar de férias de verão e um casaco novo para o inverno - acrescentou Nora, olhando para Bob como se ainda precisasse de ser convencida de que ele não vinha de outro planeta. Subitamente, estendeu a mão por cima do balcão e disse: - Negócio fechado, rapaz. Bob acabou por ter de pagar diversas rodadas aos fregueses que afirmavam ter sido amigos pessoais do avô de Nora, apesar de alguns parecerem obviamente novos demais. Também teve de pernoitar num hotel local, porque Nora não quis se separar da "herança" de seu avô, como agora lhe chamava, antes que o gerente do banco tivesse telefonado para Cambridge assegurando de que da conta de Robert Henry Kefford II seria possível retirar duzentas libras.

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Bob agarrou-se a seu tesouro durante todo o caminho de regresso a Cambridge, naquela manhã de segunda-feira, e depois carregou o pesado objeto da estação até seus aposentos na Grange Street, onde o escondeu debaixo da cama. No dia seguinte, entregou-o a um restaurador de móveis, que prometeu devolver o braço à sua antiga glória, a tempo do Jantar dos Azuis. Quando, três semanas depois, Bob pôde ver os resultados dos esforços do restaurador, sentiu-se imediatamente seguro de que possuía um presente que não só era digno do Clube Náutico, como também satisfaria os desejos de seu pai. Decidiu não partilhar esse segredo com pessoa alguma - nem sequer com Helen - até a noite do Jantar dos Azuis, apesar de ter avisado ao surpreso presidente que ia oferecer um presente e que precisava de dois ganchos a quarenta e cinco centímetros de distância um do outro 100 e a dois metros e meio do chão, que deveriam ser fixados antecipadamente na parede. O Jantar dos Azuis da Universidade é um acontecimento anual que se realiza na Casa dos Barcos, que dá para o rio Cam. Qualquer remador antigo ou atual pode estar presente, e Bob ficou encantado ao constatar, à sua chegada nessa noite, que a sala estava extremamente concorrida. Colocou o embrulho, cuidadosamente envolto em papel castanho, sob sua cadeira e pousou a máquina fotográfica à sua frente. Por ser seu último Jantar dos Azuis antes de regressar à América, Bob tinha sido colocado na primeira mesa, entre o secretário honorário e o atual presidente da Casa dos Barcos. tom Adams, o secretário honorário, tinha-se tornado azul vinte anos antes e era reconhecido como a enciclopédia viva do clube, pois sabia o nome não só de todos os presentes na sala, mas também o de todos os remadores do passado. tom apontou a Bob três contemplados com medalhas olímpicas espalhados pela sala. - O mais velho está sentado à esquerda do presidente disse ele. -Charles Forester. Remou pelo clube no lugar número três em 1908-1909, de modo que deve ter mais de oitenta anos. - Será possível? - duvidou Bob, recordando-se do retrato juvenil de Forester na parede do clube. - É claro que é - disse o secretário. - E lhe digo mais, meu jovem - acrescentou, rindo -, você também ficará como ele um dia. - E o homem no outro extremo da mesa? - perguntou Bob. - Parece ainda mais velho. - E é - disse o secretário. - É Sidney Fisk. Foi barqueiro de 1912a 1945, apenas com uma pausa durante a Primeira Guerra Mundial. Tomou o lugar do tio, com um curto prazo de aviso, se bem me lembro. - Então deve ter conhecido Dougie Mortimer - disse Bob, em tom pensativo. - Ora, aí está um grande nome do passado - disse Adams. - Mortimer, D.J.T., 1907-08-09, St. Catherine, remador de popa. 101 Oh, sim, Fisk deve ter conhecido Mortimer, com certeza. Pensando bem, Charles Forester deve ter partilhado o barco de Mortimer quando ele era remador de popa. Durante a refeição, Bob continuou a interrogar Adams acerca de Dougie Mortimer, mas não conseguiu saber muito mais do que lera na História das Regatas, além de confirmar que a derrota de Cambridge, em 1909, continuava a ser um mistério, já que os azul-claros tinham uma tripulação visivelmente superior. Depois de retirado o último prato, o presidente ergueu-se para dar as boas-vindas aos convidados e fazer um breve discurso. Bob apreciou as partes que conseguiu ouvir apesar do ruído produzido pelos estudantes dos primeiros anos e juntou-se à gritaria quando era mencionado o nome de Oxford. O presidente terminou com as palavras: - Este ano haverá uma oferta especial ao clube, feita pelo nosso colonial remador de popa, Bob Kefford, que, por certo, todos irão apreciar. Quando Bob se ergueu, os aplausos tornaram-se ainda mais fortes, mas ele falava tão baixo, que o ruído cessou rapidamente. Contou como conseguira localizar e, depois, recuperar o braço direito de Dougie Mortimer, deixando de referir apenas o local exato onde se encontrava quando tomara conhecimento de seu paradeiro. com um gesto rápido, desembrulhou a oferta que tinha estado escondida sob sua cadeira e mostrou a todos o objeto de bronze restaurado. Os membros do clube puseram-se de pé e aplaudiram. Surgiu um sorriso de satisfação no rosto de Bob, ao olhar em volta, desejando apenas que seu pai pudesse estar presente para presenciar

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a reação provocada. Percorrendo a sala com os olhos, Bob não pôde deixar de notar que o azul mais velho presente, Charles Forester, permanecera sentado, sem se juntar sequer aos aplausos. Bob olhou então para Sidney Fisk e notou que ele também não se levantara. Os lábios do antigo remador permaneciam apertados numa linha estreita, e não levantou as mãos dos joelhos. Bob esqueceu os dois velhos quando o presidente, com a ajuda 102 de tom Adams, pendurou o braço de bronze na parede, entre um remo que tinha sido usado por um dos membros da tripulação olímpica de 1908 e uma camisa usada pelo único azul que tinha remado num barco de Cambridge, que batera Oxford quatro anos a fio. Bob começou a tirar fotografias da cerimônia, para ficar com uma recordação e para mostrar ao pai que tinha satisfeito seus desejos. Depois de pendurada a placa, muitos dos membros do clube e antigos azuis rodearam Bob para lhe agradecer e felicitá-lo, não lhe deixando dúvidas de que valera a pena o trabalho de localizar o braço. Bob foi dos últimos a sair, nessa noite, porque muitos membros quiseram lhe desejar boa sorte no futuro. Caminhava pelo pátio, de regresso aos aposentos, cantarolando, quando subitamente se recordou de que tinha deixado a máquina fotográfica sobre a mesa do clube. Decidiu ir buscá-la de manhã, porque estava certo de que o clube estaria fechado e deserto naquele momento, mas, quando se voltou para confirmar, viu luz no andar térreo. Girou e começou a caminhar em direção ao clube, ainda cantarolando. Quando se encontrava a poucos passos, olhou pela janela e viu duas pessoas na sala do comitê. Aproximou-se mais para vê-los melhor e ficou surpreso ao reconhecer o velho azul, Charles Forester, e Sidney Fisk, o remador aposentado, tentando arrastar uma pesada mesa. Teria ido ajudá-los se Fisk não tivesse subitamente apontado para o braço de Dougie Mortimer. Bob permaneceu imóvel, enquanto via os dois velhos arrastarem a mesa, centímetro por centímetro, até a parede, colocando-a sob a placa. Fisk foi buscar uma cadeira e encostou-a à parede, e Forester utilizou-a como degrau para subir à mesa. Depois, Forester inclinou-se e segurou o braço do homem mais velho, ajudando-o a subir também. Quando já estavam os dois em segurança em cima da mesa, travaram uma breve conversa antes de estender as mãos para a peça de bronze, erguendo-a dos ganchos e descendo-a lentamente 103

até a colocarem entre os pés de ambos. Forester, com a ajuda da cadeira, desceu da mesa e voltou-se para ajudar o companheiro. Bob permaneceu imóvel, enquanto os dois velhos transportavam o braço de Dougie Mortimer pela sala e saíam da Casa dos Barcos. Tendo colocado o objeto no chão, do lado de fora, Forester tornou a entrar na sala para apagar as luzes. Quando voltou a sair para o ar frio da noite, o velho remador fechou rapidamente a porta a cadeado. Os dois homens voltaram a travar uma breve conversa antes de erguer o troféu de Bob e começar a avançar aos tropeções pelo caminho de sirga. Tiveram, por diversas vezes, que parar, pousar o braço no chão, descansar e recomeçar o percurso. Bob seguiu-os silenciosamente, escondendo-se por trás das grossas árvores, até que os dois velhos viraram subitamente para a margem do rio. Detiveram-se à beira da água e colocaram sua carga dentro de um pequeno barco a remos. O antigo azul desamarrou o barco, e os dois homens empurraram-no silenciosamente para o rio, até a água bater nos joelhos das calças dos smokings. Nenhum deles parecia preocupado com o fato de que estavam ficando encharcados. Forester conseguiu subir com bastante rapidez para o barco, mas Fisk levou alguns minutos para conseguir juntar-se ao companheiro. Quando estavam ambos a bordo, Forester pegou os remos, enquanto o barqueiro permanecia à proa, agarrado ao braço de Dougie Mortimer. Forester começou a remar com firmeza para o meio do rio. Avançava lentamente, mas seu ritmo revelava que tinha grande prática de remar. Quando os dois homens calcularam ter

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chegado ao centro do Cam, em seu ponto mais profundo, Forester parou de remar e juntou-se ao companheiro na proa. Pegaram ambos o braço de bronze e, sem-cerimônia, atiraram-no pela borda, para dentro do rio. Bob ouviu o barulho da água e viu o barco balançar perigosamente. Depois foi a vez de Fisk pegar os remos; seu avanço para a margem foi ainda mais lento do que o de Forester. Acabafam por chegar a terra e, após saltar do barco, 104 empurraram-no com dificuldade para o ancoradouro; finalmente, o barqueiro prendeu a corda a uma grande argola. Encharcados e exaustos, com a condensação das respirações claramente visível no ar da noite límpida e fria, os dois homens voltaram-se um para o outro. Então, apertaram-se as mãos como dois magnatas que tivessem fechado importante negócio, antes de desaparecer na noite. tom Adams, o secretário honorário do clube, telefonou a Bob na manhã seguinte para lhe dar uma notícia que ele já conhecia. Na realidade, estivera toda a noite acordado, sem conseguir pensar em outra coisa. Bob escutou o relato de Adams sobre o assalto. - O que é surpreendente é que só levaram uma coisa... fez uma pausa. - O seu braço... ou, melhor, o braço de Dougie. É muito estranho, especialmente porque deixaram uma cara máquina fotográfica sobre a mesa principal. - Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar? perguntou Bob. - Não, não me parece, meu rapaz - disse Adams. - Apolícia local está investigando, mas aposto que quem roubou o braço já está fora do condado neste momento. - É capaz de ter razão - disse Bob. -Já que estou falando com o senhor, senhor Adams, gostaria de lhe fazer uma pergunta sobre a história do clube. -vou fazer o possível para responder - disse Adams. - Mas não se esqueça de que isso é só um passatempo para mim, meu rapaz. - Por acaso sabe quem é o mais velho azul de Oxford, vivo? - Houve um longo silêncio do outro lado da linha. - Está ouvindo? - perguntou Bob. - Perfeitamente. Só estava tentando me lembrar se o velho Harold Deering ainda está vivo. Não me recordo de ter visto seu obituário no Times. - Deering? - espantou-se Bob. 105 - Sim. Radley e Keble, 1909-10-11. Fez-se bispo, se bem me recordo, mas não consigo lembrar onde. - Obrigado - disse Bob. -Já me ajudou bastante. - Posso estar enganado - salientou Adams. - Afinal, não leio as colunas do obituário todos os dias. E estou um pouco enferrujado, no que respeita a Oxford. Bob agradeceu novamente antes de desligar. Depois de um almoço na faculdade, que não conseguiu comer, Bob regressou ao alojamento e telefonou para a portaria do Keble. Atendeu-lhe uma voz rabugenta. - Tem algum registro de Harold Deering, antigo membro da faculdade? - perguntou Bob. - Deering... Deering... - disse a voz. - Esse é novo para mim. Vejamos se está na lista da faculdade. - Outra longa pausa, durante a qual Bob chegou a pensar que o telefone tinha sido desligado, quando a voz respondeu: - Santo Deus, não admira. Foi um bocado antes do meu tempo. Deering, Harold, 1909-1911, bacharelado em 1911, licenciatura em 1916 (Teologia). É bispo de Truru. É esse? - Sim, é esse mesmo - disse Bob. - Por acaso tem o endereço dele? - Tenho - disse a voz. - Reverendo Harold Deering, Casa de Pedra, Mill Road, Tewkesbury, Gloucestershire. - Obrigado - disse Bob. - Ajudou-me muitíssimo. Bob passou o resto da tarde escrevendo uma carta ao antigo bispo, na esperança de que o velho azul concordasse em recebê-lo. Ficou surpreso ao receber um telefonema no seu alojamento, três dias depois, da senhora Elliot, filha de Deering, com quem ele vivia. - Meu pai não consegue enxergar muito bem atualmente explicou ela. - De modo que tive de ler a carta para ele, mas ele gostaria muito de recebê-lo e pergunta se pode vir no domingo, lá pelas onze e meia, depois das matinas, desde que isso não lhe traga inconvenientes. - Está ótimo - disse Bob. - Diga a seu pai que me espere por volta das onze e meia. - Tem de ser de manhã - continuou a explicar a senhora Elliot -, porque ele gosta de dormir depois do almoço. Tenho certeza de que compreenderá. A propósito, vou enviar as instruções do percurso para a sua faculdade. No domingo de manhã, Bob estava de pé muito antes de o sol nascer, iniciando sua viagem para Tewkesbury num carro que tinha alugado na véspera. Poderia ter ido de trem, mas os trens

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britânicos não pareciam dispostos a funcionar suficientemente cedo para ele chegar a tempo a seu destino. Enquanto percorria os Cotswolds, lembrava-se de manter o carro do lado esquerdo da estrada e não pôde deixar de pensar quanto tempo faltaria para os ingleses começarem a construir auto-estradas com mais de uma pista. Passava das onze quando chegou a Tewkesbury, e, graças às claras instruções da senhora Elliot, encontrou rapidamente a Casa de Pedra. Estacionou o carro próximo a um pequeno portão de bambu. Uma mulher havia aberto a porta da casa antes mesmo de Bob chegar a meio do caminho coberto de ervas. - Deve ser o senhor Kefford - declarou ela. - Eu sou Susan Elliot. - Bob sorriu e apertou-lhe a mão. - Devo avisá-lo explicou a senhora Elliot, enquanto o conduzia à porta - que vai ter de falar alto. Meu pai está muito surdo ultimamente e receio que sua memória já não seja como antes. Deve recordar tudo o que aconteceu quando tinha a sua idade, mas não se lembra das coisas mais simples que eu lhe disse ontem. Tive que repetir a que horas o senhor vinha esta manhã - disse ela, quando entravam - três vezes. - Peço desculpas por lhe causar tanto incômodo, senhora Elliot - disse Bob. - Não incomoda nada - disse ela, conduzindo-o pelo corredor. - A verdade é que meu pai ficou muito excitado com a idéia de um azul americano de Cambridge vir visitá-lo depois de todos esses anos. Não parou de falar do assunto nos dois últimos dias. E está cheio de curiosidade, ansioso por saber por que quer falar com ele - acrescentou ela, confidencialmente. 106 107

Levou Bob para uma sala, onde ele se viu imediatamente diante de um velho sentado num sofá de couro, envolvido num quente roupão de xadrez e apoiado em diversas almofadas, com as pernas cobertas por uma manta escocesa. Bob mal podia crer que aquela frágil figura tivesse sido um dia um remador olímpico. - É ele? - perguntou o velho em tom alto. - É, sim, pai - respondeu a senhora Elliot, no mesmo tom. É o senhor Kefford. Veio de Cambridge especialmente para vê-lo. Bob avançou e apertou a mão ossuda que o velho lhe estendeu. - Foi muito simpático de sua parte vir de tão longe, Kefford - disse o ex-bispo, puxando a manta mais para cima. - Agradeço que me tenha recebido - disse Bob, enquanto a senhora Elliot o encaminhava para uma grande e confortável cadeira de frente para o pai. - Quer tomar uma xícara de chá, Kefford? - Não, muito obrigado - disse Bob. - Como quiser - disse o velho. - Devo avisá-lo, Kefford, que minha capacidade de concentração já não é a mesma, de modo que é melhor dizer logo por que veio. Bob tentou controlar seus pensamentos. - Ando fazendo uma pequena investigação sobre um azul de Cambridge que deve ter remado mais ou menos na mesma época que o senhor. - Como se chama ele? - perguntou Deering. - Não me lembro de todos, você deve compreender. Bob fitou-o, receando que aquela viagem tivesse sido feita em vão. - Mortimer. Dougie Mortimer - disse. - D.J.T. Mortimer - respondeu o velho sem hesitação. -Aí está uma pessoa que não se esquece facilmente. Um dos melhores remadores de popa que Cambridge produziu... como Oxford concluiu, à sua custa. - O velho fez uma pausa. - Você é jornalista, por acaso? - Não, senhor. Trata-se apenas de um capricho pessoal. Queria saber umas coisas acerca dele antes de voltar para a América. 108 - Então vou tentar ajudá-lo, se puder - disse o velho, em voz sibilante. - Obrigado - disse Bob. - Gostaria de começar pelo fim, se puder, perguntando-lhe quais as circunstâncias de sua morte. O velho não respondeu durante alguns momentos. As pálpebras do clérigo fecharam-se, e Bob perguntou a si mesmo se ele teria adormecido. - Não é o tipo de coisa que os rapazes falavam no meu tempo - respondeu ele, finalmente. - Especialmente por ser contra a lei, naquela época. - Contra a lei? - disse Bob, surpreso. - O suicídio É um disparate, pensando bem - prosseguiu o ex-sacerdote -, apesar de ser um pecado mortal. Porque não se pode pôr na cadeia quem já está morto, não é verdade? Mas nunca foi confirmado, sabe? - Acha que isso poderia estar relacionado com o

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fato de Cambridge ter perdido as regatas em 1909, quando era claramente favorito? - É possível, penso eu - disse Deering, hesitando uma vez mais. - Devo confessar que essa idéia me passou pela cabeça. Tomei parte nessa regata, como sabe. - Deteve-se de novo, respirando pesadamente. - Cambridge era nitidamente o favorito, e nós não tínhamos possibilidades de perder. O resultado nunca ficou devidamente explicado, devo confessar. Correram muitos boatos na época, mas não houve provas... não houve provas, compreende? - O que é que não ficou provado? - perguntou Bob. Houve um novo e longo silêncio, durante o qual Bob chegou a recear que o velho houvesse julgado ter ido longe demais. - É a minha vez de lhe fazer umas perguntas, Kefford - disse ele, finalmente. - À vontade, reverendo. - A minha filha disse que o senhor foi remador de popa do barco que deu a vitória a Cambridge três anos a fio. - É verdade. - Meus parabéns, meu rapaz. Mas diga-me uma coisa: se 109 tivesse desejado perder uma dessas corridas, poderia tê-lo feito sem que o resto da tripulação percebesse? Foi a vez de Bob pensar um pouco. Percebeu, pela primeira vez desde que tinha entrado na sala, que não devia partir do princípio de que um corpo frágil significa necessariamente mente frágil. - Sim, acho que sim - acabou por dizer. - Pode-se sempre alterar o ritmo das remadas sem avisar, ou até mesmo desviar um pouco o barco quando se chega à curva de Surrey. Sabe Deus que há suficientes destroços na água para que isso pareça inevitável. - Bob fitou o velho de frente. - Mas nunca me tinha passado pela cabeça que alguém fizesse isso deliberadamente. - Nem pela minha - disse o sacerdote -, se o timoneiro da embarcação de Cambridge não se tivesse ordenado. - Não estou compreendendo, reverendo - disse Bob. - Nem podia, meu rapaz. Hoje em dia penso em non sequiturs. vou tentar ser mais claro. O timoneiro do barco da corrida de Gambridge de 1909 era um rapaz chamado Bertie Partridge. Veio a ser pároco de um local chamado Chersfield, em Rutland. Provavelmente o único lugar que o aceitou - disse, rindo. - Mas, quando fui feito bispo de Truro, escreveu-me e convidou-me para falar ao seu rebanho. Era uma viagem tão difícil da Cornualha a Rutland, naqueles tempos, que eu poderia facilmente ter-me desculpado, mas, assim como o senhor, queria ver resolvido o mistério da corrida de 1909, e achei que podia ser aquela a minha oportunidade. Bob não tentou interrompê-lo, receando deter o fluxo de pensamentos do velho. - Partridge era solteiro, e os solteirões sentem-se muito solitários, sabe como é. Se têm uma oportunidade, adoram conversar. Fiquei lá durante a noite, o que lhe deu imensas oportunidades. Disse-me, durante um longo jantar, acompanhado por uma garrafa de vinho, que por acaso não era grande coisa, que todo mundo sabia que Mortimer tinha grandes dívidas em toda a cidade de Cambridge. Não há muitos estudantes que não as tenham, pode-se dizer, mas, no caso de Mortimer, ultrapassavam largamente seu potencial financeiro. Penso que ele esperava que sua fama e popularidade impedissem seus credores de lhe cobrar as dívidas. Não 110 muito diferentemente de Disraeli, quando foi primeiro-ministro acrescentou, rindo de novo. - Mas, no caso de Mortimer, havia um determinado lojista, que não se interessava absolutamente nada por regata, e ainda menos pelos estudantes, que ameaçou levá-lo à justiça na semana anterior à regata de 1909. Alguns dias depois de a regata ter sido perdida, parece que Mortimer, sem qualquer explicação, pagou todas as suas dívidas, e nunca mais se ouviu falar do assunto. O velho parou uma vez mais, como que mergulhado em profundos pensamentos. Bob permaneceu em silêncio, não desejando distraí-lo. - A única coisa de que me recordo é que os corretores de apostas fizeram um estrago - disse Deering abruptamente. - Sei disso porque meu tutor perdeu uma aposta de cinco libras, e nunca mais me deixou esquecer que eu dissera que não tínhamos a mínima possibilidade de ganhar. Imagine que sempre pude, por causa disso, justificar a mim mesmo o fato de nunca ter conseguido apanhar um vinte. - Ergueu o olhar e sorriu ao seu visitante. Bob sentou-se na beira do assento, pensando nas recordações do velho. - Fico muito grato por sua franqueza, reverendo - disse. - E pode contar

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com minha discrição. - Obrigado, Kefford - disse o velho, agora quase num sussurro. - Fico absolutamente encantado por ter podido ajudálo. Posso fazer mais alguma coisa por você? - Não, muito obrigado, reverendo - disse Bob. - Acho que já me disse tudo o que eu precisava saber. Bob pôs-se de pé e, ao voltar-se para agradecer à senhora Elliot, notou, pela primeira vez, a reprodução de um braço em bronze presa na parede, sob a qual se lia, em letras douradas: H. H. DEERING 1909-10-11 (KEBLE, TIMONEIRO) - O senhor deve ter sido um bom remador, reverendo. 111

- Não, nem tanto - disse o velho azul. - Mas tive a sorte de estar no barco vitorioso durante três anos seguidos, o que não havia de agradar a um homem de Cambridge, como o senhor. Bob riu. - Uma última pergunta antes de partir, reverendo. - Evidentemente, Keyfford. - Fizeram uma reprodução em bronze do braço de Dougie Mortimer? - Fizeram, sim - respondeu o sacerdote. - Mas desapareceu misteriosamente da Casa dos Barcos em 1912. Algumas semanas depois o barqueiro foi despedido sem explicações... causou muita agitação na época. - Soube-se por que motivo tinha sido despedido? - perguntou Bob. - Partridge me disse que, quando o velho barqueiro se embebedou certa noite, confessou ter jogado o braço de Mortimer no meio do Cam. - O velho fez uma pausa, sorriu e acrescentou: - É o melhor lugar para ele, não lhe parece, Kefford? Bob pensou na questão durante algum tempo, perguntando a si mesmo como teria reagido seu pai. Depois respondeu simplesmente: - Sim, senhor. É o melhor lugar para ele.

PASSAGEM PROIBIDA 112

Maio de 1986 HAMID ZEBARI SORRIU À IDÉIA DE QUE SUA MULHER, Shereen, o estava conduzindo de carro ao aeroporto. Nenhum dos dois teria achado isso possível cinco anos antes, quando tinham chegado à América como refugiados políticos. Mas, desde que iniciara nova vida nos Estados Unidos, Hamid começava a pensar que tudo seria possível. - Quando você volta para casa, pai? - perguntou Nadim, preso pelo cinto de segurança no banco de trás, ao lado da irmã May, que ainda era pequena demais para compreender por que motivo o pai ia se ausentar. - Daqui a uma quinzena, prometo. Não mais - respondeu o pai. - E, quando eu voltar, vamos tirar férias. - Quanto tempo é uma quinzena? - perguntou o filho. - Quatorze dias - respondeu-lhe Hamid com um sorriso. - E quatorze noites - disse sua mulher, parando junto à calçada, sob o letreiro das Linhas Aéreas Turcas. Apertou um botão no painel, e o porta-malas abriu. Hamid saltou do carro, retirou a bagagem e pousou-a na calçada, antes de entrar na parte de trás do carro. Abraçou primeiro a filha e, depois, o filho. May estava chorando - não pelo fato de ele ir embora, mas porque 115 chorava sempre que o carro parava. Ele a deixou acariciar seu farto bigode, o que sempre fazia cessarem as lágrimas. - Quatorze dias - repetiu o filho. Hamid abraçou a mulher e sentiu em seu ventre o pequeno volume de seu terceiro filho. - Viremos buscá-lo - gritou Shereen, enquanto o marido dava uma gorjeta ao carregador, junto ao meio-fio. Uma vez registradas suas seis malas vazias, Hamid desapareceu no terminal, dirigindo-se ao balcão das Linhas Aéreas Turcas. Como fazia o mesmo vôo duas vezes ao ano, não precisou pedir informações à comissária. Depois de ter reservado seu lugar e recebido o passe de bordo, Hamid ainda tinha de esperar uma hora antes que chamassem os passageiros para o vôo. Começou a andar lentamente para o portão B27. Era sempre a mesma coisa - o avião das Linhas Aéreas Turcas estaria estacionado a meio caminho de Manhattan. Quando

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passou pelo balcão de check-in da Pan Am no B5, observou que o avião deles partiria uma hora antes do seu, um privilégio para quem estivesse disposto a pagar mais sessenta e três dólares. Quando chegou à área do check-in, uma funcionária das Linhas Aéreas Turcas estava colocando num quadro o aviso do vôo 014, Nova York-Londres-Istambul. Hora prevista para a partida: lOhlO. Os bancos começavam a encher-se com o habitual grupo cosmopolita de passageiros: turcos que iam visitar suas famílias, americanos que iam passar férias e queriam poupar os sessenta e três dólares, e homens de negócios cujos balanços comerciais eram estreitamente vigiados por avarentos contadores. Hamid dirigiu-se ao bar do restaurante e pediu café e dois ovos moles, acompanhados de carne picada. Eram essas pequenas coisas que lhe recordavam diariamente a liberdade recém-adquirida e o quanto devia à América. - Senhores passageiros com destino a Istambul, acompanhados de crianças, queiram, por favor, dirigir-se para bordo solicitou a funcionária pelo alto-falante. Hamid engoliu a última garfada de carne picada - ainda não se acostumara com o hábito americano de cobrir tudo com 116 ketchup - e bebeu um último gole do café fraco e sem sabor. Estava ansioso por voltar a provar o espesso café turco, servido em pequenas xícaras de porcelana. Mas era um sacrifício ínfimo, quando comparado com o privilégio de viver num país livre. Pagou a conta e deixou um dólar no pires. - Passageiros das filas 35 e 41, por favor queiram dirigir-se para bordo. Hamid pegou sua pasta e encaminhou-se para a passagem que levava ao vôo 014. Um funcionário das Linhas Aéreas Turcas confirmou seu cartão de bordo e o fez entrar. Havia sido colocado num lugar do lado do corredor, perto do extremo da classe econômica. Mais dez viagens, disse a si mesmo, e passaria a viajar na classe de executivos da Pan Am. A essa altura, já poderia pagá-la. Sempre que as rodas do avião deixavam o solo, Hamid olhava pela pequenajanela, vendo seu país de adoção desaparecer de sua vista, e lhe ocorriam os mesmos pensamentos. Tinham-se passado quase cinco anos desde que Saddam Hussein o demitira do Conselho de Ministros Iraquiano, depois de ter assumido a pasta da Agricultura durante dois anos apenas. As colheitas de trigo tinham sido fracas naquele outono, e, depois que o Exército Popular recebeu uma parte e os intermediários outra, o povo iraquiano ficou com muito pouco. Alguém tinha de arcar com as culpas, e o bode expiatório mais óbvio era o ministro da Agricultura. O pai de Hamid, um negociante de tapetes, sempre desejara que ele entrasse para o negócio da família e o havia prevenido, pouco antes de morrer, de que não aceitasse a pasta da Agricultura, pois os três ministros anteriores haviam sido demitidos e, mais tarde, desaparecido - e todo mundo no Iraque sabia o que queria dizer "desaparecido". Mas Hamid aceitara o cargo. A colheita do primeiro ano fora abundante e, afinal, convencera-se, a Agricultura era apenas um degrau para postos mais altos. E, de qualquer forma, Saddam não se havia referido a ele, diante de todo o Conselho de Comando Revolucionário, como "meu bom e íntimo amigo"? Aos trinta e dois anos, as pessoas ainda se julgam imortais. 117

O pai de Hamid tinha razão, e o único verdadeiro amigo que tinha - os amigos derretiam-se, como a neve ao sol da manhã, quando aquele presidente especial despedia alguém - o ajudara a fugir. A única precaução que Hamid tomara, durante seu tempo de ministro da Agricultura, fora a de retirar de sua conta bancária, todas as semanas, um pouco mais de dinheiro do que necessitava. Depois, trocava o dinheiro extra por dólares americanos com um cambista de rua, usando um cambista diferente de cada vez, e nunca trocando uma quantia que pudesse levantar suspeitas. No Iraque, todos são espiões. No dia em que foi afastado, contou o dinheiro escondido embaixo do colchão. Chegava a onze mil, duzentos e vinte e um dólares americanos. Na quinta-feira seguinte, dia em que começa o fim de semana em Bagdá, ele e a mulher, então grávida, tomaram o ônibus para Erbil. Deixaram seu Mercedes conspicuamente

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estacionado na frente de sua grande casa nos subúrbios e não levaram bagagem - apenas dois passaportes, o maço de dólares, oculto nas roupas largas da mulher, e alguns dinares iraquianos para chegar à fronteira. Ninguém os iria procurar num ônibus para Erbil. Quando chegaram a Erbil, Hamid e a mulher pegaram um táxi para Sulaimania, usando a maior parte dos dinares restantes para pagar ao motorista. Passaram a noite num pequeno hotel, longe do Centro da cidade. Nem um, nem outro dormiu, à espera de que o sol da manhã aparecesse através da janela sem cortina. No dia seguinte, outro ônibus levou-os aos montes do Curdistão. Chegaram a Zakho no princípio da tarde. A parte final da viagem fora a mais lenta de todas. Tinham sido transportados ao longo dos montes por mulas, o que lhes custou duzentos dólares - o jovem contrabandista curdo não mostrara interesse pelos dinares iraquianos. Deixou o ex-ministro e sua mulher em segurança do outro lado da fronteira às primeiras horas da manhã, prontos para a caminhada a pé até a aldeia mais próxima, já em solo turco. Chegaram à noite em Kirmizi Renga e 118 passaram outra noite sem dormir na estação local, à espera do primeiro trem para Istambul. Hamid e Shereen dormiram durante toda a longa viagem de trem até a capital turca e acordaram na manhã seguinte na qualidade de refugiados. A primeira visita que Hamid fez, na cidade, foi ao Banco Iz, onde depositou dez mil e oitocentos dólares. A seguinte foi à embaixada americana, onde apresentou seu passaporte diplomático e pediu asilo político. Seu pai lhe dissera, um dia, que um ministro do Iraque, recém-despedido, era sempre uma boa aquisição para os americanos. A embaixada arranjou acomodações para Hamid e sua mulher num hotel de primeira classe e informou imediatamente Washington do seu pequeno golpe. Prometeram a Hamid que voltariam a contactá-lo o mais depressa possível, mas não lhe esclareceram quanto tempo isso poderia levar. Ele decidiu aproveitar o tempo para visitar os bazares de tapetes na zona sul da cidade, tantas vezes freqüentados por seu pai. Muitos negociantes recordavam-se do pai de Hamid - um homem honesto que gostava de regatear e beber litros de café, e

que lhes dissera muitas vezes que o filho havia entrado na política. Tiveram muito prazer em conhecê-lo, especialmente ao saber o que ele pretendia fazer quando se instalasse nos Estados Unidos. Os Zebari receberam vistos americanos ao fim de uma semana e foram levados de avião para Washington à custa do governo, o que incluiu os encargos de excesso de bagagem, que continha vinte e três tapetes turcos. Depois de ter sido intensivamente interrogado pela CIA durante cinco dias, Hamid recebeu agradecimentos por sua cooperação e pelas úteis informações que tinha fornecido. Foi então libertado, para começar sua nova vida na América. Ele, a mulher grávida e os vinte e três tapetes embarcaram num trem para Nova York. Hamid levou seis semanas para encontrar a loja adequada, na baixa zona leste de Manhattan, onde poderia vender seus tapetes. Logo que assinou o contrato de aluguel por cinco anos, Shereen 119 começou imediatamente a pintar o novo nome americanizado de ambos na porta do estabelecimento. Hamid só conseguiu vender o primeiro tapete cerca de três meses depois, quando suas parcas economias já tinham quase desaparecido. Mas, no fim do primeiro ano, vendera dezesseis dos vinte e três tapetes e constatou que em breve teria que voltar a Istambul para comprar mais material. No fim de quatro anos, os Zebari tinham-se mudado para uma loja maior na zona oeste, com um pequeno apartamento no segundo andar. Hamid dizia constantemente à mulher que aquilo era apenas o princípio, que tudo era possível nos Estados Unidos. Considerava-se agora um cidadão inteiramente americano e não apenas por causa do estimado passaporte azul que confirmava sua cidadania. Aceitara a idéia de que não poderia voltar a seu país natal enquanto Saddam permanecesse no poder. Sua casa e seus bens tinham sido confiscados pelo Estado iraquiano, e ele fora condenado à morte à revelia. Não acreditava que pudesse voltar a ver Bagdá. Depois da parada em Londres, o avião

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aterrissou no Aeroporto Ataturk de Istambul poucos minutos antes da hora prevista. Hamid registrou-se no pequeno hotel habitual e começou a planejar a melhor maneira de aproveitar o tempo durante as duas semanas seguintes. Agradava-lhe estar novamente no meio do bulício e do ruído da capital turca. Havia trinta e um vendedores que pretendia visitar, porque, aquela vez, esperava regressar a Nova York com pelo menos sessenta tapetes. Isso significaria quatorze dias de espesso café turco e muitas horas para regatear, pois o preço inicial dos vendedores era sempre três vezes superior ao que Hamid estava disposto a pagar - ou àquele que o vendedor esperava receber. Mas não havia atalhos no processo de negociação, que - como seu pai - Hamid secretamente apreciava. No final de duas semanas, Hamid havia comprado cinqüenta e sete tapetes por preço um pouco superior a vinte e um mil dólares. Tivera o cuidado de escolher apenas os tapetes que seriam procurados pelos nova-iorquinos mais exigentes e confiava que 120 aquela remessa lhe rendesse quase cem mil dólares na América. A viagem foi tão bem-sucedida, que Hamid decidiu que se podia dar ao luxo de tomar o vôo da Pan Am, de regresso a Nova York. Afinal, conseguira ganhar várias vezes mais os sessenta e três dólares extras, durante sua viagem. Estava ansioso para rever Shereen e os filhos antes mesmo que o avião tivesse levantado vôo, e a aeromoça americana, com seu pronunciado sotaque nova-iorquino e seu sorriso amistoso, contribuiu para a sensação de já estar em casa. Depois de servido o almoço, e tendo decidido que não queria ver o filme, Hamid adormeceu e sonhou com o que conseguiria alcançar na América, com o tempo. Talvez seu filho se dedicasse à política. Os Estados Unidos estariam preparados para ter um presidente iraquiano no ano 2025? Sorriu a essa idéia e caiu, satisfeito, num sono profundo. - Senhores passageiros - disse uma profunda voz sulista, ecoando pelo intercomunicador -, fala o comandante. Lamento interromper o filme ou acordar os que estão descansando, mas temos um pequeno problema num dos motores da nossa asa de estibordo. Nada preocupante, mas as regras da Autoridade Federal da Aeronáutica impõem um pouso no aeroporto mais próximo para resolver o problema, antes de prosseguirmos viagem. Não devemos levar mais do que uma hora, no máximo. Depois prosseguiremos nossa viagem. Podem estar certos de que nos esforçaremos para compensar o tempo perdido, na medida do possível. De súbito, Hamid estava totalmente acordado. - Não iremos desembarcar porque se trata de uma parada não programada. No entanto, sempre poderão dizer a seus amigos que visitaram Bagdá. Hamid sentiu-se subitamente sem forças, e sua cabeça pendeu para a frente. A aeromoça correu para seu lado. - Sente-se mal? - perguntou. Ele ergueu a cabeça e fitou-a nos olhos. - Preciso falar com o comandante imediatamente. Imediatamente! A aeromoça não pôs em dúvida a ansiedade do passageiro e 121

conduziu-o rapidamente para a parte da frente do avião, subindo a escada em espiral até a sala da primeira classe e a cabine de vôo. Bateu à porta da cabine, abriu-a e disse: - Comandante, um dos passageiros precisa falar-lhe urgentemente. - Faça-o entrar - disse a voz sulista. Então, voltou-se e olhou para Hamid, que agora tremia incontrolavelmente. - Em que posso servi-lo? - Chamo-me Hamid Zebari. Sou cidadão americano - começou ele. - Se aterrissar em Bagdá, vou ser preso, torturado e executado. - As palavras saíam atropeladas. - Sou refugiado político, e, como deve compreender, o regime não hesitaria em matar-me. Bastou o comandante observar Hamid para ver que ele não mentia. - Assuma o comando, Jim - disse ao co-piloto -, enquanto falo com o senhor Zebari. Chame-me quando tivermos permissão para aterrissar. O comandante soltou o cinto de segurança e conduziu Hamid a um recanto vazio da sala da primeira classe. - Explique melhor, por favor - pediu. Durante os minutos seguintes, Hamid explicou por que motivo tivera de sair de Bagdá e como fora morar

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na América. Quando chegou ao final da história, o comandante abanou a cabeça e sorriu. - Não vale a pena entrar em pânico - garantiu a Hamid. Ninguém vai sair do avião, de modo que os passaportes dos passageiros não serão vistoriados. Logo que o motor estiver pronto, partiremos imediatamente. É melhor ficar aqui na primeira classe, para poder falar comigo a qualquer momento, se chegar a ficar preocupado. "Até que ponto uma pessoa pode suportar a ansiedade?", perguntou-se Hamid, enquanto o comandante o deixava para falar com o co-piloto. Recomeçou a tremer. - É o comandante uma vez mais, senhores passageiros, para mantê-los informados. Recebemos permissão para aterrissar em 122 Bagdá, de modo que iniciamos nossa descida e esperamos pousar dentro de vinte minutos. Depois iremos para o extremo da pista, onde ficaremos aguardando os mecânicos. Logo que eles resolvam nosso problema, prosseguiremos nossa viagem. Ouviu-se um suspiro coletivo, enquanto Hamid agarrava o braço do assento e desejava não ter almoçado. Não parou de tremer durante os vinte minutos seguintes e quase desmaiou quando as rodas tocaram o solo da terra onde nascera. Olhou pela janela, enquanto o avião percorria o terminal que ele tão bem conhecia. Podia ver guardas armados no telhado e nas portas que levavam à pista. Rezou a Alá, rezou a Jesus, rezou até ao presidente Reagan. Durante os quinze minutos seguintes, o silêncio só foi interrompido pelo som de uma caminhonete que atravessou a pista e parou embaixo da asa de estibordo do avião. Hamid viu os dois mecânicos que carregavam volumosos sacos de ferramentas. Saíram da caminhonete, subiram para um pequeno guindaste e foram içados até o nível da asa. Começaram a desaparafusar as placas externas de um dos motores. Quarenta minutos depois, voltaram a aparafusar as placas e desceram. A caminhonete partiu em direção ao terminal. Hamid sentiu-se aliviado, embora ainda intranqüilo. Apertou o cinto de segurança, esperançoso. Os batimentos de seu coração baixaram de 180 por minuto para cerca de 110, mas sabia que só regressariam à normalidade quando o avião levantasse vôo e ele tivesse a certeza de que não voltaria. Nada aconteceu durante os minutos seguintes, e Hamid recomeçou a sentir-se inquieto. Então, a porta da cabine abriu-se, e ele viu o comandante avançar em sua direção, com expressão preocupada no rosto. - É melhor vir para junto de nós, na cabine de vôo sussurrou o comandante. Hamid soltou o cinto e conseguiu ficar de pé, sem saber como. com passos inseguros, seguiu o comandante até a cabine, sentindo as pernas tremerem. A porta fechou-se atrás deles. O comandante não perdeu tempo com rodeios. - Os mecânicos não conseguiram localizar o problema. O 123 chefe da oficina só estará disponível dentro de uma hora, de modo que recebemos ordem para desembarcar e aguardar na área de trânsito até ele terminar o trabalho. -Preferia morrer num acidente de avião! - explodiu Hamid. - Não se preocupe, senhor Zebari. Pensamos numa forma de resolver seu problema. Vamos vestir-lhe uma farda extra. Isso possibilitará que fique sempre perto de nós e use as instalações para a tripulação. Ninguém pedirá seu passaporte. - Mas se alguém me reconhecer... - principiou Hamid. - Quando se livrar desse bigode e vestir uma farda de piloto, óculos escuros e boné, nem sua mãe o reconhecerá. com a ajuda de uma tesoura, seguida de espuma de barbear e de uma gilete, Hamid raspou o bigode farto de que tanto se orgulhava, deixando o lábio superior tão pálido como uma bola de sorvete de baunilha. A chefe das aeromoças aplicou-lhe um pouco de maquilagem para igualar a cor à do rosto. Hamid ainda não estava convencido, mas, depois de envergar a farda extra do co-piloto e de se observar no espelho do banheiro, teve de confessar que seria realmente extraordinário que alguém o reconhecesse. Os passageiros foram os primeiros a deixar o avião, sendo conduzidos num ônibus até o terminal principal. Chegou depois uma elegante caminhonete para recolher a tripulação, que saiu em grupo, protegendo Hamid, de modo que ele ficasse sempre rodeado. Hamid sentia-se cada vez mais nervoso a cada metro que a caminhonete avançava para o terminal. A guarda de segurança não revelou qualquer interesse especial pela tripulação quando ela entrou no

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edifício, e deixou todos procurando lugares nos bancos de madeira do salão de paredes brancas. A única decoração era um enorrr e retrato de Saddam Hussein, fardado, com uma espingarda kalashnikou na mão. Hamid não conseguia olhar para o retrato do seu "grande e íntimo amigo". Havia outra tripulação sentada na sala, à espera do momento de voltar para seu avião, mas Hamid estava muito assustado para entabular qualquer conversa. - São franceses - informou a chefe das aeromoças. - vou tentar descobrir se minhas aulas noturnas valeram o dinheiro que gastei. - Sentou-se ao lado do comandante do avião francês e experimentou uma pergunta simples, para começar. Quando o comandante francês começou a explicar que seguiam para Singapura via Nova Delhi, Hamid o viu: Saad al-Takriti, antigo membro da guarda pessoal de Saddam. A julgar pela insígnia que trazia no ombro, parecia estar agora encarregado da segurança do aeroporto. Hamid rezou para que ele não olhasse em sua direção. Al-Takriti atravessou a sala olhando para as tripulações francesa e americana e demorando o olhar nas pernas das aeromoças envoltas em meias pretas. O comandante tocou o ombro de Hamid, que quase deu um salto. - Tudo bem. Pensei que gostaria de saber que o chefe dos mecânicos já está a caminho do avião. De modo que não deve demorar muito tempo. Hamid olhou além do avião da Air France e viu uma caminhonete parar junto da asa de estibordo do avião da Pan Am. Um homem de macacão azul saiu do veículo e subiu no pequeno guindaste. Hamid pôs-se de pé para ver melhor e, naquele momento, Saad al-Takriti regressou à sala. Deteve-se, de súbito, e os olhares dos dois homens cruzaram rapidamente, antes que Hamid se apressasse a sentar-se ao lado do comandante. Al-Takriti entrou numa sala lateral com o letreiro "Entrada Proibida". - Acho que ele me reconheceu - disse Hamid. A maquilagem começava a escorrer-lhe sobre os lábios. O comandante inclinou-se para a chefe das aeromoças e interrompeu sua conversa com o comandante francês. Ela escutou as instruções do seu chefe e depois tentou uma pergunta mais difícil em francês. Saad al-Takriti saiu da sala lateral e dirigiu-se ao comandante americano. Hamid pensou que ia desmaiar. Sem sequer olhar para Hamid, Al-Takriti vociferou: 124 125 - Comandante, exijo que me mostre a lista de passageiros, o numero de tripulantes que transporta e seus passaportes. - Meu co-piloto é que tem todos os passaportes -respondeu o comandante. -vou falar com ele. - Obrigado - disse Al-Takriti. - Quando tiver todos, leve-os a meu gabinete para que eu possa verificar. Mas peça a sua tripulação que permaneça aqui. Ninguém deverá sair do edifício, em nenhum caso, sem a minha permissão. O comandante pôs-se de pé, dirigiu-se lentamente ao co-piloto e pediu-lhe os passaportes. Depois deu uma ordem que o deixou totalmente surpreso. O comandante levou os passaportes para o gabinete da segurança, exatamente quando um ônibus parava diante da área de trânsito para levar a tripulação francesa até seu avião. Saad Al-Takriti colocou os quatorze passaportes à sua frente, sobre a mesa. Parecia sentir prazer em examinar lentamente cada um deles. Quando terminou a tarefa, anunciou, com fingida surpresa: - Comandante, contei quinze tripulantes com fardas da Pan Am. - Deve ter-se enganado - disse o comandante. - Somos apenas quatorze. - Então vou ter de fazer um exame mais detalhado, não lhe parece, comandante? Peço-lhe que entregue os passaportes aos seus donos. Se houver alguém que não tenha passaporte, terá, naturalmente, que me ser apresentado. - Mas isso é contra os regulamentos internacionais - disse o comandante. - O senhor deve saber. Estamos em trânsito, e, por isso, sob a proteção da Resolução 238 das Nações Unidas. Não estamos legalmente no seu país. - Poupe o fôlego, comandante. No Iraque, não nos interessam as resoluções da ONU. E, como o senhor mesmo disse, no que nos diz respeito, não se encontram legalmente em nosso país. O comandante compreendeu que estava perdendo tempo e que tinha de parar de blefar. Reuniu os passaportes o mais lentamente que pôde e deixou Al-Takriti conduzi-lo à sua tripulação. 126 Quando entraram na sala, os membros da tripulação da Pan Am, que estavam espalhados pelo banco, ergueram-se

