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Histórias Famosas do Velho Mundo J. B. Mello e Souza Coletânea de narrativas universalmente famosas Histórias de vários quadrantes e épocas — racontos do ciclo carolíngeo, da idade média lendária, da Roma primitiva, da Grécia da alta antigüidade, da China milenar e sutil, da Pérsia misteriosa e da Índia Antiga. Transmitindo a mensagem de sabedoria de que são dotadas as lições de vida que as animam e, ainda, a filosofia que as inspiram. Disponibilização: Marisa Helena Digitalização: Marina Revisão: Talissa O IMPERADOR, O PROFESSOR E A PRINCESINHA (uma história dos tempos carlovingios)

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Histórias Famosas do Velho Mundo J. B. Mello e Souza

Coletânea de narrativas universalmente famosas

Histórias de vários quadrantes e épocas — racontos do ciclo carolíngeo, da idade média lendária, da Roma primitiva, da Grécia da alta antigüidade, da China milenar e sutil, da Pérsia misteriosa e da Índia Antiga. Transmitindo a mensagem de sabedoria de que são dotadas as lições de vida que as animam e, ainda, a filosofia que as inspiram.

Disponibilização: Marisa Helena Digitalização: Marina Revisão: Talissa

O IMPERADOR, O PROFESSOR E A PRINCESINHA (uma história dos tempos carlovingios)

PRÓLOGO

— Deixemos para os serões do inverno estes problemas de Lógica — dizia Ema Gisélia enquanto se deixava conduzir nas alamedas de aprazível bosque por seu complacente preceptor e mestre de Humanidades, um bonito rapaz, por sinal...

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E acrescentou:

— A Filosofia é uma ciência tão árida!... O seu estudo, (tu mesmo disseste que Cícero assim pensava...) — equivale a uma preparação para a morte. Confesso que me agradam muito mais os de Retórica e de Literatura Latina. A propósito: tenho um pedido a fazer-te.

— Acaso poderei eu recusar-te alguma coisa, querida? — indagou solícito, o atencioso professor. — Se o que desejas estiver a meu alcance, eu farei imediatamente... Se não estiver, hei de tentar fazê-lo!

— Oh! Como te agradeço!... Mas é coisa muito simples, meu caro mestre. Eis aqui um modesto monumento, junto ao qual tantas coisas lindas me tens ensinado. Dele guardaremos uma grata lembrança, — não é verdade? Pois bem: eu desejo apenas que me indiques uma passagem bem expressiva de Virgílio, ou de Horácio, — os teus poetas prediletos — para que eu a mande gravar nesta fonte antiga, como se fosse dita por esta formosa dríade1. Repara, Eginardo: não te parece que ela tem saudade dos pastores da Arcádia, daqueles que lhe contavam a lenda das estrelas, e alternavam os seus cantares?

— Tens razão, Ema Gisélia — concordou o professor, observando com simpatia a estatueta. — Creio que há uma passagem das "Bucólicas" em que toda a ventura se promete a quem venera o Deus das Florestas. Esta ninfa, oferecendo suas frutinhas silvestres ao Nume Tutelar dos prados, das fontes e dos passarinhos, bem merece, conforme tua feliz lembrança, uma inscrição condigna. Mas vou reler os nossos poetas, a fim de atender a teu desejo.

— Espero hoje um caloroso elogio de meu preceptor, ouviste? Li, conforme tua recomendação, todo o trecho da "Eneida" em que se percebe que Dido está apaixonada por Enéias. Que belos versos! Como Virgílio devia estar inspirado quando escreveu aquilo:

"Infandum, regina, jubes renovare dolorem!..."2

— Como? Elogiar-te, eu? Mas... minha cara amiguinha, eu já não tenho palavras que possam exprimir toda a admiração que sinto por ti... Deves ter notado que o troiano amava a Dido, embora não ousasse confessar-lhe o seu amor. Não o censuremos por isso... Ele, como eu neste momento, não soube traduzir o sentimento que lhe invadia o coração.

— Pois eu li todo o final do canto, Eginardo. Enéias foi um ingrato; não achas?

— Não o julguemos assim, princesa... Ele foi coagido, via-se obrigado pelas circunstâncias a deixar aquela terra, onde, aliás, passara dias tão felizes!...

— E a pobre Dido morreu de desgosto...

— Realmente; a magoada rainha nunca mais se consolou — é o que Virgílio diz no seu poema3.

— E com toda a razão, meu caro... — observou Ema Gisélia.

E por alguns momentos passearam em silêncio contornando a dríade saudosa do tempo ditoso em que a cercavam os pastores da Arcádia.

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— Eu não faria o mesmo que fez a rainha de Cartago — disse a moça. — Nossa religião não permite o suicídio. Mas sinto que não resistiria por muito tempo...

— Pois eu abandonaria as honras e glórias que os oráculos prometeram a Enéias e iria viver com minha amada numa casa de campo, modesta, mas feliz... Nos palácios reais dominam as ambições, a hipocrisia, os rancores... No campo, a harmonia, a serenidade, o amor. Mas, querida Ema Gisélia, tuas aias já te procuram ansiosas... É tempo de encerrarmos nossas dissertações de hoje. O inverno vem aí. A primeira nevada não pode tardar. Só na primavera voltaremos a estudar "sub tegmine fagi"4. Bem sabes que em Aachen o imperador me vai ocupar com trabalhos urgentes todas as horas claras do dia.

— Sentirei falta de tuas lições, meu querido.

— Acredito, minha cara. E eu não menos... Mas espero que nos serões que a imperatriz nos vai proporcionar teremos ensejo para breves encontros. E, à noite, (eu te prometo...) ouvirás umas canções que as Musas me hão de inspirar, para que não te esqueças de mim...

O IMPERADOR, O PROFESSOR E A PRINCESINHA

"Ema Gisélia — tal era o seu nome doce; Era do velho pai, barbado e carrancudo, Toda a esperança e enlevo, sim. Era-lhe tudo Como se tudo nela resumido fosse."

Idem — (Trad. de J. B. MELLO B SOUZA)

Mais de mil anos há, que, em plena Idade Média, quando a civilização ocidental emergia apenas, ainda sujeita a lutas e sobressaltos, da fase cruenta das invasões bárbaras, reinou sobre várias nações da Europa um notável monarca, a quem a História designa por um título perfeitamente condigno, em vista de sua obra como guerreiro, chefe de povos e legislador. Bem assim — manda a justiça acrescentar — pela proteção que dispensou à cultura das ciências, letras e artes, o que certamente em muito concorreu para torná-lo famoso.

— Mais de mil anos! Oh! Como passa o tempo inexoravelmente, — dizem os poetas, embora mais de um considere por outra forma esse problema da velha Filosofia5. Seja como for, façamos de conta que um prodigioso aparelho criado pela ciência moderna nos reconduz àquela época tão remota, e nos permite assistir, em certa cidade da Alemanha, sem que nenhum dos circunstantes ali nos veja e descubra, a uma importante reunião de que participavam uns quantos homens, quase todos idosos, barbados e austeros em suas atitudes e em seu trajar, tudo rigorosamente de acordo com os costumes do país, e com o inverno que transcorria. Entre eles, o soberano monarca de quem já se fez o merecido elogio.

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Espaçoso, o salão do velho castelo medievo; de madeira escura e primorosamente lavrada os móveis que o guarneciam. O chão de pedra apenas interrompido em alguns lugares por franjados tapetes orientais. Ricas alfaias enfeitavam os pórticos em ogiva, e as largas janelas, através de cujas vidraças se via cair a neve lá fora, monòtonamente, monòtonamente... Uma capela ao fundo, recoberta por um pano de cor violácea, que apenas revelava o Crucifixo e as imagens laterais. Ao centro da semicircunferência formada por pesadas poltronas, uma destas, de mais apurado lavor, era destinada ao principal personagem, o qual, como desde logo se percebe, atraía todas as atenções e presidia àquela soleníssima tertúlia.

Até agora limitamo-nos a observar o ambiente. Vamos ouvir o debate.

— Fale o nobre aedo grego Homero! — determinou o soberano. — Ouçamos de novo o seu problema, e as respostas oferecidas. A Academia decidirá se a pergunta e a impugnação se acham de acordo com os cânones da boa Lógica aristotélica. Não quero resolver eu, porque, repetindo o que já acentuei, usum mm habeo6.

— Grande Rei Davi — disse o personagem para quem o monarca se voltara — acredito que desta vez o poeta Horácio não tem razão. A dúvida suscitada por Xenofonte à minha pergunta não tem fundamento algum.

O venerando monge que ocupava o lugar mais próximo do monarca, tomou a palavra: "Continuo a pensar, nobre Rei Davi, que Homero incorreu num sofisma, apenas fundado no brocardo latino: "Post hoc, ergo propter hoc"7.

— Parece-me ter razão o ilustre autor da Carmen Secular — opinou o rei8. — De minha parte censuro e condeno todo e qualquer sofisma.

Eu não recorrerei a tal processo em caso algum. No entanto, vamos ouvir de novo a pergunta formulada pelo ilustre autor da Iliada.

— Minha pergunta foi esta: o que é que, ao mesmo tempo, derrete e solidifica? Ninguém deu a solução exata! E eu ensino! Ensino a toda esta Academia. É o sol, porque derrete a cera, e solidifica o barro.

— Oh! Non bis in idem!

Discretas réplicas, e risos discordantes, apesar da austeridade da assembléia, encerraram o problema.

Como, porém, se pode admitir que em plena Idade Média, no castelo residencial de Carlos Magno (pois outro não pode ser o personagem a que aludem os primeiros tópicos desta história) se tenham reunido Davi, o rei dos Hebreus, Homero, o lendário autor da Iliada e da Odisséia, e mais Xenofonte, Horácio e outros vultos famosos que viveram em épocas tão diferentes? A explicação é simples: trata-se de uma sessão da Academia Palatina, criada e mantida por Carlos Magno, que se comprazia em reunir em seu palácio os homens mais ilustres do tempo, e, presidindo ele próprio às sessões, muitas vezes tomava parte nos debates, como ficou acima evidenciado. Ora, os membros dessa imperial tertúlia deviam

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escolher seus patronos entre os próceres das letras e artes antigas, e cada qual devia ser designado, durante as reuniões, pelo nome e pelas características do respectivo paraninfo.

Compreende-se agora que o imperador fosse o "Rei Davi", tratado com todo o respeito devido mais ao poeta dos "Salmos" do que ao matador de gigantes importunos; que o sábio monge Alcuíno, figura eminente e respeitável, escolhera o delicado poeta das Odes, e o Conde Agilberto, moço pretensioso e arrogante, (o proponente do tal problema do sol) entendeu que lhe cabia o direito de ter como patrono o incomparável aedo que celebrou a cólera de Aquiles e a acidentada viagem do grande velhaco que foi o Rei Ulisses.

Falta ainda revelar-se a identidade de Xenofonte, o filósofo que, depois de ouvir as prudentes lições de Sócrates, cometeu a imprudência de se envolver naquela arriscada aventura da Pérsia9. Na reunião palatina Xenofonte era o jovem humanista e preceptor Eginardo de Malineim, moço que, apesar de sua origem plebéia, por suas ótimas qualidades de inteligência e de coração se fizera merecedor da confiança de Carlos Magno, que o distinguia com uma estima especial. Modesto e culto, hábil cavaleiro, bondoso no trato de todos quantos dele se acercassem, Eginardo tornara-se benquisto dos familiares do imperador e dos cortesãos, excetuando-se apenas alguns invejosos que não viam com bons olhos as demonstrações de simpatia com que o soberano e a imperatriz Astrida tratavam o jovem palaciano.

Além das línguas clássicas conhecia Eginardo vários dos idiomas falados no Império, pelo que o imperador resolveu fazer dele seu secretário particular, não mais dispensando sua colaboração na leitura e preparo de suas mensagens, ou na redação de suas Capitulares10. E, por último, mais alta distinção conferira Carlos Magno ao erudito humanista determinando que este, na qualidade de preceptor da princesinha Ema Gisélia, lhe ministrasse conhecimentos que dela fariam uma dama destinada a brilhante atuação na corte imperial.

Ema Gisélia, com seus dezoito anos mal completos, era todo o encanto de seu pai. Em poucos traços nos define o poeta sua figurinha amorável e boa:

"Quando, com suas aias, a gentil menina

Percorria, em folguedo, a mansão palatina,

Quem lhe visse, a sorrir, a graciosa face,

Sentiria, talvez, já no rigor do inverno,

Como se o sol, de súbito, irradiasse

Sua luz, e calor..."

Longas eram, por vezes, as lições que o paciente mestre dava a sua imperial discípula. E o mais curioso é que esta não revelava cansaço, ou aborrecimento... Mas tudo isso se explica: a Gramática, a Retórica, a tão preconizada Lógica de Aristóteles, a interpretação de textos latinos, quer da poesia paga, quer das Escrituras, tudo isso devia ter dado muito trabalho ao moço professor, e exigido profunda atenção da estudiosa princesinha11.

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E, por se ter verificado que o tempo destinado àquelas sábias lições ainda parecia exíguo demais, os íntimos da família imperial sabiam que à noite, afrontando muita vez o rigor do inverno, Eginardo lá ia ter junto ao torreão onde a jovem dormia, para cantar ao alaúde algumas daquelas langorosas canções que ele próprio compusera, e que, na verdade, não condiziam bem com o mister de acalentar crianças insones...

Tal era a situação quando se realizou a tertúlia acadêmica, a cujos aristotélicos debates estávamos assistindo, e que vão prosseguir, até o desfecho imprevisível que marcará desta vez o termo da soleníssima reunião.

— Ouçamos agora o problema que nos vai propor o poeta Horácio — ordenou o Rei Davi, arvorado como se sabe, em presidente de uma academia de letras, em noite de inverno, em certo castelo medieval.

— Ouvirei com prazer, grande Rei, — atreveu-se a dizer o Conde Agilberto, que, na qualidade de Homero, não podia dar grande atenção ao poeta venesiano. E acrescentou irônico: "Horácio nos aconselha: "Aproveitem o dia que passa, e não confiem no de amanhã"12.

O monge beneditino que representava Horácio observou:

— Homero bem poderia citar os versos do poeta latino em Latim:

"Carpe diem, guam mínimo crédula postero"

Sim; não percamos nosso tempo precioso; mas não esqueçamos que o mesmo Horácio, a quem aqui obscuramente represento, senhores, pediu aos deuses tutelares de Roma, virtude para os jovens, e sossego para os velhos:

"Di, probos mores docili juventae, Di, seneotuti placidae quietem..."13

Minha pergunta é esta, senhores: "Como poderei hoje conversar, sem língua e sem voz, com alguém que nunca existiu, nem existirá nunca?"

— Hein? Conversar sem língua e sem voz? Mas isto é um perfeito disparate!

Assim se manifestou logo o Conde Agilberto.

— Realmente, parece um absurdo — sugeriu outro acadêmico.

— Ninguém resolve essa incrível extravagância! — asseverou um terceiro.

— A solução não pode filiar-se à Lógica de Aristóteles — insistiu o impertinente fidalgo.

O imperador achou oportuno encerrar o estudo do problema.

— É escusado! Ninguém atina com a solução. Dai-nos a chave desse enigma, ilustre poeta. Como se pode conversar sem língua e sem voz, com alguém que nunca existiu, nem existirá nunca?

— Sonhando, nobre Rei Davi!

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A resposta do venerando religioso foi acolhida com risos de aprovação. Em caso algum as figuras silogísticas do sábio estagirita14 poderiam impedir que, no mundo irreal dos sonhos, tivesse alguém ocasião de realizar aquela inverossímil proeza.

— Cabe a vez agora ao nosso Xenofonte! — declarou Carlos Magno voltando-se para o meditativo poeta que, durante os debates anteriores, se havia conservado absorto em seus pensares.

Eginardo, porém, escusou-se:

— Perdoai, nobre rei, mas nada me ocorreu que possa deleitar esta culta assembléia!...

— Xenofonte, — insistiu o imperador — quem ouviu, como tu, as lições de Sócrates, não pode deixar de ter uma idéia feliz! Aguardamos tua pergunta...

— Obedeço-vos, ó Rei! E, ainda sob a influência do problema proposto pelo sábio Horácio, ofereço esta pergunta: "Qual é o sonho dos que estão acordados?"

— Qual é o sonho dos que estão acordados, senhores? — reforçou o imperador repassando com o olhar o grupo ali presente.

— Esta agora é totalmente absurda — afirmou o conde. — Absurda, contraditória e incoerente!

— Talvez se resolva por um silogismo em "baralipton" — sugeriu um dos presentes.

— Não creio... Quer me parecer um argumento em "celarent", ou em "frisessomorum"15.

— Visto que ninguém propõe uma solução, podes falar, Xenofonte!

— Ó grande rei, e vós outros, sabei — declarou o moço humanista: o sonho dos que estão acordados é... a ESPERANÇA!

— Protesto! — exclamou o Conde Agilberto — há outros sonhos, e alguns criminosos, a que se entregam indivíduos acordados: a Ambição, a Perfídia, e a Deslealdade, por exemplo... E é precisamente porque tais sonhos se praticam nesta corte, é que farei, logo que termine esta reunião, revelações da maior gravidade a nosso augusto imperador, a quem peço desde já uma audiência secreta!

Aquele inesperado desfecho para uma simples assembléia convocada para debates de cultura filosófica e de espiritualidade, causou a todos penoso constrangimento: Carlos Magno ordenou que se retirassem os presentes, excetuados apenas os membros de seu Conselho Privado, que com ele ouviriam as graves acusações anunciadas pelo antipático fidalgo. Os demais não deixariam o recinto do castelo até ulterior decisão do monarca.

Poucos minutos depois, a bondosa Imperatriz Astrida16 recebia em seu aposento a visita de Eginardo, para ali conduzido por uma dama de honor, e já ciente da tormenta que desabava sobre seu destino.

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— Eginardo, — disse a imperatriz ao vê-lo — bem sabes que o imperador te quer bem, e todos nós da família igualmente. Há, porém, na corte, invejosos que não gostam de ti, e procuram causar tua desgraça por todos os meios.

— Infelizmente é verdade, senhora — confessou o moço preceptor. — Mas eu tenho a consciência tranqüila.

— Bem sei; para cada um de nós, e perante Deus, isso tem capital importância; mas é mister precaver-se contra os males possíveis quem quer que se encontre na delicada situação em que te vemos. Quero dizer-te que o imperador está sendo informado da paixão que tens pela princesa Ema Gisélia, minha enteada, e...

— Senhora... espero que me compreenda... este amor, que reconheço temerário e desigual, surgiu em mim... e subjugou-me de tal sorte, que...

— Eu sei, meu filho, eu sei... Isso é mais forte do que a nossa vontade. E sei, também, que ela partilha de teus sentimentos, e te ama sincera e decididamente... Não admira... aquelas poéticas lições de Latim e Retórica à sombra das árvores do parque, deviam produzir algum resultado...

— E que pensa a senhora rainha que...

— Bem sabes que sou apenas madrasta da princesinha... Creio, porém, que sua mãe, se viva fosse, não se oporia. Teu nascimento humilde não impede que sejas um moço de talento, esbelto cavaleiro... Em todo o caso não tenho voto neste delicado assunto. Só o imperador pode resolvê-lo. Talvez ignores que o Conde Agilberto já pediu a Carlos a mão da princesinha e aguarda uma resposta a seu pedido...

Um pagem a serviço do imperador apresentou-se à porta do aposento.

— Senhora Rainha, com o perdão de Vossa Alteza...

— Que novas trazes, Manfredo?

— O imperador ordena que Mestre Eginardo compareça imediatamente à sala do Conselho.

— Vai, Eginardo, — disse a imperatriz — tem fé em Deus, que te há de proteger.

Enquanto durava a breve audiência que Astrida concedia ao amargurado jovem, Agilberto, com a denúncia de que se fizera portador, inoculava no espírito do rei o veneno de seus ódios e de sua inominável inveja. Insidiosos guardas, encontrando marcas de pés na neve, haviam lhe dado notícia das assíduas serenatas do poeta sonhador, insinuando a acusação que tais cantilenas bem poderiam possibilitar aventuras de mais sérias conseqüências.

Ciente de tão grave denúncia, Carlos Magno deu expansão a seu descontentamento:

— Parece incrível, com efeito! Minha filha, que eu desejo dar em casamento a um dos pares do Império, a conversar em latim com o namorado nos jardins do palácio! Isto não pode ficar assim!

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— Senhor, — aduziu Agilberto — um plebeu, tenha o talento que tiver, comete crime nefando se ousa erguer os olhos para uma donzela de sangue real! Eginardo, abusando vilmente de vossa confiança, merece a pena de morte! Sede inflexível, Senhor!

— Que dizeis a respeito, venerável Alcuíno?

Assim consultado pelo monarca, o severo monge esboçou em sua plácida fisionomia um discreto sorriso, e opinou:

— Lembremo-nos, senhor desta indagação que vem dos séculos:

"Quando a mãe Eva fiava

Ao lado do pai Adão,

Quem de nobre se orgulhava?

Quem era o fidalgo, então?"

Agilberto e os que o apoiavam na maldosa campanha, esboçaram uns risos e ademanes de mofa. Mas um olhar severo do monarca encerrou, num relance, aquelas demonstrações de desagrado.

— Silêncio! — ordenou o imperador — quem quer que se atreva a interromper o mestre insigne será expulso do palácio imediatamente! Prossegui, venerável Alcuíno!

Este retomou a palavra: “Ponderai, senhor, que Davi, a quem tomastes por modelo, foi um simples pastor na sua mocidade... Eginardo é cristão, honesto, digno, generoso e bravo. Que lhe falta para aspirar a mão de uma princesa? Dizei vós, Agilberto, visto que de vós partiu a afirmação irrefletida de que este dedicado súdito de nosso imperador merece a pena de morte!

— Já o disse, e repito — replicou com visível insolência o acusador — e repito porque assim me pede o venerável mestre: a audácia desse pretensioso letrado em qualquer país do mundo seria um caso de carrasco, apenas... Sei que pensam como eu vários dos que inspiram, com seus conselhos, as decisões de nosso preclaro imperador. Mas ainda algo mais existe, de notória gravidade, que eu devo relatar para elucidação definitiva de tão irritante ocorrência. Estou seguramente informado de que esse aventureiro cobiça apenas a riqueza que antevê no dote da imperial princesa; riqueza, títulos nobiliárquicos, e... quem sabe o que mais? Fosse Ema Gisélia uma aldeã, e não pensaria nela...

— Eis uma afirmação séria, mestre Alcuíno — observou Carlos Magno — eu não havia cogitado disso... Mas... vem aí o réu. Vamos resolver sem mais delongas este desagradável caso.

Eginardo compareceu perante seus acusadores, o imperador e os membros do Conselho sem revelar temores, nem revolta, nem indignação. Tranqüilo e sereno... Recordava mentalmente os belos versos em que Horácio exalta a coragem dos homens de caráter rijo e límpido, os quais, "se o mundo inteiro desabasse em torno, permaneceriam impávidos, contemplando as ruínas"...17

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Feitas algumas perguntas, a que o acusado respondeu com absoluta lealdade, o próprio Carlos Magno, que em tais circunstâncias dispensava porta-vozes, tomou a si o encargo de resumir a situação.

— Capitulemos o crime, senhores! Se me convencer de que as acusações aqui formuladas tem fundamento, saberei agir com o necessário rigor.

E, voltando-se para o acusado:

— Com que então, ó Eginardo, confessas que amas a princesa imperial Ema Gisélia, e sabes que teu amor é correspondido?

— Perfeitamente, senhor — respondeu o acusado com respeitosa firmeza.

— Pois eu estou informado — prosseguiu o imperador — que teu amor não é sincero: o que tu queres alcançar, ó ingrato! — é o DOTE da princesa... é o título de nobreza que teu casamento te daria... é um castelo, talvez.

— Perdoai-me, Alteza — declarou Eginardo — mas se Deus me der a ventura de alcançar a mão da princesa, vossa graciosa filha, eu NADA aceitarei, NEM UMA SÓ MOEDA, NEM UM SÓ TITULO seja do que for, NEM UM SÓ CASTELO!... Quero apenas uma esposa muito querida de meu coração, e NADA MAIS!

— E como viveria o casal? — indagou o soberano num tom de estranheza e curiosidade.

— Viveríamos de meu trabalho numa casa de campo, senhor. Nós ambos amamos os prados, as flores, as fontes, os pássaros, a ceifa e a seara...

— Bela perspectiva de vida para uma princesa imperial — murmurou Agilberto.

— Calai-vos! — impôs o imperador. — Já compreendi tudo o que se passa nesta corte em relação a minha filha muito amada. Sabei, senhores, que a mão da princesa imperial eu já a tenho recusado a reis! Mas ainda não resolvi quem seja digno dela18. Quanto à pretensão deste moço, eu quero ser indulgente e generoso... Ele se tem consagrado a meu serviço com dedicação e honestidade; sou-lhe grato por isso. Recuso-me a ver um crime no sentimento de que se deixou possuir o meu secretário: será, como seus projetos de vida campesina, uma influência de Virgílio e nada mais. Resolvo, pois, que Mestre Eginardo de Melineim vá para a Lombardia, onde exercerá o governo da Província Cisalpina. Espero que lá, vivendo em meio de gente rebelde e turbulenta, o nosso latinista esqueça esta paixão transitória, e se convença de que o amor é uma fantasia!...

Eginardo partiu, com efeito, na manhã seguinte, para a Lombardia. Belo país; mas o seu povo, ainda não conformado com a recente anexação aos domínios do império, reagia contra os governantes, o que motivava desordens e conflitos sangrentos. Árdua missão aquela; Carlos Magno usara de rude franqueza, e o jovem professor não tinha ilusões a respeito. Nem lhe valeriam, nos momentos difíceis, as mais belas passagens de Virgílio, e menos ainda os silogismos de Aristóteles,

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Morna tristeza caiu sobre a corte; a neve branqueava os telhados de Aachen19. A ausência de Alcuíno, que viajara para Roma no desempenho de importante delegação imperial, tornara desinteressantes as reuniões palaciegas. Sentia-se, pelos corredores do castelo, a falta daquele ruidoso fator de alento e de esperanças: não mais se via a princesinha Ema Gisélia nem se ouvia o seu riso cristalino irradiando alegria por toda a parte.