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subitamente de seus lugares e começaram a andar de um lado para outro, mudando continuamente de direção, enquanto falavam uns com os outros em voz muito alta. - Diga-lhes que se sentem! - berrou Al-Takriti, enquanto a tripulação continuava a passear em ziguezague de um lado para outro da sala. - Como disse? - perguntou o comandante, colocando a mão em volta da orelha. - Diga-lhes que se sentem! - vociferou Al-Takriti. O comandante deu uma ordem frouxa e, momentos depois, estavam todos sentados. Mas continuaram a conversar em voz muito alta. - Diga-lhes que se calem! O comandante começou a percorrer a sala, pedindo a cada um deles, um a um, que baixasse o tom de voz. Os olhos de Al-Takriti percorreram os bancos da sala de trânsito, enquanto o comandante olhava para a pista e via o avião francês dirigir-se para a pista seguinte. Al-Takriti começou a contar e descobriu, com irritação, que havia apenas quatorze tripulantes da Pan Am na sala. Olhou em volta, furioso, e voltou a contar. - Todos os quatorzes parecem estar presentes - disse o comandante, depois de ter entregue os passaportes aos membros da tripulação. - Onde está o homem que estava sentado a seu lado? gritou Al-Takriti, apontando o dedo para o comandante. - Refere-se ao meu co-piloto? - Não. Àquele que parecia árabe. - Não há árabes na minha tripulação - garantiu-lhe o comandante. Al-Takriti dirigiu-se à chefe das aeromoças. - Ele estava sentado ao seu lado. A maquilagem do seu lábio superior tinha começado a escorrer. 127 - Ao meu lado estava sentado o comandante do avião francês - disse ela. E percebeu imediatamente o seu erro. Saad Al-Takriti voltou-se e olhou pela janela. Viu o avião da Air France no final da pista, preparando-se para levantar vôo. Apertou um botão de seu telefone celular no momento em que os motores a jato começaram a rugir e berrou algumas ordens em sua língua. O comandante não precisava conhecer árabe para compreender o teor daquelas palavras. Naquele momento, toda a tripulação americana estava de olho no avião francês, desejando que eie partisse, enquanto o tom de voz de Al-Takriti subia a cada palavra que pronunciava. O Air France 747 projetou-se para frente e começou lentamente a ganhar velocidade. Saad Al-Takriti praguejou e depois correu para fora do edifício, saltando para um jipe. Apontou o avião e ordenou ao motorista que o perseguisse. O jipe partiu em grande velocidade, acelerando enquanto circundava os aviões estacionados. Quando chegou à pista, deveria estar a cento e oitenta e, durante os cem metros seguintes, seguiu paralelamente o avião francês, com Al-Takriti de pé, no assento da frente, agarrado ao pára-brisa e agitando o punho para a cabine do avião. O comandante francês saudou-o, numa rápida continência, e, quando as rodas do 747 se ergueram do chão, explodiram gritos de alegria na sala de trânsito. O comandante americano sorriu e voltou-se para a chefe das aeromoças. - Isto só prova a minha teoria de que os franceses são capazes de tudo para conseguir mais um passageiro. Hamid Zebari chegou a Nova Delhi seis horas depois e telefonou imediatamente para a mulher a fim de lhe contar o que acontecera. No dia seguinte, logo de manhã, a Pan Am transportou-o para Nova York - em primeira classe. Quando Hamid saiu do terminal do aeroporto, a mulher saltou do carro e abraçou-se a ele. Nadkn desceu o vidro da janela e declarou: - Estava enganado, pai. Afinal, uma quinzena são quinze dias. - Hamid sorriu para o filho, mas a filha começou a chorar. Dessa 128 vez não foi porque o carro parou, mas porque ficou horrorizada ao ver a mãe abraçada a um estranho. 129

SEM LUZ NO FIM DO TÚNEL SEMPRE QUE ESTOU EM NOVA York, TENTO JANTAR com um velho amigo chamado Duncan McPherson. Temos feitios opostos, de modo que, naturalmente, nos sentimos atraídos um pelo outro. Na realidade, Duncan e eu só temos uma coisa em comum: somos ambos escritores. Mas, mesmo aí, há uma diferença, porque Duncan se especializou em roteiros de filmes, que escreve nos intervalos de seus artigos ocasionais para o

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Newsweek e o New Yorker, ao passo que prefiro romances e contos. Outra diferença entre nós reside no fato de eu estar casado com a mesma mulher há vinte e oito anos, enquanto Duncan parece ter uma namorada diferente a cada vez que vou a Nova York - nada mau, uma vez que vou lá pelo menos duas vezes por ano. As garotas são sempre bdnitas, dinâmicas e inteligentes, e há diversos graus de intensidade em suas relações - de acordo com a fase em que se encontram. Até então, eu já havia assistido a inícios (muito físicos) e períodos médios (em que principiava o arrefecimento), mas, nessa viagem, pude acompanhar pela primeira vez um final. Telefonei para Duncan do meu hotel, na Quinta Avenida, informando-o de que estava na cidade para fazer o lançamento de meu novo romance, e ele me convidou imediatamente para jantar na noite seguinte. Parti do princípio de que, como das outras vezes, seria no seu apartamento. Outra diferença: em absoluto contraste comigo, ele é excelente cozinheiro. 133

- Estou ansioso para vê-lo - disse ele. - Tive finalmente uma idéia para um romance e quero lhe contar o enredo. - Ótimo -respondi. - Estou ansioso para ouvir isso amanhã à noite. E posso perguntar... - hesitei. - Christabel - disse ele. - Christabel... - repeti, tentando lembrar seja a conhecia. - Mas não precisa guardar seu nome - acrescentou meu amigo. - Porque já está mesmo no fim. Conheci uma nova... Karen. É absolutamente sensacional. Você vai adorá-la. Não achei que fosse o momento adequado para dizer a Duncan que havia adorado todas elas. Limitei-me a perguntar qual delas estaria presente ao jantar. - Depende... se Christabel tiver acabado de fazer as malas respondeu Duncan - será a Karen. Ainda não dormimos juntos, e estava planejando isso para amanhã à noite. Mas, como você está na cidade, posso adiar. Não pude deixar de rir. Eu podia esperar, garanti-lhe. - Afinal, ficarei aqui durante uma semana, pelo menos. - Não, não. De qualquer forma, quero falar sobre minha idéia para o romance. Isso é muito mais importante. Venha à minha casa amanhã à noite. Pode ser por volta das sete e meia? Antes de sair do hotel, embrulhei um exemplar de meu último romance e escrevi "Espero que goste", por fora. Duncan mora num daqueles blocos de apartamentos no cruzamento da 72 com a Park, e, apesar de já ter ido lá diversas vezes, sempre levo alguns minutos para localizar a entrada do edifício. E, como as mulheres de Duncan, o porteiro parece mudar a cada viagem. O novo porteiro grunhiu quando lhe disse meu nome e apontou o elevador no extremo oposto da entrada. Fechei as portas gradeadas e apertei o botão do décimo quarto andar. Era um daqueles últimos andares que não podiam ser descritos como cobertura nem sequer pelo mais imaginativo agente imobiliário. Abri as portas e saí para o corredor, ensaiando sorrisos 134 apropriados para Christabel (adeus) e para Karen (olá). Quando me dirigia para a porta de Duncan, ouvi vozes alteradas - expressão muito britânica que subestima a situação; sejamos francos e admitamos que eles estavam aos berros, na potência máxima de seus pulmões. Concluí que aquilo deveria ser o fim com Christabel, e não o começo com Karen. Como estava alguns minutos atrasado, não podia voltar atrás. Toquei a campainha e, para grande alívio meu, as vozes calaram-se imediatamente. Duncan abriu a porta e, apesar de ter o rosto vermelho de raiva, conseguiu dirigir-me um sorriso. Isso me recorda que esqueci de descrever mais algumas diferenças entre nós: Duncan tem cabelos escuros encaracolados, com uma infantil madeixa caída sobre a testa, as feições rudes de seus antepassados irlandeses e a constituição de um campeão de tênis. - Entre - disse ele. - Deixe-me apresentar-lhe Christabel, para o caso de ainda não ter chegado a essa conclusão. Não sou, por natureza, uma pessoa que goste de aproveitar restos dos outros, mas devo confessar que teria adorado fazer de Christabel uma exceção. Tinha um rosto oval, olhos azul-escuros e um sorriso angelical. Era igualmente dotada daqueles finos cabelos louros que só nascem nas raças nórdicas e da aparência que os anúncios de produtos para emagrecer procuram. Usava uma

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camisa de caxemira ejeans brancos, afunilados, que pouco deixavam à imaginação. Christabel apertou minha mão com força e pediu desculpa por estar um pouco despenteada. - Passei a tarde fazendo as malas - explicou. A prova de seu trabalho estava à vista: três grandes malas e duas caixas de papelão cheias de livros, perto da porta. Sobre uma das caixas havia um livro policial de Dorothy L. Sayers, com a sobrecapa de papel vermelho, que estava rasgada. Eu começava a tomar consciência de que não poderia ter escolhido pior noite para encontrar meu velho amigo. - Teremos de comer fora desta vez - disse Duncan. - Foi - fez uma pausa - um dia atarefado. Não tive tempo de fazer 135

compras. Mas é até bom - acrescentou. - Ganho mais tempo para descrever o enredo de meu romance. - Parabéns! - disse Christabel. Voltei-me para ela. - Pelo seu romance - disse ela. - Primeiro lugar na lista dos best-sellers do New York Times, não foi? - Sim, parabéns - disse Duncan. -Ainda não consegui lê-lo, por isso não me diga nada a respeito dele. Não estava à venda na Bósnia - acrescentou com uma risada. Entreguei-lhe minha pequena lembrança. - Obrigado - disse ele, colocando-a sobre a mesa do saguão. - Estou ansioso para ler. - Eu já li - disse Christabel. Duncan mordeu o lábio. - Vamos - disse ele, virando-se para dizer adeus a Christabel, que me perguntou: - Importa-se de que eu vá com vocês? Estou morrendo de fome. E, como Duncan disse, não há absolutamente nada na geladeira. Percebi que Duncan ia protestar, mas, antes disso, Christabel tinha passado por ele e estava no corredor, avançando para o elevador. - Podemos ir a pé até o restaurante - disse Duncan, quando chegamos ao térreo. - Só os californianos precisam de carro para andar um quarteirão. Enquanto seguíamos para oeste, pela 72, Duncan disse que havia escolhido um novo e elegante restaurante francês para me levar. Comecei a protestar não só porque jamais gostei da complicada comida francesa, mas também porque não estava a par das imprevisíveis circunstâncias pecuniárias de Duncan. Algumas vezes, ele estava cheio de dinheiro; em outras, completamente falido. Tive esperanças de que tivesse recebido um adiantamento pelo seu romance. -Como você, normalmente não ligo muito para isso - disse ele. - Mas o restaurante acaba de ser inaugurado, e o New York 136 Times fez-lhe generosa referência. De qualquer forma, sempre que vou a Londres, você me recebe "como um rei" - acrescentou, com aquilo que imaginava ser um sotaque inglês. Era uma daquelas tardes frescas que tornam tão agradável passear a pé por Nova York, de modo que apreciei a caminhada enquanto Duncan me falava sobre sua recente viagem à Bósnia. - Foi sorte você me encontrar em Nova York! - dizia ele. Acabei de chegar, depois de ficar encurralado naquele maldito lugar durante três meses. - Sim, eu sei. Li seu artigo na Newsweek no avião - disse eu, e comecei a contar que ficara fascinado com as provas que ele apresentava, de que um grupo de soldados da ONU havia criado sua própria rede clandestina e não tinha escrúpulos em operar um mercado negro ilegal em todos os países onde ficava estacionado. - Sim, isso causou grande agitação na ONU - disse Duncan. - O New York Times e o Washington Post deram prosseguimento à história com a descrição dos principais culpados, mas sem se dar ao trabalho de me atribuir a origem da investigação, evidentemente. Voltei-me para ver se Christabel ainda nos acompanhava. Parecia mergulhada em profundos pensamentos e caminhava alguns passos atrás. Dirigi-lhe um sorriso com o qual esperava lhe dizer que considerava Duncan um idiota e a achava fantástica, mas não obtive qualquer reação. Ao fim de mais alguns metros avistei um toldo vermelho e dourado, ondulado pela brisa, à porta de uma casa chamada Lê Manoir. O coração caiu-me aos pés. Sempre preferi a comida simples e há muito que considero a pretensiosa cozinha francesa uma das maiores fraudes dos anos 80, que deveria passar pela década seguinte sem fazer parte da história da culinária. Duncan nos fez descer um pequeno caminho pavimentado, passar por

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uma pesada porta de carvalho e entrar num restaurante brilhantemente iluminado. Bastou-me olhar em volta da enorme sala, excessivamente decorada, para que se confirmassem meus piores receios. O maítre veio ao encontro dele e o cumprimentou: 137

- Boa noite, monsieur. - Boa noite - respondeu Duncan. - Reservei uma mesa em nome de McPherson. O maítre consultou a longa lista de reservas. - Ah, sim. Uma mesa para dois. - Christabel amuou, mas não ficou menos bonita. - Poderia ser para três? - perguntou meu anfitrião, com pouca convicção. - com certeza, monsieur. vou conduzi-los à mesa. Fomos guiados ao longo de uma sala apinhada de fregueses até uma pequena divisória a um canto, com a mesa posta só para duas pessoas. Ao observar a toalha, os pratos com grandes flores e as palavras "Lê Manoir" pintadas em vermelho, e o arranjo de lírios no centro da mesa, senti-me ainda mais culpado por ter levado Duncan àquilo. Um garçom usando camisa branca de gola aberta, calças e colete pretos, com "Lê Manoir" bordado em vermelho no bolso superior, apressou-se em trazer uma cadeira para Christabel, enquanto outro dispunha habilmente pratos e talheres para ela. Apareceu um terceiro garçom ao lado de Duncan, perguntando se desejávamos um aperitivo. Christabel sorriu docemente e perguntou se podia beber uma taça de champanhe. Pedi água de Evian, e Duncan indicou com um sinal que queria a mesma coisa. Nos minutos seguintes, enquanto esperávamos os menus, continuamos a falar sobre a viagem de Duncan à Bósnia e o contraste entre raspar a comida de uma marmita, num abrigo gelado, ao som de balas, e jantar em pratos de porcelana num restaurante aquecido, com um quarteto de cordas tocando Schubert ao fundo. Surgiu outro garçom ao lado de Duncan e nos entregou três pequenos menus cor-de-rosa. Enquanto eu corria os olhos pela lista de pratos, Christabel sussurrou qualquer coisa ao garçom, que acenou afirmativamente com a cabeça e se afastou sem ruído. Comecei a analisar cuidadosamente o cardápio, contrariado por descobrir que aquele era um dos tais restaurantes que só permite conhecer os preços quando se paga a conta. Estava 138 tentando imaginar quais seriam os pratos mais baratos, quando colocaram outra taça de champanhe na frente de Christabel. Decidi que o consommé deveria ser a entrada mais barata e indicada para contribuir em meus débeis esforços de perder peso. Os pratos principais deixaram-me ainda mais perplexo, e, com meu limitado conhecimento do francês, decidi-me finalmente pelo pato, porque não conseguia encontrar sinais de poulet. Quando o garçom regressou, momentos depois, reparou imediatamente na taça vazia de Christabel e perguntou: - Deseja mais uma taça de champanhe, madame? - Sim, por favor - respondeu ela docemente, quando o maítre chegou para anotar nossos pedidos. Mas, antes, tivemos de suportar a provação, esperada atualmente em todos os restaurantes franceses do mundo. - Nossas especialidades de hoje são - principiou ele, com um sotaque que não lhe teria conseguido um papel como ator: para hors d'oeuvres, gelée de saumon sauvage et caviar imperial en aigre doux, que vem a ser lascas de salmão e caviar imperial numa delicada geléia com creme azedo e courgettes conservadas em vinagre de endro. Temos igualmente Cuisses de grenouilles à lapurée d'herbes à soupe, fricassée de chanterelles et racines de persil, que são pernas de rã em purê de salsa, fricassée de cogumelos e raízes de salsa. Como prato principal temos Escalope de turbot, filé de linguado com purê de agrião, sabayon de limão e um molho Gewürztraminer. Evidentemente, recomendamos também todos os pratos que constam do menu. Senti-me farto antes mesmo de ele ter terminado as descrições. Christabel parecia estudar o cardápio com a devida diligência. Apontou um dos pratos, e o maítre deu um sorriso de aprovação. Duncan inclinou-se para mim e perguntou-me se já tinha escolhido. - Consommé e pato são suficientes para mim - disse eu, sem hesitar. 139 -Obrigado, monsieur - disse o maitre. - Como deseja o pato? Muito ou pouco frito? - Bem frito - respondi, para sua

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evidente desaprovação. - E monsieur'? - perguntou ele, voltando-se para Duncan. - Salada César e um bife malpassado. O maitre recuperou os cardápios e, mal se afastou, Duncan disse: - Agora, se não se importa, vou falar sobre o meu romance. - Deseja encomendar oS vinhos, monsieur'? - perguntou outro garçom, que trazia um grande livro de couro vermelho com uvas em relevo na capa. - Quer que escolha para você? - sugeriu Christabel. - Não precisa interromper sua história. Duncan assentiu com a cabeça, e o garçom entregou a lista dos vinhos a Christabel, que a abriu com o interesse de quem vai iniciar a leitura de um romance de grande vendagem. - Talvez isso o surpreenda - disse Duncan -mas meu livro se passa na Inglaterra. Devo dizer que o momento da sua publicação é absolutamente vital. Como você sabe, há atualmente um consórcio inglês e francês construindo um túnel entre Folkstone e Sangatte, que deverá ser inaugurado pela rainha Isabel em 6 de maio de 1994. Na realidade, Chunnel* vai ser o título do meu livro. Fiquei horrorizado enquanto via mais uma taça de champanhe sendo colocada diante de Christabel. - A história começa em quatro locais diferentes, com quatro conjuntos de personagens diferentes. Embora todos pertençam a diferentes grupos etários, ambientes sociais e países, têm uma coisa em comum: a reserva de lugares no primeiro trem de passageiros que ligará Londres a Paris pelo túnel do Canal. Senti súbita pontada de culpa e me perguntei se deveria dizer alguma coisa, mas nesse momento apareceu um garçom com uma garrafa de vinho branco, cuja etiqueta Christabel estudou cuidadosamente. * Nome dado ao túnel do Canal da Mancha (junção de channel e tunnel). (N. da T.) 140 Acenou afirmativamente com a cabeça, e o garçom abriu a garrafa e colocou um pouco de vinho no seu copo vazio. Um gole trouxe-lhe o sorriso de novo aos lábios. O garçom, então, nos serviu. Duncan prosseguiu: - Haverá uma família americana, mãe, pai, dois filhos adolescentes, na sua primeira visita à Inglaterra; um jovem casal inglês, que se casou nessa manhã e vai iniciar sua lua-de-mel; um milionário grego, que se fez à própria custa, e sua esposa francesa, que reservaram as passagens um ano antes, mas agora estão pensando em se divorciar; e três estudantes. Duncan parou de falar quando lhe puseram à frente a salada César e um segundo garçom apresentou-me uma taça de consommé. Olhei para o que Christabel havia escolhido. Era um prato de salmão defumado cortado em fatias muito finas, com uma bola de caviar no centro. Estava divertidíssima espremendo sobre o prato meio limão envolvido em musselina. - Ora - disse Duncan -, no primeiro capítulo é importante que o leitor não perceba que os estudantes estão de alguma forma interligados, pois esse é o ponto central do enredo. Passamos para os quatro grupos no segundo capítulo, quando se preparam para a viagem. O leitor descobre suas motivações para aquela viagem, e eu descrevo um pouco dos antecedentes de cada um dos personagens. - Que período de tempo envolve o romance? - perguntei ansiosamente, entre colheres de consommé. - Provavelmente três dias - respondeu Duncan. - O dia antes da viagem, o dia da viagem e o dia seguinte. Mas ainda não sei ao certo... No final, até pode acontecer tudo no mesmo dia. Christabel retirou a garrafa de vinho do balde de gelo e voltou a encher o copo antes que o garçom tivesse oportunidade de servir. - No terceiro capítulo - prosseguiu Duncan - encontramos os diversos grupos chegando à estação de Watterloo para tomar lugar a bordo de Lê Shuttle. O milionário grego e sua mulher 141 francesa serão conduzidos a seus lugares, na primeira classe, por um membro negro da tripulação, enquanto os outros vão para a segunda classe. Uma vez que estejam todos a bordo, será realizada na plataforma uma espécie de cerimônia para comemorar a inauguração do túnel. Uma grande banda, fogos de artifício, corte de fitas pela realeza etc. Isso deve dar para cobrir outro capítulo, pelo menos. Enquanto eu imaginava a cena e ia tomando minha sopa - o restaurante podia ser sofisticado, mas a comida era excelente -, o garçom dos vinhos encheu meu copo e depois o de Duncan. Geralmente não gosto muito de vinho branco, mas devo confessar que aquele era absolutamente excepcional. Duncan fez uma pausa para

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comer, e voltei minha atenção para Christabel, a quem era servida uma segunda porção de caviar, que parecia ainda maior do que a primeira. - O quinto capítulo - disse Duncan - começa com o trem saindo da estação. Nessa altura começa verdadeiramente a ação. A família americana está gostando muito da viagem. Os jovens noivos fazem amor na sala de repouso. O milionário tem mais uma discussão com a mulher, por causa da sua contínua extravagância, e os três estudantes encontram-se pela primeira vez no bar. Nesse momento já se começa a suspeitar de que não são estudantes comuns, e que já se conheciam antes de entrar no trem. - Duncan sorriu e continuou a comer sua salada. Eu franzi a testa. Christabel piscou-me um olho, como se me indicasse que compreendia perfeitamente aquilo por que eu estava passando. Senti-me culpado por tomar parte na sua conspiração e tive vontade de avisar a Duncan. - É realmente um enredo forte - aventurei-me a dizer, quando o garçonj dos vinhos enchia nossos copos pela terceira vez, e, tendo conseguido esvaziar a garrafa, olhou para Christabel. Ela acenou sutilmente com a cabeça. -Já começou as pesquisas? - perguntei. - Já. A pesquisa é a chave desse projeto, e já estou bastante adiantado - disse Duncan. - Escrevi para Sir Alastair Morton, 142 presidente do Eurotúnel, em papel timbrado da Newsweek, e seu escritório mandou-me uma caixa cheia de material. Já posso dizer o comprimento dos vagões, o número deles, o diâmetro das rodas, o motivo por que o trem pode andar mais depressa do lado francês do que do inglês, e até o motivo por que é preciso ter vagões de bitola diferente em ambos os extremos do Canal... O barulho da rolha saltando sobressaltou-me, e o garçom dos vinhos começou a servir-nos uma segunda garrafa. Deveria dizerlhe agora? - Durante o sexto capítulo, o enredo começa a desenrolar-se - disse Duncan, entusiasmando-se com seu tema, enquanto um dos garçons levava os pratos vazios e outro varria algumas migalhas de pão sobre a mesa com uma escovinha de prata. - O truque consiste em manter o leitor interessado nos quatro grupos ao mesmo tempo. Acenei afirmativamente com a cabeça. - Chegamos agora ao ponto da história em que o leitor descobre que os estudantes não são verdadeiramente estudantes, mas terroristas que pretendem apoderar-se do trem. Foram colocados diante de nós três pratos cobertos por cúpulas de prata. A um gesto do maitre, as três cúpulas foram levantadas simultaneamente pelos garçons. Seria indelicado de minha parte não confessar que a comida tinha um aspecto magnífico. Voltei-me para ver o que Christabel havia escolhido: trufas comfoie gras. Fizeram-me lembrar um quadro de Miro, antes que ela rapidamente estragasse a tela. - Que motivo você acha que os terroristas têm para assaltar o trem? - perguntou-me Duncan. Era aquele, sem dúvida, o momento de lhe dizer - mas deixei-o passar uma vez mais. Tentei recordar-me em que ponto da história estávamos. - Isso depende de você querer ou não que eles escapem sugeri. - O que seria muito difícil, uma vez que estão presos no meio de um túnel, com uma força policial à espera deles em qualquer das extremidades. - O garçom dos vinhos entregou a 143

Christabel a garrafa de clarete que ela havia escolhido. Depois de ter cheirado a rolha, ela indicou que o achava aceitável. - Não acho que eles devam estar interessados numa compensação financeira - disse Duncan. - Deviam ser do IRA, fundamentalistas islâmicos, separatistas bascos ou qualquer dos mais recentes grupos de terroristas que aparecem nos jornais. Bebi um gole de vinho. Parecia veludo. Só tinha provado uma bebida daquelas uma vez, em casa de um amigo que possuía uma cave de vinhos antigos comprada com dinheiro novo. O sabor ficara gravado na minha menfória. - No sétimo capítulo fiquei bloqueado - prosseguiu Duncan, muito interessado no seu tema. - Um dos terroristas deve, de qualquer forma, entrar em contato com o casal de recém-casados, ou pelo menos com a noiva. - Fez uma pausa. - Devia ter dito também, mais atrás, que, na descrição dos personagens no

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princípio do livro, se registra que um dos estudantes é solteiro, enquanto os outros dois, um homem e uma mulher, vivem juntos há algum tempo. - Começou a atacar seu bife. - O que me preocupa é a forma de pôr o estudante em contato com a noiva. Tem alguma idéia? - Não deve ser difícil - disse eu - com os vagões-restaurante, os bares, os outros vagões, um corredor, para não falar do membro negro da tripulação, o pessoal do trem e as salas de estar. - Sim, mas tem de parecer natural - disse Duncan, cuja voz revelava que estava mergulhado em profundos pensamentos. Senti uma pontada no coração ao ver que o prato vazio de Christabel estava sendo retirado, apesar de Duncan e eu mal termos começado a esvaziar os nossos. - O capítulo termina com o trem parando subitamente no meio do caminho, dentro do túnel - disse Duncan, com os olhos postos num ponto longínquo. - Mas como? E por quê? - perguntei. - É aí que está a questão. É um alarme falso. Absolutamente inocente. O filho mais novo da família americana, Ben, puxa o cordão de alarme quando está sentado no banheiro. O equipamento 144 sanitário é tão sofisticado, que ele julga que se trata da corrente da descarga. Eu estava pensando se aquilo seria plausível quando foi colocado diante de Christabel um peito de codorniz com batatas fondant, guarnecido com bacon defumado. Ela não perdeu tempo para atacar a ave. Duncan fez uma pausa para beber um gole de vinho. Agora era o momento de eu lhe dizer, mas, antes que tivesse oportunidade de falar, ele recomeçou. - Certo - disse ele. - Oitavo capítulo. O trem está parado no interior do túnel a várias milhas da entrada, mas não exatamente no meio. - Isso é importante? - perguntei com voz fraca. - Claro que é - disse Duncan. - Os franceses e os ingleses concordaram sobre o ponto exato no interior do túnel em que principia a jurisdição francesa e termina a inglesa. Como você vai descobrir, isso é importante para o desenvolvimento da história. O garçom começou a movimentar-se em volta da mesa, enchendo uma vez mais nossos copos com clarete. Pousei a mão sobre o meu - não porque o vinho não fosse puro néctar, mas simplesmente porque não queria dar a Christabel a oportunidade de pedir outra garrafa. Ela não fez qualquer esforço no sentido de exercer a mesma restrição, bebendo seu vinho em generosos goles, enquanto saboreava a codorniz. Duncan prosseguiu com sua história. - Portanto, a parada - disse Duncan - não passa de um desvio. Criança chorando, família pedindo desculpas, explicação dada pelo guarda pelo intercomunicador do trem, o que alivia a ansiedade que os passageiros poderiam ter sentido. Minutos depois, o trem recomeça sua marcha e, dessa vez, ultrapassa o ponto médio. Três garçons retiraram os pratos vazios. Christabel tocou os lábios com o guardanapo e dirigiu-me um grande sorriso. - Que acontece então? - perguntei, evitando o olhar dela. - Quando o trem parou, os terroristas recearam que houvesse 145 um grupo rival a bordo, com o mesmo propósito que eles. Mas logo que descobriram o que realmente tinha acontecido, aproveitaram-se da confusão causada pelo jovem Ben para se introduzir na cabine ao lado da do maquinista. - Deseja alguma sobremesa do carrinho, madame? - perguntou o maitre a Christabel. Ergui o olhar, irritado, ao ver que ela estava se servindo do que parecia ser uma grande colherada de tudo o que havia. - É absorvente, não é? - perguntou Duncan, tomando minha expressão por uma profunda preocupação pelas pessoas que seguiam no trem. - Mas ainda há mais. - Monsienr? - Nada, obrigado - disse eu ao maitre. - Talvez um café daqui a pouco. - Não, nada - disse Duncan, tentando não perder o fio de sua meada. - No início do nono capítulo, os terroristas já entraram na cabine do maquinista. Apontando-lhe uma arma, forçam o maquinista e seu ajudante a parar o trem pela segunda vez. Mas o que eles não sabem é que já estão em território francês. Os passageiros são informados pelo intercomunicador de que, dessa vez, não se trata de alarme falso, mas de que o trem foi tomado pelo bando pelo qual eu me decidir e vai pelos ares dentro de quinze minutos. São orientados a abandonar o trem, saindo para o túnel, de modo que fiquem o mais longe possível quando ocorrer a explosão. Naturalmente, alguns dos passageiros entram em pânico.

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Uns pulam para o túnel fracamente iluminado. Muitos procuram freneticamente os maridos, as mulheres, os filhos, seja quem for, enquanto outros começam a correr para o lado francês ou inglês, conforme sua nacionalidade. Distraí-me quando o maitre surgiu empurrando outro carrinho em direção à nossa mesa. Parou junto de Christabel e acendeu um pequeno fogo. Derramou brandy em uma frigideira baixa, de fundo de cobre, e começou a preparar um crêpe suzette. - Esse é o ponto da história, provavelmente no décimo capítulo, em que o pai da família americana decide permanecer no trem - disse Duncan, cada vez mais excitado. - Diz ao resto 146 da sua tribo que pule e corra para longe dali. Os únicos outros passageiros que ficam são o milionário, a mulher e o casal de noivos. Todos eles têm fortes motivos pessoais para ficar, que já foram determinados anteriormente. O maitre acendeu um fósforo e flambou o crêpe. Elevou-se da frigideira uma chama azul. Ele passou suapièce de résistance para um prato aquecido, com um único movimento, e colocou-o diante de Ghristabel. Eu temia que já tivesse passado o ponto em que podia ter contado a verdade a Duncan. - Certo, agora tenho três terroristas na cabine do maquinista. Mataram o ajudante, e há quatro passageiros ainda no trem, além do negro da tripulação... que poderá ser um agente do SÃS disfarçado, ainda não me decidi. - Café, madame? - perguntou o maitre quando Duncan parou por um momento. - Irlandês - disse Christabel. - Normal, por favor - disse eu. - Descafeinado, para mim - disse Duncan. - Licores ou charutos? Apenas Christabel reagiu. - Assim, no início do capítulo onze, os terroristas iniciam negociações com a polícia inglesa, que diz não poder negociar com eles porque o trem já não está sob sua jurisdição. Isso desorienta completamente os terroristas, porque nenhum deles fala francês, e, de qualquer forma, o problema deles é com o governo britânico. Um deles vai procurar no trem alguém que saiba falar francês e encontra a mulher do milionário. Enquanto isso, a polícia de ambos os lados do Canal faz parar todos os trens em ambos os sentidos. Portanto, nosso trem está sozinho parado num túnel... Normalmente há vinte trens correndo em ambos os sentidos, entre Londres e Paris, em qualquer situação. - Parou para beber um gole de café. -Ah, sim? - perguntei, conhecendo a resposta perfeitamente bem. 147 - É verdade! - disse Duncan. - Fiz uma investigação cuidadosa. Estavam servindo um cálice de vinho do porto vermelho-escuro a Christabel. Olhei para a etiqueta: Taylor's 55. Era uma coisa que eu jamais tivera o privilégio de saborear. Christabel indicou ao garçom que a garrafa devia ficar na mesa. O garçom acenou afirmativamente com a cabeça e Christabel encheu-me imediatamente um cálice, sem me perguntar se eu queria beber. Enquanto isso, o maítre cortava, para Duncan, a ponta de um charuto que ele não tinha pedido. * - No capítulo doze descobrimos o propósito dos terroristas - prosseguiu Duncan. - Ou seja, fazer o trem ir pelos ares com fins publicitários, para que a causa deles apareça nas primeiras páginas do mundo inteiro. Mas os passageiros que ficaram no vagão, chefiados pelo pai americano, planejam uma contraofensiva. O maítre acendeu o fósforo, e Duncan pegou automaticamente o charuto, colocando-o entre os lábios. Isso o fez calar-se. - O milionário que começou do nada poderia sentir que era um chefe nato - sugeri eu. Mas só por um momento. - Ele é grego. Se quero ganhar dinheiro com esse projeto, tenho de ter em vista o mercado americano. E não se esqueça dos direitos cinematográficos - disse Duncan, espetando o charuto. Não consegui encontrar erros na sua lógica. - Pode trazer a conta? - pediu Duncan ao maítre, quando ele passou pela nossa mesa. - com certeza - respondeu ele, sem sequer interromper a marcha. - Agora meu problema está no final... - começou Duncan, quando Christabel, subitamente, embora com insegurança, se pôs de pé. Voltou-se para mim e disse: - Acho que está na hora de ir embora. Tive muito prazer em conhecê-lo, embora tenha a impressão de que não 148 voltaremos a nos encontrar. Quero dizer que gostei muito do seu último romance. Uma idéia muito original. Mereceu ficar em primeiro lugar. Fiquei de pé, beijei sua mão e agradeci, sentindo-me mais culpado do que

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nunca. - Adeus, Duncan - disse ela, voltando-se para seu ex-amante, mas ele nem se deu ao trabalho de erguer o olhar. - Não se preocupe -acrescentou ela. - Quando você voltar, já não estarei no apartamento. Começou a caminhar com grande insegurança pelo restaurante, conseguindo alcançar a porta que dava para a rua. O maítre abriu a porta para ela e fez uma profunda reverência. - Não posso dizer que sinto pena de vê-la partir - disse Duncan, puxando fumaça do charuto. - Um corpo fantástico, ótima na cama, mas com absoluta falta de imaginação. O maítre reapareceu ao lado de Duncan, dessa vez para colocar à sua frente uma pequena pasta de couro negro. - Bem, a crítica teve realmente razão em relação a este lugar - comentei. Duncan concordou com um aceno de cabeça. O maítre fez uma reverência, mas não tão profunda como a anterior. - O meu problema, como estava tentando explicar antes de Christabel ir embora - prosseguiu Duncan -, é que elaborei o enredo, fiz as pesquisas, mas ainda não tenho um final. Você tem alguma idéia? -perguntou ele, quando uma mulher de meia-idade se levantou de uma mesa próxima e começou a caminhar decididamente na nossa direção. Duncan abriu a pasta de couro e olhou a conta, estupefato. A mulher parou junto da nossa mesa. - Queria dizer que gostei imensamente do seu novo livro disse ela em voz alta. Os outros clientes voltaram-se para ver o que estava acontecendo. - Obrigado - disse eu sucintamente, na esperança de impedir que ela me fizesse sentir ainda menos à vontade. Os olhos de Duncan estavam cravados na conta. 149 - E o final - disse ela. - Que inteligente! Eu nunca teria imaginado a forma com que o senhor fez que a família americana saísse viva do túnel...

O ENGRAXATE 150

TED BARKER ERA UM DAQUELES MEMBROS DO PARLAmento que nunca procuram grandes honras. Havia feito o que era descrito por seus colegas como "uma boa guerra" - tendo recebido a Cruz da Guerra e alcançado o posto de major. Depois de ter sido desmobilizado, em novembro de 1945, contentara-se em voltar para junto de sua mulher, Hazel, em sua casa de Sulffbk. O negócio de construção da família também tinha feito uma boa guerra, sob a diligente direção de seu irmão mais velho, Ken. Logo que regressou a casa, foi oferecido a Ted seu antigo lugar na administração, que ele aceitou com prazer. Mas, à medida que as semanas iam passando, o distinto guerreiro começou a sentir-se um pouco aborrecido e, depois, desencantado. Não havia trabalho para ele na fábrica que, de longe, se assemelhasse sequer ao serviço ativo. Nessa ocasião, foi abordado por Ethel Thompson, a representante dos operários e - muito mais importante para o desenvolvimento desta história - presidente do departamento de Wedmore da Associação dos Conservadores de North Suffolk. O deputado titular, Sir Dingle Lightfoot, conhecido pelo eleitorado como "Na Ponta dos Pés", tinha tornado bem claro que, uma vez terminada a guerra, teriam de procurar quem o substituísse. - Não queremos mais espertalhões de Londres que chegam aqui e nos digam como devemos dirigir o departamento declarou a senhora Thompson. - Precisamos de alguém que 153

conheça a região e compreenda os problemas da nossa gente. Ted - sugeriu ela - poderia ser a pessoa indicada. Ted confessou que tal idéia nunca lhe havia passado pela cabeça, mas prometeu à senhora Thompson que pensaria seriamente na sua proposta, pedindo-lhe apenas uma semana para avaliar. Falou do caso à mulher e, tendo recebido seu entusiástico apoio, no domingo seguinte, à tarde, foi visitar a senhora Thompson, que ficou encantada ao saber que

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Barker estava disposto a permitir que seu nome fosse indicado como candidato a deputado pelo departamento de North*Suffolk. A lista final incluía dois espertalhões de Londres - um dos quais veio, mais tarde, a pertencer ao Conselho de Ministros de Macmillan - e o candidato da terra, Ted Barker. Quando o presidente anunciou à imprensa local a decisão do comitê, disse que seria indelicado revelar o números de votos que cada candidato obtivera. Na realidade, Ted havia ultrapassado confortavelmente os votos somados dos dois outros candidatos. Seis meses depois, o primeiro-ministro convocou eleições gerais e, após uma animada campanha de três semanas, Ted foi reeleito para o lugar de membro do Parlamento por North Suffolk, com maioria de mais de sete mil votos. Em breve tornou-se respeitado e popular entre seus colegas de ambos os lados da Câmara, embora nunca pretendesse ser mais do que, em suas próprias palavras, "um político amador". À medida que os anos iam passando, a popularidade de Ted, junto a seu eleitorado, foi crescendo, e sua maioria aumentava em cada eleição geral. Ao fim de quatorze anos de diligentes serviços prestados ao partido, tanto no nível nacional como no local, o primeiro-ministro em exercício, Harold Macmillan, recomendou à rainha que Ted fosse feito cavaleiro. No final da década de 1960, Sir Ted (nunca foi conhecido como Sir Edward) sentiu que estava chegando a hora de o departamento começar a procurar outro candidato mais jovem e explicou claramente ao presidente local que não pretendia candidatarse às próximas eleições. Hazel e ele prepararam-se para uma tranqüila aposentadoria na sua amada East Anglia. 154 Pouco depois da eleição, Ted foi surpreendido por um telefonema do n° 10 de Downing Street: - O primeiro-ministro deseja receber Sir Ted às llhSO de amanhã. Ted não conseguia imaginar o que Edward Heath teria para lhe dizer. Embora, evidentemente, já tivesse estado diversas vezes no n° 10, quando era deputado, essas visitas tinham sido apenas por ocasião de coquetéis, recepções e um jantar ocasional oferecido a um chefe de Estado visitante. Confessou a Hazel que se sentia um pouco nervoso. Ted apresentou-se à porta número 10 às 11 h 17 do dia seguinte. O funcionário de serviço acompanhou-o pelo longo corredor do andar inferior e pediu-lhe que se sentasse numa pequena sala de espera, junto à Sala do Conselho. A essa altura, o nervosismo de Ted começava a transformar-se em apreensão. Sentia-se como um estudante infrator prestes a enfrentar seu reitor. Ao fim de alguns minutos surgiu uma secretária. - Bom-dia, Sir Ted, o primeiro-ministro vai recebê-lo. Acompanhou Ted à Sala do Conselho, onde o senhor Heath se levantou para cumprimentá-lo. - Foi muito gentil de sua parte vir hoje, com tão pouca antecedência de aviso, Ted. - Ted reprimiu um sorriso, pois estava certo de que o primeiro-ministro sabia que só uma doença muito grave ou uma tempestade localizada o impediriam de comparecer. - Tenho esperanças de que consiga ajudar-me a resolver uma questão delicada, Ted - prosseguiu o primeiroministro, que não era pessoa que gostasse de perder tempo com preâmbulos. - vou nomear o novo governador de St. George, e não consigo encontrar uma pessoa mais adequada para o lugar do que o senhor. Ted recordou o dia em que a senhora Thompson lhe pedira que pensasse na hipótese de se candidatar ao Parlamento. Mas, naquele momento, não precisava de uma semana para pensar em sua resposta - apesar de demorar para aceitar a idéia de que, apesar de já ter ouvido falar em St. George, não conseguia 155 situar o local no mapa. Mal conseguiu recuperar o fôlego, disse simplesmente: - Obrigado, senhor primeiro-ministro. Será uma honra. Durante as semanas que se seguiram, Ted fez diversas visitas ao Gabinete de Assuntos Estrangeiros e Coloniais para receber detalhes acerca de diversos aspectos de sua nomeação. Depois disso leu atentamente todos os livros, panfletos e documentos oficiais que os mandarins lhe forneceram. Após algumas horas de estudo, o futuro governador havia descoberto que St. George era um minúsculo grupo de ilhas no meio do Atlântico Norte, que fora colonizado pelos ingleses em 1643 e, depois disso, tinha uma longa história de domínio imperial, tendo os habitantes das ilhas recusado todas as

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ofertas de independência. Formavam uma das colônias soberanas de Sua Majestade e assim desejavam permanecer. Mesmo antes de partir para sua aventura, Ted já se habituara a que lhe chamassem "Excelência". Mas, depois de ter sido equipado por Alan Bennet, de Saville Roe, com dois uniformes completos, Ted receava parecer - como era a expressão moderna? O. T. T* No inverno deveria usar um conjunto de camurça azul-escura com uma gola bordada a ouro e galões dourados nos ombros, ao passo que no verão deveria envergar um uniforme de algodão branco com uma gola bordada a ouro e galões dourados nos ombros. Hazel rira muito quando o vira com esses uniformes. Ted não riu quando os alfaiates lhe mandaram a conta, especialmente depois de saber que seria improvável que usasse os uniformes mais de duas vezes por ano. - Imagine o sucesso que você vai fazer num baile de máscaras, depois de se aposentar - foi o único comentário de Hazel. O recém-nomeado governador e comandante-chefe de St. George, acompanhado de sua esposa, partiu de avião para as ilhas, a fim de ocupar seu posto, no dia 12 de janeiro de 1971. Foi acolhido pelo primeiro-ministro das ilhas como cidadão número um da colônia e pelo chefe do Supremo Tribunal como re- Over the top - excessivo. (N. da T.) 156 presentante legal da rainha. Depois que o novo governador recebeu continências de seis policiais de licença, em posição mais ou menos de sentido, a banda da cidade executou sua interpretação do hino nacional. Foi içada a Union Jack* no telhado do terminal do aeroporto e irrompeu um fraco ruído de aplausos dos vinte ou trinta dignitários locais reunidos. Sir Ted e Lady Barker foram então conduzidos à residência oficial, num Rover espaçoso que, dando sinais de sua idade, tinha servido dois governadores anteriores. Quando chegaram à Casa do Governo, o motorista parou o carro e saiu para abrir os portões. Prosseguindo a viagem, Ted e Hazel viram pela primeira vez sua nova casa. A mansão colonial era magnífica sob todos os aspectos. Obviamente construída no auge do Império Britânico, era amplamente desproporcional à importância da ilha ou à atual posição da Inglaterra no mundo real. Mas o tamanho, como o governador e a mulher em breve descobririam, não significava necessariamente eficiência ou conforto. O ar-condicionado não funcionava, a canalização era pouco digna de confiança, a senhora Rogers, a empregada diarista, estava regularmente doente, e a única coisa que o antecessor de Ted havia deixado fora um labrador preto, já idoso. Pior ainda, o Ministério dos Negócios Estrangeiros não tinha verba para tratar de qualquer desses problemas. Sempre que Ted os mencionava nos seus despachos, apenas recebia sugestões para cortes orçamentários. Ao fim de algumas semanas, Ted e Hazel começaram a considerar St. George um grande eleitorado parlamentar, dividido em diversas ilhas, sendo as duas maiores: Suffolk e a ilha Edward. Isso animou Ted, que chegou mesmo a pensar se teria sido essa coincidência que dera ao primeiro-ministro a idéia de colocá-lo ali. Os deveres do governador dificilmente poderiam ser descritos como onerosos: Hazel e ele passavam a maior parte do tempo * Pavilhão do Reino Unido. (N. da T.) 157

visitando hospitais e fazendo discursos em cerimônias de entregas de prêmios nas escolas e julgando exposições de flores. O ponto mais alto do ano era, sem dúvida, o aniversário oficial da rainha, em junho, ocasião em que o governador oferecia aos dignitários locais uma festa nos jardins da Casa do Governo, e Suffolk e a ilha Edward se defrontavam num jogo de críquete - uma oportunidade para a maior parte dos cidadãos da colônia passar dois dias em estado de total embriaguez. Ted e Hazel aceitaram a política real local e instalaram-se para passar cinco anos de descontraída diplomacia entre gente encantadora, num clima magnífico, sem ver no horizonte nuvens que pudessem perturbar sua pacífica existência. Até que aconteceu o telefonema. Foi numa quinta-feira pela manhã, e o governador encontrava-se no seu escritório lendo o Times de segunda-feira. Estava deixando a leitura de um longo artigo

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sobre a conferência realizada em Washington para depois das palavras cruzadas, e ia precisamente preencher os espaços da linha doze vertical - um rebanho tresmalhado provoca esta diversão (3, 6) - quando seu secretário particular, Charles Roberts, entrou correndo no escritório, sem bater à porta. Ted percebeu que devia tratar-se de alguma coisa importante, pois Charles nunca corria para nada, e nunca entrara no escritório sem primeiro bater delicadamente à porta. - É Mountbatten ao telefone! - exclamou Charles. Não se teria mostrado mais ansioso se viesse informar que os alemães iam desembarcar na costa norte da ilha. O governador ergueu uma sobrancelha. - O almirante da Armada, Conde Mountbatten da Birmânia - disse Charles, como se Ted não tivesse compreendido. - Então me passe a ligação - disse Ted calmamente, dobrando seu exemplar do Times e colocando-o em cima da escrivaninha. Tinha falado três vezes com Mountbatten durante os últimos vinte anos, mas duvidava de que o grande homem se recordasse desses encontros. Na verdade, na terceira vez, Ted tinha sido obrigado a abandonar a festa que o almirante oferecera, porque não estava 158 se sentindo muito bem. Não podia imaginar sobre o que poderia Mountbatten querer lhe falar nem tinha tempo para pensar no assunto, porque o telefone em cima da escrivaninha já estava tocando. Quando Ted pegou o fone, ainda estava pensando se deveria dirigir-se a Mountbatten como "My Lord", visto que era conde, como "comandante-chefe", porque era o ex-chefe do EstadoMaior da Defesa, ou como "almirante", já que almirante da Armada é nomeação vitalícia. Decidiu-se por: - Bom-dia, senhor. - Bom-dia, Excelência. Espero que se encontre bem. - Bem, muito obrigado - respondeu Ted. - Porque, se bem me recordo, da última vez que nos vimos, estava sofrendo de um vírus intestinal. - Exatamente, senhor - disse o surpreso governador. Estava razoavelmente convencido de que o propósito do telefonema de Mountbatten não era saber de sua saúde, ao fim de todos aqueles anos. - O governador deve estar curioso para saber por que estou telefonando. - Estou, sim. - Neste momento encontro-me em Washington participando de uma reunião de cúpula, e, inicialmente, planejava regressar a Londres amanhã de manhã. - Compreendo - disse Ted, embora não entendesse aonde ele queria chegar. - Mas pensei em fazer um ligeiro desvio e ir visitá-lo. Gosto de visitar colônias sempre que tenho essa oporturidade. Assim, tenho a possibilidade de informar a Sua Majestade do que está se passando. Espero que essa visita não vá causar problemas. - De forma alguma, senhor - disse Ted. -Teremos imenso prazer em recebê-lo. - Ótimo - disse Mountbatten. - Então, eu ficaria agradecido se avisasse às autoridades do aeroporto para que esperem a chegada do meu avião por volta das quatro horas da tarde de amanhã. Gostaria de pernoitar aí, mas, para cumprir meu 159

programa, vou precisar deixá-lo relativamente cedo, na manhã seguinte. - Evidentemente. Nada mais fácil. Minha mulher e eu estaremos no aeroporto para recebê-lo às quatro horas da tarde de amanhã. - Agradeço muito, governador. A propósito, prefiro que tudo seja o mais informal possível. Por favor, não se incomode por minha causa. Mal desligou o telefone, foi a vez de Ted sair correndo pela primeira vez em várids meses. Encontrou Charles, que vinha ao seu encontro pelo longo corredor. Estivera, obviamente, escutando a conversa pela extensão. - Encontre minha mulher e vá buscar um bloco de anotações... e depois venham os dois falar comigo imediatamente. Imediatamente - repetiu Ted, regressando ao seu gabinete. Hazel chegou poucos minutos depois, com um ramo de dálias na mão, seguida pelo secretário particular, quase sem fôlego. - Qual é a pressa, Ted? Por que esse pânico? - Mountbatten vem aí. - Quando? - perguntou Hazel tranqüilamente. - Amanhã à tarde. Às quatro horas. - É realmente um bom motivo para entrar em pânico confessou Hazel. Colocou as flores numa jarra sobre o peitoril da janela e sentou-se em frente do marido, do outro lado da escrivaninha.