Um ano decorreu assim, durante o qual o imperador realizou algumas excursões destinadas, principalmente, a corrigir os erros e desmandos de seus barões e emissários, por via de regra prepotentes e inábeis. De quando em quando, alguma trabalhosa caçada na Floresta Negra. Mas outro inverno, e este bem mais rigoroso, veio, com suas nevadas enfadonhas, agravar a monotonia da vida palaciana. Toda a natureza se ressentia daquele desanimador flagelo de brancura fria...

A volta dos dias claros devia trazer um pouco de júbilo; mas tal não aconteceu. Uma notícia impressionante contristou a corte. Adoecera, inspirando cuidados, a princesinha Ema.

Astrida, que desde algum tempo descobrira o mal de sua enteada, vai à presença do esposo, que conversava com seus camareiros no "hall" do castelo, para cientificá-lo da dolorosa verdade.

— Ó Carlos de Heristal, que fazes, meu marido? Ignoras, porventura, o que se passa com tua filha? Adia essa caçada, manda para longe estas matilhas, deixa por algum tempo ao condestável e aos ministros os encargos do governo...

— Que queres dizer com isso, Astrida? — indagou o imperador surpreendido por aquela exortação enérgica e inesperada.

— Ema Gisélia está muito doente, e mal se pode já soerguer... Os físicos opinam20 que a doença é mui grave, e só sentimental... Evola-se, na dor, tão preciosa vida. Queres perder, assim, a filha idolatrada?21

Aterrado por essa notícia, e mais ainda pela indagação premente que a terminava, o velho imperador deixou expandir-se sua angústia torturante:

— Hein? Perder minha filha? Oh! Não! Nunca! Por Deus! Que hei de fazer, Astrida? Que eu perca o império, que eu perca tudo, mas salva minha filha! Por Deus! Salvai minha filha!22

— Acalma-te, meu esposo. Meu aviso é sincero, mas ainda poderemos agir. Salvaremos tua filha. O estado de Ema Gisélia é grave, mas não desesperador. Os ditames do coração nos ensinam, meu caro, que só o amor a poderá curar.

— Que queres dizer com isso, Astrida?

— As religiosas de Blümberg tudo têm feito para distraí-la, mas em vão... A pobre menina decai, visivelmente, dia a dia... Os físicos hoje me procuraram para dizer-me que se o mal continua, não respondem mais pela vida de tua princesinha tão querida.

— Que diz ela de Agilberto?

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— Não quer ouvir, sequer, esse nome odioso.

— Odioso? Por quê? Eu penso em fazê-lo duque, e par do reino!

— Carlos, meu caro: o amor desdenha de todas as grandezas humanas... Gisélia prefere morrer, a casar-se com Agilberto. Vou usar de franqueza contigo, ó Carlos de Heristal: só vejo uma solução...

— E qual é, Astrida? Dize...

— Vamos já, e já, partir para a Lombardia!

— Para a Lombardia! Ah! Compreendo! Que notícias tens recebido de Eginardo?

— Está lá, para onde o mandaste, sossegado, trabalhando... Comprou uma casa de campo à margem do Tessino, perto de Pávia; dali governa a província, cercado de amigos. Em carta que dirigiu ao condestável disse que se sente ali tão bem, que não pensa mais em voltar.

— Hein? Não quer mais voltar? Isso é o que nós havemos de ver! Ora essa! Quem manda no Império sou eu!

E Carlos Magno gritou aos que o cercavam:

— Camareiros! Guardas! Depressa! Avisem o condestável! Meus cavalos! Três carruagens, e cento e cinqüenta homens de armas, tudo pronto para uma viagem à Lombardia!

Transportemo-nos agora, para o bel paese da Itália, para aquele risonho e florido vale do Tessino, que a primavera renascente inundava de verdura, de luz, e de alegria.

— Eginardo, paz a ti! — exclamou o velho soberano ao transpor a soleira da casa que lhe fora pouco antes indicada.

— Em minha casa, Alteza! — disse o moço latinista deixando os pergaminhos que relia, para receber aquela visita inesperada. — Benvindo sois, Senhor! Sentai-vos, e repousai! Eu vou...

— Não vás, amigo. Quero falar-te a sós — determinou, enérgico, o visitante. — Se estamos nós aqui, para que mais alguém? Minha escolta ficou por ali, na curva da estrada. E, mais adiante, em suas carruagens, há mais gente importante esperando notícias sobre coisas muito sérias que nós vamos resolver aqui, agora... Ninguém deu pela minha presença na povoação. Quero conversar contigo. Temos um assunto muito urgente a tratar.

— Aguardo vossas ordens, senhor.

— Ora dize-me: ainda te lembras de Ema Gisélia?

— Amo-a sempre, e cada vez mais, senhor!

— Está bem. Isso é de capital importância... Em breve ouvirás o que ela pensa a teu respeito. Quanto a mim, sabes que sempre te quis bem. Prossigamos.

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Sim; o assunto era urgente... mas o barbado velho hesitava em prosseguir. O preconceito dificultava-lhe a palavra. Venceria o amor paterno esse desmedido orgulho? Carlos de Heristal ergueu-se da poltrona onde pouco antes se havia sentado, e foi observar, pela larga janela, o panorama plácido e ameno do vale que o Tessino banhava.

— Vamos resolver o nosso caso, meu filho...

— Aguardo vossas ordens, senhor.

— Estás na Lombardia há um ano, apenas...

— Pois eu considero esse tempo como dez anos, senhor!...

Novo período de silêncio se seguiu.

— Belo país este, realmente. Pena que seja habitado por gente tão rebelde!

— Perdão, senhor, — objetou Eginardo — este povo é bom, simples, e trabalhador. Não há aqui rebeldia nenhuma.

— Ora dize-me, Eginardo, como foi que conseguiste este resultado? Todos os meus emissários em terra lombarda vivem em lutas e desordens; eu recebo mensagens instantes reclamando justiça; só aqui, neste domínio que te confiei, vejo o povo tranqüilo e ordeiro... Notei, durante a viagem, que a província vive feliz... Por toda a parte vi mulheres a cantar, enquanto as crianças brincam no meio das searas... Eu próprio decorei, sem querer, por ter ouvido muitas vezes, uma canção de amor à natureza:

"Quando renasce a primavera, Quando florescem os trigais..."

Não é assim? Ainda tenho boa memória... Confessa-me com franqueza, meu filho. É só para nós dois... Que fizeste para criar aqui uma nação que trabalha e prospera?

— Senhor, — declarou Eginardo — visto que assim ordenais, vou usar de franqueza. Vossos barões são ambiciosos, e praticam injustiças e violências. Eu, não. Nada pretendo. Não quero possuir riquezas, nem amplos domínios, nem castelos. Limito-me a cumprir as vossas leis, e a aconselhar a esta boa gente fé em Deus, harmonia e trabalho. Graças a Deus tudo me tem corrido bem. Olhai: vem ali um grupo de camponeses: vão passar junto a esta casa. Querem sempre que eu os veja, e corresponda a suas saudações amáveis.

— Oh! Mas é um grupo numeroso — disse o imperador franzindo a testa. — Olha: eu não quero que me reconheçam, ouves tu? Quero guardar o incógnito. Ficarei aqui, atrás da cortina, para que não me vejam de fora...

Momentos depois o grupo, em alegre passeata, fazia uma parada em frente à casa do estimado emissário imperial.

— Companheiros! — propôs um deles, depois das saudações iniciais — cantemos para mésser Eginardo, o rondei da Primavera!

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Aceita, com aplausos, a idéia, o grupo entoou a canção da qual o imperador recordara apenas os primeiros versos. E os últimos diziam:

"Oh! Como eu amo a Lombardia! Meu doce lar e a terra onde eu nasci!"

— Obrigado, amigos — exclamou Eginardo, acenando da janela aos manifestantes, mas preocupado em evitar alguma desrespeitosa cotovelada no imperador, que, de seu esconderijo, assistia à cena.

"Folgo em vê-los alegres, sempre cantando..."

— Mas nós estamos tristes, ser Eginardo — exclamou um deles.

— Tristes? Mas por quê?

— Soubemos por um viajante vindo do norte que o imperador resolveu chamar-te de novo à corte... Talvez precise de ti, como outrora... Mestre Eginardo, não nos abandones! Nós te queremos bem, mais do que o rei que tão injustamente te exilou!

— Protesto; eu não te exilei, Eginardo — disse em voz baixa o soberano.

— Eu explicarei, Alteza! — aduziu o moço.

Um dos camponeses inquiriu:

— Que dissestes? "Alteza"?

— Sim — continuou Eginardo sem se perturbar. — Eu quis dizer que Sua Alteza, o nosso Imperador, não me exilou; deti-me um posto de confiança na administração do império. Muito honrado me sinto, e...

— Recebeste algum convite do imperador? — indagaram.

— Até este momento não — afirmou o ex-professor da princesinha Ema.

— Mas vais receber já — acrescentou o oculto soberano.

Um dos camponeses, aproximando-se o mais possível da janela, disse:

— Nosso receio, Eginardo, é que o Imperador queira que tu cases com a linda princesinha por quem tu suspiras ainda... É ou não é?

— Não creio que isso aconteça, meus amigos.

— ...pois é o que vai acontecer — retificou Carlos Magno, já com sinais inequívocos de impaciência.

A esquisita situação não podia durar muito. O imprudente lombardo precipitou o desfecho dizendo:

— Felizmente não és nobre, Eginardo, e, assim, em caso algum Carlos Magno consentirá que te cases com a princesinha...

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Nesse ponto, o impulsivo monarca não se pôde conter mais, e, afastando as cortinas que o ocultavam, apresentou-se com toda a sua imponência e suas barbas àquela gente estupefata:

— Meus amigos e leais súditos, estais enganados! Eu, Carlos de Heristal, imperador e rei, aqui presente, declaro que Eginardo é nobre, e que se vai casar com a princesa Ema Gisélia, minha filha!

Vozes e gritos de surpresa fizeram-se ouvir:

— Oh! O imperador! O imperador está aqui! É ele mesmo! Viva o imperador! Salve! Viva! Viva!...

— Alteza! — exclamou Eginardo — este bom povo da Lombardia vos saúda!

— Obrigado! Muito vos agradeço, meus queridos vassalos da Lombardia! — E, impondo silêncio aos que ainda o aclamavam, disse o imperador em tom autoritário, que não admitia réplica: E afirmo, ex-autoritate, que Eginardo de Melineim é nobre, porque, pela Capitular 96, torna-se nobre "de pleno jure" quem governar uma província por dez anos, e ele o fez, pois considero equivalente a um decênio o tempo que aqui passou. E declaro mais, que ele vai se casar com a princesa, porque eu quero, ele quer, ela quer, todos nós queremos, e fica resolvido esse assunto!

Tão enérgica decisão foi recebida pelos presentes com aplausos gerais.

— Vem ali a imperatriz! E também a princesa! — exclamou alguém.

Com efeito, novas saudações e vivas se ouviram. Abriu-se passagem para as nobres visitantes. Astrida e sua gentil enteada foram recebidas no ádito do solar pelo imperador inimigo dos sofismas, e seu vírgiliano secretário, que parecia sonhar acordado.

Todos se sentiram conquistados pela simpatia da respeitável senhora, e muito mais pela graça indefinível da formosa princesinha. Sorridente e afável, Ema Gisélia mostrava-se refeitas dos males que pouco antes a afligiam. Bom clima, aquele da Lombardia!

Os maiorais da terra, e componentes da comitiva imperial encheram a sala. Todos compreenderam que o capítulo final de um drama de amor ia ter ali o feliz término: as revelações feitas pelo imperador não admitiam dúvida.

— Eginardo de Meliheim — disse em voz solene o imperador, tomando a filha pela mão, — aqui está tua noiva... Sede felizes!

Ao despedir-se, meia hora depois, dos camponeses longo-bardos, que lamentavam a perda de seu bondoso governante, Carlos Magno procurou aquietá-los com esta promessa:

— Ficai tranqüilos quanto aos destinos desta vossa terra, que tão sinceramente amais. Enquanto eu vivo for, a Lombardia será objeto de minha especial proteção. Quero que se mantenha neste belo país o regime de honra, de justiça e de trabalho que Eginardo em boa hora instituiu.

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Satisfeitos, os respeitosos súditos se afastaram, para que o velho imperador e seus íntimos pudessem repousar da jornada, porquanto a partida para a viagem de regresso só se daria no dia seguinte.

Refeito o círculo familiar, o teimoso professor de Lógica entendeu oportuno retomar um tema que parecia liquidado:

— Senhor, espero que considereis o juramento que fiz perante vosso Conselho. Eu jurei, por minha honra, que não aceitaria uma só moeda de dote, nem um só castelo, nem título de nobreza... Certo, não querereis que eu deixe de cumprir a palavra empenhada.

— Claro que não! — asseverou o soberano. — Um genro meu há de ter palavra, ora essa! Para que serve a Lógica de Aristóteles? Determino, pois, que Ema Gisélia não leve uma só moeda de dote, mas sim cem mil! Que meu genro não possua um só castelo, mas sim, dois! E que o Conselho Imperial não conceda título de nobreza a quem já o possui ex-vi da Capitular 96!

Nem é preciso informar o arguto leitor de que tão sábias resoluções foram recebidas com especial agrado.

— Meu querido paizinho — segredou ao velho imperador a graciosa princesinha, — como tu és bom!... E que bela idéia tiveste, de combater com a Lógica os argumentos de Eginardo!...

— Cala a boca, filhinha... Tudo isso não passa de sofismas muito ordinários...

E aqui termina a história de um episódio ocorrido há mais de mil anos... Por ela ficam cientes as nossas gentis patrícias de que naqueles tempos remotos até as princesinhas imperiais estudavam o velho Latim, e reliam com prazer os mais belos versos de Virgílio, especialmente quando um jovem e simpático professor à sombra de árvores frondosas e ao rumor de fontes amigas sabia revelar-lhes as belezas daquela poesia imortal.

Dizem que no umbroso bosque que circunda um velho castelo da Alemanha feudal, uma ninfa postada sobre cristalina fonte apresenta aos deuses sua delicada oferenda de frutas silvestres. E no mármore do pedestal a formosa castelã mandou gravar o voto generoso do poeta mantuano:

"Fortunas at ille Deos qui novit ayrestes..."

A NOIVA OU O TIGRE?

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"Berdic, truão de Guilherme, o Conquistador, teve a renda de três cidades como prêmio; o que não se deve admirar, pois muita vez um bobo da corte evita que os reis cometam crimes que os ministros pusilânimes justificariam..."

JOHN DOBAN, The history of Gourt Fools

A NOIVA OU O TIGRE? (Lenda medieval)

A lenda medieval abrange, somente, a primeira parte desta história; é um episódio inacabado, que se corta, bruscamente, no momento em que o rapaz hesita na escolha da caixa que deve abrir. O segundo episódio resultou de um concurso aberto pela revista esperantista La Revuo, que a Casa Hachette editou em Paris, de 1906 a 1910. Nele se fundiram as sugestões de vários concorrentes para dar um final à velha história.

O VIAJANTE DESCONHECIDO

Quem passasse pela ampla estrada real, ensombrada de frondosos arvoredos de ambos os lados, causava estranheza aquele belo moço desconhecido que cavalgava tranqüilamente em direção à capital do minúsculo reino da Mirolândia.

Com efeito desde alguns anos a cidade só era visitada por viajantes de modestas condições, mercadores, camponeses e vulgares aventureiros; já se ia tornando rara a presença de um forasteiro de alta hierarquia, como devia ser, pela aparência, o guapo cavaleiro que para lá se encaminhava.

Como se explicaria, porém, o afastamento de excursionistas ilustres príncipes e fidalgos, de uma capital tão cheia de atrativos?

Por que razão os poucos que se aproximavam da cidade contentavam-se em observá-la de longe, e lá se iam em demanda de outras terras?

Alguma coisa havia, sem dúvida, que justificasse esses fatos e o péssimo conceito que se formou em torno do nome da Mirolandia, desde que subira ao trono o célebre e singularíssimo Rei Velox I.

Contavam-se a respeito desse bizarro tipo de déspota antigo, interessantes episódios, uns apenas extravagantes, outros quase trágicos, e todos mais ou menos inverossímeis. E, como quem conta um conto acrescenta um ponto, a narração desses episódios alcançou as

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cortes vizinhas e se foi propagando sensivelmente aumentada. Em conseqüência, os nobres viajantes preferiram, naturalmente, visitar outros países de costumes menos complicados.

Mas o cavaleiro desconhecido a quem se refere esta história, ou não conhecia a fama do Rei Velox, ou, (o que é mais provável), não dava crédito ao que dele diziam. O caso é que continuava a sua viagem com o ar mais sossegado deste mundo, e em excelentes condições de espírito.

Apenas transpôs a porta da cidade, ocorreu um pequeno incidente.

Alguns garotos desocupados puseram-se a gracejar com um pobre homem meio corcunda e de feições esquisitas.

— Ó Plataforma — dizia um deles — porque não alugas um pequeno para carregar esse queixo?

— A rua é estreita. Plataforma: arreda o queixo que eu quero passar!

O corcunda não ligava importância aos garotos, limitando-se a lançar-lhes, de quando em quando, um olhar de desprezo.

Revoltado com o procedimento dos vagabundos, o cavaleiro intimou-os a que se calassem. Vendo que não atendiam prontamente, investiu contra o bando e dispersou-o a chicote.

— Muito obrigado, nobre cavaleiro! — disse o corcunda — por causa de uma malta tão desprezível, não valia a pena arriscardes vosso chicote a um resfriado. Se em alguma coisa eu vos puder ser útil, contai comigo. Meu nome é Eric Vaid, embora me chamem comumente de Plataforma, por causa da forma saliente do meu queixo, que, como vedes, em dimensões não deixa nada a desejar, benza-o Deus. Mas nem por isso podem dizer que sou um queixoso, porque nunca me queixo. Perdoai-me agora a curiosidade: gostaria de saber quem sois e que vos traz a esta corte.

Apesar de seu aspecto disforme, o homenzinho agradara ao cavaleiro, que não teve dúvida em atender-lhe o desejo.

— Chamo-me Ralf de Liedberg — declarou — e venho a esta cidade tão-somente para me casar.

— Para casar! Bravos! Dou a mim mesmo os parabéns por ser o primeiro a ter a honra de dar os parabéns a tão ilustre noivo. Mas não quero reter-vos por mais tempo. Deveis estar ansioso por matar a saudade de vossa noiva, e ela não menos.

— Engana-se, meu velho. Ela ainda não me conhece, nem eu a ela.

— Essa agora é que é boa!

— Pois eu te explico — tornou Ralf em tom confidencial. — Correu, em minha terra, a notícia de que a rainha deste país tem um cortejo de damas de honor formado por quarenta moças de extraordinária beleza, todas pertencentes à mais alta nobreza do reino. Ora eu, que

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cogito do sério problema de meu casamento, entendi que seria mais acertado pedir licença à Sua Majestade a rainha para escolher a minha futura consorte entre as beldades de seu numeroso séquito. Escolherei, assim, a que mais me agradar nessa plêiade de formosuras, com a certeza de ter uma esposa de nobre estirpe, e primorosamente prendada.

Ouvindo essa explicação, o Plataforma franziu a testa e, com um tom persuasivo e rápido, exclamou:

— Não façais tal, senhor cavaleiro!...

— Por quê?

— Seria arriscar-vos a um perigo horrível.

— Explica-te, homem de Deus!

— Com a fama da beleza das damas de honor da rainha, deve ter chegado a vossos ouvidos a fama da maluquice dos macaquinhos do sótão de el-rei! Pois não sabeis que essas moças são pupilas de Sua Majestade, e que D. Velox é um dos reis mais curiosos de quantos têm existido no mundo, sem excluir os dos baralhos de cartas?

Isto disse o Plataforma depois de lançar os olhos em torno, com receio de que o ouvisse algum indiscreto transeunte.

— Mas não é com o rei que eu devo me casar, ora essa!

— Sim, mas ele poderá...

— Que diabo poderá fazer o rei? — indagou Ralf.

— Sei lá! Pode alguém adivinhar que novas extravagâncias conceberá o demônio que dirige a fábrica das idéias de D. Velox? O menos que pode acontecer, e isso na melhor hipótese, é ele exigir que façais a escolha em um tempo muito reduzido...

— Em algumas horas, talvez...

— Em alguns segundos, senhor cavaleiro, em alguns segundos! D. Velox quer tudo resolvido e executado com a rapidez do raio. Uma demora de um minuto enfurece-o como se fosse de um século. Por isso mesmo o nosso povo que em tudo e a todos põe apelidos, chama-o de Rei Chispa. O primeiro-ministro é o Dr. Relâmpago, autonomásia que lhe foi dada pela presteza com que cumpre as ordens de seu amo e senhor.

A NOIVA OU O TIGRE?

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— Para dar-vos uma idéia do quanto é capaz o nosso Rei Chispa — prosseguiu o Plataforma — vou contar-vos um caso ocorrido nesta corte há uns cinco ou seis anos.

Ralf, que se apeara, encaminhou-se, com o corcunda para um banco de pedra, sob uma árvore frondosa, para ali descansar enquanto ouvia a narrativa.

— Veio ter, não sei como, a esta cidade, um moço estrangeiro, que se agradou — imaginai de quem! — de uma sobrinha do Rei Chispa. E mostrou não ser tolo, porque a princesinha era linda a valer. E vai daí o rapaz, sabendo que se falasse ao rei em assuntos pertinentes ao casório, estourava em palácio uma tempestade medonha, resolveu continuar o seu namorinho muito em segredo com a sua namorada, enquanto se preparava tudo a jeito para celebrar-se o casamento com toda a reserva. Mas... não se sabe como, um belo dia o Rei Chispa, a quem Deus guarde — longe de nós! — descobriu a conspiração e ficou superlativamente furioso. O rapaz foi preso, incomunicável, pelo crime horrendo de se apaixonar por uma jovem da família real; no dia imediato levaram-no ao grande circo da cidade, onde, na presença de numerosa assistência, lhe disse o rei:

— Queres casar-te com a princesa, não é assim? Pois bem; a tua sorte é que vai decidir o caso. Deste recinto sairás casado ou morto.

Retiraram-se todos para os camarotes ou arquibancadas, ficando o rapaz só no meio da arena. Trouxeram, então, duas grandes gaiolas de metal, de tal modo fechadas que ninguém podia ver o que continham. O carrasco da corte, o famigerado Tira-Dúvidas, exclamou: "De ordem de el-rei declaro que deveis com esta chave, abrir uma qualquer destas caixas. Numa está a princesa; na outra, um tigre de Bengala. Se abrirdes a primeira, vereis vossa noiva, e o casamento celebrar-se-á imediatamente; mas se abrirdes a segunda tereis que vos haver com uma fera que está em jejum há vários dias". O pobre rapaz tomou a chave e ficou hesitante: qual das caixas iria escolher? Qual seria a da moça, qual a do tigre? Mal havia decorrido um minuto, quando o carrasco tornou a falar: "El-rei determina que vos seja concedido o prazo de vinte segundos para que façais a escolha; se não a fizerdes nesse prazo, as caixas serão retiradas e vós sereis decapitado, como sucede a quem quer que desobedeça a uma ordem de Sua Majestade".

Urgido por essa intimação, que não admitia réplica, o rapaz olhou para as duas caixas, refletiu três segundos no máximo; encaminhou-se para uma, hesitou mais três segundos e dirigiu-se para a outra e abriu-a.

— E quem saiu de lá de dentro — perguntou o cavaleiro ansioso por saber o desfecho da cena. — A moça ou o tigre?

— Saiu o tigre, senhor Ralf, o tigre feroz de Bengala, uma fera que era, realmente, digna de se ver!

— Pobre rapaz!

— Esperai um momento. A história não fica aí. Saiu o tigre, olhou em torno: encaminhou-se vagarosamente, quase de rastos, para o lugar onde estava o rapaz. Quando parecia que o animal ia dar o bote e já todos voltavam o olhar para não ver a cena horrível, ele

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pôs-se a rolar pelo chão, esperneou um momento e... estirou-se na areia, arquejando e contorcendo-se. Pouco depois estava sem vida.

Ninguém sabia como explicar esse fato. Retirando-se todos do circo, o rei mandou chamar os três grandes magos da corte, e consultou-os. O primeiro, o famoso "Arranha-Gato", disse: "Senhor rei, se o rapaz não foi morto pelo tigre, é porque Deus achou que esse castigo era pequeno ante a gravidade do crime que cometeu. Penso que ele deve ser arrastado por quatro cavalos bravios pelas ruas da cidade, e, em seguida, esquartejado". O segundo, o ilustre "Sai-Cinza", assim se manifestou: "Senhor rei, se o rapaz não abriu a caixa que continha a moça, é porque não tem que se casar com esta; e visto que matou o tigre, só com o olhar, está provado que é um perigoso feiticeiro e, como tal, deve ser queimado vivo".

O terceiro, conhecido pelo apelido de "Assim-É-Que-É", mais humano que os anteriores, foi de opinião diversa:

— "Senhor rei, vós dissestes que o rapaz sairia da arena morto ou casado. Logo, se ele de lá saiu sem estar morto, é porque já está casado... Palavra de rei não volta atrás".

O rei viu-se obrigado a reconhecer que este último tinha razão; desde que o rapaz não fora morto pelo tigre, nem pelo carrasco, devia estar casado. E a cerimônia realizou-se imediatamente.

— Felizmente tudo acabou bem — observou Ralf. — Mas de que morreria o tigre?

— Foi o que el-rei tratou de pesquisar, senhor, mas... todas as indagações foram baldadas. Dizem, porém, muito em segredo, que a verdade verdadeira só três pessoas sabem... a princesa, o seu atual marido e o bobo da corte. Agora, senhor cavaleiro, dizei-me: Pretendeis, ainda, procurar o Rei Velox para pedir em casamento uma de suas pupilas?

— Mas sem a menor dúvida, amigo Plataforma! Eu dou a vida por aventuras arriscadas... Hoje mesmo vou ao palácio e sem a mínima demora direi ao Rei Chispa o que pretendo.

— Pensai bem, senhor, no que ides fazer...

— Já pensei. A mim só me agrada o que é difícil e oferece perigo. Muito obrigado pelo aviso, meu caro Eric. Até à vista!

— Até à vista, e felicidades, Sr. Ralf!