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- Talvez não seja a melhor ocasião para lhe dizer, mas a senhora Rogers ficou doente. - Mulher de sorte essa senhora Rogers - disse Ted. - Certo, vamos ter que nos arranjar. - O que quer dizer com "arranjar"? - perguntou Hazel. - Bem, não esqueçamos que Mountbatten é membro da família real, ex-chefe do Estado-Maior da Defesa e almirante da Armada. O último posto colonial que ele teve foi o de vice-rei da índia, com três regimentos sob seu comando e mais de mil funcionários às ordens. Por isso, não imagino o que ele espera encontrar quando chegar aqui. 160 - Então vamos começar a fazer uma lista das coisas que terão de ser feitas - disse Hazel decididamente. Charles tirou uma caneta do bolso interno do casaco, levantou a capa de seu bloco e ficou à espera, para anotar as instruções de seu chefe. - Se ele vai chegar de avião, a primeira coisa que espera ver é uma passadeira vermelha - disse Hazel. - Mas nós não temos uma passadeira vermelha. - Temos, sim. Há uma entre a sala de jantar e a sala de estar. Vamos ter que usar essa, esperando que esteja de novo no lugar quando ele visitar essa parte da casa. Charles vai ter de enrolar a passadeira e levá-la ao aeroporto... - fez uma pausa - e depois trazê-la de volta. Charles franziu a testa, mas começou a escrever rapidamente. - Charles pode encarregar-se para que ela esteja limpa amanhã - interrompeu Ted. - Nem tinha percebido que ela era vermelha. Bem, e quanto à guarda de honra? - Não temos guarda de honra - disse Hazel. - Não sei se você se lembra que, quando chegamos à ilha, fomos recebidos pelo primeiro-ministro, o juiz do Supremo Tribunal e seis policiais de folga. - Certo - disse Ted. - Então temos de contar com o Exército Territorial. - Refere-se ao coronel Hodges e ao seu bando de guerreiros indisciplinados? Nem sequer têm fardas iguais. E quanto aos rifles... - Hodges vai ter de apresentá-los amanhã mais ou menos em forma às quatro horas da tarde. Deixe isso comigo - disse Ted, tomando nota no seu bloco. - Eu telefono para ele esta manhã. E quanto à banda? - Bem senhor, há a banda municipal - disse Charles. - E evidentemente, a banda da polícia. - Numa ocasião dessas é preciso juntar as duas - disse Hazel - para nenhuma delas ficar ofendida. - Mas eles só conhecem três músicas - disse Ted. - Basta que conheçam uma - disse Hazel. - O hino nacionaU 161 - Certo - disse Ted. - Como na certa haverá problemas com as músicas, o que não convém discutir, deixo isso a seu cargo, Hazel. O nosso problema seguinte consiste em transportá-lo do aeroporto para a Casa do Governo. - Não pode ser no velho Rover - disse Hazel. - Enguiçou três vezes no mês passado e cheira a canil. - Henry Bandall tem um Rolls-Royce - disse Ted. -vou ter de requisitá-lo. - Desde que ninguém diga a Mountbatten que ele pertence a um vendedor local nem para que foi usado na manhã antes da chegada dele... - Mick Flaherty também tem um velho Rolls - interrompeu Charles. - Um Silver Shadow, se não me falha a memória. - Mas ele detesta os ingleses - disse Hazel. - De acordo - disse Ted -, mas vai querer jantar na Casa do Governo, apesar de saber que o convidado de honra é membro da família real. -Jantar? -disse Hazel, cuja voz subira de tom, horrorizada. - É evidente que temos de oferecer um jantar em honra dele - disse Ted. - E, o que é pior, todo mundo que pensa que é alguém espera ser convidado. Quantas pessoas cabem na sala de jantar? - Hazel e ele voltaram-se para o secretário particular. - Sessenta, em caso de emergência - respondeu Charles, erguendo o olhar de suas notas. - Estamos numa emergência - disse Ted. - Estamos mesmo - disse Hazel. - Não temos sessenta pratos, e muito menos sessenta xícaras de café, sessenta colheres pequenas, sessenta... -Ainda temos aquele serviço Royal Worcester, oferecido pelo falecido rei depois da sua visita em 1947 - disse Ted. - Quantas peças ainda estão aproveitáveis? - Só haviam quatorze conjuntos, da última vez que contei disse Hazel. - Certo, isso resolve o problema de quantas pessoas vão sentar-se à mesa principal. - E quanto ao menu'? - perguntou Charles. 162 - Mais importante: quem vai prepará-lo? - acrescentou Ted. - Vamos ter de pedir a Dotty Cuthbert para nos ceder a senhora Travis por esta noite - disse Hazel. - Não há melhor cozinheira em toda a ilha. - E também vamos precisar de um mordomo, para não falar do resto do pessoal - acrescentou Ted. A essa altura,

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Charles já preenchia a terceira folha de bloco. - É melhor você falar com Lady Cuthbert, minha querida disse Ted. - Eu vou arranjar as coisas com Mick Flaherty. - Nosso problema seguinte são as bebidas - disse Hazel. Não se esqueça de que o último governador esvaziou a adega poucos dias antes de ir embora. - E o Ministério do Exterior recusa-se a reabastecê-la recordou-lhe Ted. -Jonathan Fletcher tem a melhor adega da ilha... - E, graças a Deus, não espera ficar na mesa de honra - disse Hazel. - Se estamos limitados a quatorze lugares, a mesa de honra já me parece muito apertada - disse Ted. - Dotty Cuthbert, os Bendalls, os Flahertys, os Hodges disse Hazel, anotando os nomes. - Para não falar do primeiroministro, do juiz, do presidente da Câmara, do chefe de polícia, e as respectivas mulheres... Esperemos que alguns deles estejam indispostos ou no exterior. - Começava a ceder ao desespero. - Onde é que ele vai dormir? - perguntou Charles, inocentemente. - Meu Deus, não fazia idéia de que ele dormia! - exclamou Ted. - Vai ter de ficar no nosso quarto. E o único com uma cama que não tem um buraco no meio - disse Hazel. - Nós vamos para o quarto Nelson por essa noite, e agüentaremos aquelas horrorosas camas cheias de cupins com seus velhos colchões de crina. - De acordo - disse Hazel. - Esta tarde vou tratar de tirar todas as nossas coisas do quarto Rainha Vitória. - Charles - disse o governador -, telefone ao Ministério 163 dos Negócios Estrangeiros, por favor, e descubra quais são os gostos de Mountbatten. Comidas, bebidas, hábitos excêntricos... tudo o que conseguir descobrir. com certeza há um arquivo sobre ele. Não quero que aquele "cavalheiro" me pegue desprevenido. O secretário particular virou mais uma folha de bloco e conti- nuou a escrever. Durante a hora seguinte, os três debateram todos os problemas que poderiam surgir durante a visita, e, depois de comer sanduíches, que eles próprios prepararam, partiram em diferentes direções para passar a tarde fazendo pedidos por toda a ilha. Foi idéia de Charles que o governador aparecesse na emissora de televisão local, no programa do princípio da noite, para informar aos cidadãos de que um membro da família real viria visitar a ilha no dia seguinte. Sir Ted terminou sua locução, dizendo que esperava tanta gente quanto fosse possível no dia seguinte no aeroporto, para aclamar "o grande homem de guerra", quando seu avião pousasse às quatro horas da tarde. Enquanto Hazel passava a tarde limpando as salas em que o grande homem de guerra pudesse concebivelmente entrar, Charles, com a ajuda de uma lanterna, arranjava os canteiros que ladeavam o caminho de acesso, e Ted supervisionava a chegada à Casa do Governo de pratos, talheres, comida e vinhos, provenientes de diferentes pontos da ilha. -Algo foi esquecido? - disse Ted, quando se esticou na cama às duas horas da madrugada. - Só Deus sabe! - perguntou Hazel, fatigada, antes de apagar a luz. - Mas, seja o que for, esperemos que Mountbatten não perceba. O governador, envergando seu uniforme de verão, com galão dourado ao longo das calças brancas, condecorações e medalhas de campanha ao peito, e um capacete Wolsey com penas de cisne brancas e vermelhas na cabeça, saiu para o corredor, ao encontro de sua mulher. Hazel trajava o vestido de verão verde que 164 comprara para a festa do governador, dois anos antes, e estava verificando as flores do vestíbulo. - Tarde demais para isso - disse Ted, enquanto ela ajeitava um ramo que havia caído um centímetro. - E hora de partir para o aeroporto. Desceram os degraus da Casa do Governo e depararam com dois Rolls-Royces um preto e outro branco, e o velho Rover, um atrás do outro. Charles vinha logo atrás com a passadeira vermelha, que colocou na mala do Rover, enquanto seu patrão sentava no banco traseiro do primeiro Rolls-Royce. A primeira coisa que o governador precisou conhecer foi o nome de seu motorista. - Bill Simmons - informaram-no. - Não pode se esquecer, Bill, de que tem de parecer que esse sempre foi o seu trabalho. - Certo, governador. - Não - disse Ted, com firmeza. - Diante do almirante deverá dirigir-se a mim como "Excelência" e a Lorde Mountbatten como "My Lord". Se tiver dúvidas, diga-me. - Certo, governador, Excelência. Bilhpôs o carro em movimento e dirigiu-se aos portões numa

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velocidade que, por certo, considerava majestosa, antes de virar à direita e tomar o caminho para o aeroporto. Quando chegaram ao terminal, quinze minutos depois, um policial conduziu o pequeno cortejo para a pista, onde as bandas unidas tocavam um excerto de West Side Story -pelo menos foi o que, caritativamente, Ted pensou. Quando saiu do carro, Ted deparou com três fileiras de soldados do Exército Territorial, à vontade, num total de sessenta e um homens, com idades compreendidas entre os dezessete e os setenta anos. Ted teve de confessar que, embora não fossem a Guarda de Granadeiros, também não eram um bloco carnavalesco. Tinham duas vantagens: um verdadeiro coronel, com uniforme completo, e um genuíno primeiro-sargento, de voz apropriada. Charles já tinha começado a desenrolar a passadeira vermelha 165

quando o governador voltou sua atenção para as barreiras colocadas às pressas. Teve o prazer de ver uma multidão superior a qualquer outra que vira na ilha, nem sequer no jogo anual de futebol entre Suffolk e a ilha Edward. Muitos dos habitantes agitavam bandeiras inglesas e alguns erguiam fotografias da rainha. Ted sorriu e consultou o relógio. O avião deveria chegar dentro de dezessete minutos. O primeiro-ministro, o presidente da Câmara local, o juiz Supremo, o comissário da Polícia e suas esposas alinhavam-se ao fundo da passadeira vermelha. O sol brilhava num céu sem nuvens. Voltando-se, num giro lento, Ted pôde constatar que todos tinham feito um esforço especial. Subitamente, ouviu-se o som de motores e a multidão começou a aclamar. Ted ergueu o olhar, protegendo os olhos com a mão, e viu um Andover da esquadrilha da rainha descer em direção ao aeroporto. Aterrissou no extremo da pista, três minutos antes da hora, e dirigiu-se para a passadeira vermelha no momento em que soavam cinco badaladas no relógio da torre de controle. A porta do avião abriu-se e lá estava o almirante da Armada, o conde Mountbatten, KG, PC, GCB, OM, GCSI, GCIE, GCVO, DSO, FRS, DCL (Hon.), LLD (Hon.), envergando o uniforme completo de almirante da Armada (farda de verão). - Se isso é o que ele chama de "relativamente informal", suponho que devemos ficar gratos por não ter proposto fazer uma visita oficial - murmurou Hazel, enquanto ela e Ted avançavam para a escada que havia sido rapidamente colocada ao lado do avião. Enquanto Mountbatten descia lentamente a escada, a multidão começou a aclamá-lo com mais força. Quando pisou a passadeira vermelha, o governador deu um passo à frente, tirou seu chapéu de plumas e fez uma reverência. O almirante fez-lhe continência e nesse momento as bandas conjuntas do município e da polícia atacaram o hino nacional. A multidão cantou "Deus salve a Rainha" com tanto entusiasmo, que as notas desafinadas foram disfarçadas pela exuberância. Quando o hino terminou, o governador disse: 166 - Bem-vindo a St. George, senhor. - Obrigado, governador - respondeu Mountbatten. - Gostaria de apresentar-lhe minha mulher, Hazel. - A mulher do governador deu um passo à frente, fez uma reverência completa e apertou a mão do almirante. - Gostei muito de voltar a vê-la, Lady Barker. É realmente um grande prazer. O governador conduziu seu convidado até o final da passadeira vermelha e apresentou-o ao primeiro-ministro e à sua mulher, Sheila, ao presidente da Câmara local e à sua mulher, Caroline, ao juiz Supremo e à sua mulher, Janet, e ao comissário da Polícia e à sua última mulher, cujo nome não conseguiu recordar. - Talvez deseje passar em revista a guarda de honra antes de partirmos para a Casa do Governo - sugeriu Ted, encaminhando Mountbatten na direção do coronel Hodges e dos seus homens. - com o maior prazer - disse o almirante, acenando para a multidão, enquanto ambos avançavam pela pista em direção à guarda, que os esperava. Quando ainda estavam a uns vinte metros de distância, o coronel pôs-se em sentido, deu três passos à frente, fez continência e disse rigidamente: - Guarda de honra pronta para a inspeção. Mountbatten

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deteve-se e correspondeu à continência com uma saudação naval, que foi sinal para o primeiro-sargento, que estava em sentido seis passos atrás do coronel, berrar as ordens: - Oficial de comando em parada! Saudação geral, apresentar armas! A fila da frente, que empunhava todas as armas da unidade, apresentou armas, enquanto a segunda e a terceira ficavam rigidamente em sentido. Mountbatten marchou, como lhe competia, entre as fileiras, com ar tão grave como se estivesse passando em revista uma brigada da Guarda Pessoal. Depois de ter passado pelo último soldado da fileira de trás, o coronel pôs-se em sentido e voltou a fazer continência. Mountbatten correspondeu à saudação e disse: 167

- Muito obrigado, coronel. Uma tropa de primeira classe. bom trabalho. O governador conduziu então Mountbatten ao Rolls-Royce branco, junto do qual se encontrava Bill, numa posição que ele imaginava ser de sentido, segurando, ao mesmo tempo, a porta aberta. Mountbatten entrou, enquanto o governador se dirigia ao outro lado, abria ele próprio a porta, e se juntava a seu convidado no banco de trás. Hazel e o ajudante-de-campo do almirante tomaram seus lugares no Rolls-Royce preto, enquanto Charles e o secretário do almirante tiveram de acomodar-se no Rover. O governador só esperava que Mountbatten não tivesse visto dois membros do pessoal do aeroporto enrolando a passadeira vermelha e colocando-a na mala do Rover. Hazel esperava que houvesse lençóis suficientes para a cama do Quarto Verde, senão o ajudante-de-campo estranharia seus hábitos de dormir. As duas motocicletas da polícia da ilha, com seus motociclistas de uniforme branco, precederam os carros, em direção à saída. A multidão acenou e aplaudiu entusiasticamente quando a comitiva iniciou sua curta viagem até a Casa do Governo. A aparição de Ted na televisão, na véspera, tinha tido tal êxito, que a estrada de dez milhas estava cheia de gente, desejando as boas-vindas ao visitante. Quando se aproximaram dos portões abertos, dois policiais puseram-se em sentido e fizeram continência à passagem do primeiro carro. À distância, Ted pôde ver um mordomo, dois ajudantes de mordomo e diversas criadas, todos muito bem-vestidos, de pé, nas escadas, à espera de sua chegada. - Caramba! - quase disse em voz alta, quando o carro parou no fundo das escadas. - Não sei o nome do mordomo. A porta do carro foi habilmente aberta por um dos ajudantes do porteiro, enquanto o segundo supervisionava o descarregamento da bagagem da mala. O mordomo deu um passo à frente, quando Mountbatten saiu do carro. - Carruthers, mlord - disse, com uma reverência. - Bemvindo à residência. Se tiver a bondade de me seguir, eu o conduzirei a seus aposentos. - O almirante, acompanhado pelo governador 168 e Lady Barker, subiu os degraus da Casa do Governo, seguindo Carruthers pela escadaria principal. - Magníficas, essas antigas residências governamentais elogiou Mountbatten, quando chegaram ao topo das escadas. Carruthers abriu a porta do quarto Rainha Vitória e afastou-se, como se tivesse feito aquilo milhares de vezes. - Que encanto - disse o almirante, entrando na suíte privada do governador. Dirigiu-se à janela e olhou para o relvado recém-aparado. - Que agradável! Faz-me lembrar Broadlands, a minha casa no Hampshire. Lady Barker sorriu com o elogio, mas não conseguiu descontrair-se. - Deseja alguma coisa, milorde? - perguntou Carruthers, quando o ajudante do mordomo começou a supervisionar a abertura das malas. Hazel reteve a respiração. - Não, penso que não - disse Mountbatten. - Parece-me tudo perfeito. - Talvez deseje tomar chá com Hazel e comigo na sala, quando estiver pronto, senhor - sugeriu Ted. - É muito amável de sua parte - disse o almirante. - Desço dentro de trinta minutos, se me permitem. Ted e a mulher saíram do quarto, fechando cuidadosamente a porta. - Acho que ele suspeita de qualquer coisa - murmurou Hazel, enquanto desciam as escada. - Talvez você tenha razão - disse Ted, pousando o chapéu de plumas na mesa do saguão. - Mas é mais um motivo para verificarmos

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se nos esquecemos de alguma coisa. vou começar pela sala de jantar. É melhor você ver como vai a senhora Travis na cozinha. Quando Hazel entrou na cozinha, deparou com a senhora Travis preparando legumes e uma das criadas descascando um monte de batatas. Agradeceu à senhora Travis por ter vindo, pois a avisara com tão pouca antecedência, e confessou que nunca vira a cozinha tão cheia de alimentos exóticos, nem todas as 169 superfícies tão imaculadamente limpas; até o chão estava impecável. Compreendendo que sua presença era supérflua, Hazel foi juntar-se ao marido na sala de jantar, onde o viu admirando a perícia do segundo ajudante de mordomo, que estava pondo a mesa para o jantar, enquanto uma criada dobrava guardanapos em forma de cisnes. - Até aqui, tudo bem - disse Hazel. Saíram da sala de jantar e entraram na sala de estar, onde Ted se pôs a andar de um lado para o outro, tentando lembrar-se de qualquer coisa que pudesse ter esquecido, enquanto esperavam que o grande homem descesse para tomar chá com eles. Alguns minutos depois, Mountbatten chegou. Já não envergava o uniforme de almirante, tendo vestido um terno cinzento-escuro de dois bolsos. - Diabo! - lembrou Ted, percebendo imediatamente o que esquecera de fazer. Hazel levantou-se para saudar seu convidado e conduziu-o para um grande e confortável sofá. - Devo dizer, Lady Barker, que seu mordomo é magnífico disse Mountbatten. - Até conhecia a marca de uísque que eu prefiro. Há quanto tempo está a seu serviço? - Há pouco tempo - confessou Hazel. - bom, se ele por acaso quiser um trabalho na Inglaterra, não deixe de me avisar, embora deva dizer que seria tolice de sua parte deixá-lo ir - acrescentou, quando entrou uma criada com um bonito serviço de chá Wedgewood, que Hazel nunca vira antes. - Earl Grey, se bem me recordo - disse Hazel. - Que excelente memória a sua, Lady Barker - disse o almirante, quando a criada começou a servir o chá. "Dou graças a Deus pelas informações do Ministério dos Negócios Estrangeiros", pensou Hazel, enquanto aceitava o cumprimento com um sorriso. - Que tal foi a conferência? - perguntou Ted, pondo no seu chá um cubo de açúcar - a única coisa que lhe parecia ser deles. - Para os ingleses, muito bem - disse Mountbatten. - Mas 170 teria sido melhor se os franceses não tivessem recorrido aos truques habituais. Giscard parece considerar-se o resultado do cruzamento de Carlos Magno com Joana d'Arc. - Os anfitriões riram delicadamente. - Não, o verdadeiro problema que enfrentamos neste momento, Ted, é simplesmente que... Quando Mountbatten acabou de expor os resultados da conferência, transmitindo suas opiniões concretas acerca de James Callaghan e Ted Heath, e também falando do problema de encontrar uma esposa para o príncipe Charles e dissertando sobre as repercussões a longo prazo de Watergate, já era quase hora de se vestir. - Devemos nos vestir para jantar? - Sim, senhor... se estiver de acordo. - Condecorações? - perguntou Mountbatten, em tom esperançoso. - Achei que seria apropriado, senhor - respondeu Ted, recordando-se do conselho do Ministério dos Negócios Estrangeiros acerca do apreço do almirante por envergar a farda de gala, sempre que tinha oportunidade. Mountbatten sorriu quando Carruthers apareceu silenciosamente à porta. Ted ergueu uma sobrancelha. - Já preparei o traje de gala, m'lord. Tomei a liberdade de passar as calças a ferro. A criada de quarto está preparando seu banho. Mountbatten sorriu. - Obrigado - diss. erguendo-se do sofá. - Um magnífico lanche - acrescentou, voltando-se para sua anfitriã. - E que pessoal espantoso, Hazel. Não sei como conseguiu arranjar. - Muito obrigada - disse Hazel, esforçando-se para não corar. -A que horas quer que desça para o jantar, Ted? -perguntou Mountbatten. - Os primeiros convidados devem aparecer para os aperitivos por volta das sete e meia. Esperamos servir o jantar às oito, se achar conveniente. 171 - Não poderia ser melhor - declarou Mountbatten. Quantas pessoas espera? - Cerca de sessenta. Há uma lista de convidados na sua mesade-cabeceira. Talvez Hazel e eu pudéssemos ir buscá-lo às dez para as oito. - Tem tudo sob controle, Ted - disse Mountbatten com ar de aprovação. - Estarei pronto quando aparecerem - acrescentou, seguindo Carruthers até o quarto. Logo que a porta se fechou atrás dele, Hazel disse à criada: -

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Molly, pode fazer o favor de tirar esta mesa? - Hesitou, por um momento. - É Molly, não é? - Sim, minha senhora - disse a moça. - Eu acho que ele sabe - disse Ted, com ar um pouco ansioso. - Talvez, mas não temos tempo para nos preocupar com isso - disse Hazel, já a caminho de uma nova inspeção à cozinha. O monte de batatas reduzira-se a uma colina de batatas descascadas. A senhora Travis, que preparava os molhos, pedia mais pimenta e algumas especiarias que tinham de ser compradas na cidade. Mais uma vez consciente de que não fazia falta na cozinha, Hazel dirigiu-se à sala de jantar, onde encontrou Ted. A mesa de honra já estava totalmente posta com o serviço de jantar do rei, três séries de copos de vinho, guardanapos de linho com brasão e um magnífico centro de mesa que representava um faisão de prata e que dava maior brilho à mesa. - Quem nos emprestou aquilo? - perguntou ela. - Não tenho idéia - respondeu Ted. - Mas uma coisa é certa... de manhã já terá voado para casa. - Se as luzes ficarem suficientemente baixas - murmurou Hazel -, talvez ele não note que as outras mesas têm baixelas e talheres diferentes. - Meu Deus, olhe as horas! - disse Ted. Saíram da sala e subiram rapidamente as escadas. Ted quase entrou no quarto de Mountbatten, mas lembrou-se a tempo. Ted gostava muito de seu uniforme de camurça azul-escuro com gola e punhos escarlates. Estava admirando o conjunto no espelho quando Hazel entrou no quarto com um conjunto Hardy 172 Armies cor-de-rosa, que tinha inicialmente pensado ser um desperdício de dinheiro, porque nunca esperava ter de usá-lo. - Os homens são tão vaidosos - observou, vendo que o marido continuava a observar-se no espelho. -Você sabe perfeitamente que só deveria usar isso no inverno. - Sei disso perfeitamente - disse Ted, com impaciência -, mas é o único uniforme diferente que tenho. De qualquer forma, tenho certeza de que seremos eclipsados por Mountbatten. Sacudiu um fio das calças que tinha acabado de passar a ferro. O governador e a mulher saíram do Quarto Nelson e desceram a escadaria precisamente às 19:20, deparando com mais um ajudante de mordomo junto da porta de entrada e mais duas criadas diante dele, com bandejas de prata carregadas de taças de champanhe. Hazel apresentou-se aos três e foi compor de novo as flores do vestíbulo. Batiam as 19h30 no grande relógio do saguão quando chegou o primeiro convidado. - Henry - disse o governador. - Que prazer em vê-lo. Muito obrigado por nos deixar usar o Rolls. E o Bill, a propósito acrescentou, num murmúrio alto. - Foi um prazer, Excelência - respondeu Henry Bendall. Devo dizer que gosto muito desse uniforme. Lady Cuthbert entrou apressadamente. - Não posso parar - disse. - Façam de conta que não me viram. - Dotty, não sei o que faríamos sem sua ajuda - disse Hazel, correndo atrás dela pelo saguão. - Fico encantada por poder ajudar - disse Lady Cuthbert. - Quis vir mais cedo para passar alguns minutos na cozinha com a senhora Travis. A propósito, Benson está à espera na entrada, pronto para correr até em casa se descobrir que precisam de mais alguma coisa. - É uma santa, Dotty. Eu a levo até lá... - Não, não se preocupe - disse Lady Cuthbert. - Conheço o caminho. Continue a receber os convidados. 173

- Boa noite, senhor presidente - disse Ted, enquanto lady Cuthbert desaparecia na direção da cozinha. - Boa noite, Excelência. Foi muito amável da sua parte nos convidar em tão auspiciosa ocasião. - Que bonito vestido, senhora Janson - disse o governador. - Muito obrigada, Excelência - respondeu a mulher do presidente da Câmara. - Desejam uma taça de champanhe? - perguntou Hazel, voltando para junto do marido. Às 19h45 a maior parte dos convidados já havia chegado, e Ted conversava com Mick Flaherty quando Hazel lhe tocou o cotovelo. Olhou para ela. -Acho que devemos subir para ir buscá-lo. - murmurou ela. Ted assentiu com um gesto de cabeça e pediu ao juiz Supremo que se ocupasse de receber os convidados. Abriram caminho em meio aos convidados e subiram a grande escadaria. Quando chegaram à porta do quarto Rainha Vitória, detiveram-se e oIharam um para o outro. Ted

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consultou o relógio - 19h50. Inclinou-se para a frente e bateu levemente à porta. Carruthers abriu-a imediatamente, deixando ver Mountbatten envergando o terceiro conjunto do dia: farda de gala completa de almirante da Armada, três estrelas, uma faixa azul e dourada e oito fileiras de condecorações de campanha. - Boa noite, Excelência - disse Mountbatten. - Boa noite, senhor - disse o governador, ofuscado. O almirante deu três passos à frente e deteve-se, no alto da escadaria. Colocou-se em posição de sentido. Ted e Hazel aguardavam, a seu lado. Como ele não se movesse, fizeram o mesmo. Carruthers começou a descer lentamente a escada diante deles, parando no terceiro degrau. Pigarreou e esperou que os convidados ficassem em silêncio. - Excelência, Sr. Primeiro-Ministro, Sr. Presidente, minhas senhoras e meus senhores - anunciou. - O Honorável Conde Mountbatten da Birmânia. Mountbatten desceu lentamente os degraus, enquanto os convidados o aplaudiam delicadamente. Quando passou por 174 Carruthers, o mordomo fez uma profunda reverência. O governador, com Hazel pelo braço, seguiu-o, dois passos atrás. - Ele deve saber - sussurrou Hazel. - Talvez. Mas saberá que nós sabemos? - disse Ted. Mountbatten moveu-se agilmente pela sala, enquanto Ted o apresentava a cada um dos convidados. Esses faziam reverências e cortesias, escutando atentamente as poucas palavras que o almirante lhes dirigia. A única exceção foi Mick Flaherty, que não parou de falar e se manteve mais ereto do que Ted alguma vez o vira. Às oito horas, um dos ajudantes de mordomo deu uma pancada num gongo que até aquele momento nem o governador, nem a mulher sabiam que existia. Quando o som silenciou, Carruthers anunciou: - My Lord, Excelência, Sr. Primeiro-Ministro, Sr. Presidente, minhas senhoras e meus senhores, o jantar está servido. Se existia uma melhor cozinheira do que a senhora Travis em St. George, ninguém à mesa de honra tinha sido alguma vez servido por ela, e, nessa noite, a cozinheira havia se esmerado. Mountbatten conversou e sorriu, não fazendo segredo de que estava apreciando o momento. Passou algum tempo conversando com Lady Cuthbert, cujo marido tinha estado sob suas ordens em Portsmouth, e com Mick Flaherty, que escutou com delicado interesse. Cada prato ultrapassava o anterior: suflê, seguido de costeletas de carneiro, e um merengue de avelãs e damascos para completar o festim. Mountbatten fez observações acerca de cada vinho e chegou mesmo a pedir um segundo cálice de vinho do Porto. Depois do jantar, foi tomar café com os convidados na sala de estar e conseguiu trocar algumas palavras com cada um, apesar de o coronel Hodges tentar apoderar-se dele para falar dos cortes na defesa. Os convidados começaram a partir alguns minutos depois da meia-noite, e Ted não pôde deixar de se divertir quando viu 175 Mick Flaherty despedir-se do almirante com uma grande reverência, dizendo: - Boa noite, my lord. -Foi uma honra conhecê-lo. Dotty foi das últimas a partir e fez uma profunda reverência ao convidado de honra. - Contribuiu muito para tornar esta noite bastante agradável, Lady Cuthbert - disse-lhe Mountbatten. "Se soubesse até que ponto", pensou Hazel. Depois que o ajudante de mordomo fechou a porta ao último convidado, Mountbatten voltou-se para sua anfitriã e disse-lhe: - Hazel, tenho de agradecer-lhe por esta memorável ocasião. O chefe principal do Savoy não teria produzido um banquete melhor. Perfeito em todos os aspectos. - É muito amável, senhor. vou transmitir seus agradecimentos ao pessoal. - Evitou dizer ao "meu pessoal". - Há mais alguma coisa que possamos fazer pelo senhor antes de se retirar? - Não, obrigado - respondeu Mountbatten. - Foi um longo dia. Se me permite, vou retirar-me já. - E a que horas deseja tomar o café da manhã, senhor? perguntou o governador. - Sete e meia está bem? - perguntou Mountbatten. - Isso me dará tempo para partir às nove. - com certeza - disse Ted. - vou dar ordem a Carruthers para lhe levar desjejum leve ao quarto, às sete e meia. A menos que prefira outra coisa. - Um desjejum leve é exatamente o que pretendo - disse Mountbatten. - Uma noite perfeita. Seu pessoal não teria podido fazer melhor, Hazel. Boa noite e muito obrigado, minha querida. O governador fez uma reverência e sua mulher uma cortesia, enquanto o almirante

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subia as escadas dois passos atrás de Carruthers. Quando o mordomo fechou a porta do quarto Rainha Vitória, Ted colocou o braço em volta da cintura da mulher e disse: - Ele sabe que nós sabemos. 176 - Talvez você tenha razão - disse Hazel. - Mas saberá que nós sabemos que ele sabe? - vou ter de pensar nisso - disse Ted. De braços dados, regressaram à cozinha, onde encontraram a senhora Travis pondo pratos num caixote sob a supervisão de Lady Cuthbert, cujas mangas de renda longas do vestido de noite estavam firmemente arregaçadas. - Como voltou, Dotty? - perguntou Hazel. - Dei a volta até o pátio dos fundos e entrei pela porta de serviço - respondeu Lady Cuthbert. - Notou alguma coisa errada? - perguntou Hazel, ansiosa. - Nada que eu percebesse - respondeu Lady Cuthbert. - A menos que Mick Flaherty não tivesse conseguido beber um quarto copo de Moscatel de Veneza. - Senhora Travis - disse Ted -, o chefe principal do Savoy não teria produzido um banquete melhor. Perfeito em todos os aspectos. Não estou fazendo mais do que repetir as exatas palavras de Lorde Mountbatten. - Obrigada, Excelência - disse a senhora Travis. - Ele tem um grande apetite, não tem? - acrescentou, com um sorriso. Momentos depois entrou Carruthers. Observou a cozinha, que estava novamente impecável, depois voltou-se para Ted e disse: - com sua permissão, senhor, vamos embora. - Evidentemente - disse o governador. - E quero agradecer-lhe, Carruthers, pelo papel que o senhor e sua espantosa equipe desempenharam. Todos foram magníficos. Lorde Mountbatten fartou-se de fazer esse comentário. - É muita amabilidade de Sua Alteza. A que horas deseja que voltemos de manhã para preparar e servir o café? - Bem, ele pediu um desjejum leve no quarto, às sete e meia. - Então, viremos às seis e meia - disse Carruthers. Hazel abriu a porta da cozinha para eles saírem e todos carregaram caixotes cheios de louças e cestos cheios de comida para os carros que os esperavam. A última pessoa a sair foi Dotty, 177 que levava o faisão de prata. Hazel beijou-a em ambas as faces ao partir. - Não sei como você se sente, mas eu estou exausto - disse Ted, fechando à chave a porta da cozinha. Hazel consultou o relógio. Passavam dezessete minutos de uma da madrugada. - Estou morta - confessou ela. - Vamos tentar dormir um pouco. Temos de estar de pé às sete para que tudo esteja pronto antes de ele partir para o aeroporto. Ted passou o braço em volta da cintura da mulher. - Um triunfo pessoal para você, minha querida. Voltaram ao saguão e começaram a subir as escadas, fatigados, mas sem pronunciar uma palavra, com receio de perturbar o repouso do convidado. Quando chegaram ao patamar, detiveram-se bruscamente, olhando, horrorizados, para o espetáculo que os aguardava. Três pares de sapatos de couro preto haviam sido colocados em linha diante da porta do quarto Rainha Vitória. - Agora tenho certeza de que ele sabe - disse Hazel. Ted acenou afirmativamente com a cabeça e, voltando-se para a mulher, sussurrou: - Você ou eu? Hazel apontou o dedo firmemente para o marido. - Decididamente, você, meu querido - disse com doçura, antes de se dirigir para o quarto Nelson. Ted encolheu os ombros, pegou os sapatos do almirante e voltou a descer para a cozinha. Sua Excelência, o governador e comandante-chefe de St. George passou quase toda a madrugada engraxando aqueles três pares de sapatos, porque percebeu que não só teriam de passar pela inspeção de um almirante da Armada, como teriam de parecer ter sido engraxados por Carruthers. Quando Mountbatten regressou ao Almirantado em Whitehall, na segunda-feira seguinte, fez um relatório completo, por 178 escrito, acerca da sua visita a St. George. Foram enviados exemplares à rainha e ao secretário-geral. O almirante contou a história da sua visita numa reunião de família, nesse sábado à noite, no Castelo de Windsor, e, quando os risos cessaram, a rainha perguntou-lhe: - Quando é que começou a desconfiar? - Foi Carruthers que se traiu. Sabia tudo acerca de Sir Ted, exceto o regimento em que ele tinha servido. Isso não seria possível com um velho soldado. A rainha fez mais uma pergunta: - Pensa que o governador sabia que sabia? - Não tenho certeza, Lillibeth - respondeu Mountbatten, depôs de pensar um pouco. - Mas não pretendo deixá-lo na dúvida de que eu sabia. O secretário de

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Estado dos Negócios Estrangeiros fartou-se de rir ao ler o relatório de Mountbatten e juntou uma nota à última folha, pedindo esclarecimentos sobre dois pontos: a) Como pode ter certeza de que o pessoal que serviu o jantar não fazia parte do pessoal do governador? b) Pensa que Sir Ted sabia que o senhor sabia? O almirante respondeu, por sua vez: a) Depois do jantar, uma das criadas perguntou a Lody Barker se ela queria açúcar no seu café, mas, um momento depois, colocou dois cubos de açúcar na xícara de Lody Cuthbert, sem precisar perguntar. b) Possivelmente, não. Mas no dia de Natal vai ficar sabendo. Sir Ted teve o prazer de receber um cartão de Natal de Lorde Mountbatten, assinado: "Boas-Festas, Dickie. Obrigado por uma estada memorável." Ia acompanhado de um presente. Hazel desembrulhou o pequeno pacote e encontrou uma lata de graxa Cherry Blossom (preta). Seu único comentário foi: 179

- Agora sabemos que ele sabia. - De acordo - respondeu Ted com um sorriso. - Mas saberia que nós sabíamos que ele sabia? Isso é que eu queria saber. 180 VOCÊ NÃO VIVERÁ PARA SE ARREPENDER FICOU, PORTANTO, COMBINADO: DAVID DEIXARIA TUDO para Pat. Se um deles morresse, pelo menos o outro ficaria financeiramente seguro para o resto da vida. David sentiu que era o mínimo que podia fazer por alguém que tinha estado a seu lado durante tantos anos, especialmente porque tinha sido ele o infiel. Conheciam-se praticamente desde que nasceram, pois seus pais tinham sido amigos íntimos há tanto tempo, que mal conseguiam recordar. Ambas as famílias sempre alimentaram esperanças de que David se casasse com a irmã de Pat, Ruth, e não conseguiram ocultar sua surpresa - e desaprovação, no caso do pai de Pat - quando eles começaram a viver juntos, principalmente porque Pat tinha três anos a mais que David. Durante algum tempo, David andara adiando as coisas, na esperança de uma cura milagrosa, apesar de um insistente agente de seguros da Geneva Life, chamado Marvin Roebuck, que o andava pressionando para "uma reunião" durante os últimos nove meses. Na primeira segunda-feira do décimo mês, ele voltou a telefonar, e daquela vez David concordou, com relutância, em falar com ele. Escolheu um dia de plantão noturno de Pat no hotel e pediu a Roebuck que viesse ao apartamento - dessa forma, pensou ele, pareceria que tinha sido o agente a procurá-lo. David estava regando a Clupea harengus escarlate da mesa do saguão, quando Marvin Roebuck tocou a campainha da porta. Depois de ter servido uma Budweiser a seu visitante, David disse-lhe 183 que tinha todo tipo de seguros de que poderia necessitar: roubo, acidentes, automóvel, propriedade, saúde e até de férias. - Mas, e quanto ao de vida? - perguntou Marvin, umedecendo os lábios. - Desse não preciso - disse David. - Ganho um bom salário, tenho segurança mais do que suficiente, e, o mais importante, meus pais vão deixar tudo para mim. - Mas não seria prudente garantir o recebimento automático de uma boa soma no dia do seu sexagésimo ou sexagésimo quinto aniversário? - perguntou Marvin, continuando a empurrar uma porta que não tinha modo de saber que já estava aberta. -Afinal, nunca se pode ter certeza de não sofrer um desastre mesmo na porta de casa. David sabia exatamente que desastre o aguardava na porta de casa, mas perguntou, inocentemente: - Está falando de uma importância da ordem de quanto? - Bem, isso depende do quanto ganha atualmente - disse Marvin. - Cento e vinte mil por ano - disse David, tentando falar com naturalidade, já que aquilo era quase o dobro do seu rendimento real. Marvin ficou obviamente impressionado, e David permaneceu silencioso, enquanto ele fazia alguns cálculos de cabeça. - Bem - disse Marvin finalmente -, eu sugeriria meio milhão de dólares... um valor aproximado. Afinal - acrescentou, correendo o dedo por uma página de tabelas atuais que puxara de sua pasta -, o senhor tem apenas vinte e sete anos; o prêmio é alto. Na verdade, poderia até pensar numaámportância superior, se accredita que seus rendimentos vão continuar a crescer durante os próximos anos. - Aumentou todos os anos durante os últimos sete - disse David,

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dessa vez sem mentir. - Em que tipo de negócio trabalha, meu amigo? -perguntou Marvin. - Ações e obrigações - respondeu David, não dando pormenores 184 acerca da pequena firma para que trabalhava nem da posição secundária que ocupava. Marvin umedeceu novamente os lábios, apesar de, durante os cursos de capacitação, já lhe terem dito inúmeras vezes que não fizesse isso, especialmente quando estivesse tentando fechar um negócio. - Então, para quanto acha que eu deveria ir? - perguntou David, continuando a fazer com que fosse Marvin a avançar. - Bem, um milhão está tranqüilamente dentro de seu alcance de crédito - disse Marvin, consultando mais uma vez as tabelas. - Os pagamentos mensais poderão parecer um pouco altos no início, mas, à medida que os anos forem passando, com a inflação e seus contínuos aumentos de salário, verá que se tornam quase insignificantes. - Quanto eu teria de pagar todos os meses para receber um milhão? - perguntou David, tentando dar a impressão de que se convencera. - Partindo do princípio de que escolhe o seu sexagésimo aniversário para terminar o contrato, pouco mais de mil dólares por mês - disse Marvin, fazendo com que a soma parecesse insignificante. - E não se esqueça de que sessenta por cento é dedutível dos impostos, de modo que, em termos reais, só estará pagando cerca de quinze dólares por dia, quando vai acabar recebendo um milhão, no momento em que mais vai precisar dele. E, a propósito, esses mil dólares são fixos, nunca sobem. Na verdade, são à prova de inflação. - Soltou uma gargalhada horrivelmente aguda. - Mas eu receberia sempre a importância por inteiro, independente do que sucedesse no mercado? - Um milhão de dólares no seu sexagésimo aniversário... confirmou Marvin. - Aconteça o que acontecer, a menos que o mundo acabe. Até eu posso passar uma apólice por isso - disse ele, soltando outra gargalhada aguda. - No entanto, meu amigo, se tiver o azar de morrer antes do sexagésimo, Deus não o permita, seus dependentes receberão imediatamente a quantia por inteiro. 185

- Não tenho dependentes - disse David, tentando mostrarse aborrecido. - Deve haver alguém por quem se interesse - disse Marvin. - Um homem tão bem-apessoado como o senhor. - Por que não me deixa os prospectos, senhor Roebuck, para eu pensar no assunto durante o fim de semana? Prometo que volto a fazer contato. Marvin mostrou-se desapontado. Não precisava de um curso de aperfeiçoamento para saber que era preciso encostar o cliente à parede logo na primeira reunião, não o deixar escapar, pois isso só lhe dava mesmo tempo para pensar. Sentia os lábios secos. Pat regressou do turno da noite pela madrugada, mas David tinha ficado acordado, pensando no que acontecera durante a reunião com Marvin. Pat mostrou sua apreensão e insegurança quanto ao plano. David sempre resolvera todos os seus problemas anteriores, especialmente os financeiros, e Pat não sabia ao certo como as coisas poderiam correr quando já não tivesse David para lhe dar conselhos. Graças a Deus era David que tinha de tratar com Marvin - Pat nem sequer conseguia dizer não a um vendedor de escovas que batesse à porta. - Então, o que fazemos agora? - perguntou Pat. - Esperamos. - Mas você prometeu a Marvin que voltaria a fazer contato com ele. - Eu sei, mas não tinha a mínima intenção de fazer - disse David, passando o braço em volta dos ombros de Pat. -Aposto cem dólares como Marvin lhe telefona na segunda-feira, logo de manhã. E não se esqueça, continuo a dar a impressão de que é ele que está insistindo. Quando se deitaram, Pat sentiu que um ataque de asma se aproximava e decidiu que não era hora para pedir a David que voltasse aos pormenores. Afinal, como David lhe explicara diversas vezes, nunca haveria necessidade de Pat conhecer Marvin. Marvin telefonou às 8h30 da segunda-feira seguinte. - Tinha esperanças de encontrá-los antes de ir vender suas ações e obrigações - disse ele. -Já tomou uma decisão? 186 - Sim, já tomei - disse David. - Falei sobre o assunto com minha mãe durante o fim de semana, e ela acha que eu devo me decidir pelo milhão, porque quinhentos

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mil talvez não sejam uma grande soma de dinheiro quando eu chegar aos sessenta. Marvin ficou satisfeito por David não vê-lo umedecer os lábios. - Sua mãe é obviamente uma senhora muito esperta - foi seu único comentário. - Posso deixar a papelada por sua conta? - perguntou David tentando dar a impressão de que não queria tratar de detalhes. - com certeza - disse Marvin. - Nem pense sequer nisso, meu amigo. Deixe todo o trabalho comigo. Sei que tomou a decisão certa, David. Garanto-lhe que não se arrependerá durante toda a sua vida. No dia seguinte, Marvin voltou a telefonar, dizendo que a papelada estava pronta e que agora só faltava David fazer um exame médico - de "rotina", palavra que se fartou de repetir. Mas, dada a importância da soma segurada, teria de ser feito pelo médico da companhia em Nova York. David protestou por ter de ir a Nova York, acrescentando que talvez tivesse tomado a decisão errada, mas, depois das súplicas de Marvin, misturadas com um pouco de untuosa persuasão, acabou por ceder. Marvin levou toda a papelada ao apartamento, na noite seguinte, depois de Pat ter saído para o trabalho. David rabiscou sua assinatura em três documentos separados, entre duas cruzes a lápis. Seu ato final foi escrever o nome de Pat numa pequena coluna que Marvin lhe indicara com o dedo. - Como única pessoa a herdar - explicou o agente de seguros - se o senhor morrer antes de 1° de setembro de 2027. Deus não o permita! Está casado com Pat? - Não, só vivemos juntos - respondeu David. Depois de mais alguns "meu amigo" para aqui, "meu amigo' para lá, e outros mais "nunca se arrependerá disso durante toda a sua vida", Marvin saiu do apartamento agarrado à proposta. - Agora é só manter a calma - disse David a Pat, depois de confirmar que a papelada tinha sido preenchida. -Lembre-se de 187 que ninguém me conhece tão bem quanto você. Quando tudo tiver terminado, você recebe um milhão de dólares. Quando foram para a cama nessa noite, Pat tentou desesperadamente fazer amor com David, mas ambos aceitaram que isso já não era possível. Partiram juntos para Nova York na segunda-feira seguinte, para cumprir a consulta que David marcara com o médico da Geneva Life. Separaram-se a um quarteirão da sede da companhia de seguros, porque não queriam correr o risco de serem vistos juntos. Abraçaram-se mais uma vez, mas, quando se separaram, David ainda estava preocupado, receando que Pat não fosse capaz de levar aquilo até o fim. Alguns minutos antes do meio-dia, chegou à clínica. Uma mulher de longa bata branca sorriu-lhe por detrás do balcão. - Bom-dia - disse. - Chamo-me David Kravits. Tenho uma consulta com o Dr. Royston. - Oh, sim, senhor Kravits - disse a enfermeira. - O Dr. Royston está à sua espera. Faça o favor de me seguir. - Conduziu-o por um longo corredor vazio até a última porta à esquerda. Numa pequena placa de metal lia-se: "Dr. Royston". A enfermeira bateu à porta, abriu-a e disse: - O senhor Kravits, doutor. O Dr. Royston era um homem baixo e idoso, que tinha apenas alguns fios de cabelo na calva lustrosa e queimada de sol. Usava óculos de aros de osso, e seu rosto sugeria que sua própria apólice de seguros não estava muito longe de alcançar o prazo de maturidade. Levantou-se de sua cadeira, apertou a mão do paciente e disse: - Sua consulta é em função de um seguro de vida, se não estou enganado. - Sim, exatamente. - Não vamos levar muito tempo, senhor Kravits. Apenas rotina, mas a companhia gosta de ter a certeza de que as pessoas estão em boas condições físicas quando vai se responsabilizar por uma soma tão grande de dinheiro. Sente-se, por favor - disse, apontando para o outro lado da escrivaninha. - Eu também achei a soma muito alta; teria me contentado com meio milhão, mas o corretor foi tão persuasivo... - Teve alguma doença grave durante os últimos dez anos? perguntou o médico, obviamente sem o mínimo interesse pelas opiniões do corretor. - Não. Uma gripe de vez em quando, mas nada que se possa considerar grave - respondeu. - Ótimo. E na sua família mais próxima, algum caso de ataque cardíaco, câncer, problemas de fígado? - Que eu saiba, não. - Seu pai ainda está vivo? - E bem. - Está em boa forma? - Corre todas as manhãs e levanta pesos no ginásio local nos fins de semana. - E sua mãe? - Não faz nenhuma dessas coisas, mas não me surpreenderia se

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vivesse muito mais do que ele. O médico riu. - Ainda tem avós vivos? - Todos, com exceção de um. O pai de meu pai morreu há dois anos. - Sabe qual foi a causa da morte? - Morreu simplesmente, acho. Pelo menos, foi assim que o padre descreveu sua morte no funeral. - Que idade tinha ele? - perguntou o médico. - Recorda-se? - Oitenta e um, oitenta e dois. - Ótimo - repetiu o Dr. Royston, fazendo mais um "V" no impresso à sua frente. - Alguma vez sofreu de alguma dessas coisas? - perguntou, mostrando-lhe uma lista. Começava com artrite e terminava dezoito linhas abaixo com tuberculose. Passou os olhos lentamente pela lista antes de responder: - Não, nada disso - afirmou, não querendo confessar a sua asma naquele momento. - Fuma? - Nunca. 188 189

- Bebe? - Socialmente. Gosto de um copo de vinho ao jantar, de vez em quando, mas nunca tomo bebidas fortes. - Excelente - disse o médico, fazendo um "V" no último quadrado. -Vamos agora confirmar seu peso e altura. Venha cá, por favor, senhor Kravits, e suba nesta balança. O médico teve de ficar na ponta dos pés para subir o marcador até ficar encostado na cabeça de David. - Um metro e oitenta e dois - declarou. Depois olhou para a balança e moveu o pequeno peso até alcançar o equilíbrio. Setenta e oito quilos. Nada mau. - Preencheu mais duas linhas no seu relatório. -Talvez tenha um pouco de peso a menos. - Agora preciso de um exame de urina, senhor Kravits. Faça o favor de levar esse recipiente de plástico para aquele compartimento, encha-o até o meio e deixe-o na prateleira, quando terminar. Depois volte aqui. O médico tomou mais algumas notas, enquanto David saía da sala e regressava momentos depois. - Deixei o recipiente na prateleira - disse ele. - Ótimo. Agora temos de fazer um exame de sangue. Importa-se de subir a manga do lado direito? - O médico colocou uma tira de borracha em volta do bíceps direito de David e apertou-a até as veias ficarem nitidamente salientes. - Uma picadinha disse. - Não vai sentir nada. -A agulha penetrou, e ele desviou o olhar enquanto o médico extraía o sangue. O Dr. Royston limpou a picada e colocou sobre ela um pequeno penso circular. O médico inclinou-se e encostou um estetoscópio gelado em diferentes partes do peito do paciente, pedindo-lhe, de vez em quando, que inspirasse e expirasse. - Ótimo - repetiu várias vezes. Finalmente disse: - E tudo, senhor Kravits. Vai ter de passar mais uns minutos no consultório ao final do corredor com a Dra. Harvey, para ela fazer uma radiografia e divertir-se um pouco com seus eletrodos. Mas depois disso estará livre e poderá voltar para - consultou seu bloco Nova Jersey. A companhia entrará em contato com o senhor dentro de poucos dias, logo que tenhamos os resultados. 190 - Obrigado, Dr. Royston - disse ele, abotoando a camisa. O médico tocou uma campainha sobre a escrivaninha. A enfermeira reapareceu e levou-o a outra sala, com uma placa na porta, onde se lia: "Dra. Mary Harvey." A Dra. Harvey, mulher de meia-idade, elegantemente vestida, com cabelos grisalhos cortados curtos, estava à espera dele. Sorriu ao homem alto e elegante e pediu-lhe que despisse novamente a camisa e subisse na plataforma, para se colocar diante do aparelho de raios X. - Ponha os braços atrás das costas e inspire. Obrigada. - Em seguida pediu-lhe que se estendesse no leito no canto da sala. Inclinou-se sobre seu peito, espalhou pomada em alguns pontos de sua pele e fixou pequenas almofadas sobre ela. Enquanto ele olhava para o teto branco, ela acionou um computador e concentrou-se numa pequena tela de televisão que estava sobre a escrivaninha. Sua expressão nada revelava. Depois de ter retirado a pomada com um pano úmido, disse-lhe: - Pode vestir a camisa, senhor Kravits. E pode ir embora. Após despedir-se da Dra. Harvey, o jovem saiu apressadamente do edifício, descendo as escadas, e correu até a esquina, onde ele e Pat haviam se separado. Abraçaram-se de novo. - Correu tudo bem? - Penso que sim - disse ele. - Disseram que me dariam notícias dentro de poucos dias, logo que saíssem os resultados dos testes. - Ainda bem que você não teve problemas. - Só

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espero que você não tenha. - Nem vamos pensar nisso - disse Pat, apertando contra si a única pessoa que amava. Marvin telefonou uma semana mais tarde para dizer a David que o Dr. Royston o considerara em perfeita saúde. Agora, só teria de enviar a primeira prestação de 1.100 libras para a companhia de seguros. David expediu um cheque para a Geneva Life na manhã seguinte. Depois disso, seus pagamentos foram feitos por transferência, no primeiro dia de cada mês. 191

Dezenove dias depois do sétimo pagamento ter sido efetuado, David Kravits morreu de Aids. Pat tentou recordar-se da primeira coisa que tinha de fazer, logo que o testamento fosse lido. Deveria contactar um certo Dr. Levy, o advogado de David, e deixar tudo em suas mãos. David aconselhara Pat a não se envolver em coisa alguma. Que deixasse Levy, como seu executor, fazer a reivindicação junto à companhia de seguros, dissera ele, e deppis entregar-lhe o dinheiro. "Se tiver alguma dúvida, não diga nada", foi o último conselho que David dera a Pat antes de morrer. Dez dias depois, Pat recebeu carta de um representante da Geneva Life solicitando uma entrevista com o beneficiário da apólice. Pat entregou logo a carta ao advogado de David. O Dr. Levy respondeu, concordando com a entrevista, que teria lugar, a pedido do seu cliente, nos escritórios de Levy, Goldberg e Levy, em Manhattan. - Há alguma coisa que não me tenha dito, Patrick? perguntou-lhe Levy, alguns minutos antes da chegada do representante da companhia de seguros. - Porque, se houver, é melhor dizer agora. - Não, Dr. Levy, não tenho nada para lhe dizer - respondeu Pat, seguindo à risca as instruções de David. Desde o começo da entrevista, o representante da Geneva Life, com os olhos continuamente cravados na cabeça curvada de Pat, não deixou qualquer dúvida ao Dr. Levy de que não lhe agradava ter de pagar aquele prêmio. Mas o advogado enfrentou todas as questões, fortalecido pelo conhecimento de que, oito meses antes, quando lhe fizeram rigorosos testes, os médicos da Geneva Life não tinham encontrado sinais de David ser soropositivo. Levy limitava-se a repetir: - Por mais barulho que faça, sua companhia vai ter de pagar, no final. - E avisou: - Se eu não tiver recebido o montante total, devido ao meu cliente, dentro de trinta dias, iniciarei imediatamente um processo contra a Geneva Life. 192 O representante da companhia perguntou a Levy se aceitaria um acordo. Levy olhou para Pat, que baixou ainda mais a cabeça e respondeu: - Nem pensar. Pat regressou ao apartamento duas horas depois, exausto e deprimido, receando um ataque de asma. Tentou preparar o jantar antes de ir trabalhar, mas tudo lhe parecia inútil sem David. Começava a pensar que talvez devesse ter aceitado um acordo. O telefone tocou apenas uma vez nessa noite. Pat correu para atender, na esperança de que fosse sua mãe ou sua irmã Ruth. Afinal, era Marvin, que se queixou: - Estou metido numa grande confusão, Pat. Provavelmente, vou perder o emprego por causa daquela apólice que vendi para seu amigo David. Pat disse que lamentava muito, mas achava que não podia fazer coisa alguma por ele. - Pode, sim - insistiu Marvin. - Para começar, poderia fazer um seguro para si próprio. Isso talvez me salvasse a pele. - Não me parece muito conveniente - disse Pat, perguntando-se o que David teria aconselhado. - com certeza David não desejaria que eu fosse despedido - suplicou Marvin. - Tenha pena de mim, meu amigo. Não consigo agüentar outro divórcio. - Quanto é que isso me custaria? - perguntou Pat, ansioso por arranjar uma forma de se livrar de Marvin. - Vai receber um milhão de dólares - quase gritou Marvin - e pergunta quanto vai custar? Que são mil dólares por mês para uma pessoa tão rica? - Mas não posso ter certeza de que vou receber esse milhão - protestou Pat. - Já está tudo decidido - disse Marvin, baixando a voz. Eu não devia dizer isso, mas vai receber o cheque no dia trinta deste mês. A companhia sabe que seu advogado a tem na mão... Nem sequer vai ter de fazer o primeiro pagamento antes de receber o milhão. 193 -

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Está bem - disse Pat, ainda ansioso para se ver livre dele. - Eu faço o seguro, mas só depois de ter recebido o cheque. - Obrigado, meu amigo. Eu apareço aí com os papéis amanhã à noite. - Não, eu não estarei - disse Pat. - Este mês estou trabalhando à noite. É melhor vir amanhã à tarde. - Vai parar de trabalhar à noite quando tiver recebido o cheque, meu amigo - disse Marvin, soltando uma de suas horríveis gargalhadas agudas. - Homem de sorte! - acrescentou, antes de desligar. No momento em que Marvin chegou ao apartamento na tarde seguinte, Pat já tinha mudado de idéia. Se fosse outra vez ao Dr. Royston, eles perceberiam imediatamente a verdade. Mas, uma vez que Marvin lhe assegurou que o exame médico poderia ser feito com qualquer médico de sua escolha, e que o primeiro pagamento seria pós-datado, acedeu e assinou todos os impressos entre as cruzes a lápis, fazendo de Ruth sua única beneficiária. Esperava que David tivesse aprovado essa decisão, pelo menos. - Obrigado, meu amigo. Não voltarei a incomodá-lo prometeu Marvin. Suas últimas palavras, quando ia saindo, foram: - Garanto que não vai se arrepender em toda a sua vida. Pat foi ao seu médico uma semana depois. O exame não foi longo, já que Pat havia feito recentemente um check-up completo. Nessa ocasião, segundo o médico se recordou, Pat parecera-lhe muito nervoso e não pudera ocultar seu alívio quando lhe telefonara para dizer que estava tudo bem. -Você não tem nada, Patrick - dissera ele. - Exceto a asma, que não parece estar piorando.. Marvin telefonou-lhe uma semana depois, informando Pat de que o médico o considerara em boas condições de saúde e que ele não tinha perdido o emprego na Geneva Éife. - Fico muito satisfeito por você - disse Pat. - E quanto ao meu cheque? - Vai ser pago no último dia do mês. É só uma questão de processamento. Deve estar em seu poder vinte e quatro horas 194 antes do primeiro pagamento de sua apólice. Como eu disse, vai ganhar por dois lados. Pat telefonou ao advogado de David no último dia do mês e perguntou se tinha recebido o cheque da Geneva Life. - Não havia nada no correio esta manhã - disse Levy. Mas vou telefonar já à outra parte, para o caso de ter sido passado e estar a caminho. Se não, entro imediatamente com um processo contra eles. Pat perguntou a si mesmo se deveria ter informado Levy de que assinara um cheque de 1.100 libras, que deveria ser descontado no dia seguinte, e que só tinha fundos suficientes na sua conta para cobri-lo - mas que não teria dinheiro para viver até receber o novo ordenado. Todo o dinheiro que possuía servira para ajudar David a fazer seus pagamentos mensais à Geneva Life. Decidiu não falar do caso. David havia-lhe dito repetidas vezes que, quando estivesse em dúvida, não falasse. - Eu telefono quando fechar o expediente esta noite e digo qual é exatamente a posição - disse Levy. - Não, isso não é possível - disse Pat. - Estou no turno da noite durante toda esta semana. Na verdade, vou ter de ir trabalhar já. Talvez pudesse me telefonar logo de manhã. - com certeza - prometeu o advogado. Quando Pat voltou para casa de madrugada, não conseguiu dormir. Rolou na cama, pensando como iria sobreviver durante o resto do mês se seu cheque fosse descontado nessa manhã mesmo, sem ainda ter recebido o milhão de dólares da Geneva Life. O telefone tocou às 9h30. Pat levantou imediatamente o fone e ficou aliviado ao ouvir a voz do Dr. Levy do outro lado da linha. - Patrick, recebi um telefonema da Geneva Life ontem à noite, quando estava trabalhando, e devo dizer que você quebrou a regra de ouro dos Levy. - A regra de ouro dos Levy? - perguntou Pat, surpreso. - Sim, a regra de ouro dos Levy. É muito simples, Patrick. Deixe cair as coisas nas costas de quem quiser, mas nunca nas costas de seu advogado. - Não compreendo - disse Pat. 195

- Seu médico forneceu à Geneva Life amostras do seu sangue e da sua urina, e acontece que são idênticas às que o Dr. Royston tinha em seu laboratório em nome de David Kravits. Pat sentiu que o sangue lhe fugia do cérebro, ao perceber a armadilha que Marvin lhe armara. Seu

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coração começou a bater cada vez com mais violência. Subitamente, as pernas cederam, e ele caiu no chão, arquejante, tentando respirar. - Ouviu, Patrick? - perguntou Levy. - Você está aí? Uma equipe de paramédicos arrombou o apartamento vinte minutos depois, mas, momentos antes de sua chegada, Pat tinha morrido de um ataque cardíaco, provocado por uma sufocante crise de asma. O Dr. Levy nada fez até poder confirmar no banco de Pat que o cheque de seu cliente, no valor de $ 1.100 libras, tinha sido descontado pela companhia de seguros. Dezenove meses depois, Ruth, a irmã de Pat, recebeu o pagamento de um milhão de dólares da Geneva Life, mas só depois de uma longa batalha legal travada por Levy, Goldberg e Levy. O júri aceitou finalmente que Pat tinha morrido devido a causas naturais e que a apólice de seguro estava em vigor no momento de sua morte. Podem acreditar que Marvin Roebuck se arrependeu durante toda a sua vida. 196 NUNCA PARE NA ESTRADA

DIANA ALIMENTARA ESPERANÇAS DE ESTAR LIVRE ÀS cinco, para poder chegar à fazenda a tempo para o jantar. Tentou não mostrar o que sentia quando, às 16h37, seu auxiliar Phil Haskins apresentou-lhe um complexo documento de doze páginas que exigia a assinatura de um diretor antes de ser enviado ao cliente. Haskins não hesitou em recordar-lhe de que tinham perdido dois contratos semelhantes naquela semana. Era sempre a mesma coisa às sextas-feiras. Os telefones ficavam silenciosos no meio da tarde e, depois, precisamente quando ela pensava que ia conseguir escapar, caía um contrato sobre a mesa. Só de olhar para aquele documento, Diana percebeu que não teria chance de escapar antes das seis. As exigências de ser mãe divorciada e, além disso, diretora de uma pequena, mas ativa companhia no Centro de Londres, significavam que tinha poucos momentos durante o dia para se descontrair. Por isso, quando chegava o único fim de semana que James e Caroline passavam com o pai, seu ex-marido, Diana tentava sair do escritório um pouco mais cedo do que habitualmente, para não ficar presa no trânsito do fim de semana. Leu devagar a primeira página e fez algumas emendas, consciente de que cometer um erro, por estar com pressa numa sextafeira, poderia ser lamentado durante muitas semanas. Olhou para o relógio sobre a mesa quando assinou a última página do documento. Faltavam dez minutos para as seis da tarde. Diana pegou sua bolsa e avançou decididamente para a porta, 199 deixando o contrato sobre a mesa de Phil, sem se dar ao trabalho de lhe desejar que tivesse um bom fim de semana. Suspeitava de que o contrato havia estado sobre sua mesa desde as nove da manhã, mas o fato de guardá-lo até 16h37 era seu único meio de vingança, por ter sido ela a escolhida para chefe do departamento. Quando se viu em segurança no elevador, apertou o botão que a levaria ao estacionamento no subsolo, calculando que aquele atraso significaria uma hora a mais em sua viagem. Saiu do elevador, dirigiu-se à sua caminhonete Audi, abriu a porta e jogou a bolsa sobre o banco de trás. Quando chegou à rua, o fluxo de trânsito ao crepúsculo começava a avançar na mesma velocidade que os pedestres de ternos de listras que, como formigas operárias, se dirigiam apressadamente para o primeiro buraco no chão. Ligou o rádio para ouvir o noticiário das seis. Os carrilhões do Big Ben soaram, antes que os porta-vozes de cada um dos três partidos políticos transmitissem suas opiniões acerca dos resultados das eleições européias. John Major recusava-se a fazer comentários sobre seu futuro. A explicação do Partido Conservador para seus fracos resultados era que apenas quarenta e dois por cento do país se dera ao trabalho de votar. Diana sentiu-se culpada - estava entre os cinqüenta e oito por cento que não tinham registrado seu voto. O locutor prosseguiu, dizendo que a situação na Bósnia continuava desesperadora e que a ONU ameaçava com terríveis conseqüências se Radovari Karadzik e os sérvios não chegassem a um acordo com os outros países beligerantes. A mente de Diana começou a devanear. Aquela ameaça já não era novidade. Suspeitava de

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que, se ligasse o rádio uip ano depois, o locutor estaria repetindo as mesmas palavras. Enquanto seu carro se arrastava em volta da Russel Square, Diana começou a pensar no fim de semana que a esperava. Já havia passado mais de um ano desde que John lhe dissera que tinha conhecido outra mulher e queria divorciar-se. Ainda se perguntava por que motivo, ao fim de sete anos de casamento, não ficara mais chocada - ou, pelo menos, irada com a traição 200 dele. Desde que fora nomeada diretora, tinha de confessar que passavam cada vez menos tempo juntos. E talvez já estivesse anestesiada pelo fato de um terço dos casais da Inglaterra estar divorciado ou separado. Os pais dela não haviam ocultado seu desapontamento, mas eles estavam casados há quarenta e dois anos. O divórcio tinha sido bastante amigável, visto que John, que ganhava menos do que ela - talvez um dos problemas do casal -, tinha concordado com a maior parte de suas exigências. Diana ficara com o apartamento de Putney, com a caminhonete e os filhos, que John só tinha direito de pegar durante um fim de semana por mês. Ele os fora buscar na escola naquela tarde e, como de hábito, os devolveria ao apartamento de Putney por volta das dezenove horas do domingo. Diana fazia qualquer coisa para não ficar sozinha em Putney quando as crianças não estavam, e, embora se queixasse de ter. ficado com a responsabilidade de criar as duas crianças sem o paiij sentia desesperadamente a falta delas logo que ficavam fora de suas vistas. Não tinha arranjado um amante, nem dormia com outros homens. Nenhum dos membros da diretoria de sua firma fora além de convidá-la para almoçar. Talvez porque apenas três eram solteiros -e com bons motivos. A única pessoa em quem vira uma possibilidade de ligação havia deixado bem claro que pretendia passar apenas a noite com ela, não os dias. De qualquer forma, Diana já decidira, há muito tempo, que, se queria ser levada a sério como a primeira diretora da companhia, uma ligação com alguém do escritório seria ponto negativo. Por muito natural ou curta que fosse, só poderia acabar em lágrimas. Os homens são tão vaidosos, pensou ela. Bastava uma mulher cometer um erro para ser imediatamente considerada promíscua. Depois disso, todos os outros homens do escritório exibiriam sorrisinhos idiotas às suas costas ou tratariam suas coxas como se fossem extensões do braço de suas poltronas. Diana gemeu alto ao ter que parar junto de mais um sinal vermelho. Em vinte minutos não conseguira percorrer mais do 201 que duas milhas. Abriu o porta-luvas do lado do carona e começou a procurar uma fita cassete. Encontrou uma e introduziu-a na abertura, esperando que fosse Pavarotti, mas foi confrontada com a voz estridente de Gloria Gaynor, garantindo-lhe: "Hei de sobreviver". Sorriu e pensou em Daniel, enquanto a luz do sinal mudava para verde. Daniel e ela tinham feito juntos o curso de economia na Universidade de Bristol, no início da década de 1980, sempre amigos, nunca amantes. Depois Daniel conhecera Rachael, que entrara um ano depois deles, e, a partir desse momento, não voltara a olhar para outra mulher. Casaram-se no dia da licenciatura dele, e, depois de terem regressado da lua-de-mel, Daniel ocupou-se da gestão da fazenda do pai em Bedfordshire. Tinham-se sucedido rapidamente três filhos, e Diana sentira-se orgulhosa quando lhe pediram que fosse madrinha de Sophie, a mais velha. Daniel e Rachael já estavam casados há doze anos, e Diana tinha certeza de que eles não desapontariam seus pais com qualquer sugestão de divórcio. Embora os amigos estivessem convencidos de que sua vida era excitante e bem preenchida, Diana sempre invejara a vida tranqüila e sem complicações que eles levavam. Convidavam-na com regularidade a passar com eles o fim de semana no campo, mas, para cada dois ou três convites que Daniel lhe fazia, ela aceitava apenas um - não porque não gostasse de estar com eles freqüentemente, mas porque, desde o divórcio, não queria abusar da hospitalidade do casal. Embora gostasse de seu trabalho, aquela semana fora terrível. Tinham perdido dois contratos, James fora dispensado da equipe de futebol da escola e Caroline não parava de lhe dizer que o pai não se importava que ela visse televisão quando devia estar fazendo os deveres de casa. Mais um sinal ficou

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vermelho. Diana levou quase uma hora para percorrer as sete milhas de saída da cidade e, quando chegou ao primeiro desvio, ergueu o olhar para o letreiro da Al, mais por hábito do que para procurar orientação, porque conhecia cada metro do caminho entre seu escritório e a fazenda. Tentou aumentar a velocidade, mas era 202 absolutamente impossível, porque ambas as faixas se encontravam totalmente congestionadas. - Droga! - Esquecera-se de lhes trazer um presente, nem sequer uma garrafa decente de clarete. - Droga! - repetiu. Daniel e Rachael estavam sempre lhe dando presentes. Começou a pensar se não poderia comprar qualquer coisa no caminho, quando se recordou de que havia apenas postos de gasolina entre aquele ponto e a fazenda. Não podia aparecer com mais uma caixa de bombons, que eles não comiam. Quando chegou ao cruzamento que levava à Al, conseguiu pôr o carro a mais de cinqüenta milhas pela primeira vez. Começou a descontrair-se, deixando que a mente acompanhasse a música. Não houve qualquer aviso. Apesar de ter pisado o freio com rapidez, já era tarde demais. Ouviu um baque surdo no pára-choque da frente, e o carro estremeceu ligeiramente. Uma pequena criatura negra colocara-se à sua frente, e, apesar de suas rápidas reações, não tinha conseguido evitá-la. Diana encostou o carro no acostamento, perguntando a si mesma se o animal teria conseguido sobreviver. Regressou lentamente em marcha à ré ao local onde pensava tê-lo atropelado, enquanto o trânsito passava rugindo seu lado. Então viu-o. Estava caído sobre as ervas do acostamento mais um gato que atravessara a estrada! Saiu do carro, os faróis apontados para o pequeno corpo sem vida. Subitamente, Diana sentiu-se mal. Tinha criado dois gatos, e sabia que nunca poderia contar aos filhos o que acontecera. Pegou o corpo do animal e depositou-o cuidadosamente na vala junto da estrada. - Sinto muito! - disse, sentindo-se um pouco idiota. Lançou-lhe um último olhar antes de voltar para o carro. Ironicamente, tinha escolhido a Audi por causa da sua segurança. Entrou novamente no carro e ligou o motor, constatando que Gloria Gaynor continuava a manifestar sua opinião acerca dos homens. Desligou o rádio e tentou parar de pensar no gato, enquanto esperava uma brecha no trânsito que lhe permitisse voltar à faixa lenta. Finalmente conseguiu, mas era impossível afastar o gato morto da mente. 203

Diana recuperara as cinqüenta milhas por hora quando subitamente percebeu faróis altos no seu retrovisor. Ergueu o braço e acenou pelo espelho, mas os faróis continuaram brilhando. Diminuiu para deixar passar o outro carro, mas o motorista não mostrou qualquer interesse em fazê-lo. Diana começou a pensar se haveria alguma coisa errada com seu carro. Teria alguma lanterna apagada? O cano de descarga estaria soltando fumaça? Estaria... Decidiu acelerar e aumentar a distância entre seu carro e o de trás, mas ele permaneceu a alguns metros de seu pára-choque. Tentou captar um relance do motorista pelo espelho retrovisor, mas era difícil vê-lo com clareza por causa da luz forte. Quando seus olhos se habituaram à intensidade dos faróis, conseguiu distinguir a silhueta de uma grande caminhonete preta que avançava atrás dela e um homem (que parecia jovem) atrás do volante. Parecia fazer sinais para ela. Diana diminuiu novamente a velocidade ao aproximar-se do contorno seguinte, criando uma oportunidade para o carro de trás ultrapassá-la pela faixa externa, mas o homem não a aproveitou, permanecendo quase encostado ao seu pára-choque, sempre com os faróis altos. Diana esperou uma pequena brecha no trânsito à sua direita. Mal ela apareceu, Diana pisou o acelerador, passou pelo contorno e seguiu a toda velocidade pela Al. Finalmente estava livre. E começava a descontrair-se pensando em Sophie, que sempre a esperava acordada, para que lesse uma história, quando, subitamente, os faróis voltaram a brilhar através do vidro de trás, mais uma vez ofuscando-a. Pareciam ainda mais perto. Diminuiu a velocidade, e ele também. Acelerou, e ele também. Tentou pensar no que deveria fazer em

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seguida e começou a acenar freneticamente para os motoristas que passavam a seu lado. Mas eles não se preocuparam com sua aflição. Tentou pensar em outras formas de alertar alguém, e subitamente recordou-se de que, quando entrara para a direção da companhia, haviam sugerido que instalasse um telefone em seu carro. Diana decidira 204 que isso poderia esperar até a próxima revisão, o que ocorreria dentro de uma quinzena. Passou a mão pela testa, limpando uma gota de suor, pensou por um momento e depois passou o carro para a faixa de maior velocidade. A caminhonete fez o mesmo e mantinha-se tão perto do seu pára-choque, que ela receou que, se tocasse os freios, poderia inadvertidamente provocar uma série de batidas. Acelerou até noventa, mas a caminhonete não a largava. Apertou mais ainda o acelerador e chegou aos cem. Mesmo assim, ele permanecia atrás dela à distância de menos de um carro. Diana acionou os faróis altos e os de neblina, e passou a buzinar para todo mundo que ousasse surgir em seu caminho. Só esperava que a polícia a detivesse, obrigando-a a parar no acostamento, e a multasse por excesso de velocidade. Uma multa seria infinitamente preferível a um choque com um jovem desvairado, pensou ela, fazendo a Audi correr a cento e dez pela primeira vez em sua vida. Mas a caminhonete preta não a perdia de vista. Sem avisar, desviou-se novamente para a faixa do meio e tirou o pé do acelerador, fazendo a caminhonete ficar ao lado dela, o que lhe deu a oportunidade de ver o motorista pela primeira vez. Usava um blusão de couro preto e apontava ameaçadoramente para ela. Diana mostrou-lhe o punho fechado e acelerou, mas ele limitou-se a mergulhar atrás dela, como um corredor olímpico decidido a não permitir a fuga de seu concorrente. Então ela se lembrou, sentindo-se mal pela segunda vez naquela noite. - Oh, meu Deus - gritou, aterrorizada. Os detalhes do crime que ocorrera naquela mesma estrada, alguns meses antes, irromperam subitamente em sua memória. A mulher fora violada antes de lhe cortarem a garganta com uma faca serrilhada e a atirarem numa vala. Durante semanas, cartazes pregados na Al pediam aos motoristas que ligassem para um determinado número, se tivessem informações que pudessem auxiliar a polícia nas suas investigações. Os cartazes já haviam desaparecido, mas a polícia ainda continuava à procura do homicida. Diana 205 começou a tremer ao recordar-se dos avisos: "NUNCA PARE NA ESTRADA". Momentos depois avistou uma sinalização que conhecia bem. Tinha chegado lá muito mais depressa do que previra. Dentro de três milhas abandonaria a estrada e entraria no caminho que levava à fazenda. Começou a rezar para que, quando fizesse o desvio habitual, o homem do blusão preto seguisse em frente pela Al e ela se visse finalmente livre. Decidiu que tinha chegado a hora de se afastar dele. Chegou a cem milhas por hora pela segunda vez ao passar pela placa indicando a entrada a duas milhas. Estava com o corpo coberto de suor, e o velocímetro registrava cento e dez. Observou o retrovisor e constatou que o homem continuava atrás dela. Tinha de escolher o momento exato, se quisesse executar seu plano com êxito. Quando faltava uma milha, começou a olhar para a esquerda, para ter certeza de que agiria no momento certo. Já nem precisava olhar para o retrovisor para ter certeza de que ele ainda estava lá. O sinal seguinte mostrava três riscas brancas diagonais, avisando-a de que deveria passar à faixa interna se pretendia deixar a estrada no próximo desvio. Manteve o carro na faixa externa a cem milhas por hora até avistar uma abertura suficientemente larga. Apareceram duas linhas brancas junto da estrada. Diana sabia que só teria uma oportunidade para efetuar a fuga. Quando passou pelo sinal com uma única risca branca, atravessou rapidamente a estrada a noventa milhas por hora, obrigando os motoristas das faixas central e interna a pisar fundo os freios e a vociferar irados palavrões à sua pessoa. Mas não lhe interessavam os impropérios, pois agora já seguia pela estrada secundária em segurança, e a caminhonete preta avançava a toda velocidade pela Al. Ela riu alto, aliviada. À sua direita podia ver o fluxo de trânsito contínuo da estrada principal. Mas seu riso transformou-se em grito ao ver a caminhonete

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preta atravessar bruscamente a estrada principal, na frente de um caminhão, subir pelo acostamento e entrar na estrada secundária, sacudindo-se violentamente. Quase entrou numa vala, mas conseguiu firmar-se, acabando por se 206 colocar alguns metros atrás dela, ofuscando-a novamente com as luzes no retrovisor. Quando chegou ao topo da estrada secundária, Diana virou à esquerda na direção da fazenda, tentando freneticamente pensar no que havia de fazer em seguida. A cidade mais próxima ficava a umas doze milhas da estrada principal, e a fazenda ficava apenas a sete, mas cinco dessas milhas eram formadas por uma sinuosa estrada de terra e sem iluminação. Verificou a gasolina. O tanque estava quase vazio, mas ainda havia combustível suficiente para ela escolher qualquer das alternativas. Faltava menos de uma milha para dobrar, de modo que tinha apenas um minuto para se decidir. Quando faltavam cem metros, decidiu-se pela fazenda. Apesar da estrada sem iluminação, conhecia todas as curvas e estava certa de que seu perseguidor não as conhecia. Quando chegasse à fazenda, teria tempo para sair do carro e entrar na casa muito antes que ele conseguisse alcançá-la. De qualquer forma, quando visse a casa, ele fugiria. O minuto passara. Diana pisou o freio e deslizou para uma estrada de terra que apenas a lua iluminava. Bateu com as palmas das mãos no volante. Teria tomado a decisão errada? Olhou para o retrovisor. Ele teria desistido? Era evidente que não. Viu na sua frente a traseira de um Land Rover. Diana diminuiu, esperando a curva que conhecia tão bem, onde a estrada alargava ligeiramente. Prendeu a respiração, passou uma terceira e avançou. Um choque de frente seria preferível a uma garganta cortada? Fez a curva e viu uma estrada deserta à sua frente. Voltou a pisar o acelerador, dessa vez conseguindo chegar a setenta, talvez cem metros entre ela e seu perseguidor, mas isso apenas lhe proporcionou alguns momentos de trégua. Logo depois, os faróis já conhecidos voltaram a cegá-la. Em cada curva Diana conseguia ganhar um pouco de tempo, pois a caminhonete desviava-se de um lado para o outro, como se desconhecesse a estrada, mas nunca conseguiu livrar-se dela por mais de alguns segundos. Observou o velocímetro. Desde a saída da estrada principal até a fazenda eram cinco milhas, e tinha 207

certeza de ter percorrido duas. Começou a observar cada décimo de milha que diminuía, aterrorizada com a idéia de que a caminhonete a ultrapassasse e a obrigasse a cair na vala. Manteve-se determinadamente no centro da estrada. Passou mais uma milha, e ele continuava atrás dela. Subitamente, Diana viu um carro que vinha na sua direção. Manteve os faróis altos e buzinou. O outro carro respondeu, imitando o que ela fizera, o que a obrigou a diminuir e a encostar-se à sebe quando os dois carros passaram um pelo outro. Voltou a consultar o velocímetro. Só faltavam duas tnilhas. Diana diminuía e depois acelerava em cada curva bem conhecida da estrada, de modo que a caminhonete nunca tivesse espaço suficiente para se colocar a seu lado. Tentou concentrar-se no que faria logo que avistasse a fazenda. Calculou que o caminho de acesso à casa tivesse cerca de meia milha de comprimento. Estava cheio de calombos e buracos que Daniel, segundo lhe explicara diversas vezes, não tinha dinheiro pára mandar consertar. O portão de entrada ficava geralmente aberto quando ela os visitava, embora, uma vez ou outra, Daniel se esquecesse de abri-lo, obrigando-a a sair do carro. Não podia arriscar-se a fazer isso naquela noite. Se o portão estivesse fechado, teria de ir até a cidade mais próxima e parar junto do Salmão Vermelho,- que estava sempre cheio às sextas-feiras à noite; ou, se conseguisse encontrá-lo, junto do posto da polícia local. Voltou a observar o indicador da gasolina. Estava quase no vermelho. - Oh, meu Deus! - disse ela, percebendo que talvez não tivesse gasolina suficiente para chegar à cidade. Só podia rezar para que Daniel tivesse se lembrado de deixar o portão aberto. Fez a curva-seguinte, aumentou a velocidade, porém, uma vez mais, conseguiu apenas ganhar alguns metros. Sabia

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que, segundos depois, ele estaria de novo atrás dela. E estava. Durante as centenas de metros seguintes, mantiveram-se a centímetros um do outro, e ela teve a certeza de que ele ia bater na traseira do seu carro. Não ousava travar. Se batessem naquele lugar, longe de qualquer auxílio, não poderia ter esperanças de escapar. 208 Observou o velocímetro. Faltava uma milha. - O portão tem de estar aberto. Tem de estar aberto -rezou. Quando fez a curva seguinte, avistou a silhueta da casa da fazenda ao fundo. Quase gritou de alívio ao ver as luzes acesas nas salas do andar térreo. Gritou: - Graças a Deus! - e depois lembrou-se outra vez do portão e mudou sua súplica para: - Meu Deus, faça com que esteja aberto. - Saberia o que fazer quando manobrasse na última curva. - Meu Deus, faça com que esteja aberto, só dessa vez suplicou. - Nunca mais pedirei nada, absolutamente nada. -Fez a última curva, apenas alguns centímetros à frente da caminhonete preta. - Por favor, meu Deus, por favor, por favor. - E então viu o portão. Estava aberto. Tinha as roupas encharcadas de suor. Diminuiu a velocidade, reduziu para segunda e enfiou o carro pelo portão, começando a avançar pelo acidentado caminho de acesso, batendo no poste do portão, do lado direito, ao avançar em direção à casa. A caminhonete não hesitou em segui-la, e continuava a apenas alguns centímetros atrás dela. Diana manteve a mão na buzina, enquanto o carro saltava sobre os buracos. Bandos de corvos assustados bateram as asas nos ramos pendentes, crocitando, enquanto levantavam vôo. Diana começou a gritar: - Daniel! Daniel! - Duzentos metros mais adiante, as luzes do alpendre acenderam-se. Os faróis dela estavam voltados para a casa e ainda tinha a mão na buzina. A cem metros da casa avistou Daniel saindo pela porta principal, mas não diminuiu a velocidade; a caminhonete atrás dela também não. A cinqüenta metros, começou a piscar os faróis na direção de Daniel. Já conseguia perceber a expressão surpresa e ansiosa em seu rosto. A trinta metros, pisou fundo o freio. A pesada caminhonete derrapou no cascalho em frente da casa, detendo-se no canteiro de flores, por baixo da janela da cozinha. Ouviu o guinchar dos 209 freios atrás de si. O homem do blusão de couro, desconhecendo o terreno, não conseguira manobrar com a rapidez necessária, e logo que suas rodas tocaram no cascalho do pátio anterior, começara a derrapar descontroladamente. Um segundo depois, a caminhonete foi se chocar com a traseira do carro dela, empurrando-o contra a parede da casa e estilhaçando os vidros da janela da cozinha. Diana saltou do carro gritando: - Daniel! Vá buscar uma arma, vá buscar uma arma! Apontou para a caminhonete. - Aquele homem me perseguiu durante vinte milhas! O homem saltou da caminhonete e começou a mancar na direção deles. Diana correu para dentro de casa. Daniel seguiu-a e pegou uma espingarda, normalmente reservada para coelhos, que estava encostada à parede. Voltou ao pátio e enfrentou o visitante indesejado, que parara junto da traseira da caminhonete de Diana. Daniel encostou-lhe a espingarda no ombro e fitou-o. - Não se mexa, senão disparo - disse calmamente. Só então se lembrou de que a espingarda não estava carregada. Diana recuou um pouco na direção da casa, mas manteve alguns metros atrás de Daniel. - Não! Não! - gritou o jovem do blusão de couro. Rachael apareceu à porta. - O que houve? - perguntou, nervosa. - Chame a polícia - foi tudo o que Daniel disse, e a mulher desapareceu rapidamente no interior da casa. Daniel avançou para o jovem, que parecia aterrorizado, apontando a espingarda para seu peito. - Não! Não! - gritou o rapaz de novo, apontando para o carro de Diana. - Ele está dentro do carro! - Voltou-se rapidamente para Diana. - Eu o vi entrar no seu carro, quando a senhora parou no acostamento. Que mais eu podia fazer? A senhora não quis parar. Daniel avançou cautelosamente para a parte de trás do automóvel 210 e ordenou ao jovem que abrisse a porta lentamente, enquanto conservava a espingarda apontada para seu peito. O jovem abriu a porta e deu rapidamente um passo atrás. Os três olharam para o homem acocorado no fundo do carro. Empunhava na mão direita uma longa faca serrilhada. Daniel