E separaram-se, tomando, o cavaleiro, como dissera, o caminho do palácio real.

A NOIVA INVISÍVEL

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A primeira impressão que o Rei Velox causou a Ralf de Liedberg foi inteiramente favorável.

Apenas se fez anunciar, o cavaleiro foi recebido em audiência no salão do trono.

O monarca estava ainda resolvendo com os seus ministros algumas questões de governo.

O último caso submetido à decisão real foi o da estrada.

Tratava-se de abrir uma estrada ligando duas cidades do reino. O ministro do Reino propunha um traçado que evitava uma ponte, embora obrigasse a galgar uma montanha. O prefeito das obras combatia esse projeto e apresentava um outro com o qual se evitava a montanha, embora fosse indispensável a ponte.

Vendo que os pareceres discordavam, o rei disse:

— Estais a perder tempo, senhores. Trazei-me o mapa, uma régua, e um lápis.

Em seguida traçou uma reta ligando as duas cidades.

— Eis o projeto da estrada. Mandai construí-la, senhor prefeito.

E assim foi o caso resolvido em menos de três minutos. Pelo projeto do rei, a estrada galgava inutilmente três montanhas e cortava o rio cinco vezes.

Mas os ministros inclinaram-se respeitosamente e saíram sem nada dizer a tal respeito.

— Isto é o que se chama resolver depressa — pensava Ralf, enquanto assistia à cena.

Em seguida o rei ordenou ao cavaleiro que dissesse o que pretendia.

Ralf, em poucas palavras, expôs o fim de sua viagem.

— Com que então queres realmente casar com uma das damas da corte? — indagou o rei.

— É a honra que venho pedir a Vossa Majestade.

— E já escolheste alguma?

— Saiba Vossa Majestade que ainda não.

— Está bem. Escolherás amanhã, visto que já é tarde para realizar agora o casamento. Por hoje ficarás alojado neste palácio, amanhã os alfaiates, os cabeleireiros e mestres de cerimônias irão preparar-te. Feita a escolha, o casamento efetuar-se-á imediatamente.

Ralf deixou o salão encantado pela rapidez com que o rei anuiu a seu desejo.

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— Sempre desconfiei que era falso tudo o que diziam deste excelente homem, — pensava ele. — A história do Plataforma, provavelmente, é uma simples lenda, como as outras...

O camareiro conduziu-o aos aposentos que lhe foram destinados, e ele passou o resto da tarde no palácio, lamentando apenas não ter podido ver as célebres damas do séquito da rainha.

No dia seguinte, pela manhã, Ralf foi, efetivamente, procurado por uma dúzia de alfaiates, cabeleireiros e outros, que lhe forneceram tudo o que lhe era necessário para a cerimônia nupcial. Por último entrou no aposento um indivíduo de feições rudes, com cara de poucos amigos, o qual trazia à cintura um enorme alfange.

— Senhor cavaleiro — disse o estranho visitante — eu julgo de meu dever avisar-vos de que o processo de vosso casamento, ideado por Sua Majestade, o rei, apresenta umas quantas originalidades que talvez não vos agradem como fora de desejar. Em qualquer hipótese, porém, eu vos conjuro a obedecer imediatamente e sem o menor protesto, visto que no caso contrário eu me verei na ingrata contingência de decepar-vos a cabeça, o que não deixará de ser altamente prejudicial a vossa saúde...

— Pelo que vejo tu és o carrasco da corte...

— O título é talvez um pouco forte, senhor. Eu não sou, a bem dizer, um carrasco; o povo já me apelidou, e com razão, o "Tira-Dúvidas", e essa parece-me ser a melhor designação, pois meu encargo consiste apenas em evitar que alguém, seja quem for, tenha dúvida ou hesite no cumprimento de uma ordem real. Para maior eficácia de minhas funções disponho deste alfanje, cuja lâmina se acha sempre nas condições que ides apreciar.

Enquanto assim falava, o Tira-Dúvidas desembainhou o afiadíssimo e reluzente facão, voltou para cima a lâmina, e deixou cair sobre esta um fio de cabelo. Apenas o fio tocou de leve o gume, partiu-se em dois pedaços.

Ralf não pôde conter um ligeiro estremecimento; mas retomou a primitiva calma, e disse:

— Fica tranqüilo, Tira-Dúvidas, eu espero que não te darei trabalho. Eu e D. Velox nos entendemos perfeitamente.

Fazendo uma careta horrenda, com pretensões a sorriso amável, o Tira-Dúvidas retirou-se.

Pouco depois os mestres de cerimônia vieram buscar o cavaleiro.

Ralf foi por eles conduzido a um imenso salão, onde já se achavam o rei, a rainha, sacerdotes, ministros e cortesãos. Estes últimos observavam com grande curiosidade o noivo, e cochichavam frases ininteligíveis. Entre eles estava o jogral da corte, em quem Ralf reconheceu o Plataforma, o corcunda de queixo grande.

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— Ides fazer a vossa escolha — disse o rei Chispa. — Sejam cumpridas as minhas ordens!

O moço cavaleiro sentia-se radiante, na certeza de que iam desfilar as lindas damas, e que ele escolheria muito a sua vontade a que mais lhe agradasse. Grande, portanto, foi sua surpresa quando dele se aproximou um mestre de cerimônias, e lhe vendou os olhos com uma larga faixa de seda. Isso feito, ouviu-se uma voz ordenar: "Que entrem as damas!"

Ralf ouviu perfeitamente o ruído que faziam as quarenta moças ao entrar no salão, com os passos, e o farfalhar dos vestidos. No entanto, nenhuma palavra de qualquer delas lhe chegou aos ouvidos.

— Pode começar a escolha — disse o rei.

Fizeram aproximar-se a primeira dama.

Ralf sentiu que entre suas mãos alguém colocava as mãozinhas da moça.

O sacerdote perguntou:

— Nobre dama, consentis em casar-vos com o nobre cavaleiro Ralf de Liedberg, aqui presente?

A moça hesitou por um momento; depois respondeu:

— Sim.

— Senhor cavaleiro, quereis casar-vos com a dama aqui presente?

Ralf hesitava ainda, quando alguém lhe disse ao ouvido:

— Lembrai-vos que eu estou a vosso lado, senhor.

Ralf reconheceu a voz antipática do "Tira-Dúvidas". Num relance voltou-lhe à lembrança a cena do fio de cabelo na lâmina do facão.

O modo pelo qual a dama falara, não lhe agradou.

— Não! — respondeu ele.

— Que venha a segunda dama — exclamou o rei.

Outras mãozinhas de outra dama invisível foram colocadas entre as do cavaleiro.

— Se me livro desta, noutra não caio — pensava Ralf. — O Plataforma tinha razão...

Por esse tempo apalpava as mãozinhas da segunda dama e notou que deviam ser delicadas, mimosas, lindas.

O sacerdote dirigiu à moça a mesma pergunta feita à anterior.

— Sim — respondeu ela imediatamente, sem hesitar.

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Em seguida o sacerdote dirigiu-se a Ralf, e renovou a pergunta.

Ralf pensou: — "Esta criatura agrada-me; o fato de ter dado o sim imediatamente prova que simpatizou comigo... deve ser formosa... para que escolher mais?"

E respondeu em voz alta:

— Sim!

— Celebre-se o casamento — ordenou o rei.

Essa ordem, como as demais, foi com presteza executada.

A cerimônia realizou-se de acordo com o ritual, com a única diferença que o noivo permanecia de olhos vendados.

Concluída a solenidade, ouviram-se novamente numerosos passos e comentários em voz baixa. Devia ser grande o movimento no salão.

O mestre de cerimônias retirou, então, a venda dos olhos do cavaleiro.

Ralf olhou em torno, ansioso por ver quem era sua esposa.

Mas todas as damas se haviam retirado.

ESTA OU AQUELA?

— Felicito-vos, senhor cavaleiro — disse o rei. — Resolvestes logo o vosso caso; e eu gosto das pessoas que não hesitam. Toda hesitação é uma perda de tempo, e o tempo é precioso.

— Eu vos agradeço, senhor rei: porém, se V. M. me permite, eu desejo retirar-me quanto antes com minha esposa, visto que estou casado.

— Nada mais natural. Dentro de poucos minutos sereis atendido. Acompanhai-me.

Encaminharam-se todos para o vasto salão onde estavam alinhadas as quarenta damas de honor. Todas trajavam vestidos exatamente iguais e tinham os olhos vendados por uma larga faixa de seda.

— Vossa consorte aqui está — disse o rei. — Podeis tomá-la e levá-la convosco para vosso país. Mas se tiverdes a ousadia de tocar, de leve sequer, numa dama que não seja a vossa legítima esposa, pagareis com a vida essa imprudência.

Como, porém, poderia o pobre cavaleiro descobrir entre quarenta belas jovens, aquela com quem o haviam casado de olhas vendados?

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Não lhe era lícito tocar nas mãos, o que muito o contrariou, pois talvez reconhecesse as mimosas mãozinhas de sua noiva invisível. Por outro lado as damas tinham, naturalmente, recebido ordens severas para não revelar a verdade por gestos ou palavras. Era só, portanto, pelo exame da fisionomia que Ralf ia fazer esta nova escolha, bem mais difícil que a primeira.

Sua única esperança consistia no seguinte: Provavelmente a sua legítima esposa, ao sentir que ele passava diante dela, havia de se trair por um movimento involuntário qualquer, um estremecimento, uma rápida palidez. Infelizmente os olhos, que tanto poderiam dizer, estavam vendados; mas na falta deles qualquer outro indício bastaria.

Ralf examinou minuciosamente, uma por uma, todas as fisionomias.

Todas impassíveis!

Qual seria a sua esposa?

Ralf, porém, notou que duas, duas apenas, tinham deixado escanar movimentos sutilíssimos, quase imperceptíveis.

Uma sorrira muito ligeiramente, ou antes, esboçara um pequeno sorriso que só o olhar atilado e perspicaz de Ralf pôde perceber.

A outra franziu, também, ligeiramente, a testa.

— Uma delas é minha mulher, pensou ele; mas qual? A que sorriu ou a que franziu a testa?

Ralf pediu permissão do rei para que as duas, por ele apontadas, dessem um passo à frente, destacando-se entre as demais. Com um pouco de má vontade o rei consentiu.

E as duas moças foram trazidas um pouco para a frente, e colocadas uma à direita e outra à esquerda do atribuindo noivo.

Ralf entrou em dúvida, raciocinando da seguinte forma:

— É provável que seja a que sorriu, porque parece natural que uma jovem, sentindo que tem junto a si o seu esposo, sorria. A que franziu a testa, deve ser a primeira, a que não aceitei; é natural que ela manifestasse, por aquela forma, seu desagrado, sabendo que lhe examinava de perto o rosto aquele que a rejeitou. Sim, porque o sorriso é sinal de alegria, ao passo que o franzir da testa indica contrariedade.

Mas... por outro lado, quem sabe se a que sorriu não era, exatamente, a que ele recusou? Ela teria sorrido, então, despeitada, alegrando-se intimamente por ver naqueles apuros o cavaleiro que não quis o seu amor. Nesse caso, a verdadeira esposa seria a outra, a que franziu a testa, e que certamente não pôde conter esse sinal de desgosto quando notou que o seu legítimo esposo passou por ela sem a reconhecer e seguiu adiante, com grave risco de vida. Em suma: o sorriso de uma seria de amor ou despeito? O franzir de testa da outra significaria rancor ou receio? Mas o sorriso...

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Sem decidir, continuava Ralf a pensar sobre a escolha, quando o "Tira-Dúvidas", que se colocara atrás dele, disse em voz baixa:

— Nobre cavaleiro, da ordem de el-rei tendes vinte segundos para tomar vossa legítima esposa; findo esse tempo, se não houverdes resolvido, sinto dizer-vos que ela passará a ser vossa viúva!

Ralf voltou-se e viu o execrável tipo do "Tira-Dúvidas" com o reluzente alfanje desembainhado. Viu, também, a cara impassível do rei e os rostos aterrados dos cortesãos que o cercavam. Atrás de todos subira a uma cadeira o exótico Plataforma, cujo olhar parecia dizer: "Eu bem vos aconselhei... não me ouvistes..."

Tudo isso notou Ralf em um rápido olhar como se suas faculdades de observação tivessem aumentado ante a iminência do perigo.

O prazo curtíssimo ia acabar... o "Tira-Dúvidas" ergueu o facão...

Mas não precisou executar o gesto fatal. Ralf correu para aquela que era realmente, a sua esposa, tomou-a nos braços, exclamando:

— É esta!

Soaram palmas e bravos. Vieram todos felicitá-lo; o rei em primeiro lugar.

A esposa de Ralf chamava-se Edite: era um tipo de rara beleza e mostrava-se contentíssima por ver o seu marido livre de perigo.

O cavaleiro declarou ao rei que estava ansioso por voltar a seu país.

— Podeis partir imediatamente — disse o rei — desejo apenas que expliqueis antes a razão por que escolhestes esta e não a outra.

— O coração não raciocina, senhor rei: foi ele que me designou, das duas vezes, a que devia ser minha mulher. É tudo quanto vos posso dizer.

Meia hora depois os felizes cônjuges deixavam o palácio do rei Chispa.

Após uma cordial visita de despedidas aos parentes de Edite, partiram em uma bela carruagem, para o longínquo castelo de Liedberg.

Junto às portas da cidade Ralf encontrou um conhecido e fez parar a carruagem para falar-lhe.

Era o impagável Eric, o jogral da corte, o popularíssimo Plataforma.

— Tenho que te agradecer o imenso e valiosíssimo serviço que me prestaste...

— Ora... ora... nem falemos nisso; por tão pouca coisa...

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— Sim, mas se não fosse aquele sinal que me fizeste com o queixo, quando te vi trepado na cadeira atrás do rei, eu me veria seriamente atrapalhado com o facão do "Tira-Dúvidas"...

— Ainda bem que para alguma coisa útil serviu o meu queixo, senhor cavaleiro.

— Mas não tiveste receio que o rei percebesse teu gesto, e te castigasse em conseqüência da temeridade?

— Ora... ora, senhor cavaleiro, eu sei como faço as coisas; o rei não perceberia. E ouça mais esta: quem não teve receio de envenenar um tigre real de sua majestade, deixaria de fazer um simples movimento com o queixo quando por tão pouco pode tirar um amigo da dificuldade?...

— Ah! Agora compreendo — exclamou Ralf, — ficam explicados os dois mistérios... Dize-me agora, meu velho Eric, queres vir comigo para o feudo de meu pai, onde eu te darei uma propriedade que bastará para que descanses o resto de tua vida, deixando essa função de jogral, tão ingrata e deprimente?

O convite era sedutor, mas o Plataforma não o aceitou. Das várias razões que deu, a última convenceu a Ralf de que não deveria insistir:

— Bem vedes, senhor, que na modéstia de minha função, eu sou necessário, às vezes...

Despediram-se, afinal, os felizes nubentes do bondoso homem que tão útil lhes fora. No momento, porém, em que a carruagem ia partir, o Plataforma ainda se aproximou para uma última confidencia:

— "Um momento, senhor! Eu não vos disse que o povo desta cidade inventa apelidos para toda a gente? Vós recebestes logo o vosso: apelidaram-vos de "Noivo Cabra-Cega"...

Ralf riu-se gostosamente.

— Não faz mal, amigo Plataforma, não faz mal, mesmo porque enquanto reinar o rei Chispa, não pretendo voltar cá...

TALÁSIO E O SABINO QUE CHORAVA...

"É uma lástima que a riqueza, entrando nas jovens repúblicas, corrompa os costumes; e a mocidade perca, ao mesmo tempo, as virtudes pacíficas e a capacidade guerreira."

POLÍBIO, Histórias, VI

"Roma tornou-se poderosa e próspera pela união dos grupos que a fundaram; mas a própria fortuna lhe trouxe os germens da depravação futura..."

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SALÚSTIO, Conjuração de Catilina, 10.

TALÁSIO E O SABINO QUE CHORAVA... (Uma história dos primitivos tempos de Roma)

Sol benfazejo, tu que nos dás a claridade e a alegria, tu que ressurges em cada dia sempre com o mesmo esplendor, — que nunca vejas, ó Sol, nada mais glorioso do que a cidade de Roma!..."23

Quem diria?

Séculos depois da fundação daquele pequeno burgo sobre o Palatino, cantava o povo romano, em justificável efusão de orgulho patriótico, os seus louvores à cidade matriz da grei latina, cidade poderosa, sede de um poderoso império; cidade fadada, ainda, a tão surpreendente carreira, apesar dos males que já se faziam sentir no seu organismo político e social24.

Quem diria que com aquele grupo de aventureiros, de gente mesquinha, de fugitivos em busca de um asilo, de bandoleiros ao léu da vida, haveria Rômulo de criar uma polis25 capaz de se manter em meio de rivais invejosas, resolvidas a disputar-lhe a hegemonia do Lácio e da paludosa, mas fértil, região tiberiana?

Foi, no entanto, o que aconteceu. Favorecido pelos augúrios, e, mais ainda, pelo auxílio do avô, — Numitor — que reconquistara o poder real em Alba Longa, Rômulo conseguiu realizar as cerimônias rituais da instalação da nova comunidade sobre o Capitolino. A morte de Remo, ocorrida em circunstâncias nunca devidamente elucidadas, permitiu-lhe reunir toda a autoridade, de que o irmão deveria partilhar. Rômulo fez-se rei único. Convocou o povo; dividiu-o em tribos e centúrias; distribuiu terras aráveis; adotou medidas relativas ao trabalho, aos costumes, à religião; organizou um exército, pequeno, mas disciplinado e aguerrido. Construiu palácios, templos, pontes e monumentos. A nova cidade adquiriu desde logo uma notável fisionomia arquitetônica, que os peregrinos em trânsito admiravam.

Quatro anos de intenso trabalho decorreram. Mas não alongaremos esta história referindo episódios pertinentes às origens de Roma, episódios interessantes, aliás, porém, quase sempre lendários, que os historiadores antigos conservaram, e que Plutarco teve a feliz idéia de reunir em sua obra26. Admitimos e desejamos que nosso leitor esteja adiantado em seus estudos de História Antiga e possa dispensar nossa contribuição. O certo é que em pouco tempo a recém-criada polis já se distinguia das mais antigas por seus aspectos de vida, de atividade, e de beleza. Mas...

Há sempre um "mas..." para complicar as coisas mais simples.

O que para muitos constituía objeto de cogitações profundas é que a nova cidade não podia continuar como estava. Uma grave lacuna punha em risco a sua perenidade social e

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política, e comprometia seriamente o seu progresso. Rômulo, seus ministros, os sacerdotes, todos os homens de prol que concorriam para o bom andamento do governo já andavam preocupados, estudando uma solução para o problema. Este não parecia fácil de se resolver. É que em Roma o "belo sexo" estava representado apenas por um escasso número de matronas.

Poucos eram os cidadãos casados.

A maioria se formava de homens moços ainda, na força da idade, mas antigos bandoleiros que em sua atribulada existência anterior não haviam constituído família. Sujeitos, agora, à vida morigerada que as leis da cidade impunham, não poderiam permanecer naquela situação de celibato. Nem lhes seria possível deixar suas funções, seus deveres e seus interesses para sair em busca de esposas pelo mundo afora.

Só havia um meio para conseguir o objetivo pelo qual todos ansiavam. Rômulo consultou seus assessores e agiu em conseqüência.

O mais simpático e popular dos jovens romanos era, sem dúvida alguma, Caio Talásio, filho do chefe da cavalaria de Rômulo. Esforçado trabalhador infatigável, Caio Talásio de tal forma se conduziu durante a construção da cidade, que se fez alvo da estima do rei, e do povo. Roma lhe devia inúmeras iniciativas felizes, algumas obras de arte e instituições de real utilidade. Rômulo teve nele um colaborador precioso, conferiu-lhe o título de edil, e aprovava sistematicamente suas sugestões.

Não admira, pois, que o moço albano, figura eficiente da nova comunidade, recebesse do rei uma incumbência da maior relevância.

— Vai a Cures, a Cecínia e a Reatum — recomendou-lhe o monarca. — Procura, em meu nome, Tito Tácio e Acron; expõe-lhes nossa situação e pede que facilitem o casamento de donzelas de suas cidades com os romanos. Promete-lhes, em troca, a nossa amizade e nossa aliança, contra qualquer inimigo que os hostilize.

Talásio partiu sem demora no desempenho de sua embaixada.

Acron, rei dos Cecínios, recusou-se taxativamente a atender, maldizendo os romanos e desdenhando a aliança com que Rômulo o queria seduzir. O venerando Tito Tâcio, de Cures, mais compreensivo, recebeu com simpatia o jovem emissário, mas não quis resolver logo. Justificava-se ponderando que Roma era de criação muito recente; nem todos os adventícios sequazes de Rômulo se poderiam comparar aos bravos companheiros de Teucro, quando fundaram a Nova Salamina. Conviria, pois, adiar por algum tempo a decisão, a fim de permitir que o novo Estado se consolidasse, expulsando os maus elementos que para lá haviam afluído, e conservando apenas os bons.

Talásio não se limitou àquelas consultas. Percorreu a montanhosa terra dos Sabinos, visitando, aqui e ali, famílias respeitáveis e outras bem mais modestas, cujos chefes viviam atormentados pelos conflitos com aventureiros etruscos e tímbrios, persistentes na rapina de gado e de searas.

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— Façamos aliança, e nós os livraremos desses ruins vizinhos — assegurava o moço romano.

Ora, durante essas andanças, conheceu ele a graciosa Gomina, filha de Túlio, criador coriolano, em cuja "vila" se hospedou27. Ele era um belo rapaz; ela, uma linda pastorinha; ele queria casar-se com uma sabina; ela, ao cabo de alguns ternos idílios adquiriu a certeza de que não poderia compreender a vida sem ele. A vida dela, está claro...

— Se nos casarmos, — dizia Talásio — tu irás comigo para Roma, serás a dona de meu lar; terás o conforto de belos aposentos, carruagens, servos, tudo o que deve possuir urna dama romana de alta categoria social.

Gemina suspirava, imaginando aquelas bonitas coisas, que a fariam deixar os labores da vida campesina pelas seduções de uma grande e bela cidade.

— Meu pai não se opõe, Talásio; mas respeita muito a Tito Tácio, e não quer dar já o seu consentimento receoso de que o rei se sinta magoado.

— Bis dat qui cito dat — observou Talásio28.

— Hei de lembrar-lhe este preceito, meu amigo.

— Pois está bem, Gemina. Espero obter de Rômulo um convite especial para que Tito Tácio visite nossa cidade. Durante essa visita, será fácil conseguir que o velho concorde e, digo mais: que seja um dos paraninfos de nosso casamento.

Magnífica, a idéia. Gemina aprovou-a com entusiasmo.

— É claro que o rei não pode ir sozinho — acrescentou Talásio. — Não ficaria bem... Vou providenciar para que outros muitos convites sejam feitos, o que pertence a minhas atribuições de edil. Minha noiva, por seu lado, tratará de convencer a suas amiguinhas de que não devem deixar de assistir a nossos esponsais.

E assim ficou tudo combinado.

— És Caio, filho de Marcos Talásio? — perguntou ao jovem romano um sabino que o foi procurar na vila de Túlio. E, após a afirmativa, disse-lhe em tom misterioso: "É pena que não tenhas encontrado por aí a matrona Hercília... Trata-se da mãe de minha mulher, e, desde que lhe falaram nos planos de Rômulo, tornou-se entusiasta da idéia.

— Alegra-me tua informação, amigo. Que os deuses Lares nos ajudem!

— Espera; ainda há mais. Madre Hercília quer recrutar umas quantas amigas para uma visita a Roma.

— Ótima idéia!

— Mas convém que saibas que Hercília é viúva, e que alenta inabalável esperança de convolar segundas núpcias.

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— Ah! Temos então um caso novo a estudar. Rômulo não quer que eu leve uma turma de viúvas. As recomendações que ouvi só se referem a donzelas. Se entre estas aparecer alguma que não seja solteira, disso pode resultar sério contratempo.

— Convencer minha sogra não é possível — concluiu o sabino sacudindo a cabeça em sinal de desanimadora descrença. — Mas eu hei de evitar que ela realize seus projetos...

Poucos dias depois, já de volta a Roma, Talásio compareceu à presença do rei, e fez-lhe longa exposição do que observara no seio da grei sabina. Cientificou-o, outrossim, do ardente desejo de casar-se com a formosa Gemina. Rômulo concordou imediatamente com o plano relativo ao projetado enlace.

— Como pensam por lá as matronas? — indagou.

— Creio poder afirmar que muitas são favoráveis a nossos desejos, ó rei. Uma delas, a respeitável Hercília de Cures, queria promover a vinda de um grupo de voluntárias... Mas... surgiram dificuldades, e o projeto não se efetivou.

— Pois nós o realizaremos, Talásio. E teu exemplo servirá de estímulo.

Circularam desde então auspiciosas notícias que alvoroçaram o povo. Dizia-se que o Rei Tito Tácio e outros chefes sabinos iriam visitar a cidade a convite de Rômulo e dos Pais Conscritos29. E assistiriam às festas organizadas pelos sacerdotes em homenagem a Júpiter Capitolino, aos Manes, a Netuno, bem assim à inauguração soleníssima do culto de Vesta, para o que se trouxera de Alba Longa a chama sagrada, vinda do Oriente em época remota, e que deveria arder pelos séculos adiante. Haveria também jogos, exercícios eqüestres, diversões de vária natureza que os edis preparavam ativamente, festas destinadas ao povo, e que pela primeira vez se iam realizar na cidade. Tais celebrações deviam ofuscar, em brilho e imponência, as que pela mesma época se viam em Alba Longa e Regilum, pelo que muita gente haveria de correr para Roma, preferindo-a, naturalmente, às antigas metrópoles latinas, envelhecidas e decadentes.

Aproximava-se a data fixada para o início das festividades. Desde a véspera começaram a chegar as famílias sabinas, acolhidas com demonstrações de alegria e respeito pelos romanos, que as hospedaram da melhor maneira possível.

As cerimônias religiosas tomaram todo o primeiro dia. As exibições eqüestres e festas populares distraíram a atenção do povo romano e de seus visitantes nos dias subseqüentes. Finalmente, engalanou-se o Capitólio para a homenagem aos deuses Lares; Rômulo e Tito Tácio compareceriam, revestidos dos rubros mantos da realeza. O venerando monarca sabino sentia-se desvanecido pelas honrarias de que o cercavam. Sua gente, uma turba de camponeses afeitos à vida simples das aldeias e dos campos, admirava a aparatosa imponência da cidade com suas praças, e monumentos. Tudo, enfim, respirava entusiasmo e alegria.

— Tito Tácio, tu que tanta honra nos trazes30, ouve-me agora; os Feciais e os Augures31 querem que a homenagem aos Lares se inicie por um casamento. Justas núpcias marcam o surto feliz de uma nova Família. A Família é o abrigo para as tempestades da vida, é o esteio da Paz, o penhor do Porvir. O jovem romano Talásio aqui está, e vai nos dizer que

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aspira sua união com a formosa sabina Gemina. Eis aqui o tintinábulo sagrado de Lucina, cujo som, majestoso e solene, anunciará tua anuência a este consórcio, que o Amor inspira, os pais aceitam, e os Deuses protegem. Queres patrocinar este ato, que estreitará nossa amizade e nossa aliança?

Um pouco surpreendido, o velho rei exclamou:

— Com especial alegria farei soar tão auspicioso bronze!

Ordens se expediram com urgência para que o povo fosse avisado da sensacional notícia: o próprio Rei Tito Tácio, aprovando publicamente o casamento de um romano com uma de suas patrícias, deixava claro que doravante tais uniões eram possíveis e queridas pelos deuses tutelares das duas cidades. E os arautos acrescentaram, ao que se presume: "Que cada romano siga o exemplo de Talásio!"

Fez-se silêncio; Talásio e Gemina apareceram no local para onde convergiam todos os olhares. Cercados pelos seus íntimos, os noivos foram conduzidos pelos Feciais à presença dos reis. Consultado pelo maioral dos sacerdotes, o moço respondeu: sim — com firmeza. "Ubi tu Gaius, ego Gaia" — disse logo após a formosa moça32. Rômulo transferiu às mãos de Tito Tácio o martelo sagrado; o rei sabino fez soar o gongo misterioso.

Apesar da solenidade do ato, não foi possível evitar a expansão indomável de alegria que então explodiu. Um grupo mais exaltado apoderou-se da noiva e levou-a até onde estava o noivo.

— Toma-a nos braços, conforme a tradição de nossos antepassados — disse Tito Tácio.

Talásio não esperou segunda ordem. E, como se aquilo fosse um sinal previamente combinado, os jovens presentes gritando: "Talásio! Talásio!" desceram as escadarias, e, tomando nos braços as sabinas, levaram-nas consigo, enquanto elas e seus pais, possuídos de surpresa, ainda não haviam compreendido o gesto dos romanos em sua verdadeira significação. Quem poderia conter aquele movimento súbito de entusiasmo que dois reis autorizavam, e que o amor fortalecia?33

Quando os sabinos se inteiraram da situação, era esta um fato consumado. Centenas de jovens haviam desaparecido34.

Grande foi a indignação dos líderes sabinos, e — convenhamos, — não era para menos! Onde se viu convidar-se um grupo de famílias para uma festa, e raptar pela violência as donzelas em idade nupcial, forçando-as a casamentos para os quais o travesso Cupido em nada havia influído?

Soube-se pela voz de idôneos magistrados, que ordens severas se tinham expedido para que se respeitassem as mulheres casadas. Mas isso não acalmou os descontentes, e o próprio rei, depois de amargas censuras ditas de viva voz a Rômulo, retirou-se com sua gente, declarando que, armados, voltariam para reaver as jovens. Ficava Roma, portanto, na expectativa de uma guerra cujas conseqüências ninguém poderia prever.

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Em meio daquelas apreensões, e daquelas alegrias, encerrou-se a festa. Talásio e sua esposa não se recolheram logo à vila que possuíam no ponto mais aprazível do Aventino. Percorreram a cidade, a fim de, com seu exemplo, convencer às moças sabinas, algumas ainda lacrimosas e apreensivas, o futuro feliz que as aguardava. Doravante, acabaram-se os trabalhos do pastoreio e da ceifa... Donas de seus lares, só lhes caberia o mister de dirigir os trabalhos das servas no recesso do gineceu. Por sua parte, os romanos recém-casados procuravam consolar as suas jovens esposas, cercando-as de carinhos e atenções. O certo é que por toda a cidade, findo o episódio capital da acidentada aventura, de quando em quando se ouvia o grito de incontida alegria: "Talásio! Talásio!..." E nem só de vozes masculinas, — há quem afirme...35

Foi então que, em busca do moço romano surgiu um sabino que por ali se deixara ficar, e que parecia acabrunhado pelo mais profundo desgosto.

— Por Júpiter! — gritava o pobre homem — eu sou um desgraçado! Que será de mim? Estou perdido!

No firme propósito de encerrar a sua tarefa piedosa, Talásio quis consolar ainda aquele serrano infeliz. E indagou:

— Porque te desesperas assim, homem! O que se passou não representa uma desgraça; ao contrário, todos afirmam que será o início de uma era mais ditosa para nossas cidades.

— ...mas eu sou um desgraçado!

— Raptaram tua filha?

— Não...

— Trata-se, então, da filha de teu irmão, ou de outra moça por quem eras responsável?

— Não. Não me raptaram ninguém...

— Ora! Se nada houve que te prejudicasse, por que motivo invocas assim a piedade dos deuses?

— Eu te explico: é que minha sogra queria por força vir à festa, e eu me recusei a trazê-la. Ela é uma senhora ainda bonita, viúva, e forte!...

— Ah! Agora eu me lembro, — disse o romano — tu és o genro da matrona Hercília... Pois está bem, meu amigo: havemos de remediar tua situação pela melhor forma possível. Tua sogra virá, e eu espero arranjar para ela um marido ex abundantia optima. Sei que ainda há uma centena de romanos carecendo de esposas; e, precisamente porque os mais espertos já as possuem, eles se sentem constrangidos, numa triste condição de capitis diminutio máxima. Ficarás em Roma por hoje. Amanhã tratarei do teu caso.

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E o sabino que chorava ficou em Roma naquele dies alba lapillo notanda36. Consta que Talásio lhe proporcionou uma longa conversa com o rei, durante a qual este lhe ofereceu vantajosa instalação em Roma, caso quisesse residir na cidade.

No dia seguinte Rômulo ordenou que alguns contingentes guarnecessem a ponte Sublícia37 e as entradas da cidade, porquanto se receava um ataque por parte de Acron e dos Cecínios.

— Disponho de pouca gente para esta missão — declarou Marco Talásio. — Cento e poucos homens apenas, que ainda se conservam solteiros. Não posso convocar os demais; todos se dizem muito ocupados com problemas íntimos, de que só eles podem tratar.

— E tem razão — ponderou o rei em tom quase sério. — Seja como for, fica vigilante com a centúria, pronta para o que der e vier. Tito Tácio não reaparecerá tão cedo, mas de Acron tudo se deve temer.

Horas depois ouviram-se sinais de alarma. Uma nuvem de poeira surgira na outra margem do Tibre; tudo indicava que um grupo assaz numeroso se aproximava da ponte.

Estaria iminente um combate?

Talvez!...

O próprio Rômulo, com seus guardas armados, dirigiu-se para o ponto ameaçado pela invasão. Com surpresa viu que o velho Talásio vinha a seu encontro. Eclipsara-se a centúria.

— Porque dispensaste teus homens? — perguntou o rei, desagradavelmente impressionado. — Minhas ordens não foram cumpridas?

— Sim, ó rei! Aconteceu, porém, que não eram cecínios armados, os causadores do tumulto, mas sim uma centena de bonitas cecínias que esperavam encontrar ainda entre nós noivos disponíveis.

— E acharam-nos?

O velho Talásio afirmou, com um sorriso malicioso: "Claro que sim, ó Rei! Podes contar com mais uma centena de colunas para a paz, e penhor de sobra para o porvir. Nenhuma ficou solteira, excetuando-se apenas a chefe do bando, uma tal Hercília, de Cures, que parecia não ter pressa em resolver o seu caso sentimental. Mas que ficará em Roma, não tenho a menor dúvida. Esta, sim! Seria capaz de raptar uma centúria de romanos, se quisesse nos fazer represálias.

— Foi pena que não viesse a nossa festa...

— Queixa-se do genro, que não a quis trazer, e garante que esse maroto há de lhe pagar tamanha afronta.

— Quero conhecer essa viúva Sabina — disse Rômulo sorridente. — Espero convencê-la de que tudo se há de arranjar a contento. E tomarei o genro sob minha proteção, visto que bem o merece...38

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Afinal, os augures tinham razão. Vencido e morto Acron, ao cabo de curta escaramuça, Tito Tácio veio com sua gente, e uma luta se prolongava sem que a vitória se decidisse quer pelos latinos, quer pelos sabinos. Deu-se então o acontecimento inesperado que resolveu o dissídio: quando parecia inevitável uma batalha definitiva e sangrenta, as próprias mulheres sabinas, interpondo-se entre os pais e os maridos, (e muitas já com filhinhos pequeninos no colo) — impediram o choque e obrigaram-nos a fazer as pazes.

Quem teria induzido as timoratas sabinas à prática de tão arriscado rasgo de coragem?

Aquela Hercília era, realmente, uma líder operosa e eficiente. Justa homenagem foi a que lhe prestaram muitos anos depois, colocando-se seu busto junto ao pedestal da estátua de Juno, a deusa casamenteira por excelência.

Quanto ao sabino que chorava, parece certo que, não confiando na proteção do rei (e para isso devia ter fundadas razões) — preferiu retornar a seus pagos, e viver sossegado em sua modesta granja, cultivando sua terra fecunda em gostosas hortaliças... O que não admira, porquanto sabemos que por motivos idênticos, muitos séculos mais tarde, um imperador renunciou ao fastígio do poder imperial39.

"Não há palavras mais doce do que a Liberdade —", disse Cícero, sintetizando, assim, o sentimento em que se contém uma das mais belas aspirações da Humanidade.

QUANTO VALE UMA CANÇÃO (Lenda grega)

"Coisas da velha Grécia", — dirão. Velha? Não!... A Grécia de Tirteu estava em plena juventude. Envelhecidos somos nós, os povos de hoje, que desprezamos os estos da inteligência e do espirito, para nos dedicarmos ao cultivo exclusivo da máquina, do conforto, do materialismo...

O episódio que se vai relembrar aqui, meu jovem leitor, transcorreu no sétimo século antes de Cristo, naquela Grécia da alta antigüidade, que mal saía dos tempos lendários, dos remotíssimos tempos a cujo respeito não conhecemos a verdadeira História, a que se escreve com H maiúsculo, mas somente as mil histórias criadas e romanceadas pela fecunda imaginação dos helenos.

Bem mais próximos dos tempos "históricos" estão, certamente, os fatos mencionados nesta narrativa, do que a famosa expedição dos Argonautas ou a guerra de Tróia. Mas, porque nos vinte e seis séculos decorridos, perderam-se todos os documentos autênticos (os poucos que porventura tenham havido), muita gente põe em dúvida a veracidade de tais fatos.

O personagem principal foi Tirteu, poeta nascido em Colona, subúrbio de Atenas. Outro filho das Musas, que viveu muito tempo depois, quando Alexandria se tornara uma

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grande cidade de cultura grega plantada em plagas do Egito, escreveu a complicada história num poema. Daí resulta dizerem hoje os incrédulos: "Ora... um poema... e alexandrino! Então tudo isso não passa de pura lenda". Mas, convenhamos, meu amigo: Camões cantou, nos "Lusíadas", a viagem de Vasco da Gama, e resumiu no seu poema a história de Portugal. Por acaso tudo isso não passará de uma lenda?

Lendário, ou não, em certos pontos, o conteúdo da narrativa, é sabido que as famosas estrofes de Tirteu, por muitos e muitos anos, foram para os espartanas, um canto de guerra, se não mais do que isso, uma espécie de hino nacional. E essas estrofes, — lição impressionante de brios varonis e virtudes patrióticas — embora mutiladas, estão nas antologias da antiga língua grega, tendo tido, portanto, existência real, o que tudo nos convence da verossimilhança dos fatos.

Vejamos, pois, em que circunstâncias o velho poeta ateniense compôs, para os espartanos, as admiráveis estrofes que lhe imortalizaram o nome.

Os vôos da imaginação não encontram limites no espaço, nem no tempo. Transportemo-nos, assim, àquela juvenil e florescente Atenas anterior às leis de Sólon. Governavam os Arcontes, austeros magistrados, mas, de quando em quando, a Assembléia Popular se reunia para decidir sobre assuntos de alta relevância na vida do estado.

Estamos em plena Agora40, não longe da pérgola de mármore róseo do Pentélico, que dá acesso ao templo de Hécate, local onde se realizavam, nos dias festivos, opimos banquetes públicos. Vindo do pórtico que abria para a estrada do Pireu41, caminhava, a passo tardo e claudicante, um velho aedo, sem dúvida muito conhecido, a julgar pelas saudações que lhe dirigiam os encontradiços. Era Tirteu de Colona, antigo professor de meninos, e poeta que havia gozado de justo renome nos tempos de sua mocidade.

Pouco antes terminara uma reunião da Assembléia; eram ainda numerosos os grupos de cidadãos que comentavam os incidentes ocorridos, e discutiam sobre os casos resolvidos. Alguns destes interessavam a política de neutralidade seguida por Atenas em face da sangrenta guerra em que contendiam Esparta e Messênia, os mais fortes estados do Peloponeso. Guerra que, iniciada havia mais de vinte anos, durava ainda, oscilando a vitória ora por uma, ora por outra das beligerantes. Entre Esparta e Atenas existia antiga e notória rivalidade; mas, no momento, reinava a paz entre elas, nem parecia provável que na luta peninsular entre os espartanos e seus vizinhos messênios se imiscuíssem outras polis gregas.

Mas o barbado e carrancudo Tirteu não queria discutir política; mui diverso era o objetivo de sua presença ali. Ele queria cantar. Cantando, nos pontos mais concorridos da Cerâmica42 ou da Agora, é que ele ganhava penosamente a vida. Carecia de família que o amparasse, e a idade já não lhe permitia o exercício de sua missão de pedagogo. Via-se, portanto, reduzido à triste contingência de se valer da generosidade pública. Findo o canto, estendia humildemente a mão aos circunstantes, e aguardava as suas espórtulas.

Nem todos, porém, consideravam, como deviam, aquela velhice tão digna de pena e respeito. Foi entre ditos chistosos e gracejos irreverentes que Tirteu de Colona, sem lhes dar

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atenção, se instalou no posto costumeiro para cantar, e entoou, com voz firme ainda, a primeira estrofe de sua ode:

Musa, cantai agora a Liberdade augusta!

Dai-me forga e vigor; inspirai meu sentir!

Cantai a Liberdade!

Suprema aspiração de toda a Humanidade,

Nos anseios da paz... nos rumos do porvir!

— Fora! Fora! — exclamaram alguns populares. Outros secundaram-nos na vaia ominosa: "Cala essa boca, velho capenga!" "Vai pregar aos cretenses, ó barbudo!".

Impedido de prosseguir, o aedo protestou, com certa exaltação na voz:

— Bem sei, atenienses, que sou um velho cantor, e que meus versos já não têm o vigor da mocidade; mas, se os componho, é porque preciso ganhar a vida, e...

— Cala a boca, Tirteu de Colona! Para com isso!

— Quantas dracmas queres por essa canção, para nos deixar em paz?

Com estas e outras palavras, os populares pareciam realmente dispostos a não tolerar a presença do poeta cantor no local. Seus mesquinhos debates políticos afiguravam-se-lhes mais importantes do que a ode em que o velho aedo exaltava a Liberdade...

O jovem Délio de Trezene, que ali se achava como emissário dos arcontes de sua terra, aproximou-se do magoado cantor, e disse-lhe, a meia voz:

— Ó Tirteu, caro das Musas, não insistas! Esta gente nova de Atenas não te conheceu como preceptor, e nunca ouviu teus belos poemas. Além disso estão preocupados com as notícias que vêm do Pritaneu43. Teus versos são, ainda, belos e vigorosos, mas o momento não é favorável.

— Que indignidade! — bradava, furioso, o poeta. — Tu vês, ó Délio, o modo por que os moços de Atenas tratam um antigo professor, pobre e aleijado como eu!

Ouvindo esse justo protesto, os populares recomeçaram:

— Cala a boca, maçador barbudo! Fora! Fora!...

— Tirteu, meu caro, — continuou Délio em tom amistoso, enquanto, com o gesto procurava aquietar os recalcitrantes — aceita meu convite, já te ofereci residência em minha casa de Trezene. Lá viverás sossegado, e nada te faltará...44

— Graças sejam dadas aos deuses! — exclamou Tirteu — que ainda temos quem se condoa da sorte de um pobre desamparado! Aceito teu oferecimento, nobre cidadão de Trezene, e irei contigo.

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— Bravos! Bravos! Ficaremos livres do cacete!

Carilau, moço ateniense, e um dos promotores da assuada, encerrou o caso com estas palavras bem expressivas da pobreza de seus sentimentos:

— Amigo Délio, atira essa carcaça no canal de Salamina!

Findo o desagradável incidente, afastava-se Tirteu na direção do templo, quando Talites, o mais hábil entre os arautos a serviço dos arcontes subiu à tribuna para dirigir aos cidadãos daquele demos45 o aviso de que já dera ciência aos demais:

— Cidadãos que prestastes o juramento sagrado de Aglauros, voltai imediatamente a vossos postos! Os pritâneos aguardam uma urgente decisão da Eclésia!

Melanto, que descera da Acrópole em companhia do arauto, estava bem informado a respeito daquela inesperada convocação.

— Não vos afasteis, cidadãos, porque a Assembléia deve deliberar dentro de meia hora, apenas! Todos os augúrios foram propícios.

— Mas... que há de novo, Melanto? — indagou Carilau.

— Pois não sabes, Carilau? A guerra na península está tomando um aspecto sério... Aristômenes, o valente rei de Messânia, teve a audácia de entrar uma noite no recinto de Esparta, e foi ao templo de Minerva, onde deixou suspenso um escudo de esparciata, com esta inscrição: À MINERVA, ARISTÔMENES. É certo que se retirou da cidade, mas acampou com seus hoplitas na planície de Steniclaros!

— Mas, afinal, que temos nós com isso?

— Acaba de chegar uma delegação de Esparta! Vieram dois éforos e um polemarco. Estão hospedados no Pritaneu.

— E os senhores arcontes — inquiriu Carilau, — por acaso querem que Atenas entre nessa guerra para defender Esparta? Protesto! É um absurdo!

— Também eu! Votarei contra! Votarei contra! — gritaram outros.

Antes que de tal suspeita resultasse um tumulto, o arauto, que se conservara na bema observando a praga, retomou a palavra:

— Vós laborais em erro, cidadãos. Não se trata de arrastar Atenas à guerra contra o exército de Aristômenes. Para uma declaração de guerra a lei exige mais de seis mil votos. No entanto, para o que se vai resolver, a Eclésia decidirá com qualquer número.

— Que vieram, então, fazer aqui os éforos esparciatas?

— Posso explicar-vos, cidadãos! Esparta mandou uma embaixada ao oráculo de Delfos, pedindo ao deus que revelasse como poderia vencer nesta guerra que sustenta contra os messênios vai para vinte anos. E a resposta do oráculo foi esta:

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"Um general de Atenas aceitando Vós podereis vencer sob seu comando"46

— Oh! Então Esparta veio pedir um general a Atenas!... Esta é de primeira ordem! Ah! Ah! Ah!... Parece incrível!

— Eu imagino a cólera de Quilon, que se dizia invencível!

Com esses e outros ditos de mofa, e boas risadas, receberam os circunstantes a informação do arauto, a qual logo se divulgou pela praça toda.

— Parece incrível, cidadãos — prosseguiu Talites, — mas ó verdade. E, como por nossa lei cabe à Assembléia eleger os generais, tornou-se necessário convocar imediatamente a sessão extraordinária em que se indicará quem deve ser enviado a Esparta...

— Que humilhação para os esparciatas, que tanto se orgulham de sua bravura! — disse Carilau.

— Realmente, Carilau. Mas, como bem sabes, sentença de oráculo não se discute. Cumpre-se!

— Quem será eleito pela Assembléia? — indagou Melanto aos componentes do grupo, que se tornara numeroso. Antístenes ou Idomeneu?

O ardoroso Carilau impugnou esses dois nomes, declarando, em tom decidido:

— Qual nada! Nem um, nem outro! Esses são polemarcos de verdade! Vamos propor um general estupendo, só para irritar os esparciatas. Oh! Uma idéia genial, meus amigos! Proponho-vos Tirteu!

E gritou, com as mãos em concha, junto à boca:

— Cidadãos! Para general do exército espartano, TIRTEU!

Risos estridentes, vaias e aclamações patuscas receberam a insólita proposta do imprudente moço ateniense. E Carilau saiu pela Agora a fazer propaganda de sua idéia. Tirteu, para general! Algumas vozes ponderadas se fizeram entretanto ouvir:

— Mas... não é possível, Carilau! O velho tem mais de sententa anos e mal pode caminhar!

— Não importa! A Eclésia é soberana, e poderia, se quisesse, eleger até um cavalo! É só para irritar a gente de Esparta!

E continuou a gritar:

— Tirteu general! Tirteu general! Vamos comunicar a todos os demos!

Outros muitos aderiram à idéia e dispersaram-se gritando: "Evoé!47 Tirteu general!"

— Nobres arcontes, — revelava Talites, em confidencia aos magistrados, no átrio do Pritaneu, pouco depois da cena acima descrita, — peço vênia para vos informar que um grupo

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de eleusianos vai propor à Assembléia a eleição do velho aedo Tirteu para general e polemarco do exército espartano.

O severo Idomeneu estranhou a notícia:

— Que dizes, arauto? Tirteu de Colona? Aquele que declama poemas nas hecatésias e nas reuniões da Agora?

— Esse mesmo, nobre Idomeneu. Um pobre homem idoso, digno de respeito e simpatia. Querem elegê-lo por acinte, para irritar os esparciatas.

— É claro que a Eclésia não aceitará tal proposta.

— Enganai-vos, senhor... Pelo que ouvi, percorrendo vários demos, a extravagante idéia já conta com a maioria dos votos,

O arconte-basileu48 que ouvia atento a conversa, assim se manifestou:

— Fizeste bem, arauto, em cientificar-nos dessa leviandade. Nobres arcontes, meus colegas, examinemos o caso. Urge decidir já sobre o que nos cumpre fazer, na hipótese, infelizmente provável, de ser eleito esse ancião valetudinário para missão de tamanha responsabilidade. Qual é teu parecer, Antístenes?

Após curta reflexão, o polemarco opinou:

— Proponho que suspendamos a execução da medida, e consultemos o Senado, que certamente apelará para nova Eclésia, como faculta a lei.

— Perdoai-me, mas eu discordo — declarou Idomeneu. — Se a Assembléia eleger Tirteu, deverá ir, como general, Tirteu.

— Mas... será um absurdo...

— Provar-te-ei que não, nobre Antístenes. Seria perigoso, sim, impor outro nome à Assembléia... Nós não evitaríamos a acusação de subalterno interesse... Argumentemos, agora, por um dilema. Assumindo o comando Tirteu, o exército espartano entra em batalha, e... ou VENCE... ou É DERROTADO...

— Até aí está certo. Não há fugir ao dilema: ou vence, ou é derrotado.

— Notai bem, nobres arcontes, o oráculo não garantiu que Esparta vencerá; disse apenas que PODERÁ VENCER... Sem o general ateniense, é que não vencerá em caso algum. O velho Tirteu, portanto, vencerá, ou não.

— De acordo. Vencerá ou não...

— Ora muito bem... Se Tirteu vencer, a glória será nossa! FOI UM ATENIENSE O CHEFE VENCEDOR! E nós diremos com orgulho: "Se um pobre velho, como Tirteu, alcançou tamanha vitória, que não faria um autêntico polemarco, um guerreiro na força da idade! E que desmoralização para os generais esparciatas!

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— E se Tirteu não vencer?

— Ainda assim Atenas ficará livre e isenta de vergonha... Toda a Grécia dirá: "Pudera! Sob o comando de uma ruína humana... de um chefe septuagenário... Não admira... E agora, muito em segredo: É de nossa conveniência que Esparta, nossa rival em influência política, seja derrotada pelos messênios — Tirteu deve se deixar vencer por patriotismo...

Antístenes e os demais arcontes concordaram com esse raciocínio, por igual forma se manifestando o basileu, que, em seguida, recomendou ao arauto:

— Podes voltar à Agora, e dize a todos os cidadãos que Tirteu é nosso candidato também...

No outro flanco do Pritaneu, num dos luxuosos aposentos que lhes foram reservados para sua permanência na cidade, os embaixadores de Esparta aguardavam o resultado de sua árdua comissão. Árdua e delicada, como bem se compreende. O éforo Quilon recebeu de alguém, que viera de fora, uma comunicação reservada, e vai transmiti-la aos outros.

— Já se sabe quem foi eleito, Telamon. Logo que a pessoa indicada declare aceitar, receberemos a comunicação oficial definitiva.

— Em qual dos polemarcos recaiu a escolha, Quilon?

— Em nenhum. A decisão da Eclésia ateniense representa uma afronta a nossos brios de espartanos. Um escárnio, que não devemos suportar. Imaginai que foi eleito Tirteu Alqueídes, de Colona, um pobre cantor das ruas, figura grotesca, ridicularizada pela chacota do poviléu...

— Vamos examinar o caso cuidadosamente — propôs Telamon. — Que pensas tu, polemarco? Podes falar sem receio. Estamos a sós; nenhum estranho nos ouve.

— Penso que devemos recusar, ó Éforo — disse o polemarco. — Aqui viemos para receber, com honras militares, um guerreiro, experimentado nas campanhas e não um ancião, já na última fase da vida.

Quilon sacudiu a cabeça, em sinal negativo.

— A princípio também pensava assim, polemarco. Mas, refletindo melhor, resolvi mudar de parecer.

— Mudaste de parecer, Quilon?

— Eu vos explico. Aceitando Tirteu como general, teremos cumprido o oráculo. E seja qual for o desfecho dessa aventura, Esparta ficará bem. Vou prová-lo por um dilema. No comando de nosso exército, Tirteu ou vence... ou é derrotado...