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voltou para ele o cano da espingarda, sem falar nada. O som da sirene da polícia já se ouvia a distância. 211

NEM TUDO ESTÁ A VENDA

SALLY SUMMERS GANHOU SEU MAIOR PRÊMIO ARTÍSTICO no liceu, com a idade de quatorze anos. Nos últimos quatro anos que freqüentou St. Bride, a única competição possível era pelo segundo lugar. Quando, no seu último ano, lhe foi concedida a bolsa de estudos máxima para a Escola Slade de Belas Artes, nenhum de seus colegas foi pego de surpresa. A reitora disse aos pais, reunidos no dia da entrega dos prêmios, que estava segura de que Sally teria uma carreira notável pela frente e que seu trabalho em breve seria exibido nas principais galerias de Londres. Sally sentiu-se lisonjeada por todos aqueles louvores pouco qualificados, mas ainda não tinha certeza de possuir verdadeiro talento. No final do primeiro ano na Slade, o corpo docente e os estudantes mais avançados já começavam a tomar consciência do trabalho de Sally. Sua técnica de desenho era considerada absolutamente excepcional, e suas telas tornavam-se mais ousadas em cada período. Mas, acima de tudo, era a originalidade de suas idéias que fazia com que os outros estudantes parassem para admirar suas telas. No seu último ano, Sally ganhou o prêmio Mary Rischgitz, para pintura a óleo, e o Henry Tonks, para desenho, um feito raro. Foram-lhe entregues por Sir Roger de Grey, o presidente da Academia Real, e Sally passou a fazer parte daquele minúsculo grupo de que se dizia "ter futuro". Mas isso, disse ela a seus pais, dizia-se, com certeza, sobre todos os melhores estudantes de qualquer ano - e a maior parte deles acabava trabalhando nos 215

departamentos de criação das agências publicitárias ou ensinando arte a crianças entediadas em locais afastados do reino. Depois de terminado o curso, Sally teve de decidir, também ela, se iria procurar emprego numa agência de publicidade, tentar dar aulas ou arriscar tudo e produzir trabalhos originais suficientes para que uma galeria de Londres aceitasse fazer uma exposição só sua. Os pais estavam convencidos de que a filha possuía verdadeiro talento, mas o que sabem os pais quando se trata de uma filha única?, pensou Sally. Especialmente quando um deles era professor de música e o outro contador, e eram os primeiros a confessar que pouco entendiam de arte, mas sabiam quando gostavam de uma coisa. No entanto, estavam absolutamente dispostos a sustentá-la durante mais um ano se ela quisesse (para usar uma expressão dos jovens) "entrar de cabeça". Sally sentia-se dolorosamente consciente de que, embora seus pais vivessem razoavelmente bem, mais um ano em que ela não produzisse qualquer rendimento seria pesado para eles. Depois de muito consultar sua consciência, disse-lhes: - Um ano, apenas um ano. Depois disso, se meus quadros não forem suficientemente bons ou se ninguém mostrar interesse em exibi-los, serei realista e começarei a procurar um emprego. Durante os seis meses seguintes, Sally trabalhou durante horas e horas que nem percebera que existiam quando só vivia estudando. Durante esse tempo, produziu uma dúzia de quadros. Não permitiu que ninguém os visse, receando que os pais e os amigos não fossem francos com ela. Estava decidida a terminar seu trabalho e depois ouvir apenas as opiniões mais exigentes -, as dos proprietários de galerias - e as mais exigentes ainda, do público comprador. Sally sempre fora uma leitora voraz e continuava a devorar livros e monografias de artistas, desde Bellini a Hockney. Quanto mais lia, mais se convencia de que, por mais talento que um artista tivesse, eram a diligência e a dedicação que distinguiam os que tinham êxito

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daqueles que falhavam. Isso a inspirou a trabalhar ainda mais, e começou a recusar convites para festas, bailes, até mesmo fins de semana com velhos amigos, utilizando todos os seus 216 momentos livres para visitar galerias de arte ou assistir a conferências sobre os grandes mestres. Quando chegou ao décimo primeiro mês, tinha terminado vinte e sete telas, mas ainda não estava certa de que elas revelassem um verdadeiro talento. Não obstante, sentiu que tinha finalmente chegado o momento de ser julgada pelos outros. Observou longamente cada uma das vinte e sete telas e, na manhã seguinte, colocou seis numa grande pasta que os pais lhe haviam oferecido no Natal anterior, e juntou-se aos empregados que partiam de trem, de manhã cedo, de Sevenoaks para Londres. Sally começou sua busca na Cork Street, onde se deparou com galerias que exibiam quadros de Bacon, Freud, Hockney, Dunston e Chadwick. Amedrontava-a a simples idéia de atravessar aqueles portais, quanto mais expor seu humilde trabalho à apreciação de seus proprietários. Avançou com sua pasta mais alguns quarteirões, até à Conduit Street. Nas vitrines, reconheceu quadros de Jones, Campbell, Wezenski, Frink e Paolozzi. Sentiu-se ainda mais desencorajada e incapaz de empurrar as portas de uma galeria. Regressou exausta para casa, nessa noite, sem ter sequer aberto sua pasta. Compreendia, pela primeira vez, como deve sentir-se um autor depois de sofrer uma série de rejeições. Não conseguiu dormir. Enquanto estava deitada, acordada, chegou à conclusão de que teria de saber a verdade, mesmo que isso significasse ser humilhada. No dia seguinte voltou a juntar-se aos trabalhadores nos trens da manhã e, dessa vez, dirigiu-se à Duke Street em St. James's. Não quis saber das galerias que exibiam antigos mestres, naturezas mortas holandesas ou paisagens inglesas, e, por isso, passou sem olhar por Johnny van Haeften e Rafael Valls. Na metade do caminho, virou à direita e deteve-se finalmente à porta da Galeria Simon Bouchier, que expunha as esculturas do falecido Sydney Harpley e os quadros de Muriel Pemberton, cujo óbito Sally tinha lido no Independent, poucos dias antes. Foi a idéia da morte que fez Sally decidir-se pela Galeria Bouchier. Talvez estivessem à procura de alguém jovem, tentou 217

convencer-se a si mesma; alguém que tivesse uma longa carreira pela frente. Entrou e encontrou-se numa grande sala vazia, rodeada pelas aquarelas de Muriel Pemberton. - Em que posso ajudá-la? - perguntou uma jovem que se encontrava sentada a uma mesa, perto da janela. - Obrigada - respondeu. - Só estou olhando. A moça observou a pasta de Sally, mas nada disse. Sally decidiu que daria a volta à sala e depois fugiria. Começou a percorrer a galeria, admirando cuidadosamente os quadros. Eram bons, muito bons - mas Sally pensava que seria capaz de vir a pintar igualmente bem, com o tempo. Gostaria de ter visto os trabalhos de Muriel Pemberton quando tinha a sua idade. Ao chegar ao outro extremo da galeria, reparou num escritório, onde estava sentado um homem baixo, quase calvo, vestindo um velho casaco de tweed e calças de veludo côtelé, e examinando atentamente um quadro. Parecia ter a idade de seu pai. Havia outro homem observando o quadro, o que fez Sally se deter. Devia ter pouco mais de um metro e oitenta, com aquele tom de pele morena dos italianos, que geralmente só se encontra nas revistas; e esse tinha idade suficiente para ser seu irmão. "Seria o senhor Bouchier?", perguntou-se. Esperava que sim, porque, se fosse ele o dono da galeria, talvez conseguisse arranjar coragem suficiente para se apresentar, isto é, se o homenzinho do casaco surrado fosse embora. Nesse momento, o jovem ergueu o olhar e dirigiu-lhe um amplo sorriso. Sally virou-se rapidamente e começou a estudar os quadros da parede oposta. Tornou a se perguntar se valeria a pena demorar-se mais, quando os dois homens saíram subitamente do escritório e começaram a caminhar para a porta. Ficou paralisada, fingindo concentrar-se num retrato de uma jovem em pastel de tons azuis e amarelos, um quadro que tinha algo da qualidade de um Matisse. - O que você tem aí dentro?

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- perguntou uma voz atrevida. Sally, virando-se, deparou-se com os dois homens. O mais baixo apontava para sua pasta. 218 - Uns quadros - gaguejou Sally. - Sou pintora. -Vamos vê-los - disse o homem - e talvez eu possa lhe dizer se é uma boa pintora ou não. Sally hesitou. - Vamos lá, vamos lá - insistiu ele. - Não tenho o dia todo. Como pode ver, tenho de levar um cliente importante para almoçar - acrescentou, indicando o jovem alto e bem-vestido, que ainda não tinha falado. - É o senhor Bouchier? - perguntou ela, sem conseguir disfarçar seu desapontamento. - Sou. E, agora, posso ver seus quadros ou não? Sally correu rapidamente o fecho da pasta de lona e dispôs seus quadros no chão. Os dois homens se inclinaram e observaram durante algum tempo, antes de manifestar opinião. - Nada maus - disse afinal Bouchier. - Nada maus mesmo. Deixe-os comigo alguns dias e me procure na próxima semana. - Fez uma pausa. - Digamos, na segunda-feira às onze e meia. E, se tiver mais exemplares do seu trabalho recente, traga-os. Sally estava sem fala. - Não posso falar com você antes de segunda-feira - prosseguiu ele - porque a Exposição de Verão da Academia Real inaugura amanhã. Por isso, nos próximos dias, vou estar muito ocupado. E, agora, se me dá licença... O rapaz ainda estava examinando atentamente os quadros de Sally. Finalmente ergueu os olhos para ela. - Gostaria de comprar aquele do interior com o gato preto no peitoril da janela. Quanto custa? - Bem - disse Sally. - Não sei bem... - Não está à venda - disse Bouchier firmemente, orientando seu cliente para a porta. - A propósito - disse o rapaz para ela. - Chamo-me Antônio Flavelly. Meus amigos me chamam Tony. - Mas o senhor Bouchier já o empurrava para a rua. Sally voltou para casa, nessa tarde, com a pasta vazia e pronta para confessar aos pais que o dono de uma galeria de Londres tinha mostrado interesse pelo seu trabalho. Mas tratava-se apenas de interesse, insistiu ela. 219 Na manhã seguinte, Sally decidiu assistir à inauguração da Exposição de Verão da Academia Real, o que lhe daria oportunidade de constatar até que ponto seus rivais eram bons. Teve de esperar durante mais de uma hora na longa fila, que se estendia desde a porta de entrada, atravessava o parque de estacionamento e avançava pela calçada. Quando finalmente chegou ao topo da ampla escadaria, desejou ter um metro e oitenta de altura para poder ver por cima das cabeças da massa de gente que enchia todas as salas. Ao fim de umas duas horas percorrendo as inúmeras galerias, Sally estava segura de que já era suficientemente boa para poder apresentar alguns quadros seus na exposição do ano seguinte. Parou para admirar uma representação de Cristo na cruz, de Craigie Aitchison, e consultou seu pequeno catálogo azul para saber quanto custava; dez mil libras, mais do que ela poderia esperar ganhar se vendesse todos os seus quadros. Subitamente sua concentração foi interrompida, quando uma suave voz italiana disse, por trás dela: - Olá, Sally. -Voltou-se e deparou-se comTony Flavelli, que lhe sorria. - Senhor Flavelli - disse. - Tony, por favor. Gosta de Craigie Aitchison? - Acho-o soberbo! - respondeu Sally. - Conheço bem o trabalho dele e tive a sorte de ser sua aluna, quando estudava no Slade. - Ainda me recordo, não faz muito tempo, quando se podia comprar um Aitchison por duzentas, trezentas libras, no máximo. Talvez aconteça o mesmo com você, um dia. Viu mais alguma coisa que acha que eu deva ver? Sally ficou lisonjeada por um colecionador sério pedir sua opinião, e disse: - Sim, acho que a escultura "Livros sobre uma cadeira", de Julie Major, é notável. Ela tem talento e penso que tem futuro. - Você também, Sally - disse Tony. - Você acha? - perguntou Sally. - Não é importante o que eu penso - disse Tony. - Mas Simon Bouchier está convencido. 220 - Está brincando comigo? - duvidou Sally. - Não estou, não, e descobrirá por si própria quando falar com ele na próxima segunda-feira. Quase não falou de outra coisa, ontem no almoço. - "As pinceladas audaciosas, o uso invulgar das cores, a originalidade das idéias." Pensei que nunca mais se calasse. Mas prometeu-me que poderei comprar "O gato adormecido que não se mexe", logo que vocês tenham decidido o preço. Sally estava sem fala. - Boa sorte! - disse Tony, voltando-se para partir. - Embora não

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ache que precise dela. - Hesitou por um momento e depois perguntou-lhe: - A propósito, vai à exposição do Hockney? - Nem sabia que havia uma - confessou Sally. - O vernissage será hoje à tarde. Das seis às oito. - Fitando-a nos olhos, fez nova pergunta: - Gostaria de ir lá comigo? Ela hesitou, mas apenas por um momento. - Gostaria muito. - Ótimo. Podemos nos encontrar no Salão das Palmeiras do Ritz às seis e meia? - Antes que Sally lhe pudesse dizer que não sabia onde ficava o Ritz, e muito menos o Salão das Palmeiras. Tony já havia desaparecido em meio à multidão. Sally sentiu-se subitamente desajeitada e desengonçada, mas, na verdade, não tinha pensado no Ritz quando se vestira naquela manhã. Olhou o relógio - 12:45 - e começou a pensar se teria tempo suficiente para voltar a casa, mudar de roupa e estar no Ritz às 18:30. Decidiu que não tinha alternativa, pois duvidava de que a deixassem entrar num hotel tão importante vestindo jeans e uma camiseta com "O grito", de Munch. Desceu correndo a ampla escadaria e correu todo o caminho até Piccadilly, até chegar à estação do metrô mais próxima. Quando regressou a Sevenoaks - muito mais cedo do que a mãe previra -, correu à cozinha e explicou-lhe que sairia de novo em seguida. - A Exposição de Verão é boa? - perguntou a mãe. - Nada má - respondeu Sally, correndo para seu quarto. Mas, uma vez fora do alcance da mãe, murmurou entre dentes: Na verdade, nada muito estimulante. 221

- Volta para jantar? - perguntou a mãe, pondo a cabeça junto à porta da cozinha. - Acho que não - gritou Sally. Desapareceu no interior do quarto e começou a vasculhar as roupas, antes de se dirigir ao banheiro. Desceu uma hora mais tarde, depois de ter experimentado e descartado diversas peças de roupa. Observou-se no espelho do vestíbulo - o vestido era um pouco curto demais, talvez, mas, pelo menos, valorizava suas pernas. Ainda se recordava daqueles alunos da escola de arte, que, durante as aulas, passavam mais tempo olhando para as suas pernas do que para o modelo que deviam desenhar. Só esperava que Tony se sentisse igualmente cativado. - Até logo, mãe - gritou e fechou a porta antes que a mãe pudesse ver o que vestira. Sally pegou o trem que voltava para Charing Cross. Saiu na estação, sentindo-se incapaz de confessar a qualquer transeunte que não tinha idéia de onde ficava o Ritz, de modo que chamou um táxi, esperando chegar ao hotel por quatro libras, porque era tudo que levava na bolsa. Manteve os olhos cravados no taxímetro, à medida que ele passava das duas libras, depois das três depressa demais, pensou -, três libras e vinte, quarenta, sessenta, oitenta... Estava prestes a pedir ao motorista que parasse, para saltar e seguir a pé o resto do caminho, quando ele encostou na calçada. A porta foi imediatamente aberta por um homem enorme que envergava um pesado capote azul e que a saudou, erguendo o chapéu. Sally entregou as quatro libras ao motorista do táxi, sentindo-se culpada pela magra gorjeta de vinte pence. Subiu as escadas correndo, passou pela porta giratória e entrou no saguão do hotel. Consultou o relógio: 18:10. Concluiu que seria melhor sair novamente, dar uma volta lenta pelo quarteirão e voltar mais tarde. Mas, quando chegou perto cda porta, um homem elegante de casaca negra aproximou-se e perguntou: - Posso ajudá-la, senhorita? - Vim encontrar o senhor Tony Flavelli - gaguejou Sally, na esperança de que ele reconhecesse o nome. 222 - Senhor Flavelli. Ah, sim! Permita, senhorita, que a conduza à mesa dele no Salão das Palmeiras. Sally seguiu o homem de casaca ao longo do amplo corredor atapetado e depois subiu três degraus, chegando numa grande área aberta, cheia de pequenas mesas circulares, quase todas ocupadas. Foi conduzida a uma delas e, logo que se sentou, um garçom veio atendê-la: - Posso trazer-lhe alguma bebida, senhorita? Uma taça de champanhe, talvez? - Oh, não - disse Sally. - Uma Coca-Cola serve. O garçom fez uma mesura e afastou-se. Sally olhou, nervosa, em volta da sala belamente decorada. Todo mundo parecia à vontade. Era gente sofisticada. O garçom regressou, momentos depois, e colocou à sua frente um copo de cristal trabalhado com Coca-

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Cola, gelo e limão. Ela agradeceu e começou a beber o refrigerante em pequenos goles, consultando o relógio a intervalos de poucos minutos. Puxou o vestido até onde pôde, desejando ter escolhido outro mais comprido} Começava a sentir-se preocupada com o que aconteceria se Tony não aparecesse, porque não tinha dinheiro para pagar a bebida. Subitamente, viu-o, envergando um terno largo e uma camisa creme de colarinho aberto. Havia parado para cumprimentar uma jovem elegante, nos degraus. Ao fim de alguns minutos, deu-lhe um beijo na face e começou a andar na direção de Sally. - Peço desculpas - disse. - Não queria fazê-la esperar. Espero não ter chegado muito tarde. - Não chegou, não. Eu é que cheguei uns minutos mais cedo - disse Sally, perturbada, quando ele se inclinou e lhe beijou a mão. - O que achou da Exposição de Verão? - perguntou ele, quando o garçom surgiu a seu lado. - O de costume? - perguntou o garçom. - Sim, obrigado, Michael - respondeu Tony. - Gostei - disse Sally. - Mas... - Achou que teria sido capaz de fazer coisas igualmente boas - sugeriu ele. - Não pretendia deixar transparecer essa idéia - disse ela, 223

erguendo os olhos para ele, a fim de verificar se estaria caçoando dela. Mas a expressão do rosto dele permanecia séria. - Tenho certeza de que vou gostar mais do Hockney - acrescentou, enquanto o garçom colocava uma taça de champanhe sobre a mesa. - Então é melhor eu esclarecer de uma vez - disse Tony. Sally pousou o copo de refrigerante sobre a mesa e fitou-o, sem entender o que ele queria dizer. - Não há nenhuma exposição de Hockney no momento disse ele. - A menos que queira ir até Glasgow de avião. Sally ficou desorientada. - Mas você disse que... - Só queria um pretexto para voltar a vê-la. Sally sentiu-se confusa e lisonjeada, sem saber ao certo como reagir. - Deixo à sua escolha - disse ele. - Podemos jantar juntos, ou poderá simplesmente tomar o trem para Sevenoaks. - Como sabe que moro em Sevenoaks? - Estava escrito em grandes letras na parte lateral de sua pasta - disse Tony, com um sorriso. Sally também riu. - Aceito o jantar - disse. Tony pagou as bebidas e depois levou Sally para fora do hotel. Caminharam alguns metros até chegarem a um restaurante na esquina da Arlington Street. Dessa vez, Sally experimentou beber uma taça de champanhe e permitiu que Tony escolhesse o prato. Ele não podia mostrar-se mais atencioso e parecia saber tudo acerca dos mais variados assuntos, apesar de ela não conseguir descobrir exatamente o que ele fazia. Depois de ter pedido a conta, Tony perguntou se ela gostaria de tomar um café "na minha casa".

- Acho que não posso - disse ela, olhando para o relógio.

- Perderia o último trem para casa. - Então vou levá-la à estação. Não queremos que perca o último trem para casa, certo? - disse ele, assinando a conta. Dessa vez, ela percebeu que ele estava se divertindo às suas custas e corou. 224 Quando Tony a deixou em Charing Cross, perguntou: - Quando poderemos nos ver novamente? - Tenho um encontro com o senhor Bouchier às onze e meia... - na segunda-feira de manhã, se bem me lembro. Por que não festejamos com um almoço depois que ele a contratar? Estarei na galeria por volta de meio-dia e meia. Adeus - Inclinou-se e beijou-a levemente nos lábios. Sentada num vagão frio e malcheiroso do último trem de regresso a Sevenoaks, Sally não pôde deixar de pensar como teria sido o café na casa de Tony. Sally entrou na galeria alguns minutos antes das 11:30, na segunda-feira seguinte, e encontrou Simon Bouchier de joelhos no tapete, cabeça baixa, observando algumas telas. Não eram as dela, e teve esperanças de que ele pensasse delas o mesmo que ela estava pensando. Simon ergueu o olhar. - Bom-dia, Sally. São horríveis, não são? Temos de ver muita porcaria antes de conseguir encontrar alguém que tenha realmente talento. - Pôs-se de pé. - Mas, sabe, Natasha Krasnoselyodkina tem uma vantagem em relação

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a você. - E qual é? - perguntou Sally. - É capaz de arrastar multidões a qualquer vernissage. - Por quê? - Porque afirma que é uma condessa russa. Dá a entender que é descendente direta do último czar. Francamente, penso que o mais perto que ela esteve da realeza foi da rainha das Pérolas*, mas é a cara da moda, neste momento... uma espécie de "mainá"** dos > AramhTou o rei das Pérolas de Londres é um vendedor ambulante de hortaliças, cujo traje de cerimônia apresenta grande coleção de botões de pérolas. (N. da T.) ** O mainá é uma ave que, transportada para fora de seu ambiente, tem substituído as aves nativas e destruído as colheitas, apresentando temperamento agressivo. (N. da T.) 225 anos 90. Como disse Andy Warhol: "No futuro, todo mundo será famoso durante quinze minutos." Por esse prisma, parece que Natasha vai ser famosa durante trinta. Os jornais desta manhã até sugerem que ela é o novo amor na vida do príncipe Andrew. Aposto que nem se conhecem. Mas se ele aparecer no vernissage, vai lotar com certeza. Não venderemos um único quadro, evidentemente, mas vamos lotar. - Por que não vendem um único quadro? - perguntou Sally. - Porque o público não é tão estúpido quando se trata de comprar quadros. Um quadro é um grande investimento para a maior parte das pessoas; todas querem acreditar que tiveram bom olho e que investiram com sensatez. Os quadros de Natasha não satisfazem em qualquer desses aspectos. com você, no entanto, Sally, começo a pensar que devem se convencer de ambas as coisas. Mas, em primeiro lugar, deixe-me ver o resto de seu trabalho. Sally correu o fecho da pasta cheia e dispôs vinte e um quadros sobre o tapete. Simon ajoelhou-se e ficou em silêncio durante algum tempo. Quando finalmente expressou sua opinião foi apenas para repetir uma única palavra: "Consistente." - Mas vou precisar de mais ainda, e da mesma qualidade disse, depois de ter ficado de pé. - Mais doze telas, pelo menos, até outubro. Quero que se concentre em interiores... é boa em interiores. E vão ter que ser mais do que bons, se espera que eu invista meu tempo, minha experiência e bastante dinheiro em você, minha menina. Acha que consegue mais doze quadros até outubro, senhorita Summers? - Sim, claro - disse Sally, sem imaginar que outubro estava apenas a cinco meses de distância. - Isso é bom, porque, se os entregar, e eu disse se, vou arriscar a despesa de lançá-la a um público confiante, neste outono. Dirigiu-se ao seu escritório, folheou a agenda e disse: - Dezessete de outubro, para ser mais exato. Sally estava sem fala. - Por acaso não conseguirá ter uma aventura com o príncipe Charles, que dure, digamos, de fins de setembro a princípio de novembro? Isso afastaria a condessa russa das primeiras páginas dos jornais e nos garantiria uma casa cheia na inauguração. - Acho que não - disse Sally -, especialmente se pretende que eu lhe dê mais uma dúzia de telas nesse tempo. - É pena - disse Simon - porque estou convencido de que, se conseguirmos atrair os especuladores à inauguração, tenho certeza de que comprarão seu trabalho. O problema está sempre em fazer com que venham ver uma desconhecida. - Subitamente, olhou por cima do ombro de Sally e disse: - Olá, Tony. Não esperava que viesse me procurar hoje. - Talvez porque não o venho procurar - respondeu Tony. Venho apenas tentar arrebatar Sally para o que espero ser um almoço de comemoração. - A Exposição Summers - disse Simon, sorrindo de seu pequeno trocadilho* -será inaugurada não em junho na Academia Real, mas em outubro na Galeria Bouchier. Dezessete de outubro vai ser o dia do reconhecimento de Sally. - Parabéns! - disse Tony, voltando-se para Sally. - vou trazer todos os meus amigos. - Só estou interessado nos ricos - disse Simon, no momento em que outra pessoa entrava na galeria. - Natasha - disse Simon, voltando-se para uma mulher esbelta, de cabelos escuros. A primeira reação de Sally foi a de que ela deveria ser uma modelo de artistas, não uma artista. - Obrigado por vir tão depressa, Natasha. bom almoço para os dois - acrescentou, sorrindo para Tony, que não conseguia afastar os olhos da recém-chegada. Natasha nem reparou, pois seu interesse parecia voltado para as telas de Sally. Não conseguiu ocultar sua inveja quando Tony e Sally saíram da galeria. - Não a acha espantosa? - perguntou

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Sally. - Era? - respondeu Tony. - Não reparei. - Não censuro o príncipe Andrew, se tiver um caso com ela. - Droga! - disse Tony, levando a mão ao bolso interno do * Verão, em inglês, é summer, e o sobrenome de Sally, Summers. (N. da T.) 226 227

casaco. - Esqueci de dar a Simon um cheque que tinha prometido a ele. Não saia daqui, volto num minuto. Tony correu na direção da galeria, e Sally ficou à espera, na esquina, por aquele minuto que lhe pareceu terrivelmente longo, até ele reaparecer. - Desculpe. Simon estava ao telefone - explicou Tony. Segurou o braço de Sally e a fez atravessar a rua em direção a um pequeno restaurante italiano, onde também parecia ter sua mesa. Pediu uma garrafa de champanhe. - Para celebrar seu grande triunfo. - Quando Sally ergueu sua taça, em resposta, percebeu, pela primeira vez, o quanto teria de trabalhar até outubro para cumprir a promessa feita a Simon. Quando Tony lhe serviu a segunda taça, Sally sorriu. -Tem sido um dia memorável. Devia telefonar aos meus pais e contar, mas acho que nem iam acreditar em mim. Quando ele lhe encheu a terceira taça, e Sally ainda não tinha terminado a salada, Tony pegou-lhe a mão, inclinou-se e beijou-a. - Nunca encontrei uma mulher tão bonita como você - disse. - E nenhuma com tanto talento. Sally bebeu rapidamente um gole de champanhe, para ocultar o embaraço. Ainda não sabia se devia acreditar nele, mas um copo de vinho branco, seguido de dois copos de tinto, ajudaram-na a convencer-se de que devia. Depois de Tony ter assinado a conta, pediu-lhe novamente que fosse a sua casa tomar café. Sally já decidira que não conseguiria trabalhar naquele dia, de modo que acenou afirmativamente com a cabeça, consentindo. De qualquer forma, achou que tinha direito a ter aquela tarde livre. No táxi, a caminho de Chelsea, pousou a cabeça no ombro de Tony e ele começou a beijá-la suavemente. Quando chegaram à casa que ele possuía em Bayswater Street, ele a ajudou a sair do táxi, a subir os degraus e a entrar. Conduziu-a por um corredor pouco iluminado até a sala. Ela se aninhou num canto do sofá, enquanto Tony desaparecia em outra sala. Sally via confusamente os móveis e os quadros que cobriam cada 228 centímetro da parede. Tony regressou um momento depois, trazendo outra garrafa de champanhe e duas taças. Sally nem reparou que ele já não usava o casaco, a gravata e os sapatos. Tony serviu-lhe mais uma taça, que ela foi bebendo, com ele sentado ao seu lado no sofá. O braço dele deslizou em volta do seu ombro e a puxou para si. Quando a beijou de novo, ela se sentiu um pouco idiota com uma taça vazia na mão. Ele pegou a taça e colocou-a sobre a mesinha; depois tomou-a nos braços e começou a beijá-la apaixonadamente. Quando Sally se deixou cair para trás, a mão dele deslizou para o interior de sua coxa e começou a subir lentamente. A cada vez que Sally esboçava um gesto para impedi-lo de continuar, Tony parecia saber exatamente o que devia fazer. Ela nunca havia perdido o controle anteriormente, mesmo quando um estudante de arte excessivamente entusiasmado começava a ir longe demais na última fila de um cinema, mas nunca tinha conhecido alguém tão sutil como Tony. Quando o vestido lhe caiu dos ombros, ela nem sequer havia percebido que ele lhe desabotoara os doze pequenos botões das costas. Separaram-se por um segundo. Sally achou que devia fazer qualquer coisa antes que fosse tarde demais. Tony sorriu e desabotoou sua própria camisa, antes de tomá-la novamente nos braços. Ela sentiu o calor do peito dele, e ele foi tão gentil que ela não se queixou quando viu que o fecho do sutiã tinha sido aberto. Deixou-se cair para trás, gozando cada segundo, sabendo que, até aquele momento, nunca experimentara o prazer de ser verdadeiramente seduzida. Finalmente, Tony deitou-se de costas e disse: - Sim, foi um dia memorável. Mas acho que não vou telefonar aos meus pais para contar. - Riu e Sally sentiu-se levemente envergonhada. Tony era o quarto homem que fazia amor com ela, e tinha conhecido os outros muitos meses antes... anos, num dos casos. Durante a hora seguinte conversaram sobre muitas coisas, mas

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Sally só pretendia saber o que Tony sentia a respeito dela. Ele, entretanto, não lhe deu nenhuma pista. 229

Depois, mais uma vez, ele a tomou nos braços, mas, agora, arrastou-a para o chão e fez amor com ela com tal paixão, que, mais tarde, Sally perguntou a si própria se alguma vez tinha feito amor anteriormente. Conseguiu pegar o último trem para casa, mas não se pôde impedir de desejar tê-lo perdido. Durante os meses seguintes, Sally dedicou-se a transmitir suas últimas idéias às telas. Quando cada novo quadro ficava pronto, levava-o a Londres para que Simon o apreciasse. O sorriso no rosto dele foi-se tornando cada vez mais amplo, a cada novo quadro que via, e não se cansava de repetir: "Original". Sally falava sobre suas idéias para o quadro seguinte, e ele a punha a par de seus planos para a inauguração de outubro. Tony encontrava-se muitas vezes com ela para o almoço, e, depois, iam de novo à casa dele, onde faziam amor até chegar a hora de tomar o último trem para casa. Sally gostaria de poder passar mais tempo com Tony. Mas estava sempre consciente do prazo fixado por Simon, que a avisou de que a gráfica já estava terminando o catálogo e que os convites para o vernissage já estavam sendo enviados. Tony também parecia muito ocupado e, ultimamente, nem sempre conseguia encontrarse com ela nas suas viagens a Londres. Sally passara a ficar na casa dele durante a noite e pegar o trem na manhã seguinte. Tony sugeria-lhe ocasionalmente que fosse viver com ele. Quando pensava nisso - e o fazia freqüentemente -, ela refletia que a casa dele poderia facilmente converter-se num estúdio. Mas decidiu que, antes de pensar a sério nessa decisão, era preciso que a exposição fosse'um sucesso. Depois, se a sugestão se transformasse numa oferta, teria sua resposta pronta. Dois dias antes do lançamento da exposição, Sally terminou seu último quadro e entregou-o a Simon. Quando ela o retirou da pasta, ele ergueu os braços no ar e gritou: - Aleluia! É o melhor de todos. Desde que sejamos sensatos quanto aos preços, penso que, com um pouco de sorte, vamos conseguir vender pelo menos metade dos quadros antes que a exposição feche. - Só metade? - disse Sally, sem conseguir ocultar seu desapontamento. - Não seria nada mau para uma primeira tentativa, minha menina - disse Simon. - Só vendi um quadro de Leslie Arme Ivory na sua primeira exposição, e agora vendem-se todos na primeira semana. Sally ainda parecia desanimada, e Simon percebeu que talvez tivesse tido pouco tato. - Não se preocupe. Os quadros não vendidos ficarão no estoque e acabarão sendo procurados, mal comece a receber boas críticas. Sally continuava amuada. - O que achou das molduras e dospasse-partout? - perguntou Simon, tentando mudar de assunto. Sally observou as molduras dourado-escuras e os passe-partout cinzento-claros. O sorriso voltou ao seu rosto. - Estão bons, não estão? - disse Simon. - Ressaltam a cor das telas. Sally assentiu com a cabeça, mas começava a preocupar-se com relação ao custo, e se teria a oportunidade de uma segunda exposição se a primeira não alcançasse êxito. - A propósito - disse Simon -, tenho um amigo na A. L, chamado Mike Sallis, que... - A. L? - perguntou Sally. - Associação de Imprensa. Mike é fotógrafo, anda sempre à procura de uma boa história. Diz que vai aparecer e tirar uma fotografia sua ao lado de um dos quadros. Depois vai vender a fotografia à Fleete Street, e só temos que fazer figas para que Natasha esteja de folga nesse dia. Não quero lhe dar grandes esperanças, mas é possível que alguém se interesse. Nossa história por agora, é que é a sua primeira exposição desde que saiu de Slade. Não é propriamente uma história de primeira página Simon fez uma pausa, ao ver que Sally parecia novamente 230 231 desencorajada. - Mas ainda não é tarde para ter um caso com o príncipe Charles, sabe? Isso resolveria nossos problemas. Sally sorriu. - Não creio que Tony gostasse disso. Simon decidiu não fazer nova observação destituída de tato. Sally passou a tarde com Tony na sua casa de Chelsea. Ele parecia um pouco distraído, mas ela se culpou - era incapaz

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de disfarçar seu desapontamento perante a estimativa de Simon sobre o pequeno número de quadros que poderia ser vendido. Depois de terem feito amor, Sally tentou levantar a questão do que se passaria com eles depois de terminada a exposição, mas Tony mudou habilmente de assunto, afirmando que estava ansioso pelo vernissage. Nessa noite, Sally foi para casa no último trem de Charing Cross. Na manhã seguinte, acordou com a terrível sensação de que algo estava errado. Seu quarto estava despido de quadros e agora só lhe restava esperar. Contribuía para a sua disposição o fato de Tony ter dito que estaria fora de Londres, a negócios, até o dia da inauguração. Entrou no banho pensando nele. - Mas vou ser seu primeiro comprador da noite - prometera ele. - Não se esqueça de que continuo querendo comprar "O gato adormecido que nunca se mexe". O telefone tocou, mas alguém atendeu antes que Sally pudesse sair do banho. - É para você - gritou a mãe, da escada. Sally envolveu-se numa toalha e tirou o telefone da mão dela, na esperança de que fosse Tony. - Olá, Sally, é Simon. Tenho boas notícias. Mike Sallis acabou de telefonar da A. I. Virá à galeria amanhã ao meio-dia. Nessa hora todos os quadros já estarão emoldurados. Ele vai ser a primeira pessoa da imprensa a vê-los. Todos querem ser os primeiros. Estou tentando pensar em qualquer história para - 232 convencê-lo de que tem uma reportagem exclusiva. A propósito, os catálogos já chegaram. Estão fantásticos. Sally agradeceu e estava prestes a telefonar a Tony para lhe sugerir passar a noite com ele, de modo que pudessem ir no dia seguinte, juntos, à galeria; mas então se lembrou de que ele estava fora da cidade. Passou o dia ansiosa pela casa, conversando ocasionalmente com seu modelo mais acessível, "o gato adormecido que nunca se mexia". Na manhã seguinte, apanhou um trem matinal em Sevenoaks, a fim de poder passar algum tempo confrontando os quadros com as indicações do catálogo. Quando entrou na galeria, seus olhos iluminaram-se: havia seis de seus quadros pendurados, e ela sentiu, pela primeira vez, que não eram nada maus. Olhou na direção do escritório e viu que Simon estava ocupado no telefone. Ele sorriu e acenou, indicando que estaria com ela dentro de momentos. Sally olhou novamente para os quadros e depois viu um exemplar do catálogo sobre a mesa. Na capa lia-se: "Exposição Summers", por cima da reprodução de um interior que representava a sala dos pais, com uma janela aberta dando para um jardim onde cresciam ervas. Havia um gato preto adormecido no peitoril da janela, indiferente à chuva. Sally abriu o catálogo e leu a introdução na primeira página. "Por vezes, os júris consideram necessário afirmar: 'Foi difícil encontrar o vencedor deste ano'. Mas logo que põem os olhos na obra de Sally Summers, a tarefa fica facilitada. O verdadeiro talento torna-se óbvio para todos, e Sally alcançou o raro recorde de conquistar os dois prêmios principais do Slade, para óleos e para desenho, no mesmo ano. Anseio por constatar o desenvolvimento de sua carreira ao longo dos próximo anos." Era um extrato do discurso de Sir Roger de Grey, quando entregara a Sally os prêmios Mary Rischgitz e Henry Tonks no Slade, dois anos antes. Sally virou as páginas, vendo pela primeira vez a reprodução 233 de suas obras em cores. Era evidente, em cada página, a atenção que Simon prestara a cada detalhe e à diagramação. Voltou a olhar para o escritório e constatou que Simon ainda estava ao telefone. Resolveu descer ao subsolo e observar o resto das pinturas, agora que estavam todas emolduradas. A galeria inferior era uma massa de cor, e os quadros recém-emoldurados estavam tão habilmente pendurados, que até Sally os viu sob uma luz diferente. Depois de ter dado a volta à sala, Sally reprimiu um sorriso de satisfação, antes de se voltar para subir as escadas. Ao passar por uma mesa no centro da galeria, reparou numa pasta com as iniciais "N.K.". Ergueu distraidamente a capa e descobriu uma pilha de aquarelas indistintas. Enquanto folheava os esforços de sua rival, que nunca seriam exibidos, Sally teve de confessar que os auto-retratos de Natasha nua não lhe faziam justiça. Estava prestes a fechar a pasta para ir ao encontro de Simon, no andar de cima, quando se deteve subitamente. Apesar da má execução, não podia haver dúvidas quanto à identidade do

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homem a quem Natasha se agarrava, meio nua. Sally sentiu-se mal. Fechou a pasta bruscamente, atravessou depressa a galeria e subiu as escadas até o andar de cima. A um canto da grande galeria, Simon estava conversando com um homem que tinha diversas máquinas fotográficas a tiracolo. - Sally - disse ele, dirigindo-se à jovem. - Este é Mike... Mas Sally não lhes prestou atenção e começou a correr para a porta aberta, com lágrimas escorrendo pelo rosto. Dobrou à direita para St. James's, decidida a afastar-se tanto quanto possível da galeria. Mas, de súbito, parou. Tony e Natasha avançavam na sua direção, de braços dados. Sally saiu da calçada e começou a atravessar a rua, na esperança de chegar ao outro lado antes que eles a vissem. O guinchar dos freios e o súbito desvio da caminhonete chegaram muito tarde e ela foi projetada de cabeça no meio da rua. 234 Quando Sally voltou a si, sentia-se mal. Pestanejou e pareceulhe ouvir vozes. Voltou a pestanejar, mas levou alguns momentos para conseguir focalizar a vista. Estava estendida numa cama, mas não era a sua. Tinha a perna esquerda engessada e erguida no ar, suspensa por uma roldana. Sua outra perna encontrava-se por baixo do lençol e parecia estar bem. Moveu os dedos do pé esquerdo: sim, estavam ótimos. Depois começou a tentar mover os braços. Uma enfermeira aproximou-se da cama. - Bem-vinda em seu regresso a este mundo, Sally. - Há quanto tempo estou assim? - perguntou ela. - Uns dois dias - respondeu a enfermeira, verifvcando-lhe a pulsação. -Mas está se recuperando com notável rapidez. Antes que pergunte, tem uma perna quebrada, e o preto dos olhos vai desaparecer muito antes de sair daqui. Apropósito -acrescentou, enquanto se dirigia para a paciente seguinte. - Adorei sua fotografia nos jornais da manhã. E aquelas observações tão lisonjeiras que a sua amiga fez? Que tal é ser famosa? Sally quis perguntar sobre que ela estava falando, mas a enfermeira já estava tomando o pulso de outra doente. -Volte aqui - teve vontade de dizer, mas surgiu uma segunda enfermeira junto da cama, que lhe entregou uma caneca com suco de laranja. - Vai beber isto para começar - disse ela. Sally obedeceu e tentou sugar o líquido por um canudinho de plástico dobrado. - Tem uma visita - disse-lhe a enfermeira, mal ela esvaziou a caneca. - Está esperando há algum tempo. Acha que está com forças para recebê-lo? - Claro - disse Sally, não especialmente interessada em enfrentar Tony, mas ansiosa para saber o que tinha acontecido. Olhou para as portas de mola ao fundo da enfermaria, mas teve de esperar algum tempo antes que Simon aparecesse entre elas. O homem dirigiu-se logo para a cama, segurando algo que poderia ser descrito como um ramo de flores. Aplicou logo um grande beijo em seu gesso. - Sinto muito, Simon - disse Sally, mesmo antes que ele a 235

cumprimentasse. - Sei quanto trabalho e despesas teve por minha causa. E eu o deixei ficar mal dessa maneira. - E deixou mesmo - sorriu Simon. - É sempre um problema quando se vende tudo o que está pendurado logo na primeira noite. Não restou nada para os clientes antigos, e eles começam a protestar. Sally abriu a boca, espantada. - E repare que foi uma boa fotografia de Natasha, apesar de a sua ter ficado horrível. - Do que está falando, Simon? - Mike Sallis teve sua reportagem exclusiva, e Sally, sua oportunidade - disse ele, dando uma palmadinha na perna suspensa. - Quando Natasha se inclinou sobre seu corpo, caído na rua, Mike desatou a tirar fotografias. E eu próprio não teria redigido melhor as palavras dela, que foram citadas: "A mais importante das jovens artistas de nossa geração. Se o mundo perdesse um talento desses..." Sally riu ao ouvir a maldosa imitação que Simon fez do sotaque russo de Natasha. - Sally apareceu na maior parte das primeiras páginas dos jornais da manhã seguinte - prosseguiu ele. - "Pincelada da morte" no Mail; "Natureza morta em St. James", no Express. E até conseguiu um "Zás!", no Sun. Nessa tarde, os especuladores acorreram em massa à galeria. Natasha usava um vestido preto transparente e começou a fornecer à imprensa sucessivas

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apreciações sobre sua genialidade. Mas já não surtiu qualquer efeito. Já tínhamos vendido todas as telas muito antes de saírem as segundas edições. Mas, o que é mais importante, os críticos sérios dos grandes jornais já estão reconhecendo que Sally realmente tem bastante talento. Sally sorriu. - Posso não ter conseguido um caso com o príncipe Charles, mas, pelo menos, parece que correu tudo bem. - Bem, não inteiramente - disse Simon. - O que quer dizer? - perguntou Sally, subitamente ansiosa. - Disse que tinha vendido todos os quadros. 236 - É verdade, mas se você tivesse conseguido o acidente uns dias antes - brincou Simon - eu poderia ter subido os preços em pelo menos cinqüenta por cento. Mas haverá uma próxima oportunidade. - Tony comprou "O gato adormecido que nunca se mexe"? - perguntou Sally, tranqüila. - Não, atrasou-se, como habitualmente, eu acho. Foi comprado na primeira meia hora por um colecionador sério. O que me faz lembrar - acrescentou Simon, no momento em que os pais de Sally empurravam as portas da enfermaria - que vou precisar de mais quarenta telas, se quiser fazer sua segunda exposição na primavera. Por isso, é melhor começar a trabalhar já. - Olhe para mim, seu louco - disse Sally, rindo. - Como espera que eu... - Não seja preguiçosa - disse Simon, dando uma palmadinha no gesso. - É a perna que está fora de ação, não o braço. Sally sorriu e ergueu o olhar para os pais que estavam aos pés da cama. - É este o Tony? - perguntou a mãe. - Santo Deus, não, mãe - disse Sally, rindo. - Esse é Simon. É muito mais importante do que Tony. Mas console-se - confessou -, eu cometi o mesmo erro quando o vi pela primeira vez. 237 "TIMEODANAOS...

ARNOLD BACON TERIA FEITO UMA FORTUNA SE NÃO tivesse seguido o conselho do pai. A ocupação de Arnold, conforme vinha descrita em seu passaporte era "bancário". Para o leitor que aprecia esses pormenores poderei dizer que era gerente da sucursal do Barclay. Bank em St. Albans, Hertfordshire, o que, nos círculos bancários, eqüivale a ser capitão no Exército Real. O passaporte dizia igualmente que tinha nascido em 1937, sua altura era 1,72m, cabelos claros, e não apresentava marcas característlcas apesar de ter muitas rugas na testa, o que apenas servia para provar que a franzia freqüentemente. Era membro do Clube de Rotarianos local (tesoureiro honorário), do Partido Conservador (vice-presidente de departamento) e era um ex-secretáno do Festival de St. Albans. Também havia jogado rúgbi pelos Antigos Albamanos 2* XV, na década de 1960, e Squete peío St. Albans C. C, na década de 1970. No entanto, seu único exercício, nas duas últimas décadas, consistira em ocasionais jogos de golfe, com seu correspondente do Natwnal Westminster Arnold não se valia de handicaps. Durante essas excursões em torno do golfe, Arnold conseguia muitas vezes intimidar seu adversário com a convicção de que nunca deveria ter sido bancário. Após anos fazendo empréstimos a clientes que pretendiam criar seus próprios negócios adquirira a dolorosa consciência de que era um homem de negócios nato. 241 Se não tivesse escutado o conselho do pai e lhe seguido carreira no banco, só Deus sabe a que altura já poderia ter chegado. Seu colega assentiu debilmente com a cabeça e depois fez uma tacada de sete pés, direta ao buraco, ganhando o direito de não ter de pagar as bebidas. - Como vai Deirdre? - perguntou, enquanto os dois se dirigiam para o clube. - Quer comprar um serviço de jantar novo - disse Arnold, desorientando ligeiramente seu companheiro. - Não sei o que tem de errado nosso antigo serviço da coroação. Quando chegaram ao bar, Arnold consultou o relógio antes de pedir um chope para si próprio e um gim-tônica para o vencedor, já que Deirdre não o esperava pelo menos na próxima hora. Só parou de pontificar quando outro membro do clube começou a contar-lhes os boatos que corriam acerca da mulher do capitão do clube. Deirdre Bacon, a sofredora mulher de Arnold, tinha acabado por aceitar os hábitos do marido, já que estavam excessivamente arraigados para ser mudados. Embora ela tivesse opinião própria acerca do

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que teria acontecido a Arnold se ele não tivesse seguido os conselhos do pai, já não a expressava mais. Durante o noivado, considerara Arnold Bacon "um bom partido". Mas, à medida que os anos passavam, tornara-se mais realista em relação às suas expectativas e, depois de ter um casal de filhos, instalara-se na vida como dona-de-casa e mãe - embora nunca tivesse pensado seriamente em ser qualquer outra coisa. Os filhos já haviam crescido, Justin trabalhava para um advogado em Chelmsford, e Virginia casara-se com um rapaz da região, que Arnold descrevia como funcionário da Companhia de Transportes Ferroviários. Deirdre, mais precisa, dizia às amigas, no cabeleireiro, que Keith era maquinista. Durante os primeiros dez anos de seu casamento, os Bacon haviam passado as férias em Bournemouth, porque os pais de Arnold sempre tinham feito isso. Só tinham mudado para a Costa del Sol depois de Arnold ter lido no suplemento de domingo do 242 'TIMEO DANAOS..." Daily Telegraph que ali se encontrava a maioria dos gerentes bancários durante o mês de agosto. Durante muitos anos, Arnold havia prometido à mulher que fariam "qualquer coisa especial" quando chegasse o dia do seu vigésimo quinto aniversário de casamento, embora ele nunca tivesse se comprometido a ponto de definir o que queria dizer com "especial". Só quando leu na revista trimestral do pessoal do banco que Andrew Buxton, o presidente do Barclays, passaria suas férias de verão velejando pelas ilhas gregas, num iate particular, é que Arnold começou a escrever para inúmeras companhias organizadoras de cruzeiros e agentes de viagens, pedindo exemplares de suas publicações. Depois de ter estudado centenas de páginas coloridas, decidiu-se por um cruzeiro de sete dias a bordo do Princesa Corina, que partia do Pireu e percorria as ilhas gregas, ancorando em Mykonos. A única contribuição de Deirdre para a escolha foi declarar que preferia ir de novo para a Costa del Sol e gastar o dinheiro que economizariam num serviço de jantar novo. No entanto, ficou encantada ao ler, numa das publicações, que os gregos eram famosos por sua cerâmica. No momento em que entraram no ônibus que os levaria a Heathrow, o pessoal subalterno de Arnold, os outros membros do Clube dos Rotarianos e até alguns de seus clientes mais seletos já estavam fartos de ouvir descrições sobre a maneira como Arnold iria passar suas férias de verão. - vou navegar pelas ilhas gregas num barco de cruzeiro dizia ele. - Mais ou menos como o presidente do banco, Andrew Buxton, sabe. - Se alguém perguntava a Deirdre o que ia fazer nas férias, ela respondia que iam fazer uma excursão de sete dias, e que a única coisa que pretendia era voltar para casa com um novo serviço de jantar. O velho serviço da "coroação" que os pais de Deirdre lhe deram como presente de casamento, cerca de vinte e cinco anos antes, encontrava-se lamentavelmente desfalcado. Vários pratos estavam quebrados ou lascados, e o desenho das coroas e cetros das peças ainda em condições tinha quase desaparecido. 243

- Eu não vejo o que há de errado com o serviço - disse Arnold, quando a mulher levantou a questão mais uma vez, enquanto esperavam a partida em Heathrow. Deirdre não se deu ao trabalho de citar novamente os defeitos. Arnold passou a maior parte do vôo para Atenas queixando-se de que o avião ia cheio de gregos. Deirdre não achou que valesse a pena explicar-lhe que, quando se reservava uma passagem na Olympic Airways, o resultado mais provável era esse. Também sabia que a resposta seria: - Mas economizamos vinte e quatro libras. Quando pousaram no Aeroporto Internacional Helenikon, os dois veranistas tomaram um ônibus. Arnold duvidava de que ele tivesse passado pelo MOT* em St. Albans, mas, apesar de tudo, o veículo conseguiu transportá-los até o Centro de Atenas, onde se registraram por uma noite num hotel duas estrelas (duas estrelas gregas). Arnold descobriu rapidamente a agência local do Barclays e descontou um dos seus cheques de viagem, explicando à mulher que não valia apena trocar mais, pois, a bordo do navio, tudo já estaria pago. Estava certo de

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que era assim que os homens de negócios agiam. Os Bacon levantaram-se cedo na manhã seguinte, principalmente porque não tinham conseguido dormir muito. Seus corpos rolavam continuamente para o centro de um colchão côncavo e cheio de saliências, e suas orelhas doíam depois de terem repousado durante uma noite em cima de travesseiros convexos, duros como tijolos. Antes que o sol nascesse Arnold pulou da cama e abriu uma pequena janela que dava para o pátio dos fundos. Espreguiçou-se e declarou que nunca se sentira tão bem. Deirdre t não fez comentários, porque já estava guardando as roupas na mala. Durante o café da manhã - uma refeição que consistiu num croissant, que Arnold achou muito pegajoso e que, de qualquer * MOT são as iniciais de Ministry of Transport (Ministério dos Transportes). Na Inglaterra, é obrigatório um teste MOT anual para todos os veículos motorizados com um determinado tempo de serviço. (N. da T.) 244 forma, se desfazia entre seus dedos, um queijo de cujo cheiro não gostou, e uma xícara vazia, porque a gerência se recusara a servir chá - surgiu uma longa discussão entre ambos sobre se deveriam tomar um táxi ou um ônibus para o porto. Chegaram ambos à conclusão de que um táxi seria mais sensato; Deirdre, porque não queria ir apertada num ônibus quente cheio de atenienses suados; Arnold, porque queria ser visto chegando ao local de embarque num carro. Arnold, depois de pagar a conta - tendo conferido três vezes a pequena lista de números que lhes foi apresentada antes de se decidir a separar-se de mais um cheque de viagem -, chamou um táxi e deu instruções ao motorista para que os levasse ao cais. A viagem, mais longa do que ele esperava, num carro antigo e sem ar condicionado, não o deixou de bom humor. Quando pôs os olhos pela primeira vez no Princesa Corina, Arnold não foi capaz de disfarçar seu desapontamento. O navio não era tão grande nem tão moderno como lhe parecera no folheto colorido. Teve a sensação de que seu presidente nunca tivera o mesmo problema. O senhor e a senhora Bacon subiram a prancha de embarque e foram escoltados ao camarote, que, para grande consternação de Arnold, consistia em dois beliches, um lavatório, um chuveiro e uma vigia, sem espaço suficiente entre os beliches para que ambos pudessem despir-se ao mesmo tempo. Arnold afirmou à mulher que aquele camarote não constava do folheto, apesar de ter sido descrito na tarifa como econômico de luxo. O folheto devia ter sido elaborado por um agente imobiliário desempregado, concluiu. Arnold saiu para dar uma volta no convés - uma excursão relativamente curta. No caminho encontrou um advogado de Chester que passeava inocentemente na direção oposta, com sua mulher. Depois que Arnold ficou sabendo que Malcolm Jackson era sócio antigo da firma de advogados em que trabalhava, e que sua mulher, Joan, era magistrada, sugeriu que almoçassem todos juntos. Depois de terem escolhido a refeição no bufê, Arnold não perdeu tempo para dizer aos novos amigos que era um homem de negócios nato, explicando, por exemplo, as modificações imediatas 245 que introduziria no Princesa Corina para melhorar sua eficiência, caso fosse presidente daquela linha de navegação. (A lista, receio, era excessivamente longa para caber num conto.) O advogado, que nunca fora obrigado a ouvir as opiniões de Arnold, pareceu gostar de ouvi-las, enquanto Deirdre conversava com Joan, explicando-lhe que tinha esperanças de encontrar um novo serviço de jantar nas ilhas. - Os gregos são famosos pela sua cerâmica, sabia? - dizia ela constantemente. A conversa não variou muito quando os dois casais voltaram a reunir-se no jantar. Embora os Bacon estivessem cansados, depois do primeiro dia a bordo, nenhum deles dormiu muito durante a noite. Mas Arnold não estava disposto a confessar, enquanto se balançavam sobre as ondas do Egeu, no seu pequeno camarote, que, se pudesse escolher, teria preferido o hotel duas estrelas (duas estrelas gregas) com seu colchão cheio de calombos e os travesseiros duros como tijolos, aos beliches em que agora eram atirados de um lado para o outro. Após dois dias de mar, o barco aportou em Rodes, e, a essa altura, já nem Arnold lhe chamava navio. A maior parte dos passageiros acotovelou-se na prancha de desembarque,

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encantada por ter oportunidade de passar algumas horas em terra firme. Arnold e Malcolm dirigiram-se ao Barclays Bank mais próximo para descontar os respectivos cheques de viagem, enquanto Deirdre e Joan seguiam na direção oposta, em busca de um serviço de jantar. No banco, Arnold explicou imediatamente ao gerente quem era ele, o que fez com que ele e Malcolm tivessem conseguido uma insignificante melhoria na taxa de câmbio anunciada. Arnold sorria quando saíram do banco e começaram a caminhar pela rua poeirenta, pavimentada com pedras redondas. - Eu devia ter ido para o negócio de títulos, sabe - disse ele a Malcolrn, quando desciam a rua. - Teria ganho uma fortuna. A busca do serviço de jantar de Deirdre não foi tão fácil. As lojas eram numerosas, e a qualidade, variada. Ela descobriu rapidamente que havia muitos ceramistas em Rodes. Por isso, era necessário determinar qual deles era o mais considerado pelas pessoas do local e depois descobrir a loja que vendia o que ela pretendia comprar. Essas informações podiam ser obtidas com as velhas vestidas de preto que se sentavam, silenciosas, nas esquinas e, das quais apenas uma em cada dez, segundo ela descobriu, falava um inglês sofrível. Enquanto o marido estava no banco poupando alguns dracmas, Deirdre conseguiu obter todas as informações de que precisava. Os quatro encontraram-se numa pequena taberna, no centro da cidade, para almoçar. Enquanto comiam um prato de souvlakia, Arnold tentou convencer Deirdre de que, como iam visitar cinco ilhas durante o cruzeiro, talvez fosse mais sensato esperar até chegar ao último porto para comprar o serviço no último momento possível. - Os preços vão baixando, sem dúvida - declarou Arnold -, à medida que nos aproximarmos de Atenas. - Falava com ares de um autêntico homem de negócios. Embora Deirdre já tivesse encontrado um serviço de trinta e duas peças de que gostava, a um preço dentro do orçamento previsto, concordou, relutante, com a sugestão de Arnold. Sua concordância era em boa parte resultante do fato de que o marido estava de posse de todos os cheques de viagem. Quando o navio aportou em Heraklion, Creta, Arnold já vetara todos os ingleses a bordo, permitindo apenas a um major (Reserva Territorial) e esposa que almoçassem com eles - mas só depois de descobrir que o sujeito tinha uma conta no Barclays. Seguiu-se um convite para jantar depois de ter vindo a saber que o major jogava bridge de vez em quando com o gerente de área de Arnold. A partir desse momento, Arnold passou muitas horas felizes no bar, explicando ao major e a Malcolm -já nenhum deles o escutava - o motivo por que não deveria ter seguido o conselho do seu pai e ido trabalhar, como ele, no banco, porque era, afinal, um homem de negócios nato. Quando o navio levantou âncora e partiu de Santorini, Deirdre já sabia exatamente que tipo de serviço pretendia e como determinar rapidamente qual o vendedor de cerâmica com que devia 246 247 tratar, logo que pusesse o pé num novo porto. Mas Arnold continuou a insistir em que esperassem por um mercado maior, à medida que se aproximavam de Atenas. - A maior concorrência força a baixar os preços - explicou ele, pela enésima vez. Deirdre achou que não valia a pena dizer-lhe que os preços pareciam estar subindo a cada nó da viagem de regresso à capital grega. Faros apenas serviu para reforçar as suspeitas de Deirdre - se ainda precisassem de reforço - de que os preços eram notavelmente mais altos do que os de Santorini. Quando o Princesa Corina se dirigiu para Mykonos, Deirdre sentiu que, apesar do porto final provavelmente lhe fornecer um serviço de jantar satisfatório, com certeza já não seria a um preço que eles pudessem pagar. Arnold continuava a garantir-lhe, com a segurança de alguém que conhece essas coisas, que tudo iria correr bem. Chegou mesmo a bater com a ponta do indicador na parte lateral do nariz. O major e Malcolm tinham chegado à fase de se limitar a acenar com a cabeça, para indicar que ainda estavam acordados. Deirdre foi uma das primeiras pessoas a descer a prancha de desembarque quando atracaram em Mykonos, naquela sexta-feira de manhã. Disse ao marido que ia fazer um reconhecimento das lojas de cerâmica, enquanto ele fazia o mesmo com os bancos. Joan e a mulher do major mostraram-se

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felizes por acompanhar Deirdre, que, naquela ocasião, já se tinha tornado perita em cerâmica grega. As três senhoras principiaram sua busca no extremo norte da cidade, e Deirdre ficou aliviada ao constatar que havia muito mais lojas em Mykonos do que em qualquer das outras ilhas. Também descobriu, com a ajuda de diversas senhoras vestidas de preto, que havia na cidade um ceramista famoso, cujo trabalho só se podia comprar numa loja, a Casa de Pétros. Logo que Deirdre descobriu esse estabelecimento, passou o resto da manhã inspecionando todos os serviços de jantar que ele vendia. Ao fim de algumas horas, chegou à conclusão de que o serviço Delphi, que estava exposto em posição de proeminência no centro da loja, seria uma excelente aquisição para qualquer dona-de-casa de St. Albans. Mas, como custava o dobro de todos 248 os que já vira nas outras ilhas, sabia que Arnold o rejeitaria, por estar fora da faixa de preços pretendida. Quando as três senhoras finalmente saíram da loja, para almoçar com os maridos, umjovem bonito, de camiseta suja ejeans rasgadas, ostentando uma barba de dois dias, colocou-se diante delas e perguntou: - Ser inglesas? Deirdre deteve-se e o fitou nos olhos muito azuis durante um momento, sem nada dizer. Suas companheiras saíram da calçada para a rua pavimentada e apressaram o passo, fingindo que o estranho não tinha falado com elas. Deirdre sorriu-lhe, quando ele se afastou um pouco deixando-a prosseguir seu caminho. Arnold a aconselhara a nunca conversar com os nativos. Quando chegaram ao Regga Kokkinh*, o restaurante onde tinham combinado encontrar-se para almoçar, as três senhoras foram encontrar os maridos bebendo cerveja importada no bar. Arnold estava explicando ao major e a Malcolm o motivo por que tinha se recusado a pagar sua subscrição ao Partido Conservador nesse ano. - Não levam nem um penny - insistia ele - enquanto não conseguir pôr a casa em ordem. - Deirdre suspeitava de que a recusa em pagar tinha muito mais a ver com sua recente derrota na candidatura ao lugar de presidente do departamento local. Arnold passou a hora seguinte dando opiniões acerca de todos os assuntos, como os cortes na defesa, os viajantes da Nova Era e os pais solteiros, coisas contra as quais se manifestava decididamente. Quando a conta foi finalmente apresentada, passou um tempo considerável investigando o que cada um tinha comido, e, portanto, com quanto teria de contribuir para o total. Arnold se resignara à idéia de que teria que gastar parte de sua tarde regateando em nome de Deirdre, já que finalmente ela encontrara o serviço de jantar que lhe agradava. Todos tinham concordado em acompanhá-los, para ver o homem de negócios nato em ação. O Tapete Vermelho. (N. da T.) 249 Quando Arnold entrou na Casa de Pétros, teve de confessar que, aparentemente, Deirdre tinha localizado o estabelecimento correto". Fartou-se de repetir essa observação, como para provar que tivera razão em insistir com ela para que esperasse o último porto de desembarque antes que fosse tomada a grande decisão. Pareceu, felizmente, não se dar conta de como o preço havia aumentado de ilha para ilha, e Deirdre não fez esforço algum para elucidá-lo. Limitou-se a conduzi-lo até o serviço Delphi, exposto numa grande mesa no centro do estabelecimento, e a rezar. Todos concordaram que era magnífico, mas, quando Arnold foi informado do preço, abanou a cabeça tristemente. Deirdre poderia ter protestado, mas, tal como tantos clientes do banco ao longo dos anos, já tinha visto aquela expressão no rosto do marido. Por isso, resignou-se a comprar o serviço Faros - excelente, mas indiscutivelmente menos bonito do que o outro, embora muito mais caro do que outros serviços semelhantes que ela vira em outras ilhas. As três mulheres começaram a selecionar as peças que gostariam de comprar, enquanto os maridos lhes recordavam gravemente até que ponto poderiam gastar. Feitas as escolhas, Arnold passou tempo considerável discutindo com o lojista. Finalmente conseguiu obter um desconto de vinte por cento sobre o valor total. Uma vez determinado o preço, Arnold foi enviado a um banco inglês onde poderia trocar os cheques de viagem necessários. com os passaportes e os cheques assinados na mão, abandonou a loja para desempenhar sua missão. Quando estava saindo do estabelecimento, o

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rapaz que abordara Deirdre saltou no seu caminho e perguntou: - Você inglês? - Naturalmente - respondeu Arnold, desviando-se e começando a caminhar rapidamente, para evitar mais conversas com um indivíduo com tão mau aspecto. Como dissera ao major no almoço: "Timeo Danaos et dona ferentis"*. Era a única frase em latim que ainda conseguia recordar-se, dos seus tempos de escola. * "Temo os gregos, mesmo quando trazem presentes" (Virgílio - Eneida, ii, 48). (N. da T.) 250 Depois de ter escolhido um banco, Arnold foi direto à mesa do gerente e trocou os cheques de todos por uma taxa melhor (a diferença era insignificante) que a indicada no quadro da vitrine. Satisfeito por ter poupado cinqüenta dracmas, regressou à Casa de Pétros. Ficou irritado ao ver que o jovem continuava a passear na calçada em frente à loja. Recusou-se sequer a olhar para a figura malbarbeada, mas não deixou de escutar suas palavras: - Quer economizar dinheiro, inglês? Arnold deteve-se, como faria qualquer homem de negócios nato, e voltou-se para observar mais atentamente o indivíduo mal-trajado que o abordara. Estava prestes a seguir seu caminho, quando o jovem disse: - Eu sei onde vender louças por metade do preço. Arnold hesitou uma vez mais e espreitou pela vitrine da loja, vendo seus amigos à sua espera de seu regresso; sobre o balcão estavam seis grandes embrulhos, à espera do pagamento. Arnold voltou-se de novo para observar mais atentamente o desconhecido jovem. - O ceramista é da aldeia chamada Kalafatis - disse ele. Viagem de ônibus só meia hora, tudo metade do preço. Enquanto Arnold digeria essa informação, a mão do jovem grego ergueu-se, com esperança, para ele. Arnold extraiu uma nota de cinqüenta dracmas do rolo de dinheiro que obtivera no banco, disposto a especular com os lucros que poderia obter naquela transação, em troca da informação que acabava de receber - ato de um autêntico homem de negócios, pensou, enquanto se dirigia triunfalmente para a loja. - Fiz uma importante descoberta - anunciou ele, fazendo sinal para que os amigos o acompanhassem a um canto da loja. Queria contar a novidade. Deirdre não pareceu muito convencida, até Arnold sugerir: - Talvez pudéssemos comprar o serviço Delphi, que você preferia, minha querida. De qualquer forma, para que pagar o dobro, quando o único sacrifício exigido é meia hora de viagem de ônibus? 251

Malcolm disse estar de acordo, assentindo com a cabeça, como se escutasse um sábio conselho, e até o major, apesar de protestar um pouco, acabou por concordar. - Como partiremos para Atenas no início da tarde - declarou o major -, é melhor pegar já o ônibus para Kalafatis. Arnold concordou e, sem uma palavra, conduziu todos para fora da loja, sem olhar sequer para os embrulhos que ficaram sobre o balcão. Quando chegaram à rua, Arnold ficou satisfeito ao ver que o jovem que lhe dera a informação já desaparecera. Dirigiram-se à parada de ônibus, onde Arnold ficou um pouco desapontado ao ver diversos passageiros do navio já na fila, mas convenceu-se de que não seguiam na mesma direção. Esperaram quarenta minutos sob sol forte até aparecer o ônibus. Quando Arnold viu o veículo, sentiu um choque. - Pensem só no dinheiro que vamos economizar - disse, quando notou as expressões de desespero nos rostos dos seus companheiros. A viagem ao longo da ilha até a costa oriental poderia ter levado trinta minutos, se tivesse sido feita num Range Rover, sem motivos para diminuir a marcha. Mas, como o motorista recolhia todo mundo que via pelo caminho, sem se preocupar com as paradas fixas, acabaram por chegar a Kalafatis uma hora e vinte minutos mais tarde. Muito antes de descerem do velho veículo, Deirdre estava exausta, Joan exasperada, e a mulher do major começava a sofrer os sintomas de uma enxaqueca. - Ônibus não segue mais - disse o motorista, quando Arnold e os seus companheiros saíram. - Viagem de regresso a Khóra dentro de uma hora. Ultimo ônibus do dia O pequeno grupo olhou para o caminho estreito e sinuoso que conduzia à oficina do ceramista. - A viagem valeu a pena só

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pela vista - arquejou Arnold, ao chegar ao meio do caminho, olhando para o Egeu. Seus amigos nem sequer se deram ao trabalho de parar para olhar, quanto mais de formular uma opinião. Necessitaram de mais dez minutos de 252 uma decidida caminhada para chegar ao seu destino, e, a essa altura, Arnold estava reduzido ao silêncio. Quando os seis fatigados turistas finalmente entraram na olaria, perderam o pouco fôlego que lhes restava. Olharam, hipnotizados, para as prateleiras cheias de belos objetos. Arnold sentiu-se invadir por uma quente onda de triunfo. Deirdre entrou imediatamente em ação e rapidamente localizou o serviço Delphi. Parecia-lhe ainda mais magnífico, mas, quando consultou uma pequena etiqueta pendurada na asa de uma terrina, ficou horrorizada ao descobrir que o preço era apenas ligeiramente inferior ao indicado na Casa de Pétros. Deirdre tomou uma decisão. Voltou-se para o marido, que estava apreciando um suporte para cachimbos, e declarou, em voz suficientemente alta para todos poderem ouvir: - Como é tudo pela metade do preço, Arnold, presumo que posso comprar o Delphi. Todos os outros se voltaram para ver como reagia o grande homem de negócios. Arnold pareceu hesitar por um momento, antes de pousar o suporte para cachimbos na prateleira, mas disse: - Evidentemente, minha querida. Não foi por isso que fizemos todo esse percurso? As três mulheres começaram imediatamente a selecionar artigos das prateleiras, que incluíram no final um serviço de jantar completo, dois serviços de chá, um serviço de café, três jarras, cinco cinzeiros, dois jarros e um suporte para torradas. Arnold abandonou o suporte para cachimbos. Quando a conta das compras de Deirdre foi apresentada a Arnold, ele hesitou novamente, mas sentia-se penosamente consciente de que todos os seus cinco companheiros de viagem o olhavam. com relutância, descontou os cheques de viagem restantes, sem olhar sequer para a taxa de câmbio desfavorável exposta na vitrine. Deirdre não fez comentários. Malcolm e o major assinaram silenciosamente seus próprios cheques de viagem, sem exibir grande manifestação de triunfo. Depois de pagas as mercadorias, os seis turistas abandonaram 253

a loja, carregados com seus embrulhos. Quando começaram a descer o caminho sinuoso, a porta da olaria fechou-se atrás deles. -Temos que correr para não perder o último ônibus - gritou Arnold, avançando para o meio do caminho, a fim de se desviar de um grande Mercedes creme que estava estacionado à porta da loja. - Mas valeu a pena a excursão - acrescentou, descendo o caminho com dificuldade. - Vocês têm que admitir que lhes poupei uma fortuna. Deirdre foi a última a sair da loja. Parou para ajeitar melhor seus numerosos embrulhos e ficou surpresa ao ver o pessoal da loja em fila junto de uma mesa ao fundo do estabelecimento. Um jovem bonito, de camiseta suja ejeans rasgado, estava entregando a cada um deles um pequeno envelope castanho. Deirdre não conseguia afastar os olhos do rapaz. Onde o teria visto? O jovem ergueu o olhar e, por um momento, ela fitou seus olhos azul-escuros. E, então, lembrou-se. O rapaz encolheu os ombros e sorriu. Deirdre devolveu-lhe o sorriso, pegou seus embrulhos e partiu atrás de seus amigos. Quando entraram no ônibus, Deirdre chegou mesmo a tempo de ouvir Arnold declarar: - Pois é, major, eu não devia ter seguido o conselho de meu pai e decidido ser bancário. Compreenda, eu sou um homem de negócios nato... Deirdre sorriu novamente, ao olhar pela janela e ver o rapaz bonito passar por eles no seu Mercedes creme. Ele lhe sorriu também e acenou-lhe, quando o último ônibus retomava seu lento caminho de regresso a Mykonos. 254 OLHO POR OLHO

Sir MATTHEW ROBERTS, CONSELHEIRO DA RAINHA, fechou o dossiê e colocou-o sobre a mesa, à sua frente. Não se sentia muito feliz. Estava resolutamente disposto a defender Mary Banks,

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mas não se sentia muito seguro quanto ao fato de ela se declarar inocente. Sir Matthew recostou-se na sua confortável poltrona de couro, para pensar no caso, enquanto aguardava a chegada do solicitador de instruções que o havia informado, e do advogado subalterno que tinha escolhido para o caso. Enquanto olhava para o pátio do Middle Temple*, desejava ardentemente ter tomado a decisão certa. Aparentemente, o caso de Regina vs. Banks era um simples caso de homicídio; mas, depois daquilo a que Bruce Banks sujeitara a mulher durante os onze anos de casamento, Sir Matthew confiava não só em que conseguiria reduzir a pena para homicídio em legítima defesa, mas também que, se o júri contasse com muitas mulheres, talvez até fosse possível conseguir uma absolvição. Havia, porém, uma complicação. Acendeu um cigarro e tragou profundamente, algo que a mulher sempre reprovara. Olhou para a fotografia de Victoria sobre a mesa à sua frente. Recordava-lhe sua juventude; aliás, Victoria seria sempre jovem - a morte havia garantido isso. * Uma das quatro sociedades legais, em Londres, que, no seu conjunto, constituem as Inns of Court. (N. da T.) 257

com relutância, forçou a mente a regressar à sua cliente e ao seu pedido de atenuação da pena. Reabriu o dossiê. Mary Banks afirmava que não poderia ter assassinado o marido com um machado nem enterrá-lo no chiqueiro, porque, na ocasião de sua morte, não só estava internado no hospital local, como cega. Quando Sir Matthew tragou novamente o cigarro, ouviu alguém bater à porta. - Entre - gritou, não por gostar do som da própria voz, mas porque as portas de seu gabinete eram tão espessas, que, se não gritasse, ninguém o ouviria. O empregado de Sir Matthew abriu a porta e anunciou-lhe a presença do Dr. Bernard Casson e do Dr. Hugh Witherington. Dois homens muito diferentes, pensou Sir Matthew, quando entraram no gabinete, mas cada um deles serviria para o fim que lhe tinha destinado naquele caso. Bernard Casson era um advogado da velha escola - formal, meticuloso e sempre esmeradamente correto. Seu terno de corte conservador nunca parecia mudar de um ano para outro; Matthew chegara a pensar que ele comprara meia dúzia de ternos num saldo e os usava um em cada dia da semana. Observou Casson por cima dos óculos de meia-lua. O fino bigode do solicitador e a risca perfeita do cabelo davam-lhe ar tão antiquado, que enganara alguns adversários, que lhe atribuíam uma mentalidade de segunda classe. Sir Mathew dava sempre graças a Deus pelo fato de seu amigo não ser bom orador, porque, se Bernard fosse um defensor de causas em tribunal, Matthew não apreciaria muito a idéia de ter que enfrentá-lo. Um passo atrás de Casson estava seu assistente naquele caso, Hugh Witherington. Deus devia estar muito pouco generoso no dia em que Witherington viera ao mundo, porque não lhe fornecera nem beleza, nem miolos. Se Ele lhe concedera outros talentos, ainda não se haviam sido revelados. Ao fim de várias tentativas, Witherington tinha finalmente conseguido entrar para o foro, mas, dado o número de casos que lhe eram oferecidos, teria conseguido rendimento mais regular com o seguro-desemprego. O empregado de Sir Matthew erguera uma sobrancelha quando 255 o nome de Witherington fora indicado como advogado assistente para aquele caso, mas Sir Matthew limitara-se a sorrir e não fornecera qualquer explicação. Sir Matthew pôs-se de pé, apagou o cigarro e indicou aos dois homens as poltronas diante de sua mesa. Esperou que ambos se instalassem antes de começar. - Foi muita amabilidade de sua parte ocupar-se desse caso, Dr. Casson - disse ele, embora ambos soubessem que o advogado não fazia mais do que cumprir as tradições do foro. - Foi um prazer, Sir Matthew - respondeu o idoso advogado, fazendo uma ligeira reverência para demonstrar que continuava a apreciar as antigas cortesias. - Penso que não conhece Hugh Witherington, meu assistente nesse caso - disse Sir Matthew, apontando com um gesto o pouco notável advogado mais jovem. Witherington levou nervosamente a mão ao lenço de

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seda do bolso do casaco. - Não, não tinha tido o prazer de conhecer o Dr. Witherington, até nos encontrarmos há pouco no corredor - disse Casson. - Permita-me que lhe diga que estou encantado pelo fato de o senhor ter aceitado esse caso, Sir Matthew. Matthew sorriu perante o estilo formal de seu amigo. Sabia que Bernard nunca sonharia tratá-lo pelo primeiro nome na presença do assistente. - Sinto-me muito feliz por voltar a trabalhar com o senhor, Dr. Casson. Embora, dessa vez, me tenha entregue um caso de certo modo complicado. Terminadas as amabilidades convencionais preliminares, o idoso advogado extraiu um dossiê castanho de sua velha pasta Gladstone. -Voltei a entrar em contato com minha cliente desde a última vez que nos vimos - disse, abrindo o dossiê - e aproveitei a oportunidade para lhe transmitir sua opinião. Mas receio que a senhora Banks esteja decidida a declarar-se inocente. - Então ela continua a afirmar sua inocência? - Sim, Sir Matthew. A senhora Banks afirma categoricamente que não poderia ter cometido o crime porque estava cega, 259 cegueira, aliás, provocada pelo marido, alguns dias antes de morrer. De qualquer forma, na hora de sua morte, ela estava internada no hospital local. - O relatório do patologista é singularmente vago quanto à hora da morte - recordou Sir Matthew a seu velho amigo. Afinal, só descobriram o corpo pelo menos duas semanas depois. Segundo penso, a polícia acha que o homicídio poderia ter sido cometido vinte e quatro ou mesmo quarenta e oito horas antes de a senhora Banks ter dado entrada no hospital. - Também li o relatório dele, Sir Matthew - respondeu Casson -, e informei a senhora Banks do seu teor. Mas ela insiste em dizer que está inocente e acredita que o júri se convencerá disso. "Especialmente tendo Sir Matthew Roberts como meu defensor", foram as palavras que ela usou, se bem me lembro acrescentou o advogado com um sorriso. - Não me deixo seduzir? Dr. Casson - disse Sir Matthew, acendendo outro cigarro. - Prometeu a Victoria... - interrompeu o solicitador, baixando a guarda, mas apenas por um breve momento. - Portanto, tenho uma última possibilidade de convencê-la - disse Sir Matthew, sem fazer caso do comentário do amigo. - E a senhora Banks tem uma última oportunidade de convencê-lo - disse o Dr. Casson. - Touché - brincou Sir Matthew, assentindo com a cabeça, para manifestar seu apreço pela rápida resposta do solicitador, enquanto apagava o cigarro quase inteiro. Sentiu que estava perdendo a luta com seu velho amigo e que tinha chegado a hora de passar ao ataque. Voltou-se para o dossiê aberto sobre sua mesa. - Em primeiro lugar - disse, olhando diretamente para Casson, como se seu colega estivesse no banco das testemunhas -, quando o corpo foi desenterrado, havia vestígios de sangue da sua cliente no colarinho da camisa do morto. - Minha cliente aceita isso - disse Casson, consultando calmamente suas próprias notas. -Mas... - Em segundo lugar - interrompeu Sir Matthew, antes que 260 Casson tivesse oportunidade de prosseguir -, quando o instrumento utilizado para golpear o corpo, um machado, foi encontrado no dia seguinte, havia um cabelo da senhora Banks preso no cabo. - Não vamos negar isso - disse Casson. - Não temos muitas alternativas - disse Sir Matthew, pondo-se de pé e começando a passear pela sala. - Em terceiro lugar, quando a pá que serviu para abrir a sepultura da vítima foi finalmente descoberta, encontravam-se nela as impressões digitais de sua cliente. - Também podemos explicar isso - disse Casson. - Mas o júri aceitará suas explicações - perguntou Sir Mathew, erguendo a voz - quando souber que o homem assassinado tinha uma longa história de violências, que sua cliente era regularmente vista na aldeia local cheia de hematomas, ou com um olho negro, por vezes sangrando em virtude de golpes na cabeça, e uma vez, mesmo, com um braço quebrado? -Ela sempre declarou que esses ferimentos tinham sido feitos quando trabalhava na fazenda que o marido dirigia. - Isso exige tal esforço de minha credulidade, que ela não o agüentará - disse Sir Matthew, parando de circular pela sala e retornando à sua cadeira. - E não nos ajuda muito o fato de a única pessoa que visitava a fazenda regularmente ser o carteiro. Aparentemente, todo mundo da aldeia se recusava a ir além do portão. -Virou outra página de suas anotações. - Isso teria

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tornado mais fácil que alguém entrasse e matasse Banks - sugeriu Witherington. Sir Matthew não conseguiu ocultar a surpresa, olhando para seu assistente, cuja presença quase fora esquecida na sala. - Um ponto interessante - disse, com pouca vontade de ceder a Witherington quando ainda tinha em seu poder mais um trunfo para jogar. - O problema seguinte que temos de enfrentar - prosseguiu - é que sua cliente afirma ter ficado cega quando o marido a atingiu com uma frigideira quente. Bastante conveniente, Dr. Casson, não lhe parece? 261 - Ainda se vê nitidamente a cicatriz no rosto de minha cliente - disse Casson. - E o médico está convencido de que ela está efetivamente cega. - Os médicos são mais fáceis de convencer do que os advogados de acusação e os juizes experientes, Dr. Casson - disse Sir Matthew, virando outra página do seu dossiê. - Em seguida, quando foram examinadas amostras do corpo... e sabe Deus quem poderia estar disposto a encarregar-se dessa tarefa, a quantidade de estricnina encontrada no corpo teria chegado para derrubar um elefante. - Essa foi apenas a opinião dos patologistas da Coroa - disse o Dr. Casson. - Uma opinião que acho difícil refutar no tribunal - disse Sir Matthew - porque o advogado de acusação vai certamente pedir à senhora Banks que lhe explique por que motivo adquiriu quatro grãos de estricnina de um fornecedor de produtos agrícolas de Reading, pouco antes da morte do marido. Se eu estivesse no lugar dele repetiria várias vezes essa pergunta. - Possivelmente - disse Casson, consultando suas notas -, mas ela explicou que estavam tendo problema com ratos, que já estavam até matando as galinhas, e receava que atacassem os outros animais da fazenda, para não falar do filho de nove anos. - Ah, sim, Rupert. Mas ele estava na escola interna naquela ocasião, não estava? - Sir Matthew fez uma pausa. - Bem vê, Dr. Casson, meu problema é simples. - Fechou o dossiê. - Eu não acredito nela. Casson ergueu uma sobrancelha. - Ao contrário do marido, a senhora Banks é uma mulher muito esperta. Reconheço o fato de que ela já levou diversas pessoas a acreditar nessa história incrível. Mas posso afirmar-lhe, Dr. Casson, que a mim ela não engana. - Mas o que podemos fazer, Sir Matthew, se a senhora Banks insiste em que está dizendo a verdade e nos pede que a defendamos nessa base? - perguntou Casson. Sir Mathew pôs-se novamente de pé e começou a dar voltas pela sala em silêncio, detendo-se diante do solicitador. 262 - Pouca coisa, concordo - disse, voltando a um tom mais conciliatório. - Mas gostaria de convencer nossa querida cliente a confessar-se culpada de homicídio em legítima defesa. com certeza, conquistaríamos a simpatia do júri, depois de tudo o que ela passou. Podemos sempre contar com um grupo de mulheres para fazer uma manifestação durante a audiência. Qualquer juiz que ditasse uma sentença severa contra Mary Banks seria considerado chauvinista e acusado de discriminação sexual pelos redatores de todos os jornais do país. Conseguiríamos tirá-la da prisão em poucas semanas. Não, Dr. Cassou, temos de convencê-la a mudar de opinião. - Mas como podemos ter esperanças de conseguir isso, quando ela afirma tão categoricamente que está inocente? perguntou Casson. Um sorriso iluminou o rosto de Sir Matthew. - O doutor Witherington e eu temos um plano, não é verdade, Hugh? - disse, voltando-se para Witherington pela segunda vez. -Sim, Sir Matthew - respondeu o jovem advogado, satisfeito por finalmente terem pedido sua opinião, mesmo daquela forma rudimentar. Como Sir Matthew não lhe oferecesse qualquer pista quanto a seu plano, Casson não insistiu. - Então, quando vejo nossa cliente? - perguntou Sir Matthew, voltando de novo sua atenção para o solicitador. - Onze horas de segunda-feira seria razoável para o senhor? - perguntou Casson. - Onde ela está agora? - indagou Sir Matthew, folheando sua agenda. - Holloway - respondeu Casson. - Então estaremos em Holloway às onze horas de segundafeira - disse Sir Matthew. - E, para lhe ser franco, estou ansioso por conhecer Mary Banks. Essa mulher deve ter coragem, para não falar em imaginação. Anote o que lhe digo, Dr. Casson, ela vai ser uma digna adversária para qualquer advogado. 263

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Quando Sir Matthew entrou na sala de visitas da prisão de Holloway e viu Mary Banks pela primeira vez, ficou momentaneamente estupefato. Sabia, pelo dossiê do caso, que ela tinha 37 anos, mas a mulher frágil, de cabelos grisalhos que ali via sentada, com as mãos pousadas no colo, parecia ter uns 50. Só quando observou a estrutura óssea de seu rosto e sua figura esbelta é que percebeu que devia ter sido uma bela mulher. Sir Matthew permitiu a Casson que se sentasse diante dela à mesa de fórmica lisa, no centro da sala de tijolos de cor creme, despida de outros móveis; Havia uma pequena janela com grades no meio da parede, que projetava um feixe de luz sobre sua cliente. Sir Matthew e o assistente sentaram-se de ambos os lados do solicitador, encarregado da instrução. O advogado serviu-se ruidosamente de uma xícara de café. - Bom-dia, senhora Banks - disse Casson. - Bom-dia, Dr. Casson - respondeu ela, virando ligeiramente o rosto na direção de onde vinha a voz. - Trouxe alguém com o senhor? - Sim, senhora Banks, venho acompanhado por Sir Matthew Roberts, conselheiro da rainha, que será seu advogado de defesa. Ela fez uma ligeira reverência quando Sir Matthew, depois de erguer-se da cadeira, deu um passo à frente e disse: - Bom-dia, senhora Banks - e depois estendeu subitamente a mão direita. - Bom-dia, Sir Matthew - respondeu a mulher, sem mover um músculo, ainda olhando na direção de Casson. - Fico muito satisfeita por saber que vai me representar. - Sir Matthew gostaria de lhe fazer algumas perguntas, senhora Banks - disse Casson -, para podermos decidir qual será a melhor abordagem do caso. Ele vai assumir o papel de advogado de acusação, para que a senhora se habitue ao que a espera quando estiver no tribunal. -Compreendo - respondeu a senhora Banks. -Terei muito prazer em responder a qualquer das perguntas de Sir Matthew. Tenho certeza de que não vai ser difícil a um homem da categoria 264 dele demonstrar que uma mulher frágil e cega seria incapaz de matar a machadadas um homem violento, que pesava cem quilos. - Não se esse homem violento de cem quilos tivesse sido envenenado antes de ser morto a machadadas - disse Sir Matthew calmamente. - O que seria uma grande proeza por parte de alguém que se encontrava num leito de hospital, a cinco milhas do local onde o crime foi cometido - respondeu a senhora Banks. - Se realmente foi nessa ocasião que o crime foi cometido respondeu Sir Matthew. -Afirma que sua cegueira foi provocada por uma pancada na cabeça. - Sim, Sir Matthew. Meu marido tirou a frigideira do fogão quando eu estava preparando o café da manhã e bateu-me com ela. Eu me abaixei, mas o rebordo da frigideira pegou do lado esquerdo de meu rosto. - Levou a mão à cicatriz por cima do olho esquerdo, que, pelo seu aspecto, nunca mais viria a desaparecer durante toda a sua vida. - E depois, o que aconteceu? - Desmaiei e caí no chão da cozinha. Quando acordei tive a sensação de que havia uma pessoa na cozinha. Não tinha idéia de quem fosse até que ela falou. Então reconheci a voz de Jack Pembridge, o nosso carteiro. Ele me transportou para sua caminhonete e me levou para o hospital local. - E foi enquanto estava no hospital que a polícia descobriu o corpo de seu marido? - Exatamente, Sir Matthew. Depois que eu estava em Parkmeade, há cerca de duas semanas, pedi ao vigário, que ia me visitar todos os dias, que fosse ver como Bruce estava se arranjando sozinho. - Não se surpreendeu por seu marido não ter ido visitá-la durante o tempo que passou no hospital? - perguntou Sir Matthew, que começou a empurrar lentamente sua xícara de café para a beira da mesa. - Não. Eu tinha ameaçado deixá-lo por diversas vezes, e não acho que... - A xícara caiu da mesa e estilhaçou-se ruidosamente 265 no chão de pedra. Os olhos de Sir Matthew não se desviaram do rosto da senhora Banks. Ela deu um salto, nervosa, mas não se virou na direção da xícara quebrada. - Está bem, Dr. Casson? - perguntou ela. - Foi culpa minha - disse Sir Matthew. - Sou muito desastrado. Casson reprimiu um sorriso. Witherington não se perturbou. - Continue, por favor - disse Sir Matthew, inclinando-se e

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apanhando os pedaços de louça espalhados pelo chão. - Dizia "não acho que..." - Oh, sim - disse a senhora Banks. - Não acho que Bruce estivesse interessado em que eu voltasse para a fazenda. Para ele, tanto fazia eu voltar ou não. - Muito bem - disse Sir Matthew, depois de ter colocado os pedaços da xícara sobre a mesa. '- Mas pode explicar por que motivo a polícia encontrou um cabelo seu no cabo do machado que foi usado para esquartejar o corpo de seu marido? - Sim, Sir Matthew, posso. Estive partindo lenha para o fogão antes de preparar o café dele. - Então tenho de lhe perguntar por que motivo não havia impressões digitais no cabo do machado, senhora Banks. - Porque eu usava luvas, Sir Matthew. Se alguma vez tivesse trabalhado numa fazenda, em meados de outubro, saberia bem o frio que faz às cinco da manhã. Desta vez Casson permitiu-se sorrir. - E, quanto ao sangue encontrado no colarinho da camisa de seu marido? O investigador da Coroa diz que combinava com o seu. - Encontrará sangue meu em muitas coisas daquela casa, se procurar bem, Sir Matthew. - E a pá, que está cheia de impressões digitais suas? Esteve cavando alguma coisa antes de preparar o café naquela manhã? - Não, mas tive motivos para usá-la todos os dias na semana anterior. - Compreendo - disse Sir Matthew. - Voltemos agora a 266 nossa atenção para uma coisa que suspeito de que não fazia todos os dias, isto é, a compra de estricnina. Em primeiro lugar, senhora Banks, para que precisou de uma quantidade tão grande? Em segundo lugar, por que percorreu trinta e sete milhas até Reading para comprá-la? - Faço compras em Reading em quintas-feiras alternadas explicou a senhora Banks. - Não existe um fornecedor de produtos agrícolas mais perto. Sir Matthew franziu a testa e pôs-se de pé. Começou a circular em volta da senhora Banks, enquanto Casson observava os olhos dela. Em nenhum momento se moveram. Quando Sir Matthew estava exatamente atrás de sua cliente, consultou o relógio. Eram 11:17. Sabia que a coordenação do tempo tinha de ser perfeita, porque começava a adquirir a desconfortável consciência de que estava lidando não apenas com uma mulher esperta, mas com uma pessoa extremamente astuciosa. Imagine-se, refletiu, que uma pessoa que tivesse vivido durante onze anos com um homem como Bruce Banks teria de ser astuciosa para conseguir sobreviver. - Ainda não me explicou por que motivo precisava de tão grande quantidade de estricnina - disse ele, conservando-se atrás de sua cliente. - Estávamos perdendo muitas galinhas - respondeu a senhora Banks, sempre sem mover a cabeça. - Meu marido pensou que fossem ratos, de modo que me disse para comprar uma boa quantidade de estricnina para acabar com eles. "De uma vez por todas!", foram suas palavras. - Mas, afinal, foi ele quem acabou e de uma vez por todas, indubitavelmente, com o mesmo veneno - disse Sir Matthew, calmamente. - Eu também temia pela segurança de Rupert - disse a senhora Banks, sem se perturbar com o sarcasmo do advogado. - Mas seu filho estava internado numa escola naquela ocasião, não é verdade? - É sim, Sir Matthew, mas voltaria no fim do período, que era naquele fim de semana. 267 -Já tinha ido àquele fornecedor? - Ia lá regularmente - disse a senhora Banks, enquanto Sir Matthew completava seu círculo e a fitava novamente de frente. -vou lá pelo menos uma vez por mês, como, por certo, o gerente poderá confirmar. - Virou a cabeça e fixou o olhar a uns trinta centímetros à direita dele. Sir Mathew permaneceu silencioso, resistindo à tentação de consultar o relógio. Sabia que seria uma questão de segundos. Momentos depois, a porta no outro extremo da sala de visitas abriu-se e entrou um menino de cerca de nove anos. Todos três observaram atentamente sua cliente, enquanto a criança avançava silenciosamente para ela. Rupert Banks deteve-se em frente à mãe e sorriu, mas não obteve qualquer reação. Esperou mais uns dez segundos e depois voltou-se e saiu, exatamente como lhe tinham dito que fizesse. Os olhos da senhora Banks continuaram fixos em algum ponto entre Sir Matthew e o Dr Casson. O sorriso no rosto de Casson era quase de triunfo. - Tem mais alguém aí? - perguntou a senhora Banks. Acho que ouvi a porta se abrir. - Não - disse Sir Matthew. - Só estamos aqui o Dr. Casson e eu. - Witherington ainda não tinha

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movido um músculo. Sir Matthew começou a circular em volta da senhora Banks pela última vez. Quase chegara a acreditar que talvez a tivesse avaliado mal. Quando estava exatamente atrás dela de novo, fez um sinal com a cabeça a seu assistente, que continuava sentado em frente a ela. Witherington retirou o lenço de seda do bolso do casaco, desdobrou-o lentamente e estendeu-o sobre a mesa, à sua frente. A senhora Banks não mostrou reação alguma. Witherington estendeu os dedos da mão direita, inclinou levemente a cabeça e deteve-se antes de colocar a mão direita sobre o olho esquerdo. Sem qualquer aviso, extraiu o olho da órbita e colocou-o no meio do lenço de seda. Deixou-o ficar sobre a mesa durante uns trinta segundos e depois começou a poli-lo. Sir Matthew completou seu movimento e reparou que havia gotas de suor na testa da senhora Banks, quando se sentou. Depois de Witherington ter polido o objeto de vidro de forma arredondado, ergueu lentamente a cabeça até fitar a mulher bem de frente, e, em seguida, introduziu o olho na órbita. A senhora Banks virou momentaneamente a cabeça. Tentou rapidamente recompor-se, mas já era tarde demais. Sir Matthew levantou-se e sorriu à sua cliente. Ela lhe devolveu o sorriso. - Devo confessar, senhora Banks - disse -, que me sentiria muito mais confiante se a senhora confessasse homicídio em legítima defesa. 268 269 COMO PREFERE A CARNE?