— Está certo. É um perfeito dilema: ou vence, ou é derrotado.

— Atenção, amigo. Se ele vencer, nós, espartanos, diremos com orgulho: "Esta vitória foi nossa, tão-somente, pois o general que Atenas nos enviou valia tanto como um gato, ou um

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boneco de cera". E os democratas atenienses ficarão envergonhados com o fracasso da brincadeira.

— Mas... se Tirteu for derrotado?

— Nesse caso, nós diremos, alto e bom som: "Um general escolhido pela Assembléia democrática de Atenas levou nosso bravo exército à derrota... Fosse um polemarco espartano, e tal não aconteceria..." E a vergonha do insucesso ficará toda para Atenas...

— Que seja, pois, Tirteu, o nosso general — concordaram, com certo azedume na voz, os dois outros embaixadores.

Foi curta a reunião da Eclésia; em poucos minutos estava tudo resolvido. Uma hora depois, Tirteu, que já não pensava em cantar, visto que se preparava para deixar a cidade onde nascera, reapareceu na Agora, e viu-se cercado por um grupo de populares, aos gritos:

— Tirteu general! Evoé! Salve o polemarco Tirteu!

— Pelas fúrias infernais! — bradou o poeta, no auge da irritação, — eu já vos pedi que me deixeis sossegado! Respeitai ao menos minha velhice! Amanhã partirei para longe; nunca mais ouvireis meus cantes! E que queres tu, arauto, no meio desta malta desbriada?

Surgira, com efeito, por entre os homens do povo, o arauto Talites, em cuja companhia havia descido da Acrópole uma força de hoplitas a qual estacionara à pequena distância.

— Silêncio, povo de Atenas! — disse Talites em tom severo, que fez calar-se a turba. E prosseguiu: — Ouve-me, Tirteu Alqueídes! Os nobres arcontes mandaram-me a tua presença para comunicar-te que foste eleito general e polemarco, em missão especial junto ao Senado e ao povo de Esparta. Caso aceites essa incumbência, que te é lícito recusar, tenho ordem de conduzir-te com uma escolta de setenta hoplitas, ao Pritaneu, onde te espera a delegação esparciata. Os arcontes aguardam tua decisão, Tirteu!

Em torno ouviram-se risos e ia recomeçando a assuada: "Olhai o general! Tirteu general!".

Dominando o grupo com seu timbre de voz passante, o velho poeta assim reagiu, encolerizado:

— Pois quê? A mim, é que vós escolhestes para general dos valentes espartanos? Pensais, por acaso, que não compreendo a intenção que vos ditou semelhante escolha? E, por acaso, pensais também que eu não aceito essa missão? Pois aceito-a, atenienses! Arauto! Leva-me imediatamente à presença dos embaixadores de Esparta!

Eis aí, meu caro leitor, como e porque um velho poeta de Atenas se viu, de repente, alçado às funções de chefe supremo dos exércitos de Esparta na fase final de uma guerra que durava havia vinte anos!

Que nossa imaginação trabalhe de novo, e nos conduza agora à pátria de Licurgo, a valorosa cidade que prescindia de muralhas para sua defesa, mas que via um forte exército inimigo acampado na planície próxima de suas imponentes montanhas.

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Num edifício de linhas severas, sem os requintes de luxo do Pritaneu, estavam reunidos os éforos, cinco poderosos chefes do governo do Estado, os senadores, alguns magistrados e polemarcos. Tirteu acaba de receber o manto de general-em-chefe, e as insígnias do alto comando. Em voz solene toma a palavra o éforo Quilon.

— Tirteu Alqueídes, nós, espartanos temos confiança nos deuses tutelares de Esparta e em vós. Sois, a partir deste momento, o chefe supremo de nossos bravos guerreiros. O inimigo atreveu-se a estender sua linha de batalha na planície de Steniclaros; grave perigo ameaça, pois, a própria existência de nossa Pátria. Tirteu Alqueídes, nós aguardamos vossas ordens!

Em tom imperioso, de quem já não hesita, porque tem firme decisão tomada, Tirteu assim falou:

— Como general-em-chefe, ordeno que amanhã, ao romper da aurora, todas as forças sob meu comando se estendam, no campo de Steniclaros, em frente ao inimigo. Todos prontos para a batalha! Eu lá irei ter.

Vejamos o que se passava, na madrugada seguinte, no campo de Steniclaros, a poucos estádios de Esparta49. Ao longo da raiz das colinas contrafortes do planalto dispunham-se, em linha ininterrupta, as forças esparciatas que no silêncio e na treva da noite para ali se moveram, sem que do alcance desse movimento suspeitassem os contrários. Do outro lado, uma linha de fogueiras assinalava o acampamento dos messênios; ali reinava intensa atividade, sendo bem possível que o valente Aristômenes, na previsão de um ataque, estivesse preparando sua gente para a luta.

Ampliou-se o leque de luz no oriente; o crepúsculo matinal transformava-se numa lindíssima aurora. Carregado sobre um escudo chega Tirteu ao centro da linha espartana. Passara em rápida revista o contingente de veteranos, em seguida o dos jovens hoplitas: todos prontos para a batalha, e imóveis como se fossem estátuas. Foi então que Tirteu lhes dirigiu a palavra, com a voz possante de que a natureza o dotara:

— Valorosos espartanos! Aqui estou, cumprindo a vontade de vossos deuses tutelares! Sabei que não tenho força, sequer, para brandir uma espada; mas confio minha vida a vossa bravura. Nunca fui guerreiro, e sim poeta; e é como poeta que vos darei o brado de comando nos últimos versos de uma canção. Ouvi-me!

E declamou em tom majestoso:

"É glorioso cair nas linhas da vanguarda,

Entre os bravos heróis que, na primeira fila,

Em defesa da Pátria muito amada,

Combatem sem temor!

Mas... quão vil não será quem se acovarda,

Temendo a morte... o torpe desertor,

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Que abandona seu lar... a esposa e os filhos,

E lá vai, miserável forasteiro,

Mendigar uma esmola do estrangeiro..."

Nenhuma tradução dará, jamais, senão uma pálida idéia da impressionante beleza das estrofes com que Tirteu animou e entusiasmou os espartanos. O certo é que cada estância provocava maior e mais profundo fervor que as anteriores. Os guerreiros que o ouviam, possuídos de estranho delírio, já não continham seu ímpeto combativo. E esse fervor patriótico atingiu o mais alto grau na estrofe final do poema. Ei-la a seguir:

"Moços de Esparta, é a vós que me dirijo agora: Avante!

Não deixeis que os vossos velhos pais

Por este campo de batalha a fora

Sigam antes de vós, que à flor da vida estais!

Olhai: vede o inimigo ali, de vós bem perto!

Ele zomba de Esparta, a Pátria estremecida!...

Ele ameaça, cruel, a própria doce vida

De vossas mães e noivas, que ansiosas,

Erguem preces por vós aos deuses imortais!

Espartanos, avante! Unidos, para a glória!

Marchai contra o inimigo, e dai-nos a vitória,

Porque, povo de Esparta! — a vida, sem a HONRA,

Não vale nada mais!..."

Finda esta magnífica estrofe, que no dórico dialeto deveria ter-se revestido de comovente beleza50, Tirteu ficou, mantendo o gesto com que apontava para as linhas inimigas, no flanco ocidental de Steniclaros. Tirteu ficou, mas os espartanos partiram. E lutaram. E venceram... Não houve forças humanas que resistissem a sua bravura, a seu entusiasmo, naquela arrancada impetuosa. Aristomenes retirou-se a custo salvando a vida, com os restos de seu destroçado exército.

Ao cair da tarde, o velho general-poeta, carregado sobre, um escudo entrava triunfalmente em Esparta.

Infelizmente os gregos, salvo raros casos, — não praticavam a virtude da gratidão.

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Na manhã subseqüente, vibrando a cidade ainda sob a impressão da esplêndida vitória do dia anterior, discutiam os éforos, em reunião secreta, sobre este ponto: se se deveria, ou não, considerar finda a missão de Tirteu, resultante da sentença oracular.

Quilon propunha o imediato encerramento da carreira militar daquele exótico general, que fazia versos mas não combatia. Telamon apresentava objeções, fundadas no receio de que tal procedimento desagradasse aos deuses.

— Ponderai, Telamon — disse Quilon — que nossa brilhante vitória de ontem inutilizou, por muito tempo, o exército messênio. Aristomenes recuou, vencido e desmoralizado. Esparta já não corre perigo.

— Por isso mesmo, de acordo com aquele dilema, penso que devemos conservar Tirteu no comando.

— Nada! Isso daria motivo às expansões da vaidade ateniense, à nossa custa. A guerra, bem o sabemos, não está finda; mas o que falta realizar é pouco. E os democratas de Agora vão gabar-se de que foi um deles o vencedor. Convém que seja um esparciata a comandar, ouviste? Assim, a glória será toda nossa...

— E que diremos a Tirteu? Será difícil explicar...

— Ora... — continuou Quilon — eu me incumbo disso. Dar-lhe-emos uma recompensa de valor: cinco talentos de prata51. Uma fortuna, para quem vivia mendigando na Cerâmica... Um espartano não receberia nunca; mas ele vai gostar. Que pensais vós, éforos?

Os quatro magistrados apoiaram a proposta: "Que se dispense Tirteu!" — "Que se demita o ateniense!" "Fora com esse estrangeiro!" "Nós venceremos sem ele!".

O jovem Délio, de Trezene, que havia acompanhado Tirteu a Esparta e ao campo de Steniclaros, despedia-se do cantor de Colona no aposento onde o haviam instalado, no templo que se erguera à memória de Licurgo. Ali foi ter o éforo Quilon, e, depois de algumas considerações que seria ocioso reproduzir aqui, deu ciência ao general-poeta do que se havia resolvido a seu respeito. Num relance o velho cantor compreendeu o sentido daquele discurso e interrompeu-o, meio desabridamente:

— Não é mister que justifiques tal decisão, Quilon. Sente-se bem o constrangimento com que desempenhas tão ingrata missão. Amanhã mesmo, numa galera de Argos, regressarei à minha terra.

Quilon acrescentou o que ainda não tivera ensejo de dizer:

— Não te irrites, ilustre Tirteu... Como prêmio pelo valioso serviço que nos prestaste, os éforos e o Senado de Esparta te concedem a recompensa de cinco talentos de prata...

Tirteu não pôde conter sua indignação:

— Rejeito vosso dinheiro, espartanos! Recuso-me a recebê-lo! O que eu esperava de vós não tive: era apenas a estima, o respeito, a gratidão. Adeus, Quilon. Délio, meu amigo, voltemos para Atenas; meus patrícios agora hão de me receber bem...

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Poucos dias depois, aproximava-se do Pireu uma galera. Vai atracar. A um grito do trierarca52 recolhem-se a vela e os remos. O belo barco ainda desliza pelo impulso que o levará até o cais. Na proa vêem-se Tirteu e Délio de Trezene. De súbito, de um numeroso grupo que se formara na escadaria e no alto do cais, ouviram-se gritos de rancor e animosidade:

— Fora o traidor! Fora! Morra! Morra!

— Que volte para Esparta o traidor Tirteu de Colona!

— Fora! Fora!

Délio antevendo a gravidade do perigo, disse a seu velho amigo:

— Não tentes desembarcar, Tirteu. O povo naturalmente está furioso porque, com tua canção patriótica, deste a vitória a Esparta.

— Délio, meu amigo! — observou Tirteu quase inibido de falar pela surpresa. — Eu nunca poderia esperar esta manifestação de antipatia!... Pois não foi o povo de Atenas que me indicou para chefe do exército espartano?

— Sim... mas esperavam que tu fosses vencido... Bem vês que qualquer vitória de Esparta equivale a uma decepção para Atenas. Por isso estão irritados contra ti. Convém que te recolhas... que não apareças...

— Pelos deuses imortais! Nada fiz de que me envergonhe!

Dirigindo-se aos atenienses, disse-lhes Tirteu, em altos brados:

— Ó patrícios, ouvi-me! Eu cumpri apenas aquilo que...

Mas não pôde concluir. Pedras em grande número atingiram o barco. E os populares, com os punhos erguidos, gritavam: "Morra o general espartano! Morra o traidor de Atenas!".

— Tirteu, — aconselhou Délio — estão apedrejando o barco. Tu não tens o direito de pôr em perigo a vida destes pobres nautas que nos trouxeram, ó trierarca! — prosseguiu, em voz alta — dá tuas ordens para que se afaste o navio do porto. Depressa! Sigamos para Trezene. Eu pagarei o prejuízo que tiveres com este desvio de tua rota!

Dois meses depois desses acontecimentos, o velho cantor, que vivia sossegado na casa de campo de seu amigo Délio de Trezene, recebe no mesmo dia, por singular coincidência, a visita de duas delegações que o foram procurar. A primeira a aproximar-se do venerando colonense era constituída de esparciatas. O éforo Quilon, que a chefiava, falou em nome do grupo:

— Salve, Tirteu de Colona, glorioso vencedor de Steniclaros... Como sabes, Tirteu, depois que deixaste a Lacônia, nosso exército sofreu uma série de reveses... Aristômenes ousa anunciar que retomará a planície de Steniclaros... O Supremo Conselho resolveu confiar-te, de novo, o alto comando, para que possas concluir, gloriosamente, a missão para a qual os deuses

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te designaram. Apelamos para tua generosidade, certos de que teu nobre espírito, desculpando e perdoando nosso erro, mostre o quanto és superior ao comum dos mortais!

— E é só? — indagou Tirteu com frieza. — Ora muito bem: eu previa a vossa derrota; eu vos disse ao partir... E vós, atenienses, meus compatriotas, que quereis de mim?

Idomeneu, o arconte, e o mais graduado entre os componentes de seu grupo, aproximou-se, respeitoso, para dizer em tom pausado e grave:

— Ó Tirteu de Colona, caro das Musas! A Assembléia do Povo de Atenas resolveu conferir-te o título de polemarco vitalício, com o privilégio da residência permanente no Pritaneu, como hóspede do Estado. Desejamos, porém, que não aceites qualquer função que te ofereça outro governo ou Estado, seja qual for! — para que descanses, com dignidade, entre teus patrícios, no decurso de tua velhice gloriosa!

Inflamado pelo calor com que desafrontava agora seus brios magoados, o velho poeta encerrou a audiência com estas palavras:

— Perdestes vosso tempo, emissários! Recuso o convite de Esparta, porque Esparta foi ingrata para com o amigo que a serviu; e recuso igualmente o de Atenas, porque Atenas foi injusta para com o filho que tanto a amou e ama ainda. Ide, pois, e dizei aos pérfidos políticos que vos enviaram que a honra deve ser o símbolo eterno das nações dignas — E que o velho Tirteu de Colona prefere viver os poucos dias que lhe restam de sua vida atribulada nesta pobre cidade de Trezene, entre leais amigos que o acolheram no momento da desgraça, com grandeza d'alma e coração bondoso, ó meus amigos da Argólida, eu ficarei convosco. Hei de vos dedicar todas as canções que a Musa me inspire, — e vós sabeis, ó helenos! — o quanto vale uma canção!...

ZÉU-DE-LAO ESTÁ CONTENTE

"Senhor, eu poderia recordar-vos os exemplos de Yao, Chan, Yu e Tang... De que, porém, serviria isso? No palácio do rei não mais reside a Virtude..."

Confúcio, Conselhos ao rei do Tsi.

ZÉU-DE-LAO ESTÁ CONTENTE!... (Da antiga história chinesa)

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Porque decaem grandes impérios, que parecem destinados a durar muitos séculos? A História está farta de nos ensinar as razões, mas os governantes e os poderosos não as aprendem... O caso do império chinês de Siu-Han apresenta-nos um exemplo assaz significativo...

Quem realiza longas viagens por via aérea, sente-se, muita vez, interessado em observar o curso de um grande rio ou a seqüência de altas montanhas de uma cordilheira. Acontece, porém, que o avião corta uma nuvem, e o belo panorama se interrompe. Por algum tempo só se vê aquela cortina branca ou pardacenta que transforma a bela viagem num sacrifício de monotonia...

De quando em quando, uma clareira se abre; ressurge o sol, reaparece o azul do céu. Contemplamos, de novo, o panorama, os rios, as serranias. Que beleza! Mas... Outra zona enublada e a visibilidade se esvai.

É assim a crônica da China antiga... Uns trechos extensos, que abrangem séculos, nada se vê... nada se sabe... São as "brumas" — que interrompem o curso da História. Mas, quando menos se espera, um documento que os sábios conseguiram decifrar, abre uma clareira, e nós podemos observar um episódio que, na sua simplicidade, revela a condição social de um povo, o espírito de seus governantes, as fontes de sua grandeza, ou da miséria que o corrói.

Vamos tentar uma viagem por sobre a velhíssima história da antiga China. Uma bruma de muitos anos se segue ao glorioso reinado do imperador Siu-Han... Depois, o poderoso império ruiu por terra... Qual a razão de tamanho desastre? Ter-se-ia perdido essa causa na escuridão da nuvem, se uma brecha não nos houvesse revelado o sistema de vida do imperador Hiê-Hu, que sucedeu àquele soberano guerreiro e conquistador.

Quase vinte e oito séculos já lá se foram, desde que reinou na China antiga o imprudente Hiê-Hu. Mas esse longo tempo não importa: a História e sua prestimosa auxiliar, a Fantasia, têm recursos para que nos façam ver cenas e coisas bem mais remotas... Não nos surpreendamos, pois, meu jovem leitor, se essas amáveis companheiras nos mostram agora como vivia aquele soberano; e porque a sua amada favorita, a graciosa Zéu-de-Lao ficou contente depois de ter vivido por algum tempo imersa em profunda tristeza.

Já sabemos quem era Hiê-Hu, e em que época viveu e reinou sobre o Celeste Império. Mas quem era Zéu-de-Lao? Uma criaturinha mimosa, por quem o rei se apaixonou loucamente, ping-pong-fu-tchéumente, admitindo que este último advérbio signifique muito mais do que louca e furiosamente, sem o que não seria preciso metê-lo nesta frase já muito adverbializada.

Vivia, pois, Zéu-de-Lao no palácio imperial, cercada de toda a riqueza, de todo o luxo, de todo aquele fausto das cortes orientais antigas. Cortesãos de todas as categorias pareciam viver apenas para lhe satisfazer os mínimos caprichos. Numerosas escravas haviam sido postas a seu serviço exclusivo.

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Uma delas, a arguta e loquaz Tai-Ná, porque conquistara a estima especial de sua senhora e se fizera sua confidente, dispunha de maior poder que os ministros e os mandarins. Mas não se sabia por que, Zéu-de-Lao vivia triste. Profunda e invencível melancolia pairava sobre a frágil criatura, tão mimada da sorte. Tamanha tristeza só tenho visto na fisionomia de alunas nossas, no dia das provas parciais de matemática; mas em geral são crises passageiras. Na favorita do Rei Hiê-Hu, o mal parecia incurável...

É claro que o soberano e a corte faziam tudo o que era humanamente possível para dar remédio àquela mágoa profunda.

Longe vai este preâmbulo; tratemos de dar início à história.

Termina uma das grandes festas que quase diariamente se realizavam no palácio, para o fim especial de distrair a melancólica noiva do soberano. Em seu trono, o imperador assistia ao show, que fora dos melhores até então organizados. A seu lado, a triste jovem, e, aos pés desta, a incrível Tai-Ná, sempre disposta a emitir críticas ferinas acerca dos números que se iam executando.

Wum-Tchi, o famoso cômico e jogral cujas facécias haviam feito milhões de pessoas estourarem de riso, terminou o seu papel.

— Dize, Tai-Ná! — ordenou o soberano. — Tua linda senhora e rainha gostou desta cena do Wum-Tchi?

— Nem um pouco, ó grande rei! — respondeu a escrava — Zéu-de-Lao continua triste e pensativa.

— Retira-te, Wum-Tchi! Tu e teus palhaços nada fizestes que nos agradasse!

Tomou a palavra o ministro Yau-Tan:

— Nobre Filho do Céu, glorioso Rei das Quatro Regiões, visto que a graciosa Zéu-de-Lao não encontrou deleite algum nas cenas cômicas que acabam de realizar os nossos jograis, permita Vossa Benemerência que eu proponha outro gênero de diversão: o famoso narrador hindu Talindraná Talba-Mahan, que veio dos confins do Pendjab, poderá contar algumas lindas histórias...

— Queres ouvir as histórias do famoso narrador indiano, minha divinal Zéu-de-Lao? — indagou o rei.

— Não... não gosto... — disse Zéu-de-Lao, com voz sumida.

— Ouviste, Yau-Tan? A Aurora de Meus Pensamentos não quer ouvir histórias de Talba-Mahan. Quem propõe outra coisa que possa distrair e alegrar a Maravilha dos Sete Universos?

Fô-Yun, ministro dos Banquetes, opinou:

— Glorioso soberano, permita que eu, o mais humilde verme de quantos têm a honra de rastejar ante seus olhos divinos, apresente uma sugestão. Sei de um mágico, o célebre

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Rovair de Beliquistan, que de um pequeno turbante de faquir, inteiramente vazio (o turbante, está claro) é capaz de tirar aves, serpentes, lebres, flores, e até moedas de ouro em grande profusão. Quererá a divina Zéu-de-Lao assistir a um trabalho desse ilusionista?

— Que dizes, minha Esperança Dourada?

— Não... Não acho graça... — respondeu Zéu-de-Lao, no mesmo tom.

— Como vês, Fô-Yung, tua idéia de nada valeu. Pelos vinte mil espíritos que protegeram meus antepassados os Hiá, os Tcahng, ninguém aqui será capaz de imaginar uma cena que tire a celeste Zéu-de-Lao de sua melancolia?

Em meio do silêncio que se seguiu a este apelo, ouviram-se alguns risos, discretos.

— Quem se atreve a rir quando o Filho dos Deuses fala na tristeza de sua amada, a celeste Zéu-de-Lao? — bradou Hiê-Hu furioso.

— Glorioso Rei — disse Nen-Tchô — foi este miserável bufão Wum-Tchi que disse uma irreverência, e provocou em alguns indignos cortesãos os risos que chegaram aos delicados ouvidos de Vossa Luminosidade!

— Que disse esse cão asqueroso?

— Wum-Tchi teve a audácia de rosnar que o mágico Rovair, que tira ouro de um turbante vazio, está ótimo para ser nomeado Ministro da Fazenda de Vossa Magnanimidade!

— Piedade, Senhor! Tende pena de mim! — exclamou Wum-Tchi em voz lamentosa.

— Que o carrasco imperial se apodere desse vil gracejador e lhe corte o corpo em tantos pedaços iguais quantos forem os anos de sua indigna vida!

— Eu, como Ministro mais antigo, agradeço a resolução com que Vossa Sublimidade acaba de nos desafrontar, punindo o verme nauseabundo que ousou ofender-nos tão rudemente! — Assim falou o Ministro Men-Tchu. Mas, logo em seguida, se manifestou a voz cristalina de Tai-Ná:

— Grande Rei! Glorioso Rei!

— Que queres tu, jovem escrava Tai-Ná, que tens a felicidade de sentar aos pés da Luz de Minha Vida?

— Grande Rei, a celeste Zéu-de-Lao sorriu!

— Hein? Que dizes? Será verdade, ó Vinte Mil Espíritos? Sorriu a Zéu-de-Lao?

— Sim, Hiê-Hu — disse a favorita. — Achei graça na idéia de teu escravo Wum-Tchi! Pois não é natural que seja ministro da Fazenda um homem que tira moedas de ouro de um turbante vazio? Ah! Ah! Ah!...

Contentíssimo por ver que sua amada favorita armava um ar de riso, numa efusão de alegria tão espontânea, o rei também resolveu achar graça na pilhéria, e os ministros, e, afinal,

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toda a assistência. Do riso, alguns cortesãos passaram às estrepitosas gargalhadas. Mandarins houve que rolaram por sobre as almofadas para rir melhor. Men-Tchu esbaldou-se tanto, que parecia prestes a ser vítima de uma apoplexia fulminante.

Mas era preciso pôr um fim àquela desmedida hilaridade. Hiê-Hu assim falou:

— Silêncio! Silêncio! Ouvi todos vós! O Filho do Céu generosamente resolve revogar a ordem dada, e determina que Wum-Tchi seja nomeado Mandarim de Fu-Tchéu, com o título de grande protetor do Rio Amarelo, receba dez mil tiens de recompensa, e possa usar o manto azul com três dragões de ouro!

Eis aí como e porquê, momentos depois de se ver condenado a ser cortado em quarenta pedaços de igual peso, o cômico da corte de Hiê-Hu foi elevado ao posto de Mandarim, com aquelas prerrogativas que causaram inveja a muitos graúdos ali presentes. O uso de um manto azul com dragões amarelos devia ser, naqueles tempos distantes, honraria excepcional, como ainda hoje o de certos bordados, alamares e quejandas, símbolos que vemos enfeitando a indumentária militar ou civil do nosso tempo.

— Parabéns, nobre mandarim! — disseram inúmeras vozes, dos mesmos que já se dispunham a assistir à execução do audacioso gracejador.

"Queres conhecer de que são capazes os políticos? Estuda a História" — escreveu Mêncio, o grande sábio chinês, continuador da glória de Confúcio.

No dia seguinte despachava o imperador os altos negócios do Estado, em companhia de seus ministros.

— Que tendes a comunicar, Yau-Tan?

— Glorioso Rei — disse o Conde Yau-Tan — insisto em suplicar que lance Vossa Majestade a sua proteção sobre o sábio Dei-Kien, que tem oitenta anos, ensinou a mais de cinco mil letrados, é o ídolo do povo, e há sessenta anos honra o Império do Meio com as luzes de sua inteligência!

— Ora... — disse o rei com desprezo — um letrado... que tem ele?

— Ele está na miséria, Grande Rei, e implora um auxílio para se manter.

— Implora um auxílio? Mas que impertinência! Lembro-me de que já fiz uma concessão a esse homem!

— Vossa Sublimidade, como sempre, tem razão... Mas permita que eu recorde humildemente que foi há três anos que o Glorioso Rei lhe concedeu o título de Mestre Venerando, e lhe permitiu que usasse um manto azul claro com cinco botões amarelos! Ora, o sábio Dei-Kien vive em extrema penúria, e não pode comprar nem o manto, nem um só doa cinco botões!...