SERIA POSSÍVEL UMA PESSOA SER TÃO BELA? Seguia no meu carro, rodeando o Aldwych, a caminho do trabalho, quando a vi pela primeira vez. Ela subia os degraus do Teatro Aldwych. Se continuasse a olhar para ela durante mais um momento, teria batido na traseira do carro que seguia à minha frente, mas, antes que pudesse confirmar minha fugaz impressão, ela havia desaparecido em meio à multidão dos freqüentadores do teatro. Descobri um espaço para estacionar à minha esquerda e me enfiei nele, de repente, sem sinalizar, provocando várias buzinadas irritadas do carro que vinha atrás de mim. Saltei do carro e corri para o teatro, compreendendo que seria pouco provável que conseguisse encontrá-la em meio a tanta gente, e que, mesmo conseguindo, ela iria provavelmente encontrar-se com o namorado ou com o marido, que teria um metro e oitenta de altura e seria parecido com Harrison Ford. Quando cheguei ao saguão de entrada, inspecionei a multidão que conversava. Fiz uma lenta volta de trezentos e sessenta graus, mas não descobri sinais dela. Deveria tentar comprar um ingresso?, perguntei a mim mesmo. Mas ela poderia estar sentada em qualquer lugar na platéia, no balcão, até mesmo no segundo balcão. Talvez devesse subir e descer até localizá-la. Mas sabia que não poderia entrar no teatro sem comprar um ingresso. De repente eu a vi. Estava numa fila diante da bilheteria com o letreiro ESPETÁCULO DESTA NOITE, e só havia uma pessoa à sua 273

frente. Atrás dela, mais duas pessoas; uma mulher jovem e um homem de meia-idade. Corri para a fila, no momento em que ela chegou perto do guichê: Inclinei-me para a frente e tentei ouvir o que ela dizia, mas só consegui escutar a resposta do bilheteiro: - Não há muitas possibilidades, pois o pano vai subir daqui a alguns minutos, minha senhora - dizia ele. - Mas, se deixar aqui, comigo, verei o que posso fazer. Ela agradeceu e caminhou na direção da platéia. Minha primeira impressão foi confirmada. Era indiferente olhá-la dos tornozelos para cima ou da cabeça até embaixo: aquela mulher era perfeita. Não conseguia tirar os olhos dela, e reparei que ela produzia exatamente o mesmo efeito em outros homens que estavam no saguão. Senti vontade de lhes dizer que não valia a pena tentarem. Não percebiam que ela estava comigo? Ou, melhor, que estaria, ao fim daquela noite. Depois que ela desapareceu de vista, olhei para dentro do guichê. O ingresso que ela entregara tinha sido colocado de lado.

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Suspirei de alívio quando a jovem à minha frente apresentou seu cartão de crédito e pediu quatro lugares no balcão. Comecei a pedir a Deus que o homem que estava atrás dela não comprasse um ingresso só. - Tem uma entrada para o espetáculo desta noite? - perguntou ele, com esperança, no momento em que soava a campainha, indicando que faltavam três minutos para o início da peça. O homem da bilheteria sorriu. Franzi a testa. Deveria dar-lhe uma punhalada nas costas, um pontapé no baixo-ventre ou, simplesmente, dois berros? - Onde deseja ficar? Balcão ou platéia? - Não diga platéia - murmurei. - Diga balcão... balcão... balcão... - Platéia - disse ele. - Tenho um na fila H - disse o bilheteiro consultando o computador à sua frente. Soltei um mudo grito interno de satisfação ao perceber que o teatro tentaria vender os ingressos que lhe restavam antes de se preocupar com as devoluções entregues pelo público. Mas como eu poderia contornar o problema? 274 No momento em que o homem à minha frente pagou o ingresso para a fila H, eu já tinha ensaiado minha fala e esperava não precisar de ponto. - Graças a Deus, pensei que não ia conseguir - comecei a dizer, tentando mostrar-me ofegante. O bilheteiro olhou para mim, mas não pareceu impressionado com minha atuação. - Foi o trânsito. E não consegui arranjar um lugar para estacionar. Minha amiga deve ter pensado que eu não vinha. Ela terá, por acaso, entregue aqui o meu bilhete, para ser vendido? Ele não pareceu convencido. Era evidente que meu diálogo não o impressionava. - Pode descrevê-la? - perguntou, desconfiado. - Cabelo escuro, cortado curto, olhos cor de avelã, um vestido de seda vermelho que... - Ah, sim, lembro bem dela - disse ele, quase suspirando. Pegou o bilhete que tinha posto de lado e entregou-me. - Obrigado - disse eu, tentando não mostrar meu alívio por ele ter reagido tão bem à deixa de minha cena final. Quando me dirigia rapidamente para a platéia, tirei um envelope de uma pilha sobre a prateleira ao lado da bilheteria. Verifiquei o preço do bilhete: vinte libras. Retirei vinte libras da carteira, coloquei no envelope, lambi, fechei. A garota que estava na entrada da platéia conferiu meu bilhete: F-l 1. Seis filas a partir da frente, do lado direito. Desci lentamente até encontrá-la. Estava sentada ao lado de um lugar vazio, no meio da fila. Enquanto passava sobre os pés das pessoas já sentadas, ela se voltou e sorriu, obviamente satisfeita por alguém ter comprado o bilhete devolvido. Retribuí o sorriso, entreguei-lhe o envelope com as vinte libras e sentei-me ao lado dela. - O bilheteiro pediu que eu lhe entregasse isto. - Obrigada. - Guardou o envelope na bolsa. Eu estava prestes a tentar a primeira frase de minha segunda cena, quando as luzes começaram a baixar e o pano subiu para o primeiro ato de uma peça de teatro de verdade. Subitamente percebi que não tinha a mínima idéia da peça que ia ver. Lancei uma olhadela no 275

programa que ela tinha no colo e li as palavras: "A visita do inspetor, de J. B. Priestley". Recordei-me de que os críticos haviam tecido grandes elogios à peça quando aparecera no National Theatre, assinalando especialmente o desempenho de Kenneth Cranham. Tentei concentrar-me no que se passava no palco. O inspetor olhava para uma casa onde uma família eduardiana se preparava para um jantar de celebração do noivado da filha. "Estive pensando em comprar um carro novo", dizia o pai ao futuro genro, por entre as fumaças de seu charuto. Ao ouvir a palavra "carro", lembrei-me subitamente de que tinha abandonado o meu na porta do teatro. Estaria na linha amarela dupla? Ou pior ainda? Não me interessava. Podiam ficar com ele em troca do modelo que tinha ao meu lado. A audiência riu, de modo que fiz o mesmo, nem que fosse para dar a impressão de que estava acompanhando o enredo. Mas, e meus planos iniciais para aquela noite? A essa altura, todo mundo devia estar pensando que me acontecera alguma coisa. Compreendi que não poderia abandonar o teatro durante o intervalo nem para ver como estava meu carro, nem para dar um telefonema explicando

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minha ausência, pois o intervalo seria a minha grande oportunidade de dar prosseguimento a meu próprio enredo. A peça estava captando o interesse do resto do público, mas eu já tinha começado a ensaiar as frases de meu roteiro pessoal, que teriam de ser pronunciadas durante o intervalo entre o primeiro e o segundo atos. Sentia-me dolorosamente consciente de que teria de me restringir a quinze minutos, e que não haveria uma segunda oportunidade. No momento em que o pano caiu, no final do primeiro ato, eu sentia confiança no texto que preparara. Esperei que terminassem os aplausos e, depois, voltei-me para ela. - Uma produção muito original - principiei. - Muito modernista. - Recordava-me vagamente de um dos críticos ter feito essa observação. - Tive sorte em conseguir um lugar no último momento. - Eu também tive sorte - respondeu ela. Senti-me encorajado. 276 - Quero dizer, por ter encontrado alguém que procurava um ingresso no último momento. Acenei afirmativamente com a cabeça. - Meu nome é Michael Whitaker. - Anna Townsend - disse ela, dirigindo-me um caloroso sorriso. - Gostaria de tomar uma bebida? - perguntei. - Obrigada - respondeu ela. - Gostaria, sim. - Fiquei de pé e encaminhei-me por entre uma multidão que se dirigia para o bar da platéia, olhando de vez em quando para trás, para ter a certeza de que ela continuava a seguir-me. De certo modo, esperava não voltar a vê-la, mas, a cada vez que me voltava, ela me dirigia o mesmo sorriso radioso. - Gostaria de beber o quê? - perguntei, quando consegui chegar junto do balcão. - Um martini seco, por favor. - Fique aqui que eu volto já - prometi, perguntando a mim mesmo quantos preciosos minutos se perderiam enquanto eu ficava à espera no bar. Tirei da carteira uma nota de cinco libras e a ergui bem à vista, na esperança de que a possibilidade de uma boa gorjeta influenciasse o senso de direção do homem do bar. Ele viu o dinheiro, mas ainda tive de esperar que quatro clientes fossem servidos antes de obter o martini seco e o uísque com gelo para mim. O homem não mereceu a gorjeta que lhe deixei, mas eu não podia perder tempo esperando o troco. Levei as bebidas para o outro extremo da sala, onde Anna estava lendo seu programa. Eu a via recostada contra uma janela, e, com aquele elegante vestido vermelho de seda, a luz realçava ainda mais sua figura esbelta e elegante. Entreguei-lhe o martini seco, consciente de que meu tempo limitado estava quase no fim. - Obrigada - disse ela, dirigindo-me outro sorriso desar- mante. - Por que tinha um bilhete extra? - perguntei, quando ela bebeu um gole do martini. - A pessoa que vinha comigo foi chamada para uma emergência 277 no último momento - explicou. - Um dos problemas de ser médico. - Foi pena. Perdeu uma peça extraordinária - apressei-me a dizer, na esperança de levá-la a dizer se"a tal pessoa era homem ou mulher. - Sim - disse Anna. - Tentei conseguir entradas quando ainda estava no National Theatre, mas estavam sempre esgotadas quando eu podia ir. Por isso, quando uma amiga me arranjou duas entradas no último momento, agarrei-me a elas com unhas e dentes. Afinal, a peça vai sair de cartaz dentro de poucas semanas. - Bebeu mais um gole do martini. - E você? - perguntou, no momento em que soava a campainha, avisando que faltavam três minutos. Não tinha previsto essa pergunta no meu roteiro. - Eu? - Sim, Michael - disse ela, com uma sugestão de ironia na voz. - Por que foi procurar uma entrada no último momento? - Sharon Stone estava ocupada esta noite e, no último momento, a princesa Diana me disse que teria adorado vir comigo, mas não queria ficar se expondo - Anna riu. - Para falar a verdade, eu tinha lido algumas críticas e vim até aqui na esperança de conseguir arranjar um ingresso extra. - E arranjou um mulher extra também - disse Anna, enquanto soava a campainha dos dois minutos. Eu não teria ousado incluir uma frase tão ousada nos diálogos dela... ou haveria um pouco de troça naqueles olhos cor de avelã? - Não há dúvida - respondi num tom despreocupado. - É médica também? - Também? - perguntou Anna. - Como a pessoa que vinha com você - disse eu, sem saber ao certo se ela ainda estaria brincando. - Sim, sou médica de clínica geral em Fulham. Somos três em sistema, mas nesta noite de rodízio estou de folga. E que faz você quando não está conversando com

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Sharon Stone ou levando a princesa Diana ao teatro? - Trabalho em restaurantes - disse eu. - Deve ser um dos poucos trabalhos com horário pior e condições mais violentas do que o meu - disse Anna, ao soar a campainha, informando que faltava um minuto. Fitei seus olhos cor de avelã e senti vontade de dizer: "Anna, vamos esquecer o segundo ato. Sei que a peça é fantástica, mas só quero passar o resto da noite sozinho com você, e não enfiado num auditório com mais oitocentas pessoas." - Não concorda? Tentei recordar-me do que ela tinha acabado de dizer. - E acho que recebemos mais queixas do que os médicos foi o melhor que consegui dizer. - Duvido - disse Anna abruptamente. - Quando se é mulher, na profissão de médico, e não se consegue curar os doentes em dois dias, eles querem imediatamente saber se temos habilitações completas. Ri e terminei a bebida, enquanto soava uma voz forte por todo o Tannoy: - Pedimos aos espectadores que retomem seus lugares para o segundo ato. O pano vai subir. - Temos de voltar - disse Anna, pousando o copo vazio no peitoril da janela mais próxima. - Acho que sim - disse eu com relutância, conduzindo-a na direção oposta àquela para onde gostaria de levá-la. - Obrigada pela bebida - disse ela, enquanto regressávamos aos nossos lugares. - Fraca recompensa - respondi. - Ela ergueu o olhar para mim, inquisitivamente. - Por um bilhete tão bom - expliquei. Ela sorriu, enquanto avançávamos pela fila, pisando desajeitadamente alguns pés. Eu estava prestes a arriscar mais uma frase quando a intensidade das luzes começou a diminuir. Durante o segundo ato voltava-me e sorria na direção de Anna a cada vez que as pessoas riam, e fui ocasionalmente recompensado por uma calorosa reciprocidade. Mas meu momento supremo de triunfo surgiu perto do final do ato, quando o detetive mostra à filha uma fotografia da mulher morta. Ajovem soltou um grito penetrante, e as luzes do palco apagaram-se subitamente. 278 279 Anna agarrou minha mão, mas soltou-a imediatamente e pediu-me desculpa. - Não tem de quê - sussurrei. -Tive de me controlar para não fazer o mesmo. - com o teatro às escuras, não pude ver qual foi a reação dela. Momentos depois, o telefone tocou no palco. O público sabia que devia ser o detetive do outro lado da linha, apesar de não saber ao certo o que ele ia dizer. Aquela cena final prendia todo mundo. Quando as luzes se reduziram pela última vez, os atores voltaram ao palco e receberam merecidamente uma longa ovação, tendo o pano subido diversas vezes. Quando o pano desceu pela última vez, Anna voltou-se para mim e disse: - Que peça extraordinária. Estou tão satisfeita de ter vindo. E ainda mais satisfeita por não ter visto a peça sozinha. - Eu também - respondi, esquecendo o fato de que nunca pensara em passar aquela noite no teatro. Seguimos juntos pela coxia, enquanto os espectadores abandonavam o teatro como um rio que corria lentamente. Passei aqueles momentos preciosos falando dos méritos dos atores, da capacidade de interpretação do diretor de cena, da originalidade do cenário macabro e até mesmo dos trajes eduardianos, antes de chegarmos às portas duplas que se abriam para o mundo real. - Adeus, Michael - disse Anna. - Obrigada por ter contribuído para tornar esta noite ainda mais agradável. Apertou minha mão. - Adeus - disse eu, fitando de novo aqueles olhos cor de avelã. Ela se voltou para partir, e eu me perguntei se voltaria a vê-la. - Anna -disse. Ela olhou para trás. - Se não tem nada de especial para fazer, por que não vem jantar comigo?... 280 Nota do Autor N este ponto da história, oferecemos ao leitor quatro finais diferentes, à sua escolha. Pode decidir ler os quatro ou, simplesmente, escolher um e considerá-lo o seu final Se decidir ler os quatro, deverá fazê-lo na ordem em que foram escritos: 1 MALPASSADA 2 ESTURRICADA 3 BEM-PASSADA 4 AO PONTO Mal passada OBRIGADA, MICHAEL. GOSTARIA MUITO. Sorri, sem conseguir ocultar minha satisfação. - Ótimo. Conheço um pequeno restaurante no fim da rua. Acho que vai gostar dele. - Parece interessante - disse Anna, dando-lhe o braço. Conduzi-a em meio à multidão que saía do teatro. Enquanto descíamos a Aldwych juntos, Anna continuou a conversar a respeito da peça, comparando-a favoravelmente com uma outra que vira no Haymarket alguns anos antes.

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Quando chegamos ao Strand, apontei para uma grande porta dupla cinzenta do outro lado da rua. - É ali - disse eu. Aproveitamos um sinal vermelho para atravessar entre o trânsito e, ao chegarmos à calçada em frente, empurrei uma das portas cinzentas para Anna passar. Começou a chover no momento preciso em que entramos. Desci com ela um lance de escada até um restaurante no subsolo, fervilhante do falatório das pessoas que tinham acabado de sair dos teatros, enquanto os garçons corriam com pratos em ambas as mãos, de mesa em mesa. -vou ficar impressionada se você arranjar uma mesa aqui disse Anna, olhando para um grupo de clientes no bar aguardando mesa vaga. Dirigi-me ao balcão de reservas. O chefe dos garçons que acabara de atender um cliente, veio imediatamente falar comigo. 285

- Boa noite, senhor Whitaker - disse. - Quantas pessoas são? - Só nós dois. - Queira seguir-me, por favor - disse Mário, conduzindo-nos à minha mesa habitual no fundo da sala. - Mais um martini seco? - perguntei, quando nos sentamos. - Não, obrigada - respondeu ela. - Acho que vou beber um copo de vinho com a refeição. Acenei afirmativamente com a cabeça, no momento em que Mário nos entregou os cardápios. Anna estudou o seu durante um momento até eu perguntar se ela tinha visto alguma coisa que lhe agradasse. - Sim - disse ela, fitando-me. - Mas, no momento, acho que me contento com ofettucini e um copo de vinho tinto. - Boa idéia - disse eu. - A mesma coisa para mim. Mas tem certeza de que não quer um aperitivo? - Não, obrigada, Michael. Cheguei a uma idade em que não posso comer tudo aquilo que me atrai. - Eu também - confessei. -Tenho de jogar squash três vezes por semana para me manter em forma - acrescentei, quando Mário reapareceu. - Dois fettucini - comecei - e uma garrafa de... - Meia garrafa, por favor - disse Anna. - Eu só bebo um copo. Tenho de começar a trabalhar amanhã cedo, de modo que não quero exagerar. Assenti com a cabeça e Mário afastou-se. Olhei Anna nos olhos. - Sempre me perguntei como seriam as médicas - disse eu, percebendo imediatamente que a frase era um pouco fraca. - Quer dizer, se seríamos normais? - Mais ou menos isso, eu acho. - Sim, somos bastante normais. Só que temos de ver todos os dias uma legião de homens nus. Posso garantir, Michael, que, na maior parte, são gordos e muito pouco atraentes. Subitamente, desejei ter uns três quilos menos. 286 - Mas haverá homens com coragem suficiente para querer uma médica? - Muitos - disse Anna. - Embora a maior parte de meus pacientes seja do sexo feminino. Mas ainda há alguns homens inteligentes, sensíveis e desinibidos, capazes de aceitar o fato de que uma médica tem tantas possibilidades de curá-los como urn médico. Sorri, enquanto os dois pratos de fettucini eram colocados à nossa frente. Mário mostrou-me a etiqueta da meia garrafa que trouxera. Assenti com a cabeça, mostrando minha aprovação por sua escolha: uma safra que condizia com a fineza de Anna. - E quanto a você? - perguntou Anna. - O que quer dizer com "trabalho em restaurantes"? - Trabalho no setor de administração - disse eu, antes de provar o vinho. Voltei a acenar afirmativamente com a cabeça e Mário encheu o copo de Anna e depois o meu. - Ou, pelo menos, é o que faço atualmente. Comecei como garçom - disse eu, enquanto Anna provava o vinho. - Que vinho magnífico! - disse ela. - É tão bom, que sou capaz de beber um segundo copo. - Ainda bem - disse eu. - É um Barolo. - Estava dizendo, Michael, que começou como garçom... - Sim, depois passei para a cozinha durante cerca de cinco anos. Finalmente acabei por ficar na administração. Que tal o fettucini? - Delicioso! Quase derrete na boca. - Bebeu mais um gole de vinho. - Então, se já não está na cozinha, se já não é garçom, o que faz agora? - Bem, no momento estou dirigindo três restaurantes do West End, o que quer dizer que não paro de correr de um para o outro, de acordo com o que esteja enfrentando a pior crise no dia. - Parece mais trabalho de enfermagem - disse Anna. Qual foi o que sofreu a pior crise hoje? - Hoje, graças a Deus, não foi um dia típico - disse eu, sentidamente. - Foi assim tão

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mau? - disse Anna. 287 - É verdade. Perdemos esta manhã um chef, que cortou a ponta de um dedo e só volta ao trabalho dentro de quinze dias. O chefe dos garçons do nosso segundo restaurante está de folga, alegando que está gripado, e tive de despedir o barman do terceiro por falsificar as contas. Os barmen sempre falsificaram as contas, evidentemente, mas, nesse caso, até os clientes começaram a notar. - Fiz uma pausa. - Mesmo assim, não gostaria de trabalhar em outra coisa. - Em vista das circunstâncias, estou francamente surpresa de ver que você pôde tirar uma folga. - Não deveria ter tirado, na verdade, e não teria tirado se não fosse... - minha voz arrastou-se um pouco, enquanto eu me inclinava para frente e enchia o copo de Anna. - Se não fosse o quê? - perguntou ela. - Quer ouvir a verdade? - indaguei, colocando o resto do vinho no meu copo. - Gostaria muito - disse ela. Coloquei a garrafa vazia sobre a mesa e hesitei, mas apenas por um momento. - Vinha de um dos meus restaurantes, no princípio da tarde, quando a vi entrar no teatro. Fiquei tanto tempo olhando para você que quase bati no carro à minha frente. Virei de repente para o primeiro lugar em que podia estacionar, e o carro que vinha atrás quase bateu no meu. Saltei do carro, corri para o teatro e comecei a procurá-la, até que a vi na fila da bilheteria entregando o segundo ingresso. Logo que ficou fora da minha vista, disse ao bilheteiro que minha amiga não deveria ter esperado que eu chegasse a tempo e talvez tivesse tentado vender meu ingresso. Quando descrevi você, coisa que pude fazer com detalhes, ele me entregou o ingresso sem hesitar. Anna pousou o copo de vinho e fitou-me com incredulidade. - Estou satisfeita por ele ter acreditado na sua história disse. - Mas eu também devo acreditar? - Deve, sim. Porque eu coloquei duas notas de dez libras no envelope do teatro e fiquei com o lugar ao seu lado. O resto você sabe. - Fiquei à espera da reação dela. 288 Anna ficou uns momentos em silêncio. - Sinto-me lisonjeada - acabou por dizer e tocou na minha mão. - Não sabia que ainda havia românticos à moda antiga neste mundo. - Apertou-me os dedos e fitou-me nos olhos. - E posso saber o que planejou para o resto da noite? - Até agora nada foi planejado - confessei. - Por isso, tem sido tão interessante. - Faz-me parecer um After Eight de mentol - disse Anna, rindo. - Posso me lembrar de pelo menos três respostas para isso disse-lhe, quando Mário reapareceu, mostrando-se um pouco desapontado ao ver os pratos meio vazios. - Estava tudo em ordem? - perguntou, um pouco ansioso. - Não podia estar melhor - disse Anna, que ainda não deixara de olhar para mim. - Quer um café? - perguntei. -- Sim - disse Anna. - Mas talvez pudéssemos bebê-lo num lugar menos cheio. Fui de tal forma pego de surpresa, que levei alguns instantes para recuperar-me. Começava a sentir que estava perdendo o controle da situação. Anna levantou-se e disse. - Vamos? - Acenei com a cabeça a Mário, que se limitou a sorrir. Quando chegamos à rua, ela me deu o braço e voltamos a subir a Aldwych, passando pelo teatro. - Foi uma tarde maravilhosa! - estava ela dizendo quando chegamos ao lugar onde eu deixara o carro. - Até você entrar em cena, o dia tinha sido bastante aborrecido. Mas tudo mudou. - Também não tinha sido o melhor dos dias para mim confessei. - Mas raramente gostei tanto de uma tarde. Onde quer tomar café? No Annabels? Ou por que não experimentamos o novo Dorchester Club? - Se não tem mulher, na sua casa. Se tiver... - Não tenho - disse eu simplesmente. - Então está resolvido - disse ela, quando eu lhe abri a porta do meu BMW. Depois que ela se instalou, dei a volta e sentei-me 259

ao volante, e constatei que tinha deixado as luzes acesas e a chave na ignição. Girei a chave e dei partida no motor. "Este tem de ser o meu dia", disse para mim mesmo. - Como disse? - perguntou Anna, voltando-se para mim. - Tivemos sorte em não tomar chuva - respondi, quando alguns pingos começaram a bater no vidro. Liguei os limpadores do pára-brisa. No caminho para Pimlico, Anna falou-me de sua infância no sul da França, onde o pai ensinava

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inglês numa escola para rapazes. Seu relato de como tinha sido a vida de uma única moça entre algumas centenas de franceses adolescentes fez-me rir bastante. Senti-me cada vez mais encantado com sua companhia. - O que a fez voltar para a Inglaterra? - perguntei. - Uma mãe inglesa que se divorciou do pai francês e a oportunidade de estudar medicina em St. Thomas. - Mas não sente saudades do sul da França, especialmente em noites como esta? - perguntei, enquanto se ouvia o estrondo de um trovão sobre nós. - Oh, não sei - disse ela. Eu ia falar quando ela acrescentou: - De qualquer forma, agora que os ingleses aprenderam A cozinhar, este lugar tornou-se quase civilizado. - Sorri interiormente, perguntando a mim mesmo se ela estaria brincando de novo. Descobri-o imediatamente. -A propósito - disse ela. - Presumo que o restaurante onde comemos era um dos seus restaurantes. - Era, sim - disse eu, um pouco envergonhado. - Isso explica como conseguiu tão facilmente uma mesa, quando a casa estava cheia. E que o garçom soubesse que queria umBarolo, sem precisar perguntar, e que saísse sem pagar a conta. Eu começava a perguntar a mim mesmo se estaria sempre alguns passos atrás dela. - Era o do garçom de folga, o do chefcom quatro dedos e meio ou o do barman vigarista? - O do barman vigarista - respondi rindo. - Mas eu o 290 despedi esta tarde e não me pareceu que seu substituto estivesse copiando seu comportamento - expliquei, ao virar à direita em Millbank, começando a procurar um lugar para estacionar. - E eu pensando que você só tinha olhos para mim suspirou Anna -, quando passou o tempo todo olhando por cima do meu ombro para ver se o barman estava à altura de sua função. - Não o tempo todo - disse eu, enfiando o carro no único espaço vazio do pátio. Saí do carro e o contornei, indo para o lado de Anna. Abri a porta e a conduzi para minha casa. Mal fechei a porta, Anna passou os braços em volta de meu pescoço e fitou-me nos olhos. Inclinei-me e beijei-a pela primeira vez. Quando interrompemos o beijo, ela disse apenas: - Esqueça o café, Michael. - Despi o casaco e levei-a para o andar de cima, para o meu quarto, pedindo a Deus que não tivesse sido o dia de folga da empregada. Quando abri a porta, constatei com alívio que a cama estava feita, e o quarto, arrumado. - Só demoro um instante - disse eu, desaparecendo no banheiro. Enquanto escovava os dentes, comecei a me perguntar se tudo aquilo não passaria de um sonho. Quando voltasse ao quarto, iria descobrir que ela não existia? Larguei a escova de dentes dentro do copo e voltei ao quarto. Onde estava ela? Meus olhos seguiram um rastro de roupas que conduzia à cama. Anna tinha a cabeça no travesseiro. Apenas um lençol cobria seu corpo. Despi-me rapidamente, atirando as roupas para qualquer lado e apaguei a luz do teto, deixando apenas aceso o abajur da mesa-de-cabeceira. Entrei sob o lençol, ao lado dela. Olhei-a por alguns segundos antes de tomá-la nos braços. Explorei lentamente todas as partes do seu corpo e ela recomeçou a beijar-me. Eu não podia acreditar que uma mulher pudesse ser tão excitante e, ao mesmo tempo, tão meiga. Quando finalmente fizemos amor, compreendi que nunca mais queria ver aquela mulher longe de mim. Anna permaneceu nos meus braços durante algum tempo, ante de um de nós falar. Fui eu o primeiro a falar sobre coisas que me vinham à cabeça. Confiei-lhe minhas esperanças, meus sonhos, 291 até meus receios, com uma liberdade que nunca experimentara antes com pessoa alguma. Queria partilhar tudo com ela. Ela se debruçou sobre mim e recomeçou a beijar-me, primeiro nos lábios, depois no pescoço e no peito; e, enquanto descia lentamente pelo meu corpo, tive a sensação de que ia explodir. Só me recordo de ter apagado a luz da mesa-de-cabeceira quando o relógio sobre a mesa do vestíbulo batia uma hora. Quando acordei, na manhã seguinte, os primeiros raios de sol já brilhavam através dos cortinados de renda, e revivi imediatamente a maravilhosa recordação da noite anterior. Virei-me preguiçosamente para tomá-la nos braços, mas ela já não estava lá. - Anna! - gritei, sentando-me subitamente na cama. Não obtive resposta. Acendi a luz do abajur ao lado a cama e olhei para o relógio. Eram 7:29. Ia pular da cama e correr atrás dela quando reparei num bilhete colocado ao lado do relógio. Peguei-o e o li lentamente. Sorri.

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- Eu também - disse, e recostei-me no travesseiro, pensando no que deveria fazer em seguida. Decidi enviar-lhe uma dúzia de rosas naquela manhã, onze brancas e uma vermelha. Depois mandaria entregar-lhe uma rosa vermelha de hora em hora, todas as horas, até voltar a vê-la. Depois de tomar banho e me vestir, comecei a andar pela casa sem destino. Perguntava-me quanto tempo levaria para convencer Anna a mudar-se para minha casa, e que mudanças ela desejaria fazer. Sabe Deus, pensei, ao entrar na cozinha, agarrado ao bilhete dela, que a casa precisa de um toque feminino. Enquanto tomava o café, procurei o número do telefone dela na lista, em vez de ler o jornal da manhã. Lá estava, como ela dissera, uma Dra. Townsend, num consultório da Parsons Green Lane, onde ela podia ser encontrada entre as nove e as seis. Havia um segundo número, com a indicação, em letras mais escuras, de só ser usado em caso de emergência. Embora eu considerasse meu estado uma emergência, disquei o primeiro número e aguardei, impaciente. Só pretendia dizerlhe: "Bom-dia, querida. Vi seu bilhete. Podemos fazer da noite passada a primeira de muitas?" 292 A voz de uma enfermeira atendeu o telefone. - Consultório. - Queria falar com a Dra. Townsend, por favor. - Qual delas? - perguntou a enfermeira. - Há duas Dras. Townsend no consultório. A Dra. Anna e a Dra. Elizabeth. Além do Dr. Jonathan Townsend. - A Dra. Anna, por favor - respondi. - Peço desculpas, mas ela não se encontra no momento. Foi levar os filhos à escola e depois disso vai ao aeroporto buscar o marido, o Dr. Jonathan, que volta agora de manhã de um seminário médico em Mineápolis. Acho que ela só deve voltar aqui dentro de umas duas horas. Quer deixar recado? Houve um longo silêncio antes que a voz da enfermeira perguntasse: - Alô? Está ouvindo? - Desliguei o telefone sem responder e olhei tristemente para o bilhete escrito por ela, ao lado do telefone. Querido Michael, vou me lembrar desta noite durante o resto da minha vida. Obrigada. Anna 293 Esturricada l OBRIGADA, MICHAEL. GOSTARIA MUITO. Sorri, incapaz de ocultar minha satisfação. - Olá, Anna. Pensei que tivesse perdido você. Voltei-me e vi um homem alto, com uma madeixa de cabelos louros, que parecia suportar firmemente o fluxo de gente que tentava passar por ele de ambos os lados. Anna dirigiu-lhe um sorriso que eu não tinha visto até aquele momento. - Olá, querido - disse ela. -Apresento-lhe Michael Whitaker. Você teve sorte. Ele comprou seu ingresso. Se você não tivesse aparecido, eu teria aceitado o convite dele para jantar. Michael, apresento-lhe meu marido, Jonathan, o tal que ficou retido no hospital. Como pode ver, conseguiu escapar. Não consegui pensar numa resposta adequada. Jonathan apertou-me calorosamente a mão. - Obrigado por ter feito companhia à minha mulher - disse. - Quer vir jantar conosco? - Agradeço muito - respondi - mas acabo de me lembrar que, neste momento, já deveria estar em outro lugar. É melhor eu me apressar. - É uma pena - disse Anna. - Estava interessada em saber como é o negócio dos restaurantes. Talvez nos encontremos em outra ocasião, sempre que meu marido me deixar abandonada. Adeus, Michael. - Adeus, Anna. 297

Eu os vi pegar um táxi e desejei que Jonathan caísse ali mesmo, morto. Não caiu, de modo que dei meia-volta dirigindo-me ao local onde deixara meu carro. - Você é um homem de sorte, Jonathan Townsend! - foi o único comentário que fiz. Mas ninguém me ouviu. A palavra seguinte que me veio aos lábios foi: "Merda!" Repeti-a diversas vezes, porque havia um espaço tão largo quanto constrangedor no lugar onde eu estava certo de ter deixado o carro. Subi e desci a rua, considerando a hipótese de ter me esquecido do lugar onde o estacionara. Praguejei de novo e parti em busca de uma cabine telefônica, sem saber ao certo se o carro teria sido roubado ou rebocado. Havia uma cabine na esquina da Kingsway. Peguei o telefone e apertei três vezes o número nove. - Que serviço deseja? Bombeiros, polícia ou ambulância? indagou uma voz. - Polícia - disse eu, escutando imediatamente outra voz. - Delegacia de

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Charing Cross. Qual é a natureza de sua queixa? v - Acho que meu carro foi roubado. - Pode dizer a marca, a cor e a placa, por favor? - É um Ford Fiesta vermelho, placa H107 SHV Houve uma longa pausa, durante a qual pude ouvir vozes ao fundo. - Não, não foi roubado - disse o funcionário, quando voltou ao telefone. - O carro estava ilegalmente estacionado numa linha amarela dupla. Foi rebocado e levado para o Depósito de Vauxhall Bridge. - Posso ir buscá-lo? - perguntei, irritado. - com certeza. Como irá para lá? - De táxi. - Então peça ao motorista que o leve ao Depósito de Vauxhall Bridge. Quando chegar lá, terá que apresentar um documento de identidade e um cheque de 105 libras com um cartão do banco... no caso de não ter a quantia em dinheiro. - Cento e cinco?!-repeti, estupefato. 295 - Exatamente. Desliguei violentamente o telefone, no momento em que começou a chover. Corri para a esquina da Aldwych à procura de um táxi, constatando que todos estavam sendo invadidos pelas hordas de pessoas que ainda estavam à porta do teatro. Levantei a gola do casaco e atravessei a rua, em meio ao trânsito em movimento lento. Quando cheguei ao outro lado, continuei a correr até encontrar a marquise de um prédio, suficientemente larga para me abrigar da violenta chuvarada. Estava tremendo de frio e espirrei várias vezes até que um táxi vazio veio finalmente em minha salvação. - Depósito de Vauxhall Bridge - disse eu ao motorista, mal entrei. - Pouca sorte, amigo - disse o chofer. - É o segundo que levo lá hoje. Franzi a testa. Enquanto o táxi manobrava lentamente para abrir caminho no trânsito complicado pela chuva, na hora da saída dos teatros, e percorria Waterloo Bridge, o chofer começou a conversar. Mal consegui murmurar respostas monossilábicas às suas opiniões acerca do tempo, de John Major, da equipe de críquete da Inglaterra e dos turistas estrangeiros. A cada novo tópico, suas previsões tornavam-se mais sombrias. Quando chegamos ao depósito de carros, entreguei-lhe uma nota de dez libras e fiquei na chuva à espera do troco. Depois corri na direção de uma pequena cabine onde deparei com minha segunda fila daquele dia. Era consideravelmente maior do que a primeira, e eu sabia que, quando chegasse ao princípio e pagasse meu ingresso, não seria recompensado com um divertimento inesquecível. Quando finalmente chegou a minha vez, um robusto policial apontou para um impresso colado ao balcão. Segui ao pé da letra suas instruções, apresentando-lhe primeiro a minha carteira de motorista, depois passando um cheque de 105 libras à ordem da Polícia metropolitana. Entreguei ambos, com meu cartão bancário, ao policial, que era muito maior do que eu. Seu físico impressionante foi o único motivo que me impediu 299 de sugerir que talvez ele devesse ocupar seu tempo com coisas mais importantes, como apanhar traficantes de droga. Ou mesmo ladrões de automóveis. - Seu carro está no outro lado do parque - disse o policial, apontando para um ponto distante, por cima de várias fileiras de automóveis. - Evidentemente - respondi. Saí da cabine e voltei para a chuva, evitando as poças de água enquanto corria entre as fileiras de carros. Só parei quando cheguei ao outro extremo do depósito. Levei ainda alguns minutos pára localizar meu Ford Fiesta vermelho - uma desvantagem, pensei eu, de possuir o carro mais popular da Inglaterra. Abri a porta, esgueirei-me para o banco da frente e espirrei novamente. Girei a chave na ignição, mas o motor não pegou, produzindo apenas um "ronronar" ocasional, antes de parar por completo. Lembrei-me então de que não desligara as luzes laterais antes da minha corrida inesperada para o teatro. Soltei uma série de impropérios que traduziam apenas parcialmente meus verdadeiros sentimentos. Vi outra figura vir correndo pelo depósito em direção a um Land Rover na fila à minha frente. Baixei rapidamente a janela, mas ele tinha arrancado antes que eu conseguisse pronunciar as palavras mágicas "bomes de ligação". Saí do carro e fui buscar os meus bomes de ligação no porta-malas, dirigi-me à parte da frente do carro, levantei o capo e liguei os bomes à bateria. Estava novamente tremendo quando me instalei para esperar. Não conseguia afastar Anna do meu espírito, mas aceitei a idéia de que a única coisa que conseguira naquela noite fora uma gripe. Durante os quarenta minutos que

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fiquei ali dentro, encharcado, passaram por mim três pessoas antes que um jovem negro me perguntasse: - O que está havendo, companheiro? - Depois de eu explicar meu problema, ele colocou sua velha caminhonete ao lado do meu carro. Em seguida, levantou o capo e ligou os bomes à 300 k bateria. Quando ligou sua ignição, meu motor começou a funcionar. - Obrigado - gritei, um pouco inadequadamente, ao fim de várias giradas do motor. - Foi um prazer, meu chapa - respondeu ele, desaparecendo na noite. Quando saí do depósito, liguei o rádio, e ouvi o Big Ben bater doze horas. Isso me recordou de que não tinha aparecido no trabalho naquela noite. A primeira coisa que tinha de fazer, se queria conservar meu emprego, era arranjar uma boa desculpa. Espirrei novamente e decidi-me pela gripe. Embora provavelmente àquela hora já tivessem servido os últimos clientes, Gerald não devia ter fechado ainda a cozinha. Olhei através da chuva, procurando uma cabine nas calçadas, até que descobri três em fila, à porta de um estabelecimento dos correios. Parei o carro e saí, mas uma rápida conferida revelou-me que estavam todas destruídas por vândalos. Voltei a entrar no carro e prossegui minha busca. Depois de entrar no carro e sair para a chuva diversas vezes, encontrei finalmente uma cabine na esquina da Warwick Way, que parecia capaz de funcionar. Liguei o número do restaurante e esperei, durante longo tempo, que alguém atendesse. - Laguna 50 - disse uma garota com sotaque italiano. - É você, Janice? É Mike. - Sim, sou eu, Mike - sussurrou ela, voltando ao seu sotaque de Lambeth. - Devo avisar que, cada vez que alguém pronuncia o seu nome esta noite, Gerald empunha a faca mais próxima. - Por quê? - perguntei. - O Nick ainda está por aí para dirigir as coisas. - Nick cortou a ponta de um dedo esta tarde e Gerald teve que levá-lo para o hospital. Eu fiquei tomando conta. Ele não está nada satisfeito. - Oh, droga! - resmunguei. - Mas eu estou... - Está despedido - disse outra voz, e essa não sussurrava. - Gerald, eu posso explicar... - Por que não apareceu hoje à tarde? 301 Espirrei e apertei o nariz. - Estou gripado. Se fosse trabalhar esta noite, contagiava metade dos clientes. - Ah, é? - disse Gerald. - Bem, acho que teria sido muito pior do que contagiar a garota que esteve sentada a seu lado no teatro. - Que quer dizer com isso? - perguntei, liberando o nariz. - Exatamente o que disse, Mike. Olhe, para azar seu, dois dos nossos clientes habituais ficaram duas filas atrás de você no Aldwych. Gostaram tanto da peça como você parece ter gostado. E um deles acrescentou, para explicar melhor as coisas, que achou sua garota "uma gata espetacular". - com certeza me confundiu com outra pessoa - disse eu, esforçando-me para não parecer desesperado. - Ele talvez, mas eu não. Está despedido. E nem pense em vir buscar sua grana, porque não há dinheiro para um chefe de garçons que prefere levar uma qualquer ao teatro em vez de trabalhar. - Desligou o telefone. Comecei então a murmurar obscenidades entre dentes, enquanto me dirigia lentamente para o carro. Estava a uma dúzia de passos dele quando um rapaz saltou para o volante, ligou a ignição e partiu, com certa insegurança, pelo meio da estrada, passando a marcha com um som horrível. Corri atrás do carro em fuga, mas, mal o rapaz começou a acelerar, perdi as esperanças de alcançá-lo. Corri outra vez à cabine e digitei novamente o 999. - Bombeiros, polícia ou ambulância? - perguntaram pela segunda vez nessa noite. - Polícia - disse eu, e um momento depois estava falando com outra pessoa. - Delegacia de f>elgravia. Qual é a natureza de sua queixa? - Acabaram de roubar meu carro! - gritei. - Marca, modelo e placa, por favor. - É um Ford Fiestaivermelho, placa H107 SHV Aguardei pacientemente. - Não foi roubado. Estava ilegalmente estacionado junto a uma... 302 - Não, não estava! - gritei ainda mais alto. - Paguei 105 libras para recuperar a porcaria do carro no Depósito de Vauxhall Bridge há menos de meia hora e acabo de vê-lo partir nas mãos de um rapaz enquanto eu estava dando um telefonema. - Onde o senhor está, agora? - Numa cabine da esquina da Vauxhall Bridge Road com a Warwick Way. - Em que direção seguia o carro quando o viu pela última vez? - perguntou a voz. - Para norte, subindo a Vauxhall Bridge Road. - E qual é o seu número de telefone particular? - 081 2904820. - E no trabalho? - Como o carro,