— Tendes razão! É dever do Estado amparar o sábio Dei-Kien. Pensaremos nisso na próxima Lua, quando se reunir o Conselho do Império. Que dizeis vós, Fô-Yung?

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— Sublime Rei, este teu indigno servo tem a pedir a Vossa Grandiosidade que admita como guardas de seu palácio os trezentos jovens que vieram das províncias do sul a fim de procurar trabalho junto a esta corte. São moços, fortes, dispostos a lutar pela grandeza do Império... O Filho do Céu bem sabe que os terríveis guerrilheiros mongs ameaçam esta cidade com suas invasões, e que seria prudente...

— Calai-vos, insensato! Já tenho dito que não preciso de guardas! Siuan, o glorioso rei, meu pai, sabiamente dispôs cinco poderosos mandarins nos subúrbios distantes da cidade, como sentinelas vigilantes para minha defesa em caso de perigo. Aliás, quem teria a audácia de hostilizar o Filho do Céu? Cinco exércitos garantem minha segurança. Que voltem para sua província esses adventícios. Que quereis vós, Men-Tchô?

— Divino Senhor dos Sete Reinos, proponho que o tesouro real compre ao inventor Fô-Teí, o segredo da extraordinária invenção que fez, e que há três anos veio oferecer ao Filho do Céu. Trata-se de um pó negro misterioso que, ao inflamar-se, produz um estrondo mais forte que o trovão, e um abalo tremendo. Garante o inventor, e poderá provar, que com esse pó negro, será possível derruir uma muralha, ou um palácio, enquanto salta um gafanhoto.

— Não gosto de estrondos — declarou o rei. — Para que precisamos nós desse pó negro?

— Grande Rei, convém ponderar que, de posse dessa terrível invenção, a corte nada mais temerá dos mongs, dos mand-chús, e de outros inimigos do Império e da dinastia!

— Mais tarde... — determinou, com enfado, o rei. — Mais tarde trataremos disso. Encerremos a audiência!

Cada ministro ousou formular sua ponderação respeitosamente:

— Mas, ó Grande Rei, o sábio Dei-Kien...

— Sublime Rei! Que farei para repatriar os trezentos jovens?...

— Excelso Rei! A posse do pó negro que Fô-Teí nos oferece é urgente!...

— Calai-vos, já vos ordenei! Que importância podem ter esses casos, se a pobre Zéu-de-Lao continua melancólica? Pensemos, — isso sim! — em promover novas festas na corte, para alegrar essa divina criatura! Enviai emissários aos sete reinos comunicando que darei uma província a quem conseguir que Zéu-de-Lao saia da tristeza em que vive! Ide-vos, ministros, e fazei o que ordeno!

Pouco depois, no piso mais alto de seu palácio, conversava o rei com a sempre melancólica Zéu-de-Lao:

— Divina Filha dos Deuses, com que então queres saber para que estão preparadas estas pirâmides de palha e junco nos mais altos terraços de nosso palácio? O Filho do Céu vai te explicar. Em caso de perigo, — isto é — se os bandidos mongs ou os guerrilheiros tártaros tiverem a audácia de se aproximar da cidade, velozes sentinelas nos avisarão, e imediatamente

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crepitarão acesas estas fogueiras. A fumaça e o clarão que produzirem serão vistos a grandes distâncias.

— E os bandidos terão medo do fogo? — indagou a "Tristeza Personificada".

— Não, Luminosa Aurora! Eles não terão medo do fogo! Mas, graças a este sinal, cinco poderosos mandarins, que comandam os cinco postos de defesa, virão imediatamente com seus guerreiros, e, certamente, não há no mundo inimigo que os possa vencer. As fogueiras servirão apenas para avisá-los... Compreendes, Maravilha do Céu?

— E se por acaso essas palhas e juncos fossem incendiados por uma fagulha, ou por descuido?

— Se isto acontecesse os valorosos mandarins viriam a correr, e, aqui chegando, saberiam que tinha sido um simples engano...

— Seria interessante, não é mesmo, minha Tai-Ná?

— Seria engraçadíssimo, Zéu-de-Lao! — sugeriu Tai-Ná. — Os tais mandarins chegariam esbaforidos, cansados, empoeirados, com seus elefantes e camelos atropelando-se por aí... E como ficariam bufando de raiva quando soubessem que tinham dado uma corrida inútil!

— Eu gostaria de ver a cara deles... — disse a jovem, sorrindo.

— Grande Rei, olhai! Zéu-de-Lao está rindo só de pensar na cara.

— Pois não se discute! Vamos pregar uma peta a estes cinco idiotas... Vou dar o sinal de perigo, ó servos! — gritou, enérgico. — Depressa! Ateai fogo a estas fogueiras, imediatamente!

Cinco exércitos convergiam para a Capital numa correria desabalada. O sinal de perigo iminente fora dado: os mandarins acudiram em defesa do soberano. Homens a cavalo, outros empilhados em coretos sobre o dorso de elefantes, camelos e dromedários que baralhavam as longas pernas na corrida, carros de guerra, onde se comprimiam guerreiros brandindo machadinhas, arcos e adagas, todo aquele aparelho bélico se deslocou, sofrendo acidentes e sacrifícios de muitas vidas, somente para que a tristonha Zéu-de-Lao fruísse o estranho prazer de ver a cara desapontada dos mandarins quando souberam que fora um rebate falso53.

Durava ainda o reboliço causado, na capital do Império, pela chegada imprevista daquelas turbas guerreiras, quando os cinco mandarins foram à presença de Hiê-Hu, que, ao cabo de longa espera, se dignou recebê-los. Um deles ousou formular algumas considerações atinentes àquele inútil dispêndio de energias. O soberano não admitiu semelhante falta de respeito ao Filho do Céu.

— Mas, Glorioso Rei — insistiu o queixoso, — nós, os mandarins...

— Cala-te! Silêncio! — gritou o rei encolerizado. — Não constato em tais comentários! O Filho do Céu não presta conta de seus atos a quem quer que seja! Cada guerreiro, em paga de sua fadiga, receberá vinte tiens do Tesouro Imperial; cada mandarim, poderá, doravante,

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usar mais um palmo de trança, cinco botões amarelos, e um dragão dourado. E agora retirai-vos, a galope, como viestes, porque vossa presença já está perturbando o sossego da divina Zéu-de-Lao!

Enquanto os guerreiros recebiam, dos intendentes imperiais, aquelas moedas que, em seguida, atiravam com desdém aos mendigos aglomerados nas ruas da cidade, os mandarins conversavam, nestes termos:

— Pois é como vos digo: EU NÃO ATENDEREI MAIS AOS CHAMADOS DE HIÊ-HU!...

— Com efeito, é incrível isso! Também eu já resolvi: enquanto o rei fizer de nós, e do império, um simples brinquedo para divertir a Tai-Ná e a Zéu-de-Lao, não virei mais à capital. Não sou palhaço de ninguém!

— E se os mongs atacarem a cidade? Isso bem pode acontecer de um momento para o outro...

— Se os mongs atacarem a cidade, a corte que se defenda!

— Mas a guarda da corte não vale nada...

— Nesse caso, o Filho do Céu, que chame em seu socorro os Vinte Mil Espíritos que o protegem!

Mais um imponente espetáculo atraiu a corte ao luxuoso salão do palácio imperial.

Coisa extraordinária! Zéu-de-Lao estava alegre, sorridente!... Tai-Ná, com a corda toda, tornou-se um dos sucessos do programa! Mas o número mais apreciado foi o do Wum-Tchi, que, ostentando o seu manto azul com três dragões dourados, cantou uma série de quadrinhas humorísticas.

Hiê-Hu não cabia em si de contente, e dava ordens para que se conservasse a festa sempre no mesmo ritmo de alegria e comicidade.

— Depressa, nobre Wum-Tchi! — dizia o rei. — Continua a alegrar a festa! A divina Zéu-de-Lao está sorridente! Ouvindo teus versos! Vamos! Canta outro lô-kai a respeito dos mandarins que anteontem vieram correndo inutilmente até Nankin!

Wum-Tchi, sem se fazer de rogado, cantou:

Foí-tan; ao ver o fogo,

O Amarelo atravessou,

E aqui chegando, logo,

Também ele amarelou!

E agora, pela estrada,

Já de volta, geme assim:

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QUE VIDA DESGRAÇADA

LEVA UM POBRE... MANDARIM!...

Tchiribiribim, tebim, ó Wum-Tchi,

Quanta sensação! Corre ali... corre aqui... por mais um botão!

Tchiribiribim, tchim, nunca vi,

Tanto fiasco assim! Que carranca fez o mandarim!

O estribilho era repetido pela assistência toda, em coro.

— Ó Wum-Tchi, agora outro lô-kai! Ainda não te lembraste do sábio Dei-Kien.

— Silêncio! Atenção! O nobre Wum-Tchi vai cantar outro lô-kai!

E o mandarim-palhaço continuou:

Um bonzo barrigudo,

Que era forte sabichão,

Querendo saber tudo,

Ficou mesmo um paspalhão!

Ciência tanta arrota,

Que é da gente se assombrar!...

Porém o pobre idiota

Nunca sabe onde jantar!

— Zéu-de-Lao continua risonha, Grande Rei! — disse Tai-Ná. — Ordenai que Wum-Tchi mantenha a alegria da festa, cantando mais alguns lô-kais!

— Atenção! — disse o rei. — O nobre cantor vai recordar, agora, o homem do pó negro, que estoura! Silêncio!

E Wum-Tchi canta:

Velhaco papa-terra,

Um pó negro aqui nos traz

Dizendo que na guerra,

Muito estrago a droga faz...

No fim de vinte estouros,

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Vi que a coisa era de truz!

Matou vinte bezouros

E tonteou três urubus!...

Foi uma bela festa, aquela. Mas foi a última do Rei Hiê-Hu, e de sua dinastia. Durava ainda a folgança, e já milhares de guerreiros marchavam contra a capital.

Quando trouxeram a notícia da invasão, o rei ordenou que as fogueiras do alto fossem acesas. Mas, embora tendo visto de longe o chamado, os mandarins não se moveram.

Tal foi a desoladora notícia que Tau-Tan levou ao conhecimento do rei.

— Que novas trazeis, Yau-Tan?

— Ó rei, os guerreiros não atenderam ao sinal das fogueiras. Os mongs já vêm perto... A guarda do palácio nada poderá fazer em vossa defesa...

— Convocai os trezentos jovens do sul, que queriam se alistar entre meus defensores! Armai-os e prometei-lhes o que quiserem!

— É tarde, rei! Eles, ontem, partiram todos, de volta a suas aldeias!...

— Fizestes mal em permitir a sua retirada! Uma idéia! Disseram-me que os mongs respeitam o sábio Dei-Kien! Mandai-lhe um recado para que vá ao encontro do chefe invasor, e proponha o resgate da cidade! Eu lhes darei cinco províncias!

— Realmente, ó rei, Dei-Kien, sozinho, poderia dominar essa horda de fanáticos! Mas, desgraçadamente, o nosso grande sábio morreu, ontem, de inanição.

— Vós sois culpado da morte desse grande luzeiro da Humanidade! Sereis castigado severamente! Mas eu vos perdoarei, se ainda puderdes obter o pó negro de Fô-Teí!... Com esse explosivo poremos em fuga os inimigos!...

— Infelizmente, ó rei, o inventor já se foi com sua invenção, e dizem que a vendeu a emissários dos mongs, vossos terríveis inimigos... E bem pode acontecer que o pó negro seja utilizado por eles para destruir os muros da cidade...

— Nada me acontecerá! — disse, enérgico, o Rei Hiê-Hu. — Por acaso ignorais que Vinte Mil Espíritos protegem o divino Hiê-Hu, descendente do glorioso Siuan?

Ouviu-se o estrondo de uma explosão. O insólito ruído a todos encheu de invencível terror. Todos os cortesãos, serviçais e escravos do palácio fugiram. A muralha que defendia a cidade ruíra, dando entrada ao bárbaro invasor. Era o efeito do pó negro, que fornecera assunto para uma das pilhérias de Wuin-Tchi...

Diz um historiador que o desastrado Hiê-Hu, ao fugir de sua capital, morreu afogado no rio Amarelo. De Zéu-de-Lao não há notícia alguma; mas presume-se que sua tristeza tenha acabado, de vez, com a entrada de seus amigos, os Mongs, e a ruína daquela dinastia que ela tanto detestava!

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QUADKAS DO WUM-TCHI

Foí-Tan, ao ver o fogo,

O Amarelo atravessou,

E aqui chegando, logo,

Também ele amarelou!

E agora, pela estrada,

Já de volta, geme assim:

"Que vida desgraçada Leva um pobre mandarim!"

Tchiribiribim, tchim, ó Wum-Tchi,

Quanta emoção!

Corre aqui, corre ali, por mais botão!

Tchiribiribim, tchim, nunca vi

Tanto fiasco assim!

Um bonzo barrigudo,

Que era forte sabichão,

Querendo saber tudo,

Ficou mesmo um paspalhão!

Ciência tanta arrota,

Que é da gente se assombrar,

Porém o pobre idiota

Nunca sabe onde jantar!

Tchiribiribim, tchim, etc.

Velhaco papa-terra

Um pó negro aqui nos traz,

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Dizendo que na guerra

Muito estrago a droga faz!

No fim de vinte estouros

Vi que a coisa era de truz!

Matou sete besouros

E tonteou três urubus!

Tchiribiribim, tchim, etc.

A PRINCESA LINDASUL

(Conto persa)

"...Eu amo aquele que faz de seu ideal de Beleza e de Virtude, o seu desejo, a sua inclinação e o seu destino; assim é que ele quereria viver e sentir-se feliz."

Assim falou ZARATUSTRA54

Era uma vez um poderoso rei, ou xá, da Pérsia, chamado Nadir.

Era um monarca fabulosamente rico: numerosos estados e milhões de súditos estavam sujeitos a seu império; possuía belos palácios cheios de ouro e pedras preciosas, e seus navios, carregados de finas especiarias e tecidos, comerciavam por todos os mares conhecidos do globo.

Em Ispaã, sua capital, ele só aparecia escoltado por uma guarda de dez mil homens, cujas armaduras de prata brilhavam ao sol como fogo; e um exército de cinqüenta mil guerreiros, montados em belos cavalos ricamente ajaezados, estava pronto a partir ao menor sinal, para a conquista de novas províncias e cidades.

Mas o poderoso monarca já se sentia envelhecer, e não desejava empreender mais guerras e campanhas para ampliar seus domínios. Tinha já alcançado, em outros tempos, esplêndidas vitórias; muitas cidades foram tomadas e algumas destruídas por sua invencível cólera, e muitas legiões inimigas haviam sido aniquiladas por seus exércitos. Agora, porém, queria repousar gozando a vida tranqüila, estendido nos luxuosos divãs de seu palácio, raramente saindo para passar em revista as tropas, ou para assistir a algum grande combate de animais ferozes.

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O Xá Nadir tinha vários filhos, porque tinha tido várias esposas, como aliás, é de uso nos países do Oriente. Mas os seus filhos só lhe davam dissabores; eram ambiciosos, turbulentos e ingratos. Viviam conspirando para se apoderar do reino e do trono. O xá desembaraçou-se deles nomeando-os governadores de províncias distantes, e só conservou a seu lado, no palácio real, a sua filha bem-amada, a Princesa Lindasul, a quem prezava mais do que seus exércitos, seu trono, e mais do que ao próprio reino.

Lindasul era filha única do xá e de sua esposa favorita, uma princesa do Norte, que falecera após o nascimento da princesinha. A saudade de sua esposa predileta fez que o xá consagrasse maior afeição à Princesa Lindasul, e esta bem merecia a dedicação paterna.

Com efeito, difícil seria encontrar-se uma criatura tão prendada como Lindasul. Tinha ela o porte majestoso de seu pai, mas parecia-se com sua mãe pelo rosto e pelo coração. Sua pele era branca como a neve dos países setentrionais, e seus olhos azuis como o céu nas tardes de agosto. Não havia quem não quisesse bem à princesa, pois a fama de sua beleza e de sua bondade já havia chegado aos confins da Pérsia.

O velho xá tinha tamanha adoração por sua filha, que não sentia forças para lhe recusar coisa alguma. Quantas vezes um simples olhar da bela princesa era suficiente para desarmar sua cólera, induzindo-o a comutar uma pena, ou libertar um cativo! E o monarca, comparando o coração de ouro dessa filha estremecida com o gênio indomável dos filhos, jurava, de si para si, que havia de casar Lindasul com um príncipe digno dela, e deixar-lhe o seu reino com todas as suas riquezas.

Mas... essa adoração ilimitada causou, como veremos, graves pesares ao xá e à Princesa Lindasul.

Esta vivera sempre em meio de um luxo extraordinário; tinha, só ela, um suntuoso palácio e grande número de escravas que lhe satisfaziam todos os caprichos. Ali passava Lindasul a maior parte do tempo, distraindo-se em passeios pelos jardins e outros folguedos, sem conhecer jamais o que fosse sofrimento ou provação de qualquer natureza. Aquela vida monótona causou-lhe tédio, afinal. Ela compreendeu que só teria prazer se presenciasse outras cenas além das que diariamente via em seu palácio. Quis admirar uma grande festa pública, em que houvesse copiosa multidão de gente do país e forasteiros. Preparava-se, então, um combate de feras, para festejar o sexagésimo aniversário do rei. Lindasul manifestou o desejo de assistir a esse espetáculo, e o xá, que nunca lhe podia negar coisa alguma, teve de consentir, embora pensasse, com repugnância, em levar sua filha a espetáculo tão bárbaro e emocionante.

Como todos os potentados, o Xá Nadir tinha inimigos, muitos poderosos. Um deles era o terrível Bom-Bali, rei do Turã, a quem ele havia, anos antes, aprisionado em um combate, e mandado pôr em liberdade depois de lhe raparem a barba, o que constituía uma ofensa tremenda, principalmente para um rei, como Bom-Bali.

Este, voltando a seus estados, jurou vingar-se de modo atroz na primeira oportunidade. Sabendo que se preparava um grande espetáculo de feras a que assistiriam o Xá Nadir e sua filha, Bom-Bali julgou que era a ocasião propícia para exercer sua vingança.

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Bom-Bali tinha a seu serviço e sob seu domínio um feiticeiro lapão chamado Hirmu, que, com alguma dificuldade, podia se transformar em qualquer animal, e retomar depois a forma humana. Bom-Bali mandou chamá-lo, e disse-lhe:

— Cão, se tu queres que eu te deixe em liberdade, com uma boa recompensa, hás de cumprir fielmente o que eu ordenar.

— No primeiro dia do mês próximo haverá em Ispaã um grande combate de feras; o rei e a Princesa Lindasul devem estar presentes. Transforma-te em tigre, deixa-te apanhar, e, da melhor maneira possível procura apoderar-te da princesa, que me trarás sem lhe fazer mal. Ouviste?

— As ordens de meu senhor serão executadas — declarou, submisso, o feiticeiro.

Dias depois, os mais valentes caçadores da Pérsia entraram pelas florestas do Irã, e apoderaram-se de grande número de feras vivas, que prenderam em fortes jaulas e transportaram para Ispaã. Outras foram adquiridas dos caçadores da Índia, da Arábia e até do Saara.

No dia do grande espetáculo toda a população da cidade estava alvoroçada desde a manhã.

Lindasul, contentíssima, preparava-se para assistir ao combate, ansiosa por ver, pela primeira vez, feras vivas, e em luta umas com as outras. Ela foi para o anfiteatro cavalgando alegremente uma bela zebra, e acompanhada por uma escolta de damas, pajens e guerreiros. Quando ela surgiu no camarote real, todos os olhares da multidão para ali convergiram. Embora ela conservasse o rosto velado, como é de uso na Pérsia, todos viram que ali estava a bela princesa cujas súplicas haviam salvo a vida de tantos desgraçadas e cujas escravas diariamente levavam as esmolas por ela enviadas a famílias pobres. Uma aclamação unânime e formidável se fez ouvir em todo o anfiteatro. Nunca a multidão se tinha mostrado tão entusiasmada, exceto no dia em que o xá fizera sua entrada triunfal na cidade, levando em seu séquito dezessete reis prisioneiros.

Lindasul sentou-se ao lado de seu pai, e o espetáculo começou.

Em primeiro lugar houve uma briga de galos. Os combatentes arrancavam-se mutuamente as penas, com grande prazer para os espectadores, mas não da Princesa Lindasul, que achou a cena muito cruel.

Houve, depois, uma luta entre um gato selvagem e uma pequena águia, à qual haviam cortado as penas de uma asa para que não pudesse voar. Os adversários feriram-se horrivelmente com suas garras; a águia enterrou o bico no dorso do gato, enquanto este procurava mordê-la no pescoço. Os dois rolaram na arena e lutaram por longo tempo, até que, tendo a águia perdido os dois olhos, foi vencida; e o gato, coberto de feridas e de sangue, proclamado vencedor.

Seguiu-se uma luta entre dois enormes crocodilos, trazidos para a arena em enormes caixas de metal cheias de água, entre as quais atiraram um porco morto. Foi preciso, abertas

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as caixas, irritar os crocodilos para que delas saíssem e disputassem a presa. Agrediram-se então os ferozes sáurios em duelo terrível, até que um deles conseguiu virar o adversário sobre o dorso, despedaçando-lhe o peito. Deixando o inimigo agonizante, apoderou-se o vencedor do petisco que se lhe oferecia.

Houve depois uma luta entre seis cães árabes e outros tantas chacais do Turã. Os chacais, como os lobos, assemelham-se aos cães, porém, são muito medrosos. A princípio tentaram fugir, mas foram forçados a voltar, e a aceitar a luta. O combate foi medonho. Já cinco cães estavam mortos, e três dos chacais. Ouviu-se um assobio das galerias nobres: era o príncipe árabe Aderamâ que encorajava o seu cão favorito, o Valedi, único sobrevivente entre os de sua espécie. O cão ouviu a voz do dono e atacou os chacais com a maior coragem. Os três chacais restantes, já gravemente feridos, caíram, um a um, às dentadas de Valedi, que foi declarado o vencedor da pugna.

Houve, em seguida, um combate entre hienas e lobos, e, logo após, outro, entre um leopardo e uma pantera.

Ia, então, realizar-se um dos números sensacionais da sangrenta e bárbara festa. Entrou na arena um enorme elefante da índia, levando sobre o dorso uma torrezinha com três arqueiros. O adversário do elefante era um tigre real, de tamanho pouco vulgar. O povo deu-lhe o nome de Arimã, que significa o espírito das trevas, ou o demônio, em sua religião.

Solto na arena, o tigre recusou-se a atacar o elefante, tornando-se necessário que os arqueiros lhe atirassem algumas setas para o irritar. Uma delas feriu-lhe ligeiramente o pescoço. Arimã soltou um rugido que atroou o circo, e, de um salto rápido e inesperado, atirou-se à tromba do elefante. Este, por sua vez, emitiu horrendo rugido de dor, e, levantando a tromba a toda a altura, bateu com força o tigre no chão.

À primeira vista dir-se-ia que o tigre não poderia resistir àquele baque violentíssimo. Engano! Rápido como o pensamento, o tigre rolou na arena e dali saltou ao pescoço do adversário, dando-lhe uma dentada horrorosa. O sangue do pobre animal jorrou em borbotões. Debalde o elefante tentava desembaraçar-se do inimigo; por fim, enfraquecido, deixou-se cair pesadamente. A torre desmontou-se toda, e os arqueiros fugiram a correr para as barreiras. Momentos depois o paquiderme agonizava.

Deram algum tempo de repouso ao tigre, e, em seguida, fizeram entrar na arena um adversário ainda mais terrível, um leão do Atlas, conhecido pelo nome de Ormuzde (o Espírito da Luz, para os povos do Irã).

A princípio o tigre e o leão observaram-se reciprocamente, mas nenhum ousava atacar. Quiseram atirar um cordeirinho entre as duas feras, para provocar a luta, mas Lindasul não consentiu, e, a seu pedido, o mísero animalzinho teve a vida salva. Atiraram, então, o corpo de um dos cães mortos no combate anterior.

À vista da carne crua, as duas feras, esfaimadas, correram ao mesmo tempo para devorá-la, e o terrível conflito começou entre Ormuzde e Arimã. Mordendo-se e ferindo-se com suas garras possantes, as duas feras soltavam rugidos que apavoravam os assistentes.

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Durante algum tempo a vitória esteve hesitante, pendendo ora para um, ora para outro lado. Finalmente, o leão conseguiu segurar a jeito o adversário, e enterrou-lhe os dentes na garganta, só o deixando quando o terrível Arimã já não mais se movia.

Aclamações estrondosas se ouviram no imenso anfiteatro. O leão vencedor, recebeu a presa e foi conduzido para fora da arena.

Seguiu-se um intervalo, durante o qual os espectadores saíram em busca de bebidas refrigerantes. Abriram-se as largas entradas da arena para que os curiosos pudessem ver de perto, como de costume, os animais que ali jaziam sem vida. Lindasul manifestou o desejo de fazer o mesmo; quis admirar o enorme elefante e o terrível tigre, animais que nunca tinha visto ainda.

Um pouco contrariado, o rei fez-lhe a vontade. Longos tapetes foram estendidos por sobre a arena, a fim de que a gentil princesa não maculasse os pés no chão ensangüentado. Lindasul desceu, então com o rosto velado, acompanhando-a as damas e os pajens.

Depois de ver o elefante, aproximou-se do tigre, admirando-lhe a beleza da pele, e formulando o projeto de pedir ao pai que mandasse fazer com ela um tapete para seu palácio de mármore.

Mas, de repente, o tigre, que se julgava morto, levanta-se sobre as patas traseiras, dá um brusco salto, agarra na boca a princesa e foge, levando-a consigo.

Um grito de terror saiu do peito de quantos assistiram àquela rápida e inesperada cena, mas ninguém ousou enfrentar a fera e retomar-lhe a moça. Só o valente príncipe Aderamã saltou da galeria onde se achava para a porta de saída, e tentou arrebatar ao tigre a presa que levava; mas o corpulento animal evitou a porta trepando ao corpo do elefante e transpondo de um salto a barreira, conseguindo assim sair do circo para a praça, onde a multidão em pânico se dispersava em todas as direções. Um momento mais, e o tigre havia já desaparecido no bosque próximo.

Não é possível descrever a dor profunda do velho xá quando soube da desgraça que o ferira. Os cinqüenta mil cavaleiros partiram a galope em todos os sentidos em busca da fera, para trazer a princesa, viva ou morta. Debalde, porém, subiram montanhas e desceram por despenhadeiros; em vão percorreram a Pérsia inteira, o Turâ e grande parte da Índia; desolados tiveram que voltar a Ispaâ trazendo muitas feras mortas, mas nenhuma era o tigre Arimã.

Em seu desespero o Rei Nadir arrancou os cabelos, rasgou as vestes e amaldiçoou o seu sexagésimo aniversário, porque esse dia lhe custou o que ele possuía de mais precioso e caro no mundo, a sua Lindasul bem-amada. Toda a Pérsia tomou luto nacional por muitos dias. Arautos percorreram o país anunciando, em nome do rei, que quem trouxesse a princesa viva, recebê-la-ia em casamento e teria o trono da Pérsia em recompensa; quem a encontrasse, mesmo morta, receberia trinta asnos carregados de ouro.

Tamanha recompensa excitou a ambição de muitos guerreiros, nobres e aventureiros, que se puseram em busca de Lindasul. Todos, porém, regressaram à capital sem ter

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encontrado o mais insignificante vestígio da princesa. E todos desistiram, exceto o Príncipe Aderamã, que resolveu continuar a busca, declarando ao xá que, independente de qualquer prêmio, havia jurado encontrá-la, ou morrer.

Se a Princesa Lindasul tivesse sido raptada por um tigre de verdade, a nossa história estaria terminada, porque para um tigre real da Ásia não há nada sagrado, nem mesmo a donzela mais linda do mundo. Mas o suposto tigre não era outro senão o feiticeiro Hirmu, que, cumprindo as ordens do vingativo Bom-Bali havia arrebatado a filha do Xá Nadir para levá-la a seu senhor. Transformado em animal, ele conservava do próprio corpo unicamente o coração. Assim, só morreria se o ferissem nesse órgão vital, o que explica que não lhe houvessem causado dano algum as fortes dentadas do leão. Funcionava também, em sua plenitude, a consciência humana, de tal modo que, em caminho para o Turã, ele refletiu e, resolvendo mudar de rumo, encaminhou-se para o seu país. Lembrou-se Hirmu de que, longe de Bom-Bali, teria maior proveito conservando a princesa sob seu poder, do que se a entregasse ao odioso rei do Turã, que a sacrificaria, naturalmente, a sua cólera.

Dirigiu-se, pois, Hirmu para a Lapônia, de onde havia saído quatro anos antes, em busca de aventuras.

Era no tempo em que os dias começam a ficar longos, mas sempre frios e brumosos naquelas regiões glaciais do norte, onde o Sol, triste luzeiro, lança da linha do horizonte uma luz escassa, e mortiça.

Lá, numa imensa planície desolada e deserta, havia uma choça, pobre residência habitual dos filhos da Lapônia. Uma mulher, no interior, estava sentada junto ao fogo, sobre o qual fervia um caldo, em panela suspensa. Ao lado via-se um rapaz, com ar indolente, esperando, ao que se poderia presumir, ficasse pronto o alimento a fim de receber seu quinhão.

Eram Pimpedora, mulher do feiticeiro Hirmu, e seu filho Pimpeturi. Hirmu tentara fazer de seu filho um feiticeiro, como ele próprio; mas o rapaz não sentia a menor inclinação para tão abominável ofício, preferindo lidar com as renas, rolar pelas colinas de neve e admirar as auroras boreais. A uma aldeia muito distante ia, de quando em quando, em busca de tecidos, de farinha e de alguma coisa mais que lhes era estritamente necessária para viver.

— Não ouves um rumor esquisito aí por fora, meu filho? — indagou Pimpedora.

— Só ouço o ruído do caldo a ferver — disse o rapaz.

— Não é isso. Pareceu-me ouvir o rugido de uma fera selvagem.

— Talvez os lobos estejam rondando o aprisco de nossas renas. Assim que tome o meu caldo hei de afugentá-los.

— Não vejo lobos — afirmou Pimpedora observando a planície por uma das aberturas da choça. — Deve ser teu pai que vem aí. Está prestes a findar o domínio que sobre ele tem o rei do Turã. Já é tempo de voltar.

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Mal retomara ela a colher com que revolvia o apetitoso caldo, quando apareceu, à entrada da choça, o enorme tigre com a moça suspensa aos dentes. Em rápido instante Hirmu deixou cair Lindasul ao chão e retomou a forma humana, dizendo:

— Eh, mullher! Eh, meu filho! Que há por aí para se comer? Venho de muito longe, e tenho fome!

Pimpedora, que quase caíra de susto ao ver o marido sob aquela imprevisível forma, prometeu-lhe um bom jantar se ele lhe contasse por onde andara, o que fizera durante aqueles quatro anos, e que boneca era aquela que tinha trazido.

— É uma história muito longa, que mais tarde contarei — disse Hirmu. — Cuida bem dessa moça; dá-lhe um pouco de vodka, e desse teu caldo, para reanimá-la. Ela é filha de gente poderosa e há de nos fazer ricos e felizes.

A princesa não estava morta, nem mesmo ferida, mas apenas desmaiada. Quando voltou a si, viu-se, com suas roupas de gaza de prata e pérolas, em uma horrível choça de lapões, estendida sobre peles de rena, num país escuro e sob um frio de tremer. A princípio Lindasul supôs que tinha morrido e que estava no reino das trevas, para onde vão os mortos. Só depois reparou na velha lapônia que estava a seu lado, e que lhe oferecia uma vasilha com leite. Compreendeu, que caíra em poder de gente estranha, e fora trazida para longe, muito longe da Pérsia. Então chorou, chorou muito, perguntando por que a haviam arrancado de seu país de sol, e dos jardins verdejantes de Ispaã.

Hirmu, que voltara à tenda com o filho, disse então a Lindasul:

— Não chores mais, bela princesa; tu estás em companhia de gente leal e dedicada. Foste raptada do circo por um tigre feroz, mas este meu filho, o bravo e belo cavaleiro Morus Pandorus, matou-o e salvou-te a vida. Nos trataremos de ti com cuidados e levar-te-emos mais tarde para a Pérsia.

— Que mentira é essa que estás inventando? — perguntou, em sua língua, a velha Pimpedora, que mal compreendia o idioma persa.

— Ouviste, princesa? — continuou Hirnu sem se alterar — "Minha mulher acaba de dizer em nosso idioma que, se consentires em desposar nosso valente filho Morus Pandorus, nós partiremos imediatamente para a Pérsia.

Pimpeturi, que a tudo assistia com a mesma atitude de indiferença ou desagrado, mostrou-se constrangido quando o pai o forçou a curvar-se diante da princesa, num gesto de cortesia, cada vez que falava no "belo e valente cavaleiro Morus Pandorus".

Lindasul, que possuía a altivez inata das princesas persas, limitou-se a lançar um olhar de indignação ao atrevido aventureiro, e ao filho, e voltou-lhes o rosto.

— Não temos nada feito — murmurava entre dentes Hirmu. — Preciso domesticá-la.

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Com umas tábuas grosseiras, que trouxe da aldeia para esse fim, ele armou um estreito cubículo de quinze palmos de cumprimento e dez de largura. Para ali transportou a pobre Lindasul, fechando, em seguida, a única entrada da escura prisão.

Todos os dias ele ia ter com a princesa, e renovava a proposta feita, com o mesmo resultado. Enraivecido, retirava-se, deixando apenas um pedaço de duro queijo de leite de rena, e uma vasilha com água, para a infeliz princesa matar a fome e a sede. Por último, já não lhe falava mais, esperando que, com o tempo, ela própria viesse dizer-lhe que se conformava em satisfazer a sua vontade.

Passaram-se alguns dias.

Lindasul chorava, a pobrezinha. Chorava, como devia necessariamente chorar uma princesa criada em ambiente de maior carinho, em palácios luxuosos, que se via de repente arrastada para uma miserável tenda na Lapônia fria e deserta, e ali, para maior mal, presa em uma estreita cela, quase a morrer de fome e desconforto. Chorando, ela dormia, e, no delírio causado pela fraqueza em seu débil corpo, sonhava, tendo visões encantadoras. Via-se, às vezes, transportada pelo Bom Velho, que os povos do extremo norte chamam de Nuki-Mati, para um jardim delicioso, onde suas escravas lhe traziam as iguarias a que ela estava habituada na corte de seu pai. Depois aparecia-lhe o velho xá, e acariciava-a, como de costume. Às vezes Nuki-Mati lhe dizia: "Tem esperança, Lindasul, que o teu libertador há de vir". Ela pensava então no valente e belo príncipe Aderamã, que já havia arriscado a vida para salvá-la...

Uma noite, Lindasul percebeu que alguém galgava a parede de sua prisão para entrar pelo alto, que era descoberto. Com efeito, um vulto surgiu, transpôs com dificuldade a parede, e saltou para dentro. Era Pimpeturi, o filho do feiticeiro.

A princesa tremia de susto ante aquela visita inesperada; mas o rapaz, com um desembaraço que jamais revelara, disse-lhe, em dialeto iraniano:

— Nada temas, princesa, eu não te quero fazer mal. Venho apenas dizer-te que absolutamente não estou de acordo com a vontade de meu pai; não quero que sejas obrigada a casar comigo. Eu e minha mãe não te libertamos ainda porque meu pai nos mataria se o tentássemos; mas queremos diminuir o teu sofrimento. Trago estas peles de rena, e estes alimentos. Esperemos uma ocasião favorável e veremos, então, o que se poderá fazer.

Isto dito, ele retirou-se, como viera, saltando a parede de madeira. Os agasalhos que deixou protegeram a princesa contra o frio, que aumentava dia a dia, e os alimentos preparados pela boa Pimpedora restauraram-lhe um pouco as forças. Dali por diante, todos os dias, quando o pai se ausentava para a caga, Pimpeturi ia levar alimentos para Lindasul, deitando fora o queijo duro deixado por Himu. Este, que não dirigia mais a palavra à princesa, não notou o que se passava.

Dois meses assim decorreram.

Findo esse tempo, um dia Hirmu entrou na prisão com seu filho e renovou à pobre moça a proposta já feita. Desta vez a princesa não teve o olhar de cólera como a princípio; limitou-se a voltar a cabeça, com um gesto de negativa, e nada mais respondeu.

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O perverso feiticeiro desconfiou de alguma coisa, porque disse:

— Uhm... Vejo que preciso mudar-vos de prisão, para convencer-vos de uma vez.

No mesmo dia ele arrastou violentamente a sua infeliz prisioneira para fora da tenda, levou-a a uma escura e horrível gruta aberta na pedra, dizendo:

— Aqui tereis como único sustento quinze frutinhas destas e quinze gotas de orvalho no primeiro dia; quatorze frutinhas e quatorze gotas no segundo dia, e assim sucessivamente. Espero que antes de chegarmos ao fim da quinzena tudo estará resolvido.

Retirou-se Hirmu, fechando com enorme bloco de pedra a entrada da gruta.

Lindasul passou o resto do dia sob os horrores da fome, da sede e do frio na caverna. No dia seguinte o feiticeiro levou-lhe as quatorze frutinhas que eram de sabor insuportável, e quatorze gotas de orvalho.

Horas depois ali apareceu Pimpeturi.

— Não pude vir ontem porque meu pai não me deixou um só instante — disse ele. — Felizmente, hoje embriagou-se, e eu aproveitei a ocasião para trazer-te alimento, água e agasalho. Minha mãe manda-te esta pomada, que pássaras no rosto e nas mãos, para evitar mordeduras de insetos.

— Fico-te muito agradecida, e a tua mãe — disse Lindasul.

Passaram mais alguns dias. Quando o alimento da prisioneira consistia apenas em algumas frutinhas e outras tantas gotas de orvalho, Hirmu, certo de que ela já estivesse em estado de inanição, trouxe-a para fora da gruta a fim de vê-la á escassa luz que o Sol envia àquelas frígidas regiões da Terra. Com surpresa notou que Lindasul, embora magra e pálida, não se achava no estado de prostração em que supunha encontrá-la.

— Consentes, ou não, em casar com meu filho? — perguntou, exasperado, pela última vez.

Lindasul agitou apenas a cabeça, em sinal negativo.

— Pois bem; já sei o que devo fazer. Vedes estas plantinhas? Elas só podem viver mais quinze dias. Com a tempestade de neve, que virá no primeiro dia de inverno, elas morrerão, inevitavelmente. Vou transformar-vos em um destes arbustos, princesa. Tendes quinze dias, — nem mais uma hora! — para refletir sobre a sorte que vos aguarda. Pouco, antes de cair a tempestade eu virei saber qual é vossa decisão.

Em seguida, apontando para a princesa, exclamou:

— Adamá donai marrabá taisan!

Na misteriosa linguagem que ele empregara tais palavras significam: "Criatura humana, transforma-te em flor!"

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No mesmo momento sentiu Lindasul que não via nem ouvia coisa alguma, e parecia-lhe que se tornara pequenina, pequenina... Realmente, Lindasul nada mais era senão uma plantinha, igual a centenas de outras que ali viviam pobremente, na terra estéril e coberta de neve...

Por esse tempo o infatigável Aderamã prosseguia em sua peregrinação, explorando montanhas, florestas e grutas em procura do tigre real, quando mais não fosse para encontrar algum vestígio que revelasse o fim da pobre Lindasul.

Um dia, um homem a quem dera esmolas, interrogado por ele sobre se vira ou ouvira falar de um tigre de enorme corpulência, respondeu:

— Senhor, eu fui cativo de Bom-Bali, e, quando estive no Turã, vi sair de lá um tigre... mas... esse não era bem um animal, como se diz...

— Como assim? O tigre não era animal? Explica-te, homem, que te recompensarei.

Mudando o tom de voz, porque havia estranhos por perto, o pedinte assim se explicou:

— Ó meu senhor! Eu sei tudo... eu ouvi tudo... Aquele tigre era o feiticeiro lapônio Hirmu, transformado em animal feroz.

— E por que se transformou ele em animal feroz? — indagou, ansioso, o príncipe.

— "Vejo que sois um bom rapaz; por isso vou revelar-vos muito em segredo. Bom-Bali queria que Hirmu lhe trouxesse, prisioneira, uma princesa lá da Pérsia... O feiticeiro saiu — benefício que agradecemos a Ormuzde — e nunca mais apareceu. Ouvi dizer, no Turã, que provavelmente retornou à Lapônia.

Aderamã não quis ouvir mais. Recompensou o pobre homem com um bom punhado de moedas de ouro, e cavalgou veloz para o norte, em direção à Lapônia O valente Valedi foi com seu dono e amigo. Lá chegando, o príncipe indagou aos raros habitantes do país, na zona que lhe haviam indicado onde ficava a tenda de Hirmu. Guiado pelas incertas informações que ia obtendo foi ter às imensas planícies do Norte. Por vários dias vagou por aquela triste e sombria região, acompanhado somente por seu fiel amigo Valedi. De súbito soltou um grito de surpresa: num bloco de pedra viu gravado o nome "Lindasul" em letras grosseiras, que a neve mal deixava entrever.

Procurando em torno, acabou por descobrir, meio oculta pela bruma, uma tenda, — a única existente naquelas paragens desertas. Para lá se encaminhou, na certeza de que ali viveria Hirmu. Com efeito, no momento em que saltava do cavalo, e se dirigia para a tenda, surgiu o feiticeiro, atraído pelo barulho. Num abrir e fechar de olhos, Aderamã desembainhou a espada, e, ameaçando atravessar com ela o peito do miserável, exclamou:

— Restituí-me a princesa Lindasul, ou estás morto!

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Hirmu, que não esperava por esse ataque, ficou um momento hesitante; mas esse momento bastou para formar um plano de fuga. Transformou-se numa raposa branca, e disparou.

O malvado, porém, não contara com um inimigo capaz de o perseguir mesmo naquelas condições: era o cão Valedi, que, vendo fugir a raposa, não teve dúvida e saiu-lhe no encalço.

— Pega, Valedi! — gritou o príncipe.

Não foi preciso mais para que o cão em três saltos alcançasse a raposa, e uma luta terrível começou. Quase no mesmo instante, porém, chegava Aderamã, e, antes que o feiticeiro tomasse a forma de uma fera corpulenta, enterrou-lhe a espada no coração. Como sabemos, o coração da raposa era o próprio do cruel Hirmu. Ferido nesse órgão, o feiticeiro desta vez estava morto, e bem morto.

Aniquilado o inimigo, Aderamã voltou à tenda e ali encontrou a velha Pimpedora e seu filho. A velha cozinhava em sua panela, enquanto o filho consertava um trenó avariado.

— Mulher! — exclamou o príncipe, — teu marido está morto. Entrega-me Lindasul, e nada te acontecerá.

— Pelo céu! — disse a velha lapônia — será que realmente ele está morto? — Tal pergunta formulou sem a menor demonstração de desgosto, mas sim com uma sensível impressão de alívio. "Neste caso — prosseguiu Pimpedora, teremos que procurar a pobre menina entre as plantinhas da planície.

— Que diz? — inquiriu Aderamã. — Pois então...

— Infelizmente é verdade, meu senhor. Vai para quinze dias meu marido transformou-a em flor; e o pior é que a tempestade de neve deve cair hoje, e, com ela, todos os arbustos morrerão. Se a pobre moça não voltar antes à forma de criatura humana, perecerá também.

— Minha querida Lindasul, será possível que não sejas mais do que um destes frágeis arbustos? E que morreras assim, se não te encontrarmos entre tantas centenas de flores?

Isto dizia o príncipe, quando desatinado, corria para a planície, acompanhada pela velha Pimpedora e seu filho.

— Escutai, senhor — disse ela, — eu sempre tive pena dessa infeliz mocinha, e, escondida por entre as pedras, vi como ele fez para transformá-la em flor. Hirmu pronunciou estas palavras: "Adamá donai marrada taisan!" Meu filho deve saber mais do que eu.

— Vou revelar-te o que sei — esclareceu Pimpeturi aproximando-se. — Meu pai ordenou-me que marcasse com um sinal na pedra mais próxima o lugar exato em que ficou a princesa. E irritou-se comigo porque escrevi o nome em letras tão grandes, que se poderiam ver de longe. Esperava que a neve cobrisse o traço; mas eu diariamente a retirava, e as letras reapareciam. Pois bem: a princesa Lindasul é esta plantinha que aqui está, precisamente na direção da letra I da inscrição.

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— Oh! Deve ser esta a minha pobre Lindasul! — Assim falava Aderamã acariciando o arbusto do qual pendia uma flor, a mais linda de quantas resistiam ao vento gélido daquela fria terra.

— A tempestade de neve aí vem — elucidou Pimpedora observando o aspectos do céu. — Dentro de uma hora, inevitavelmente, ela aqui estará, e deve cessar, então a vida de todas estas plantas. É preciso, é urgente conseguir que ela volte à forma humana, senhor.

— Mas como, senhora? Eu não conheço a magia; nada sei dessa arte infernal...

— Dize-lhe tu o que sabes, meu filho — ordenou a lapônia.

— Senhor — declarou o rapaz, — eu sei que meu pai, para desfazer os encantamentos, pronunciava as mesmas sílabas, mas em ordem diferente, e formando outras palavras, ou assim como quem fala de trás para diante.

— Vamos experimentar — propôs o príncipe. E gritou, em voz clara: Marrabá taisan donai adamá! — mas suas palavras perdiam-se no espaço, inutilmente; nenhuma flor se agitou.

— É possível que não tenhas pronunciado bem as palavras — sugeriu Pimpedora. — Convém insistir, senhor.

O príncipe repetiu muitas vezes as misteriosas palavras, alterando-lhes a pronúncia e a junção das sílabas; sem melhor resultado, porém.

Uma hora se passou. Aderamâ não arredou o pé dali, na esperança de reaver sua amada.

— Vem aí a tempestade — lamentava Pimpedora sinceramente penalizada. E veio, realmente. O céu tornara-se sombrio, o frio mais intenso, e a neve, com irresistível violência, fustigava o rosto daquelas criaturas. As flores murchavam a olhos vistos, pendiam do hastil e morriam.

Desesperado, o príncipe pôs-se a abrigar com sua capa e com seu corpo a plantinha que devia ser a pobre Lindasul. E continuava a repetir a fórmula mágica, retomando as sílabas de modo a formar as combinações possíveis.

Uma hora se passou ainda. A tempestade atingia o seu máximo de violência. Todas as plantinhas já estavam mortas; só aquela resistia ainda, graças à proteção que lhe dispensava o príncipe em sua ânsia incontida.

Já quase sem forças, Aderamã repetia as palavras talvez pela única forma por que não as havia pronunciado ainda:

— Marra hadonai adam ataisan!

Nesse momento ele viu que tinha em seus braços a princesa Lindasul, pálida, meio desmaiada, mas com vida ainda!

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Radiante de alegria, o moço transportou-a para a tenda, onde ela foi agasalhada, enquanto Pimpedora atiçava o fogo para aquecê-la.

Logo que Lindasul voltou a si, olhou em torno, e, vendo Aderamã, lançou-se em seus braços.

Aconteceu, então, ao valente moço o que nunca deveria acontecer aos heróis: ele desmaiou, enfraquecido pela comoção e pelo longo esforço que fizera, sem se alimentar.

Foi, porém, um rápido momento. Ele voltou a si e, depois de darem graças ao Onipotente, tomaram o substancioso leite quente que Pimpedora lhes oferecia, sendo, então contemplado também o fiel Valedi.

— Que sentias tu quando estavas transformada em flor? — perguntou o príncipe a Lindasul.

— Tinha a impressão de que era muito pequenina, e que nada via nem ouvia... E de nada me lembrava, como se estivesse a dormir, entregue somente ao bom Deus.

— E quando voltaste à vida humana?

— Pareceu-me que tinha despertado de um longo sono sem sonhos — disse ela. — Querido, quando voltaremos para a Pérsia?

— Amanhã mesmo, minha amada.

— Peço-te, — acrescentou Lindasul — que não te esqueças de que esta boa mulher e seu filho tiveram pena da pobre Lindasul prisioneira...

— Bem sei, querida, o quanto concorreram para que eu te pudesse salvar.

— Faço empenho de que meu pai lhes dê um palácio onde vivam tranqüilos, uma carruagem... e servos...

— Tudo faremos conforme teu desejo, querida. Como ouviste, senhora — aduziu o moço árabe dirigindo-se a Pimpedora, — amanhã deveremos todos partir para o Sul: escolhereis o mais belo ponto de nosso país para que tenhais ali uma situação digna do serviço que prestastes...

— Um momento — interrompeu Pimpeturi, — parece-me que lá na Pérsia não se vê uma planície como esta, coberta de neve tão linda...

— Hein? A Pérsia é um belo país de sol... Nunca se vê neve assim, amigo.

— E existem por lá estas renas tão mansas, que nos fornecem o leite tão gostoso?

— Não. Não temos renas, mas em nossas florestas há veados, gazelas, antílopes...

— Dize-me ainda, ó príncipe: vê-se na Pérsia a aurora boreal?

— Nunca! Seria loucura pretender tal coisa em nosso país.

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— Nem neve, nem renas, nem auroras boreais... Como se pode viver em semelhante país, senhor? Perdoa-nos, princesa, mas nós preferimos continuar aqui, em nossa tenda, na Lapônia, onde temos tudo isso, e vivemos em paz.

— Meu filho tem razão — afirmou, em voz complacente, a velha Pimpedora. — Não creio que haja, em parte alguma do mundo, país tão belo como a nossa Lapônia.

Era inútil insistir.

No dia imediato, Aderamâ e Lindasul despediram-se de Pimpedora e do filho, deixando-lhes, como única lembrança, suas riquíssimas roupas, bordadas a ouro, e guarnecidas de pedras preciosas, e levando em troca roupas grossas, feitas de peles de renas, a única indumentária com a qual poderiam viajar sob aquele rude inverno.

Contentíssima, Pimpedora guardou aquelas ricas vestes em um saco de couro, convencida de que com aquilo poderia comprar mais algumas renas e um trenó para o filho, e prover-se anualmente, durante anos a fio, de uma quantidade imensa de farinha.

O Xá Nadir estava, um dia, solitário e melancólico, em seu trono de ouro, em Ispaã.

O desgosto havia-o envelhecido em poucos meses. Além do desaparecimento de sua filha, a quem tanto amava, outro fato concorria para o acabrunhar: seus ingratos filhos revoltaram-se contra a autoridade paterna, organizaram um exército e marchavam contra a capital, dispostos a destronar o pai.

O Grão Vizir veio anunciar ao rei que um casal de estranhos forasteiros, vindos do Norte, queria falar a sua majestade.

Desde o rapto de sua filha o xá nunca se recusara a receber os estrangeiros, na esperança de que lhe trouxessem alguma informação sobre o paradeiro de Lindasul.

O vizir introduziu, portanto, o jovem casal na sala do trono. O rapaz curvou-se respeitosamente, a distância; mas a moça que o acompanhava subiu o degrau do trono e, com a maior sem-cerimônia desta vida sentou-se ao colo do rei e passou-lhe o braço pelo pescoço. Ao ver aquela audaciosa falta de respeito, o vizir ficou branco de medo. Mas o xá, que reconhecera logo sua filha, embora vestida de grossas peles de rena, exclamava: "Lindasul, minha filha! Minha filha! Ó misericordioso Alá, eu vos agradeço! Agora posso morrer!...

— Agora é que não morrereis, senhor — disse o Príncipe Aderamã. — Pelo contrário, haveis de viver, e retomar a posse de vosso reino.

Logo que o xá ouviu toda a história da prisão e da libertação de sua filha, quis recompensar o Príncipe Aderamã, assegurou-lhe a mão de Lindasul, e o nomeou herdeiro do trono.

No dia imediato Aderamã partiu à frente dos cinqüenta mil guerreiros ao encontro dos rebeldes, e derrotou-os completamente em uma única e formidável batalha.

Os príncipes revoltosos fugiram para longe da Pérsia, e o vencedor entrou em triunfo em Ispaã.

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Dias depois realizou-se, com imponentes festas, o casamento de Lindasul com seu valente libertador.