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também perdi o emprego. - Certo, vamos tratar do caso. Entraremos em contato com o senhor logo que tenhamos notícias. Desliguei o telefone e pensei no que havia de fazer em seguida. Não me restavam muitas alternativas. Chamei um táxi e pedi ao chofer que me levasse a Victoria, ficando aliviado ao constatar que aquele profissional não mostrava vontade de me transmitir suas opiniões sobre coisa alguma durante a viagem até a estação. Quando chegamos, entreguei-lhe minha última nota e aguardei pacientemente que me devolvesse cada penny do troco. Ele também soltou uma ou duas imprecações. Comprei um ingresso para Bromley com as poucas moedas que me restavam e fui em busca da plataforma. - Chegou mesmo a tempo, amigo - disse-me um funcionário da estação -o último trem deve estar chegando. - Mas ainda tive de esperar mais vinte minutos na plataforma gelada e vazia antes que ele chegasse à estação. A essa altura, já tinha decorado todos os anúncios à vista, desde a Guiness ao Mates, continuando a espirrar a intervalos regulares. Quando o trem parou e as portas se abriram, sentei-me num vagão perto da locomotiva. Esperei mais dez minutos para que ele partisse e passaram-se mais quarenta antes de chegarmos à estação de Bromley. 303 Saí para a noite do Kent alguns minutos antes de uma hora e comecei a caminhar na direção da minha pequena casa, num prédio entalado entre outros. Vinte minutos depois subia, cambaleante, o curto caminho que levava à porta da frente. Comecei a procurar as chaves e depois recordei-me de que tinham ficado na ignição do carro. Já nem tinha energia para praguejar, de modo que comecei a procurar às apalpadelas, na escuridão, a chave extra, que estava sempre escondida embaixo de uma determinada pedra. Mas qual delas? Finalmente encontrei-a, enfief-a na fechadura, girei-a e abri a porta. Mal tinha entrado quando o telefone na mesa do saguão começou a tocar. Atendi. - Senhor Whitaker? - O próprio. - É da Delegacia de Belgravia. Localizamos seu carro e... - Graças a Deus! - disse eu, antes que o policial conseguisse terminar a frase. - Onde está ele? - Neste preciso momento encontra-se na parte de trás de um caminhão, em algum ponto de Chelsea. Parece que o garoto que o roubou só conseguiu andar uma ou duas milhas, antes de derrapar num acostamento a noventa por hora. Acabou batendo num muro. Lamento informar que o carro ficou totalmente destruído. - Totalmente destruído? -repeti, com descrença. - Sim, senhor. A garagem que o rebocou ficou com seu número de telefone e entra em contato com o senhor amanhã de manhã. Não me ocorreu comentário algum. - A boa notícia é que pegamos o garoto que roubou o carro - prosseguiu o policial. -A má notícia é que tem apenas quinze anos, não tem carteira de motorista e, evidentemente, não tem seguro. - Isso não é problema - disse eu. - Eu tenho seguro conta todos os riscos. - Por acaso o senhor deixou a chave na ignição? 304 - Deixei. Estava só dando um telefonema e pensei que ficaria longe do carro por poucos minutos. - Então acho pouco provável que receba o seguro. - Pouco provável? Que quer dizer com isso? - Hoje em dia é norma as companhias não pagarem quando as pessoas deixam a chave na ignição. É melhor verificar - foram as últimas palavras do policial antes de desligar. Desliguei também e perguntei a mim mesmo o que mais poderia acontecer. Despi o casaco e comecei a subir a escada, mas detive-me subitamente ao ver minha mulher à espera, no patamar. - Maureen... - comecei a dizer. - Depois você pode me contar por que motivo o carro está totalmente destruído - disse ela. - Mas só depois de me explicar por que não foi trabalhar e quem é essa "gata de classe" com quem, segundo Gerald, você foi visto no teatro. 305

Bem-passada

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NÃO, NÃO TENHO NADA DE ESPECIAL PARA FAZER - disse Anna. Sorri, incapaz de disfarçar a minha satisfação. - Ótimo. Conheço um pequeno restaurante no fim da rua e acho que vai gostar dele. - Parece ótimo - disse Anna, abrindo caminho na densa multidão. Apressei-me a segui-la, tendo de correr para acompanhá-la. - Para que lado? - perguntou ela. Apontei na direção do Strand. Ela começou a caminhar num passo rápido e continuamos a falar da peça. Quando chegamos ao Strand, apontei para uma grande porta dupla cinzenta do outro lado da rua. - É ali - disse. Ia pegar-lhe a mão para atravessarmos, mas ela saiu da calçada à minha frente, esquivando-se por entre os carros parados, e esperou por mim do outro lado. Anna abriu as portas cinzentas e eu a segui uma vez mais. Descemos um lance de escada até um restaurante no subsolo, fervilhante do falatório das pessoas que tinham acabado de sair dos teatros, enquanto os garçons corriam, com pratos em ambas as mãos, de mesa em mesa. - Acho que não vai conseguir uma mesa, se não fez reserva - disse Anna, olhando para um grupo de clientes perto do bar, à espera de mesa. - Não se preocupe com isso - disse eu, com ar arrogante, avançando para o balcão de reservas. Acenei imperiosamente com 309

a mão ao chefe dos garçons, que estava atendendo um freguês. Só esperava que ele me reconhecesse. Voltei-me para sorrir a Anna, mas ela não me pareceu muito impressionada. Depois de receber o pedido do freguês, o garçom avançou lentamente para mim. - O que deseja? - perguntou. - Pode arranjar uma mesa para dois, Victor? - Victor está de folga esta noite. Tem reserva? - Não, não tenho, mas..." O chefe dos garçons consultou a lista de reservas e depois olhou para o relógio. - Talvez arranje uma mesa para o senhor por volta das onze e quinze, onze e trinta, o mais tardar - disse, com ar de pouca esperança. - Não pode ser antes? - supliquei - Acho que não podemos esperar tanto tempo. - Anna assentiu com a cabeça, concordando. - Receio que não - disse o chefe dos garçons. - Estamos com as reservas completas até essa hora. - Como eu previ - disse Anna, voltando-se para sair. Tive de apressar-me para segui-la uma vez mais. Quando saímos para a rua, eu disse: - Conheço um pequeno restaurante italiano não longe daqui, onde sempre arranjo mesa. Vamos arriscar? - Não me parece que tenhamos muitas alternativas - respondeu Anna. - Para que lado, desta vez? - Subindo a rua, à direita - disse eu, no momento em que um trovão fez descer um aguaceiro. - Merda! - disse Anna, colocando a bolsa na cabeça para se proteger. - Sinjxí muito - disse eu, olhando as nuvens negras. - A culpa é minha. Devia ter... - Deixe de ficar sempre pedindo desculpas, Michael. Não é culpa sua se começou a chover. Respirei fundo e tentei de novo: 310 - É melhor a gente se apressar - disse, desesperadamente. - Não acho que arranjemos um táxi com este tempo. Isso, pelo menos, mereceu seu entusiástico acordo. Comecei a correr rua acima, com Anna atrás de mim. A chuva estava cada vez mais forte e, embora não tivéssemos percorrido mais de setenta metros, estávamos totalmente encharcados no momento em que chegamos ao restaurante. Suspirei de alívio quando abri a porta, e constatei que a sala de jantar estava meio vazia, embora devesse ficar aborrecido. Voltei-me e sorri esperançosamente para Anna, mas ela estava de sobrancelhas franzidas. - Está tudo bem? - perguntei. - Ótimo. É que meu pai tinha uma teoria quanto a restaurantes que estão meio vazios a esta hora da noite. Olhei interrogativamente para minha convidada, mas decidi não fazer comentários sobre a maquilagem de seus olhos, que começava a escorrer, nem sobre os seus cabelos, que começavam a enrolar nas pontas. - Talvez seja melhor fazer alguns reparos. Só me demoro uns minutos - disse ela, dirigindo-se para a porta com o letreiro SIGNORINAS. Fiz sinal a Mário, que não estava servindo cliente algum em especial. Correu para mim. - Houve uma chamada para o senhor, senhor Whitaker disse Mário, conduzindo-me à minha mesa habitual. - Pediram que, se aparecesse aqui, telefonasse urgentemente para Gerald. Ele

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parecia muito aflito. -Tenho certeza de que ele pode esperar. Mas, se ele telefonar outra vez, avise-me imediatamente. - A essa altura, Anna veio juntar-se a nós. A maquilagem tinha sido retocada, mas o cabelo poderia ter sido mais bem penteado. Levantei-me até ela se sentar. - Não precisa fazer isso - disse ela, sentando-se. - Quer tomar uma bebida? - perguntei, quando estávamos instalados. - Não, acho que não. Tenho de me levantar cedo amanhã de 311 manhã, de modo que não posso exagerar. Só vou beber um copo de vinho com a refeição. Apareceu outro garçom ao lado dela. - O que madame deseja comer esta noite? - perguntou ele delicadamente. - Ainda não tive tempo de consultar o menu - respondeu Anna, sem se dar ao trabalho de olhar para ele. - Recomendo os fettucini, madame - disse o garçom, apontando um prato no meio da lista de entradas. - É nossa especialidade do dia. - Então, acho que vou querer - disse Anna, entregando-lhe o menu. Acenei com a cabeça, indicando "Eu também", e pedi meia garrafa do tinto da casa. O criado pegou o menu e partiu. - Costuma...? - Posso...? - Você primeiro - disse eu, tentando sorrir. - Costuma encomendar sempre meia garrafa do vinho da casa num primeiro encontro? - perguntou ela. - Imagino que vai achá-lo muito bom - disse eu, lamentando. - Só estava brincando, Michael. Não me leve tão a sério. Observei mais atentamente minha companheira e comecei a perguntar-me se não teria cometido um erro terrível. Apesar dos esforços no toalete, Anna já não era a mesma garota que eu tinha visto - a distância, é certo - quando quase batera com o carro naquela tarde. Oh, meu Deus, o carro! Subitamente lembrei-me onde o deixara e consultei o relógio. - Estou aborrecendo você, Michael? - perguntou Anna. Ou esta mesa tem tempo marcado? - Sim. Quero dizer, não. Desculpe, é que me lembrei de uma coisa que devia ter verificado antes de virmos jantar. Desculpe repeti. Anna franziu a testa, o que me impediu de pedir desculpas novamente. -Já é tarde demais? - perguntou ela. - Tarde demais para quê? - Para fazer qualquer coisa acerca daquilo que você devia ter verificado antes de virmos jantar. Olhei pela janela e não fiquei muito satisfeito ao ver que parara de chover. Agora, minha única esperança era de que a polícia de trânsito da noite não fosse excessivamente vigilante. - Não; tenho certeza de que deve estar tudo bem - disse eu, tentando mostrar-me descontraído. - Bem, isso é um alívio - disse Anna, em tom que se aproximava do sarcasmo. - Mas diga-me como é ser médica - falei, tentando mudar de assunto. - Michael, esta é a minha tarde de folga. Prefiro não falar de trabalho, se não se importa. Durante alguns momentos, nenhum de nós falou. Tentei de novo. - Tem muitos pacientes de sexo masculino no seu consultório? - perguntei, quando o garçom reapareceu com os fettucini. - Nem acredito no que estou ouvindo - disse Anna, sem conseguir disfarçar o cansaço na voz. - Quando é que as pessoas como você vão começar a aceitar que algumas de nós são capazes de algo mais do que passar a vida servindo de joelhos o sexo masculino? O garçom colocou um pouco de vinho no meu copo. - Sim. Evidentemente. Absolutamente. Não. Não pretendia dar essa idéia... - Provei o vinho e acenei afirmativamente com a cabeça ao garçom que encheu o copo de Anna. - Então o que queria dizer? - perguntou Anna, espetando com força o garfo nos fettucini. - Bem, não é invulgar um homem se consultar com uma médica? - disse eu, percebendo, mal pronunciara as palavras, que só estava me complicando. - Santo Deus, não, Michael. Vivemos numa época esclarecida. Provavelmente já vi mais homens nus do que você, e não é um espetáculo agradável, pode crer. - Ri, na esperança de que isso 312 313

aliviasse a tensão. - De qualquer forma - acrescentou ela, - há muitos homens suficientemente confiantes para aceitar a existência de médicas, acredite. - Tenho certeza de que é verdade - disse eu. - Só pensei... - Não pensou, Michael. É esse o problema de muitos homens como você. Aposto que nunca pensou em consultar uma médica. - Não, mas... Sim, mas... - Não mas,

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sim mas... Vamos mudar de assunto antes que eu fique realmente furiosa - disse Anna, pousando o garfo. - Qual é sua profissão, Michael? Não rhe parece que tenha uma profissão em que as mulheres sejam tratadas como iguais. - Trabalho em restaurantes - disse eu, desejando que os fettucini estivessem um pouco mais leves. - Ah, sim, você tinha dito isso no intervalo - disse ela. Mas o que significa exatamente "trabalhar em restaurantes"? - Dedico-me a administrá-los. Pelo menos é o que faço atualmente. Comecei como garçom, depois passei para a cozinha durante cerca de cinco anos, e finalmente... - ... descobriu que não era muito bom em qualquer dessas coisas. De modo que resolveu dirigir os outros. - Mais ou menos isso - disse eu, tentando brincar com o caso. Mas as palavras de Anna só me recordaram que um dos meus outros restaurantes estava sem chef nesta noite e que era para lá que eu me dirigia antes de me permitir aquela ligeira paixão por Anna. - Voltei a perder sua atenção - disse Anna, começando a mostrar-se exasperada. - Você ia falar da administração de restaurantes. - Ia, não ia? A propósito, que tal estão os fettucini? - Não estão maus, apesar de tudo. - Apesar de tudo? - Apesar de este lugar ser sua segunda escolha. Fiquei novamente em silêncio. - Não estão assim tão maus - disse ela, levando à boca mais uma garfada, com certa relutância. - Talvez prefira comer qualquer outra coisa. Eu posso... 314 - Não, obrigada, Michael. Afinal, este foi o único prato que deixou o garçom suficientemente confiante para poder recomendá-lo. Não me ocorreu uma resposta adequada, de modo que fiquei em silêncio. - Então, Michael, ainda não me explicou como é realmente administrar restaurantes - disse Anna. - Bem, no momento estou dirigindo três restaurantes no West End, o que quer dizer que não paro de correr de um para outro, de acordo com o que esteja sofrendo a pior crise em cada dia. - Parece mais trabalho de enfermagem - disse Anna. Qual sofreu a maior crise hoje? - Hoje, graças a Deus, não foi um dia típico - disse eu, sentidamente. - Foi assim tão mau? - disse Anna. Receio que sim. Perdemos esta manhã um chef, que cortou a ponta do dedo e só deve voltar ao trabalho dentro de quinze dias. O chefe dos garçons do nosso segundo restaurante está de folga, alegando gripe, e tive de despedir o barman do terceiro por falsificar as contas. Os barmen sempre falsificam as contas, evidentemente, mas nesse caso até os clientes começaram a notar. - Fiz uma pausa, pensando se devia arriscar-me a comer mais um pouco dos fettucini. - Mas, mesmo assim, não gostaria de trabalhar em outra coisa. - Em vista das circunstâncias, estou francamente surpresa por você ter podido tirar a tarde de folga. - Não devia ter feito isso, na verdade, e não teria feito, se não fosse... - Minha voz arrastou-se, enquanto me inclinava para a frente e enchia o copo de Anna. - Se não fosse o quê? - perguntou ela. Coloquei a garrafa vazia sobre a mesa e hesitei, mas apenas por um momento. - Vinha de um dos meus restaurantes, no princípio da tarde, quando a vi a entrar no teatro. Fiquei tanto tempo olhando para você que quase bati no carro à minha frente. Virei de repente para o primeiro lugar em que podia estacionar, e o carro que vinha 315 atrás quase bateu no meu. Saltei do carro, corri para o teatro e comecei a procurá-la, até que a vi na fila da bilheteria. Entrei na fila e a vi entregar o segundo ingresso. Quando ficou fora da minha vista, disse ao bilheteiro que minha amiga não deveria ter esperado que eu chegasse a tempo e talvez tivesse tentado vender meu ingresso. Quando descrevi você, coisa que pude fazer com detalhes, entregou-me o ingresso sem hesitar. - O que prova que ele é estúpido - disse Anna, pousando o copo e olhando para mim como se eu tivesse saído de um manicômio. - Depois coloquei duas notas de dez libras num envelope do teatro e sentei-me ao seu lado - prossegui. - O resto já sabe. Aguardei, com certa agitação, para ver como ela iria reagir. - Suponho que deveria me sentir lisonjeada - disse Anna, depois de pensar um pouco. - Mas não sei se devo rir ou chorar. Uma coisa é certa: a mulher com quem vivo há dez anos acharia a história extremamente divertida, tanto mais que pagou o ingresso dela. O garçom veio levar os pratos meio cheios. - Estava tudo bem? - perguntou, o ar ansioso. - Ótimo, estava ótimo - disse eu, num tom pouco

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convincente. Anna fez uma careta, mas não emitiu comentários. - Deseja café, minha senhora? - Não, acho que não vou arriscar - disse ela, consultando o relógio. - De qualquer forma, tenho de ir andando. Elizabeth já deve estar estranhando. Pôs-se de pé e dirigiu-se para a porta. Segui-a, a um metro de distância. Ela tinha acabado de chegar à calçada quando se voltou para mim e perguntou: - Não acha-que devia pagar a conta? - Não é preciso. - Por quê? - perguntou ela, rindo. - O restaurante é seu? - Não. Mas é um dos três restaurantes que dirijo. Anna corou. - Peço desculpas, Michael - disse. - Tive muita falta de tato. - Fez uma pausa, antes de acrescentar: - Mas tenho 316 certeza de que concorda comigo que a comida não era propriamente memorável. - Quer que eu a leve em casa? - perguntei, tentando não mostrar grande entusiasmo. Anna olhou para as nuvens negras. - Seria bom - respondeu -, se não ficar muito fora de seu caminho. Onde está seu carro? - perguntou, antes que eu tivesse oportunidade de perguntar onde ela morava. - Deixei-o no fim da rua. - Oh, sim, já me lembro - disse Anna. - Quando saltou dele porque não conseguia tirar os olhos de mim. Receio que, desta vez, tenha escolhido a mulher errada. Finalmente encontrávamos um ponto em que estávamos de acordo, mas não fiz comentários enquanto nos encaminhávamos para o lugar onde eu tinha deixado meu carro. Anna limitou sua conversa à possibilidade de chover novamente e disse que gostara muito do vinho. Fiquei aliviado ao ver meu Volvo estacionado exatamente no lugar onde o deixara. Estava procurando as chaves quando vi algo colado no vidro. Olhei para a roda da frente e vi o grampo amarelo. - Esta não é a sua noite, não acha? - disse Anna. - Mas não se preocupe comigo, pego um táxi. Levantou a mão e um táxi parou imediatamente. A mulher voltou-se então para mim: - Obrigada pelo jantar - conseguiu dizer, num tom pouco convincente, e acrescentou, de forma ainda menos convincente: -Talvez voltemos a nos encontrar. -Antes que eu pudesse reagir, tinha fechado a porta do táxi. Enquanto a via desaparecer ao longe, começou a chover. Olhei uma vez mais para o carro parado e decidi que trataria do assunto na manhã seguinte. Ia correr para o abrigo mais próximo quando surgiu outro táxi na esquina, com a luz amarela acesa, indicando que estava livre. Acenei freneticamente e o carro parou perto do meu. - Pouca sorte, amigo - disse o chofer, olhando para a minha roda da frente. - É o terceiro que pego esta noite. 317 Tentei sorrir. - Para onde vamos, patrão? Dei-lhe meu endereço em Lambeth e sentei-me no banco traseiro. Enquanto o táxi manobrava lentamente para abrir caminho no trânsito complicado pela chuva, à hora da saída dos teatros, e percorria Waterloo Bridge, o chofer começou a conversar. Mal consegui murmurar respostas monossilábicas às suas opiniões acerca do tempo, John Major, a equipe de críquete da Inglaterra e os turistas estrangeiros. A cada novo tópico, suas previsões tornavam-se mais sombrias. O homem só parou de dar opiniões quando estacionou diante de minha casa na Fentiman Road. Paguei-lhe e sorri tristemente à idéia de que aquela era a primeira vez, em muitas semanas, que conseguia chegar em casa antes da meia-noite. Subi lentamente o curto caminho que levava à porta da frente. Girei a chave na fechadura e abri a porta silenciosamente, para não acordar minha mulher. Depois de entrar, procedi ao meu ritual rotineiro de tirar o casaco e descalçar os sapatos, antes de subir silenciosamente a escada. Comecei a despir-me antes de entrar no quarto. Depois de anos chegando à uma ou às duas horas da manhã, conseguia dobrar a roupa, empilhá-la e meter-me entre os lençóis ao lado de Judy sem acordá-la. Mas, mal puxei a coberta, ela disse, com voz sonolenta: --Não pensei que viesse tão cedo, com todos os problemas que teve esta noite. - Perguntei a mim mesmo se ela não estaria falando durante o sono. - O incêndio causou muitos prejuízos? - O incêndio? - disse eu, saltando da cama, nu. - Na Davies Street. Gerald telefonou momentos depois do fogo ter começado na cozinha e ter-se espalhado pelo restaurante. Só queria saber se você estava indo para lá. Cancelou todas as reservas para as próximas semanas, mas acha que só consegue reabrir dentro de um mês, pelo menos. Eu disse que,

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como você tinha saído pouco depois das seis, estaria lá dentro de pouco tempo. O prejuízo foi muito grande? 318 Eu já estava vestido no momento em que Judy acordou o suficiente para me perguntar por que eu não tinha ido ao restaurante. Desci as escadas correndo e saí para a rua, à procura de outro táxi. Tinha começado a chover de novo. Um táxi deu a volta e deteve-se diante de mim. - Para onde vamos agora, patrão? 319 Ao Ponto / OBRIGADA, MICHAEL. GOSTARIA MUITO. Sorri, sem conseguir ocultar minha satisfação. - Olá, garota. Pensei que tivesse perdido você. Voltei-me e vi um homem alto, com uma madeixa de cabelos louros, que parecia agüentar firmemente o fluxo de gente que tentava passar por ele, de ambos os lados. Anna dirigiu-lhe um sorriso que eu não tinha visto até aquele momento. - Olá, Jonathan - disse. -Apresento-lhe Michael Whitaker. Você teve sorte. Ele comprou seu ingresso. Se você não tivesse aparecido, ia aceitar seu amável convite para jantar. Michael, este é meu irmão, Jonathan, o tal que ficou retido no hospital. Como pode ver, conseguiu escapar. Não consegui pensar numa resposta adequada. Jonathan apertou-me calorosamente a mão. - Obrigado por fazer companhia à minha irmã - disse ele. - Quer vir jantar conosco? - É muito amável - respondi -, mas acabo de me lembrar que, neste momento, já deveria estar em outro lugar. É melhor... - Não tem nada que estar em outro lugar - interrompeu Anna, dirigindo-me o mesmo sorriso. - Não seja tão fraco. Deu-me o braço. - De qualquer forma, nós dois gostaríamos que viesse jantar conosco. - Obrigado - disse eu. - Há um restaurante no fim da rua. Me disseram que é 323

bastante bom - disse Jonathan, enquanto começávamos os três a nos dirigir para o Strand. - Ótimo. Estou morrendo de fome - disse Anna. - Fale-me da peça - disse Jonathan, quando Anna lhe deu o outro braço. - Tão boa como os críticos diziam - respondeu Anna. - Teve azar em perdê-la - comentei. - Mas eu estou satisfeita por ele ter perdido - disse Anna, quando chegamos à esquina do Strand. -Acho que é aquela a casa que procuramos - disse Jonathan, apontando para uma porta dupla cinzenta do outro lado da rua. Conseguimos passar os três no meio do trânsito, temporariamente parado. Mal chegamos ao outro lado da rua, Jonathan afastou as portas cinzentas para nos deixar passar. Começou a chover no momento em que entramos. O irmão de Anna nos fez descer um lance de escada até um restaurante no subsolo, fervilhante do falatório das pessoas que tinham acabado de sair dos teatros, enquanto os garçons corriam com pratos em ambas as mãos, de mesa para mesa. - Ficaria impressionada se você conseguisse arranjar uma mesa aqui - disse Anna ao irmão, olhando para um grupo de clientes que, em volta do bar, esperava impacientemente uma mesa vaga. - Devia ter feito uma reserva - acrescentou, quando ele começou a fazer sinais ao chefe dos garçons, que estava recebendo pedidos de um cliente. Mantive-me um metro atrás deles e, quando Mário se aproximou, levei um dedo aos lábios e acenei afirmativamente com a cabeça. -Tem por acaso uma mesa para três? - perguntou Jonathan. - com certeza. Faça o favor de me seguir - disse Mário, conduzindo-nos para uma mesa tranqüila a um canto da sala. - Isto é que foi sorte! - disse Jonathan. - Sem dúvida - concordou Anna. Jonathan sugeriu que eu me sentasse na última cadeira, de modo que a irmã ficasse sentada entre ambos. 324 Logo que nos instalamos, Jonathan perguntou-me o que queria beber. - E Anna? - disse eu, voltando-me para ela. - Mais um martini seco? Jonathan pareceu surpreso. - Você não bebe um martini seco desde que... Anna olhou-o, de testa franzida, e apressou-se a dizer: - vou beber um copo de vinho com a refeição. Desde quando?, perguntei a mim mesmo, mas disse apenas; - Eu também. Mário reapareceu e entregou-nos os menus. Jonathan e Anna estudaram os seus em silêncio durante algum tempo, até Jonathan dizer: - Alguma idéia? - Parece tudo tão tentador - disse Anna. - Acho que vou me decidir pelos fettudni e um copo de vinho tinto. - Não quer um

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aperitivo? - perguntou Jonathan. - Não, estou no primeiro turno amanhã, não sei se você se lembra. A menos que, evidentemente, queira ffcar no meu lugar. - Depois do que passei esta tarde, nem pensar, garota. Prefiro passar sem aperitivos também - disse. - E o Michael? Não permita que os nossos problemas domésticos estraguem seu jantar. - Fettudni e um copo de vinho tinto está ótimo para mim. - Três fettucini e uma garrafa do seu melhor Chianti - disse Jonathan quando Mário voltou. Anna inclinou-se para mim e sussurrou em tom confidencial: - É o único vinho italiano cujo nome ele sabe pronunciar corretamente. - Que aconteceria se tivéssemos escolhido peixe? - perguntei. - Ele também já ouviu falar do Frascati, mas nunca sabe ao certo o que fazer quando alguém pede pato. - O que vocês estão conspirando aí? - perguntou Jonathan, devolvendo o menu a Mário. - Estava perguntando a sua irmã quem era o terceiro parceiro do consultório. 325

- Nada mal, Michael - disse Anna. - Você seria um bom político. - A minha mulher, Elizabeth, é a terceira parceira - disse Jonathan, sem perceber o que Anna dissera. - Pobrezinha, é ela quem está de serviço hoje. - Repare bem, duas mulheres e um homem! - disse Anna, quando o garçom desapareceu ao lado de Jonathan. - Sim. Éramos quatro - disse Jonathan sem dar explicações. Observou a etiqueta da garrafa antes de acenar afirmativamente com a cabeça, com ar de grande conhecedor. - Você não engana ninguém, Jonathan. Michael já percebeu que você não é conhecedor de vinhos - disse Anna, como se pretendesse mudar de assunto. O garçom extraiu a rolha e colocou um pouco de vinho no copo de Jonathan, para que o provasse. - O que você faz, Michael? - perguntou Jonathan, depois de ter assentido novamente com a cabeça. - Não me diga que é médico também, porque não estou nada interessado em ter outro homem no consultório. - Não, ele trabalha em restaurantes - disse Anna, enquanto colocavam na nossa frente os três pratos defettucini. - Compreendo. É óbvio que contaram um ao outro as histórias de suas vidas durante o intervalo - disse Jonathan. - Mas o que significa exatamente "trabalhar em restaurantes"? - Sou gerente - expliquei. - Ou, pelo menos, é isso que faço atualmente. Comecei como garçom, depois passei para a cozinha durante cerca de cinco anos, e finalmente acabei como gerente. - Mas o que faz um gerente de restaurante? - perguntou Anna. - É óbvio que o intervalo não foi suficientemente longo para entrarem em pormenores - disse Jonathan, espetando o garfo nosfettucini. - Bem, no momento estou dirigindo três restaurantes no West End, o que quer dizer que não paro de correr de um para outro, de acordo com o que esteja enfrentando a pior crise em cada dia. 326 - Parece mais trabalho de enfermagem - disse Anna. Qual foi o que sofreu a pior crise hoje? - Hoje, graças a Deus, não foi um dia típico - disse eu sentidamente. - Foi assim tão mau? - perguntou Jonathan. - É verdade. Perdemos esta manhã um chefque cortou a ponta do dedo e só volta ao trabalho dentro de uns quinze dias. O chefe do garçons do nosso segundo restaurante está de folga, alegando gripe, e tive de despedir o barman do terceiro por falsificar as contas. Os barmen sempre falsificam as contas, evidentemente, mas, neste caso, até os clientes começaram a notar. - Fiz uma pausa. - Mas, mesmo assim, não gostaria de trabalhar em outra... Fui interrompido por uma campainha aguda. Não percebi de onde vinha o som até Jonathan tirar do bolso do casaco um minúsculo telefone celular. - Peço desculpa - disse. - Ossos do ofício. - Premiu um botão e levou o telefone ao ouvido. Escutou durante alguns segundos e franziu a testa. - Sim, acho que sim. vou para aí o mais depressa possível. -Desligou o telefone, fechou-o e guardou no bolso. - Desculpem - repetiu. - Um dos meus pacientes escolheu justamente este momento para ter uma recaída. Acho que vou ter de deixá-los. - Pôs-se de pé e voltou-se para a irmã. - Como vai voltar para casa, garota? - Já sou crescidinha - disse Anna. - De modo que vou procurar um daqueles objetos pretos com quatro rodas e um

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letreiro em cima, que diz T-Á-X-I. Depois faço sinal para ele. - Não se preocupe, Jonathan - disse eu. - Eu a levo em casa. - É muito amável - disse Jonathan. - Porque, se ainda estiver chovendo quando saírem, talvez ela não encontre um dos tais objetos pretos para lhe fazer sinais. - De qualquer forma, é o mínimo que posso fazer, depois de ter ficado com seu ingresso, seu jantar e sua irmã. - Acho justo - disse Jonathan, quando Mário se aproximou correndo. 327 - Está tudo bem? - perguntou ele. - Não, não está. Fui chamado e tenho de ir. - Entregou-lhe um cartão American Express. - Se tiver a bondade de passá-lo na máquina, eu assino, e depois você escreve a quantia. E, por favor, junte quinze por cento. - Muito obrigado - disse Mário, afastando-se. - Espero voltar a vê-lo - disse Jonathan. Levantei-me e apertei sua mão. - Também espero - disse eu. Jonathan deixou-nos, dirigiu-se ao bar e assinou um papel. Mário devolveu seu cartão American Express. Enquanto Anna acenava ao irmão, olhei para o bar e abanei levemente a cabeça. Mário rasgou o pequeno papel e jogou os pedaços num cesto de papéis. - O dia também não tem sido nada bom para Jonathan disse Anna, voltando-se para mim. - Mas, com seus problemas, surpreende-me que tenha tirado uma tarde de folga. - Não devia ter tirado, na verdade, e não teria tirado se não fosse... - minha voz arrastou-se um pouco, enquanto me inclinava para a frente e enchia o copo de Anna. - Se não fosse o quê? - perguntou ela. - Quer ouvir a verdade? - respondi, colocando o resto do vinho no meu copo. - Gostaria muito - disse ela. Coloquei-a garrafa vazia sobre a mesa e hesitei, mas apenas por um momento. - Vinha de um dos meus restaurantes, no princípio da tarde, quando a vi entrar no teatro. Fiquei tanto tempo olhando para você que quase bati no carro à minha frente. Virei de repente para o primeiro lugar em que podia estacionar, e o carro que vinha atrás quase bateu no meu. Saltei do carro, corri para o teatro e comecei a procurá-la, até que a vi na fila da bilheteria. Entrei na fila e a vi entregar o ingresso extra. Logo que ficou fora da minha vista, disse ao bilheteiro que minha amiga não deveria ter esperado que eu chegasse a tempo e talvez tivesse tentado vender meu 325 ingresso. Quando descrevi você, o que pude fazer com detalhes, ele me entregou logo o ingresso sem hesitar. Anna pousou o copo de vinho e fitou-me com incredulidade. - Estou satisfeita por ele ter acreditado na sua história disse. - Mas eu também devo acreditar? - Deve, sim. Coloquei duas notas de dez libras num envelope e fiquei com o lugar ao seu lado - prossegui. - O resto você sabe. - Esperei para ver como ela reagiria. Não falou durante algum tempo. - Sinto-me lisonjeada - disse, finalmente. - Não sabia que ainda havia românticos à moda antiga neste mundo. - Baixou levemente a cabeça. - Posso saber o que planejou para o resto da noite? - Até agora nada foi planejado - confessei. - Por isso tem sido tão interessante. - Faz-me lembrar um After Eight de mentol - disse Anna, rindo. - Posso me lembrar de pelo menos três respostas para isso disse eu, quando Mário reapareceu, um pouco desapontado por ver os pratos meio vazios. - Estava tudo em ordem? - perguntou, um pouco ansioso. - Não podia estar melhor! - disse Anna, que ainda não deixara de olhar para mim. - Quer um café, senhorita? - perguntou Mário. - Não, obrigada - disse Anna com firmeza. -Temos de sair para procurar um carro abandonado. - Só Deus sabe se ele ainda está lá depois desse tempo todo. - disse eu, pondo-me de pé. Peguei na mão de Anna e a conduzi até a entrada. Subimos a escada e saímos para a rua. Depois comecei a repetir meus passos até o local onde havia abandonado o carro. Enquanto subíamos a Aldwych, conversando, senti-me como se estivesse na companhia de uma velha amiga. - Não precisa me dar carona, Michael - disse Anna. Provavelmente moro muito longe do seu caminho e, de qualquer forma, parou de chover. De modo que posso pegar um táxi. 329 - Eu quero dar carona a você - disse eu. - Assim, terei sua companhia durante um pouco mais de tempo. - Ela sorria, quando chegamos ao espaço tristemente enorme onde eu deixara meu carro. - Droga! - gritei. Comecei a andar rapidamente para um lado e para o outro da rua, e, quando voltei para junto dela, Anna estava rindo. - Este é outro plano para ficar mais tempo na minha companhia? - disse ela, brincando.

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Abriu a bolsa e tirou um telefone. Marcou 999 e passou-o para mim. - Que serviço deseja? Bombeiros, polícia ou ambulância? perguntou uma voz. - Polícia - disse eu, escutando imediatamente outra voz. - Delegacia de Charing Cross. Qual é a natureza de sua queixa? - Acho que meu carro foi roubado. - Pode dizer a marca, a cor e a placa, por favor? - É um Rover 600 azul, placa K857 SHV Houve uma longa pausa, durante a qual pude ouvir vozes ao fundo. - Não, não foi roubado - disse o policial que estivera falando comigo ao voltar à linha. - O carro estava ilegalmente estacionado numa linha amarela dupla. Foi rebocado e levado para o depósito de Vauxhall Bridge. - Posso ir buscá-lo? - perguntei. - Claro. Como pretende ir para lá? - De táxi. - Tudo bem. Quando chegar lá, vai precisar apresentar documento de identidade, um cheque de cento e cinco libras e o cartão do banco, no caso de não ter a quantia em dinheiro. - Cento e cinco? - perguntei, calmamente. - Exatamente. Anna franziu a testa pela primeira vez, nessa noite. - Valeu bem o dinheiro. - Como? - Nada, "seu" guarda. Boa noite. 330 Devolvi o telefone a Anna e disse: - Agora vou arranjar um táxi para você. - Não vai nada, Michael. Eu vou ficar com você. De qualquer modo, prometeu ao meu irmão que me levaria em casa. Peguei-lhe a mão e chamei um táxi, que fez uma volta na rua e veio parar junto de nós. - Depósito de Vauxhall Bridge, por favor. - Pouca sorte, amigo - disse o taxista. - É o quarto que levo lá hoje. Dirigi-lhe um amplo sorriso. - Imagino que os outros três também foram atrás de você no teatro, mas, por sorte, ficaram atrás de mim na fila - disse eu a Anna, sentando-me ao seu lado no banco traseiro do carro. Enquanto o táxi manobrava lentamente para abrir caminho no trânsito complicado pela chuva e percorria Waterloo Bridge, Anna disse: - Não acha que eu deveria ter a oportunidade de escolher entre os quatro? Afinal, um deles poderia estar dirigindo um Rolls-Royce. - Não é possível. - Ora essa, por que não? - perguntou Anna. - Porque não se poderia estacionar um Rolls-Royce naquele espaço. - Mas se ele tivesse um chofer, isso teria resolvido todos os meus problemas. - Nesse caso, eu os teria simplesmente atropelado. O táxi percorreu uma longa distância, sem que qualquer de nós voltasse a falar. - Posso fazer uma pergunta pessoal? - disse Anna, finalmente. - Se é o que penso, ia fazer a mesma pergunta a você. - Então faça primeiro. - Não... não sou casado - disse eu. - Estive quase, mas ela fugiu. - Anna riu. - E você? - Eu fui casada - disse ela tranqüilamente. - Era o quarto 331 médico do consultório. Morreu há três anos. Passei nove meses tratando dele, mas acabei por perdê-lo. - Sinto muito - disse eu, sentindo-me um pouco envergonhado. - Foi falta de tato da minha parte. Não devia ter puxado esse assunto. - Fui eu quem o puxou, não você. Eu é que devo pedir desculpa. Nenhum de nós voltou a falar durante alguns minutos, até que Anna disse: - Durante os últimos três anos, desde a morte de Andrew? tenho vivido mergulhada no trabalho e passei a maior parte do meu tempo livre aborrecendo terrivelmente Jonathan e Elizabeth. Não podiam ter sido mais compreensivos, mas devem estar mortalmente fartos de mim. Não me surpreenderia se Jonathan tivesse inventado uma situação para outra pessoa me levar ao teatro. Talvez até me desse confiança suficiente para voltar a sair. Deus sabe - acrescentou, enquanto entrávamos no depósito que houve muitas pessoas que tiveram a amabilidade de me convidar. Entreguei ao motorista uma nota de dez libras e corremos debaixo de chuva até uma pequena cabine. Dirigi-me ao balcão e li o impresso colado sobre ele. Peguei a carteira, retirei minha habilitação e comecei a contar meu dinheiro. Só tinha oitenta libras em dinheiro e nunca trago comigo um talão de cheques. Anna sorriu e tirou da bolsa o envelope que eu lhe entregara naquela tarde, juntou-lhe uma nota de cinco libras e estendeu-me tudo. - Obrigado - disse eu, sentindo-me novamente embaraçado. - Valeu bem o dinheiro - respondeu ela com um sorriso. O policial contou lentamente as notas, guardou-as numa caixa de folha e entregou-me um recibo. - Está ali perto, na fila da frente - disse ele, apontando pela janela. - E, se me permite, devo dizer que é sempre uma imprudência deixar as chaves na ignição. Se o veículo tivesse sido 332 roubado, sua companhia de seguros não teria a

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obrigação de reembolsá-lo. - Entregou-me as chaves. - A culpa foi minha, seu guarda - disse Anna. - Eu devia ter mandado buscá-las, mas não percebi o que estava se passando. vou providenciar para que ele não volte a fazer o mesmo. O policial ergueu os olhos para mim. Encolhi os ombros e conduzi Anna até meu carro. Abri a porta e deixei-a entrar. Depois dei a volta até o lugar do motorista, enquanto ela se inclinava e me abria a porta. Sentei-me ao volante e voltei-me para ela. - Sinto muito - disse. A chuva estragara seu vestido. Uma gota de chuva escorreu da ponta do seu nariz. - Mas devo dizer-lhe que é tão bonita seca quanto molhada. - Obrigada, Michael - disse ela, sorrindo. - Mas, se não se importa, prefiro que me veja seca. Eu ri. - Então, onde devo levá-la? - perguntei, percebendo subitamente que não sabia onde ela morava. - Fulham, por favor. Parsons Green Lane, 49. Não fica muito longe daqui. Introduzi a chave na ignição. A distância não me interessava. Girei a chave e respirei fundo, mas o carro recusou-se a arrancar. Constatei então que tinha deixado as luzes laterais acesas. - Não faça essa ursada comigo - supliquei, e Anna recomeçou a rir. Girei a chave uma segunda vez, e o motor pegou. Soltei um suspiro de alívio. - Foi por pouco - disse Anna. - Se o motor não tivesse pegado, talvez tivéssemos que passar o resto da noite juntos. Ou isso também fazia parte do seu astucioso plano? - Nada foi planejado até agora - confessei, enquanto saíamos do depósito. Fiz uma pausa antes de acrescentar: - No entanto, as coisas podiam ter corrido de forma diferente. - Quer dizer; se eu não fosse o tipo de mulher que você procurava? - Mais ou menos isso. - Gostaria de saber o que os três outros homens teriam pensado de mim - disse Anna, pensativamente. 333 - O que interessa? Eles não vão ter chance de descobrir. - Parece muito seguro de si, senhor Whitaker. - Se soubesse como me sinto... - disse eu. - Mas gostaria de voltar a vê-la, Anna. Se estiver disposta a arriscar-se. Ela pareceu levar uma eternidade para responder. - Gostaria, sim - disse, finalmente. -Mas só com a condição de você me pegar em casa, para eu ter certeza-de-que estacionou legalmente o carro e se lembrou de apagar as luzes. - Aceito suas condições - disse eu. - E nem sequer ponho minhas próprias condições, se iniciarmos nosso acordo amanhã à noite. Anna voltou a não responder imediatamente. - Não sei bem se tenho de fazer alguma coisa amanhã à noite. - Nem eu - respondi. - Mas cancelo seja lá o que for. - Então eu faço o mesmo - disse Anna, no momento em que eu entrava na Parsons Green Lane e começava a procurar o número quarenta e nove. - Fica uns cem metros mais adiante, do lado esquerdo disse ela. Encostei na calçada e estacionei na frente da casa dela. - Dessa vez não vamos nos preocupar com teatro - disse Anna. - Venha por volta das oito e eu faço um jantar para você. - Inclinou-se para mim e deu-me um beijo na face antes de se voltar para abrir a porta do carro. Saí e dirigi-me rapidamente para o seu lado, enquanto ela saía. - Então nos vemos amanhã por volta das oito - disse Anna. - Estou ansioso. -Hesitei e depois tomei-a em meus braços. - Boa noite, Anna. - Boa noite, Michael - disse ela, quando a soltei. - E obrigada por comprar meu ingresso, para não falar no jantar. Estou satisfeita porque meus três outros admiradores não passaram do depósito de carros. Sorri, enquanto ela introduzia a chave na fechadura de sua porta. Voltou-se então para mim: - A propósito, Michael, aquele era o restaurante do garçom com gripe, do chef com quatro dedos e meio ou o do barman vigarista? - O do barman vigarista - respondi, sorrindo. Ela fechou a porta atrás de si no momento em que o relógio de uma igreja próxima batia uma hora. 334 335

Digitalizado e revisto por Virgínia Vendramini

Rio de Janeiro, julho de 2008