Mais tarde o velho xá transmitiu o governo a seu sucessor, e foi gozar tranqüilamente a velhice brincando com os netinhos.

Seus filhos, ingratos e rebeldes, caíram prisioneiros de Bom-Bali, e foram reduzidos ao posto de guardadores de porcos do rei do Turã. Bom-Bali supunha, assim, ter levado a efeito a terrível vingança que projetara.

Aderamã, o novo rei da Pérsia, vedou, dali por diante, os combates de feras e tomou outras medidas que o tornaram querido do povo.

Uma vez por ano, no início do inverno, o aniversário da libertação da rainha Lindasul era comemorado com magníficas festas, em que ela e o esposo apareciam em trajes de pele de rena, para que sua felicidade atual não os fizesse esquecer os males que haviam sofrido.

Nunca mais se ouviu falar de Pimpedora e de Pimpeturi. Ficaram, sem dúvida, na Lapônia. Deserta embora, tristonha e gélida, a Lapônia era sua pátria; e para eles, como para qualquer de nós, não haveria, nem há, país no mundo mais belo que a terra natal.

CALIDASA SACUNTALA (Novela dramática da Índia antiga)

"Queres as flores da primavera e os frutos do outono? Queres a serenidade, o enlevo, o encantamento? Queres, numa só palavra, o céu e a terra?

Eu te direi: Sacuntala..."

GOETHE

CALIDASA

Inquestionavelmente foi o autor da Urvasi e da Sacuntala o mais notável poeta da índia Antiga, o que mais concorreu, com suas obras, para o interesse despertado pelos estudos do idioma sanscrito, desde o aparecimento da tradução de William Jones, em 1789, na qual a famosa história da princesinha do Malini veio a lume sob o título de O Anel Fatal.

Divergem as escassas fontes de informação quanto à época exata em que teria vivido Calidasa. Talvez entre o V e o VI séculos de nossa era. Sabe-se que seu nome significa "Servo

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da deusa Cali", (a qual se confunde com a Sanumati das lendas bramânicas), e que produziu suas melhores obras na corte viciada e corrupta de Udjaíni, sob o reinado de Vicramanditia. Esta última indicação pouco adianta, visto que houve mais de um monarca indiano com esse nome.

Além da Sacuntala, (sempre considerada sua melhor produção), o poeta escreveu Malavika, poema composto para uma Festa de Primavera, e que lhe valeu fama e popularidade; e mais uma epopéia em dezenove cantos, a Raguvanza, de entrecho complicado, cheio de batalhas e heróis; o poema lírico Magaãuta (Nuvem Mensageira), e a lenda de Urvasi (ou Vicravi-Urvasi), na qual se contam as aventuras do Rei Porurava, no afã de descobrir o paradeiro da ninfa Urvasi, a quem deuses maléficos haviam encantado sob a forma de uma árvore. Esta lenda, que reaparece em outras épocas e países, foi traduzida em 1884 por Bergaigne e Lehugueur, sob o título O Herói e a Ninfa.

Infelizmente não soube Calidasa manter um nome digno da fama resultante de suas obras. Sua vida, modesta a princípio, tornou-se irregular; escandalosos e depravados seus costumes. Precursor dos muitos Ovídios e Aretinos que em todas as literaturas se revelam, desperdiçando ao mesmo tempo mocidade e talento, Calidasa decaiu na estima de seus contemporâneos, e sua obra ficou longo tempo esquecida.

Nada há de positivo acerca da morte do poeta. Forjou-se, muito tempo depois, a história de uma cortesã que o mandou assassinar, invejosa de seus triunfos poéticos. O rei havia proposto um mote, para que os cultores da poesia o completassem sob a forma de poema. Os melhores estudos sobre Calidasa e sua obra são os que se encontram em Schroder, (Indiens Litteratur und Kultur), e Oldenberg (Die Literatur des Alten Indien). Goethe e Lamartine foram grandes admiradores de Sacuntala. O excelente estudo "Sakuntala kaj Hinda Teatro", de Ch. Lambert foi editado em Esperanto pela Livraria Hachette, de Paris, em 1911.

SACUNTALA (Novela dramática da Índia antiga)

PREFÁCIO

Queres as flores da primavera, os frutos do outono? Queres a serenidade, o enlevo, o encantamento? Queres, numa só palavra, o Céu e a Terra? Eu te direi: Sacuntala..."

Assim exprime Goethe sua admiração pela antiga lenda da índia Bramânica, que se contém numa centena de estrofes do Maabárata. Lenda esta que o poeta Calidasa transformou no belo e extenso poema dramático conhecido na culta Europa desde que William Jones e Frederico Schlegel com suas obras indianistas, e, mais recentemente, Charles Lambert, salvaram do esquecimento aquela fecunda e antiqüíssima literatura.

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Ei-la que reaparece agora em forma de conto. Como bem se compreende, a narrativa presume sempre um narrador; este, naturalmente, dispensa a intromissão de muitos personagens, com suas invocações e falas, não raro longas, solenes, conceituosas, como soíam ser as falas dos sisudos Sócrates bramânicos da velha antigüidade. Servos, arqueiros, discípulos dos venerandos sacerdotes, e, até semideuses e grandes iniciados ficam sem função, pelo que a narrativa os omite, ou apenas menciona55.

Simplifica-se, pois, a obra, mas com sensível prejuízo para a visão panteísta do mundo indiano, especialmente no que concerne à admiração da majestosa Natureza, — ambiente e pano de fundo de todo o complicado drama.

Convém, outrossim, que o leitor seja previamente informado de alguns pontos essenciais. Em nossas novelas, no desfecho feliz é que se casam o herói e a heroína, e cai o pano; no drama indiano, a ação se inicia pelo poético enlace dos jovens apaixonados, à sombra dos bosques amenos do Malini. Nas novelas ocidentais, o herói resolve, ordena, luta e realiza; no Oriente agem por ele forças imanentes do Universo, a cujo poder a criatura humana não se pode eximir. O tremendo dissídio se trava entre os deuses, gênios e espíritos benfazejos, e os que, votados ao mal, difundem a dor, a desdita, o desalento entre os mortais.

Ducimanto, tão poderoso, e Sacuntala, tão tímida, virtuosa e digna de pena, não se libertariam da maldição cruel de Durvasa, sem a simpatia protetora da deusa Sanumati. "Ela foi o meu amparo, o meu consolo, minha Esperança", — disse a comovida jovem ao ver-se, de novo, no caminho da felicidade. E nisso, afinal, poderia resumir-se toda esta comovente história.

Ainda uma observação se impõe: extraído do arqui-velho Maabárata, e composto vai para quinze séculos56, o drama da Calidasa parece ter sido escrito em época recente, para nosso exclusivo deleite. No entanto, podemos afirmar que o Maabárata serviu como fonte de inspiração para muitas obras da antigüidade. Certas imagens colhidas na exuberante natureza do Pendjab devem ter impressionado o autor do Cântico dos Cânticos; nem seria absurda a hipótese de que sua influência se haja prolongado até a poesia romântica e simbolista de nossos dias. Nihil sub sole novum. O mavioso coquilo57 causa, na índia de outrora, a mesma sensação nostálgica do rouxinol europeu, cujo agradável gorjeio a mitologia grega celebrizou. O poético Malini lembra o Danúbio das lendas germânicas. Ao descrever a volta do rei, no início do sétimo ato, o poeta nos faz ver o carro de Matali cortando as nuvens precisamente como fazem, em nosso tempo, os grandes aviões a jato. Sacuntala equipara-se às heroínas gregas por sua heróica resignação ao sacrifício, amenizado pela Esperança. "Cinco anos esperei por ti, ó Ducimanto, na certeza de que virias"58

Na verdade, não sabemos o que mais se deva admirar: se a presciente fantasia do autor, ou a genialidade de sua raça.

"Não chores mais, querida... Ainda umedece teu meigo olhar a lágrima vertida. Vou retirá-la, pois. Agora, esquece a dor que te afligiu... Retorna à vida!..."

SACUNTALA, XIX

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INVOCAÇÃO

"Que o Senhor do Universo vos proteja! Que Ele vos seja sempre misericordioso, o Deus Vivo, sob estas sete formas:

— A Água, que foi a primeira a ser criada;

— O Fogo, que transmite ao céu o incenso do sacrifício;

— O Sol e a Lua, estes dois astros reguladores do Tempo;

— O Espaço Infinito, onde vibram os cantos de Amor;

— O Ar, que mantém a vida em todos os seres;

— A Terra, mão e nutriz dos germens. Que Siva, o Deus Imenso, vos proteja!"

Capitulo I

A mais de três mil anos ocorreram os fatos que se narram nesta história. A velha índia Bramânica parecia ouvir ainda o eco longínquo dos últimos acordes do hino da Criação. Dos muitos milênios que não se contam, porém, emergira uma pujante civilização. Povos, nações, cidades, e reinos, palácios e mosteiros surgiram e floresciam ao longo dos rios do Pendjab, das serranias do Caracorum, dos altiplanos do Pamir e do Himalaia. Dessas mais altas serranias do mundo descia, para a vastíssima península, o húmus fecundante que conferiu à natureza, naquela região do globo, o seu fastígio portentoso.

O rio Malini, ora manso e sereno, ora jovial e marulhante, perlongando extensos prados e sombrias florestas, cumpria a rota que o destino lhe impusera, levando a outro caudal muito maior o tributo perene de suas águas59. Em certo ponto, longa faixa de relva macia e verdejante separava a margem da mata espessa e impenetrável. Frondosas árvores ofereciam aqui e além, ao viajante, sombra deliciosa e acolhedora. Tufos de arbustos floridos, como canteiros de jardim bem tratado, guarneciam o belo quadro.

Mas não foi para se entreter com esses encantos poéticos do ameno sítio que para ali se dirigiam dois homens num carrinho de caça, levado por valente cavalo, num galopar sem trégua.

Eram dois caçadores — Ducimanto, o rei jovem, amante das aventuras venatórias, e seu fiel arqueiro Mataro. No momento não perseguiam nenhuma fera temerosa, mas, sim, uma gazela. O tímido animal quase voava, tal a velocidade de sua corrida, na ânsia de atingir a

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brecha angustiosa pela qual, penetrando na mata, estaria a salvo, das setas sibilantes de seus perseguidores.

— Tu te assemelhas ao próprio Siva — disse Mataro, que no momento guiava o carrinho, evitando os cômoros floridos. — Mas desconfio que não alcançarás esta gazela.

— É o que veremos já — afirmou Ducimanto. — Ela nos trouxe bem mais longe do que eu esperava: mas está cansada, eu não perderei esta seta. Solta as rédeas, homem! Por que refreias o cavalo?

Não foi preciso que Mataro respondesse. Junto a uma árvore estava um venerando brâmane, com os braços abertos para cima, e lhes dizia em altos brados:

— Senhor! Esta gazela pertence aos monges do mosteiro!... Não a persigas nem a firas com tuas setas certeiras! Cassiapa, o santo pai de Indra, é o nume protetor desta mansão de prece e penitência. Pisas recinto sagrado, senhor! E lembra-te que as armas foram dadas aos reis para que defendam os fracos contra os maus e os poderosos!

— Maldição! — disse Mataro — será que este miserável brâmane pretende deter o teu braço, ó Ducimanto, — e impedir que alcances tua presa?

— Cala-te, Mataro; é nosso dever respeitar este santo homem. Sobre ele paira a razão. Quero falar-lhe com o devido respeito. Fiquemos aqui por um momento.

Capitulo II

Na verdade, Ducimanto embora robusto, no vigor de seus trinta anos, carecia de um repouso, exausto como se achava, ao cabo de algumas horas de correrias e caçadas. A manhã fora trabalhosa e acidentada. Seu acampamento, e seus companheiros, todos, como ele, afeitos ao rude mister, haviam ficado muito longe, ao sul do Malini. Após as saudações que o mútuo respeito impunha, uma cordial conversa concorreu para reforçar aquela necessidade repousante, para a qual a singular beleza do sítio influiu, também, como fator definitivo.

— Neste solar vetusto, onde tudo respira amor e serenidade — explicou o velho brâmane, — reside Canva, o nosso venerável chefe espiritual. Se teus compromissos não te impedem, senhor, avisa os teus servos e digna-te passar aqui algumas horas e a noite que virá em seguida. Ao reaparecer amanhã nos cimos do oriente, o Sol glorioso refará tuas forças esgotadas. Canva sentir-se-á honrado quando souber que um cátria ilustre consentiu em aceitar nossa humilde hospitalidade.

A perspectiva agradou desde logo ao jovem Nemrod60 indiano.

— Poderei apresentar minhas homenagens ao piedoso Canva? — indagou Ducimanto ao eremita.

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— O nosso amado chefe está ausente, mas sua esposa Gautami, e sua filha Sacuntala, bem como os respeitáveis sacerdotes da comunidade, receber-te-ão com as honras devidas.

— Aguardarei, se possível, o regresso de Canva, ó Brâmane. De há muito chegou a meus ouvidos a fama de suas incomparáveis virtudes. Visto que se apresenta este feliz ensejo, quero conhecê-lo. Posso saber o motivo, e a duração de sua ausência?

— O venerável Canva foi, como penitente, a um santuário do norte, a fim de pedir a proteção de Sanumati61 para sua filha Sacuntala, por lhe haver sido revelado, em sonho, que sobre essa virtuosa jovem paira o perigo de certa maldição dolorosa, capaz de lhe produzir males e desventuras sem conta.

— Quem ousará lançar o golpe insidioso da maldade contra a filha de tão piedoso homem? Antes de Sanumati, Ducimanto, o rei, há de punir o autor de tão nefando crime, Dize-me, ó sacerdote, que perigo corre essa inocente criatura?

— Infelizmente, senhor, não tenho poderes para elucidar o que ainda se oculta nos arcanos do futuro... Perdoa-me, porém, que vos deixe; o tintinábulo convoca-me para o trabalho da tarde. Segue por esta alameda; depois da bela clareira que interrompe a mata, irás ter ao jardim consagrado às preces e penitências de nosso chefe. No vestíbulo do solar os discípulos de Canva virão atender-te com as atenções devidas aos hóspedes de tua nobre hierarquia. Vitória e imortalidade ao rei!

Capitulo III

Pronunciada esta saudação, a que Ducimanto correspondeu com o gesto usual de agradecimento, o brâmane retomou os instrumentos que denunciavam sua modesta função de lenhador, e esperou, respeitosamente, que o rei tomasse o caminho indicado.

— Aguardo tuas ordens, senhor — disse o arqueiro. — Queres que te acompanhe, como me parece prudente?

— Não, — decidiu Ducimanto, — E acrescentou, enquanto se afastava do religioso: — "É claro que este brâmane me reconheceu; mas conto que com os outros não aconteça o mesmo. Desejo visitar este velho mosteiro como peregrino e amigo. Quando, e se julgar necessário, declararei minha identidade. Leva meus colares e minhas armas. Amanhã, na clareira da floresta que ele nos indicou, virás esperar-me. Traze contigo o Madaivo; ele descrê da piedade dos monges, e eu quero convencê-lo. Trata bem de nossos cavalos.

— Tudo farei cumprindo teus desejos, senhor. Vitória e imortalidade ao rei!

Reassumindo seu posto no carro, Mataro pô-lo em movimento, e afastou-se, veloz, no rumo do ocidente. Ia repassar o extenso trecho da estrada que havia percorrido em vão, no encalço de uma pobre gazela. Ducimanto penetrou na mata, e, tendo encontrado sem dificuldade a clareira, aproximou-se do jardim, do qual partiam risos e vozes femininas.

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Sacuntala e suas diletas companheiras Anassuía e Prianvadá regavam as plantas. Trajando compridas mantas de fina seda, e estolas franjadas que lhes circundavam o busto e os quadris, protegiam o lindo vestuário durante a rude faina da jardinagem revestindo túnicas de tecido mais grosseiro. Delicadas guirlandas de flores enfeitavam-lhes os cabelos, os colos, os braços. O rei da índia, que se ocultava entre prestimosos arbustos, para admirar, muito a seu gosto, o grupinho encantador, sentiu-se desde logo impressionado pela graça espontânea e juvenil das três gentis jardineiras, que brincavam atirando para o ar respingos d'água de seus enormes regadores de prata.

— Um momento, queridas! — exclamou Sacuntala — sinto-me mal! Não posso respirar! Esta túnica aperta-me demais! Libertai-me, por piedade!

— A culpa é tua — disse Prianvadá desprendendo os colchetes e retirando-lhe a opressiva peça. — Teu corpo desenvolveu-se muito desde a última primavera, e não reclamaste novas roupas, como em tua idade nós fizemos.

"Assim esplende a rosa, liberta da folhagem com que a tentam ocultar", pensava Ducimanto, maravilhado pela beleza da moça, cujo corpo virginal apenas encobria o tênue véu lilá de pura seda.

— Pois deixa teu jarro e abraça-te àquele sândalo, Sacuntala. Gostas de passar as mãos na madeira perfumosa. E quem não apreciará uma carícia tua?

— Com razão te deram o lindo nome que usas, Prianvadá62. Tens sempre uma palavra amável para mim. Recordo-me ainda do que me disseste acerca da liana que se enlaçou ao cedro novo junto à porta do solar...

— Que terias dito, que tanto a comoveu? — perguntou Anassuía.

— Ora... Apenas isto: "Não invejes, amiga, esta feliz liana. Um esposo acharás, também, digno de ti".

Ducimanto não ousava mover-se, embevecido na contemplação da poética cena campesina. Sacuntala recostara-se na relva, ao lado do sândalo, seu amigo. As duas outras regavam as plantinhas, com graciosos meneios e passos de dança. Anassuía preludiou uma canção de louvor às flores. Cortando o silêncio da mata, ouvia-se o canto nostálgico de coquilo63. Esgotados os regadores, e libertas de suas pesadas túnicas, bailavam as moças indianas. Dir-se-ia que eram ninfas da magnífica floresta, em nada inferiores àquelas sedutoras beldades com que a fantasia dos poetas e a imaginação do povo enfeitavam os bosques encantados das velhas mitologias. De quando em quando o gorjeio do coquilo enchia de tristeza o fundo da verde mata.

Um grito de Sacuntala despertou bruscamente o emotivo rei de seu devaneio. "Valei-me, companheiras, eu estou perdida! Ela vai me ferir, ela vai me ferir!"

— Não te movas, Sacuntala! Nós a afastaremos!

— Depressa, Anassuía! Ela insiste! Acode-me, por piedade!

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Capitulo IV

Ducimanto não mais se conteve, e, de um salto, deixando seu esconderijo, apresentou-se no meio dos canteiros, com indizível surpresa para as jovens, que o fitavam com seus grandes olhos negros ampliados pela admiração.

— Quem ousa ameaçar-vos, meninas? Alguma serpente, talvez? Onde está ela? Eu vos livrarei do perigo!

Prianvadá, a primeira a reconquistar a calma, e a inteirar-se da realidade, explicou:

— Não há feras nem serpentes por aqui, meu senhor. Nossa amiguinha Sacuntala sente um pavor incrível, e grita assim sempre que uma abelha esvoaça em torno dela. Foi isso apenas o que aconteceu.

Ducimanto sorriu, e quis amenizar o susto que causara, com uma expressão de carinho e confiança:

— Que os deuses vos protejam, belas jovens, e a ti, especialmente, formosa Sacuntala! Que te libertem dos insetos agressores e satisfaçam a todos os anseios de teu coração! Tais são os meus votos!...

— Minhas amigas, — observou Anassuía — este senhor deve ser um viajante, e, provavelmente, procura o caminho do mosteiro. Senta-te neste banco de pedra, senhor; vê-se bem que estás cansado.

E prosseguiu, dirigindo-se às companheiras:

— Que uma de nós corra a avisar os sacerdotes, para que venham oferecer a este nobre peregrino a hospitalidade recomendada pelos preceitos de Siva...

— Irei eu, que sou a mais moça — declarou Sacuntala, reclamando a honra daquela comissão.

E foi uma feliz lembrança, visto que Ducimanto queria, no momento, entreter breve conversa com as duas outras, que o cercavam de atenções.

— Dizei-me vós, meninas — e eu prometo ser discreto — afora as abelhas, que outro perigo ameaça vossa amiguinha tão querida? Ouvi dizer que Canva foi pedir para ela a proteção de Sanumati...

Ouviu, então, o moço rei a singela história. Sacuntala era filha de Caucicá, santo e venerado rei do Pamir. Este, e a esposa, no mesmo dia ingressaram no Grande Mistério. Conforme o desejo de Sanumati, o piedoso Canva recolheu a menina, que apenas abria os olhos para a vida, e criou-a como sua filha adotiva. Agora, entrando na velhice, já o preocupava o destino de Sacuntala, para quem desejava encontrar um esposo digno dela.

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Essa notícia encheu de suave alegria o coração do rei. Uma brisa de esperança perpassou pelo florido bosque de sua imaginação. Seus ardores de moço, a beleza da virtuosa jovem, a circunstância daquele providencial encontro, tudo estava a lhe insinuar que talvez naquele solar tranqüilo do Malini encontrasse a chave de seu destino. Sim; teria sido ele fadado pelos deuses para proteger aquela frágil menina, de tão nobre origem.

— Quanto a perigos e maldições, ficai tranqüilas — dizia Ducimanto. — O rei, que bem sabe da vida piedosa que se leva neste mosteiro, dar-lhe-á sua constante proteção. Ele possui talismãs preciosos, que conjuram todos os males.

— É um grande rei, Ducimanto! — afirmou Prianvadá. — Sabemos o quanto é justiceiro, complacente e humano. Ouvimos, também, que anda em visita ao vale do Malini, e que se distrai com perigosas caçadas. Dize-nos, porém, meu senhor, por que nome devemos tratar-te?

Esperava o rei por esta pergunta, mas hesitava se devia revelar-se desde logo, ou guardar, por algum tempo, o incógnito. Não lhe bastava a certeza de seu invencível amor a Sacuntala; queria descobrir se esse amor era correspondido.

Voltara, então, a filha de Canva com a inquietadora notícia: pássaros mansos esvoaçavam assustados: corças e veadinhos corriam para os apriscos; estalavam na mata estranhos rumores. Os sacerdotes tinham saído todos a fim de ver o que ocorria de anormal. Mas Gautami, a quem a velhice impedia de caminhar, aguardava, no vestíbulo, a chegada do nobre viajante. De longe, a voz de um brâmane se fez ouvir: "Jovens, recolhei vossas gazelas e pavões! Penetraram na mata animais perigosos!"

Este apelo alvoroçou as duas jovens. "Depressa, Anassuía, — propôs a outra, — não temos tempo a perder! Sacuntala fica, para conduzir nosso hóspede à presença de Gautami". E, tomando por um dos atalhos menores, desapareceram por entre as árvores.

Capitulo V

— Senhor, se já refizeste tuas forças, e queres caminhar até a mansão, minha boa mãe, que te aguarda, prestar-te-á as homenagens que mereces. Deploro a ausência de meu pai, mas ele ficará magoado se a tão ilustre visitante não proporcionarmos, em seu nome, condigna hospitalidade.

— Tuas palavras me encantam e desvanecem, minha querida Sacuntala. Em caminho terei a grata ventura de proteger-te contra qualquer perigo dos que rondam por estes bosques.

— Tu me honras sobremaneira, senhor. Quem sou eu para receber tamanha prova de distinção de quem tanto nos exalta com sua simpatia?

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— Sei que és virtuosa, aprazível e boa. Que os deuses te concedam longa e ditosa vida! És digna da proteção especial do rei!

— Eu te agradeço, senhor. Mas... Vamos! Gautami nos espera...

— Um momento, mais, Sacuntala. Ora dize-me, princesa do Pamir, gostarias de enlaçar com teus braços o Rei Ducimanto, amorosamente, como a liana se prendeu ao cedro que a sustenta?

— Não sei como te responda, meu senhor! Tem pena de mim!... Sei que Ducimanto é um grande rei, moço, belo e sábio! Todos louvam e bendizem o seu nome glorioso. Sempre tive por ele um estranho sentimento de ternura. Meu coração bate, agitado, só por saber que ele está perto de nós...

— É quanto me basta! — exclamou o moço rei com um sorriso de sincera alegria. — O pássaro sedento suplicava ao céu o benefício de uma gota d'água, e eis que uma copiosa chuva lhe traz o que ele tanto queria!

— Não te compreendo, senhor... mas... se me permites...

— Cuidado, jovens! — exclamou a voz do monge. — Caçadores penetram na mata, em busca das feras acuadas! Recolhei-vos à mansão!

— Vamos depressa, querida Sacuntala! Quero saudar a veneranda Gautami, e afastar meus homens da mata, aonde vieram, imprudentemente, perturbar o sossego desta pacífica mansão. Eu sou Ducimanto, querida! Creio que antes de te conhecer, eu já te amava; e, pelo que me confessaste agora, creio que tu me queres bem, e que esperavas por mim! E ainda tenho muito a dizer-te, antes que o sol descambe no ocidente!...

Capitulo VI

No dia imediato, Madaivo e Mataro esperavam, na clareira da floresta, a chegada do rei.

— Não posso mais — dizia o primeiro. — Já ultrapassei o limite extremo da paciência. Com estas correrias e caçadas, Ducimanto vai liquidar comigo em pouco tempo. Mal o sol desponta, recomeça a sarabanda: "Olha aquele veado, Madaivo!" "Trepa nessa árvore, desgraçado, que o javali vem furioso!" "Cuidado, que tens um gorila perto da cabeça!" "Não pises no chão, que uma serpente enorme rola por aí!"... E de noite, — onde o descanso? Quem pode dormir ouvindo o leão que urra de dois em dois minutos? E mais o uivo da pantera?

— Pois fica-o sabendo, Madaivo — observou Mataro, — pelo que me segredou o brâmane lenhador, o nosso rei não se vai ainda hoje. Penso que ficaremos com ele no solar.

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— Pior! Terei que suportar os cacetíssimos discursos desses barbados rezadores! Pensando bem, — prefiro o leão! O leão, e os gorilas!

— Vem aí o Ducimanto... Ouçamos o que nos vai contar sobre sua nova conquista...

Momentos depois, com efeito, já o rei tinha posto seu amigo ao corrente do que se passava...

— Creio poder afirmar que Sacuntala me ama, — dizia Ducimanto a seu fiel confidente. — Todas as minhas observações concluem pelo mesmo resultado. De minha parte, nunca me senti tão apaixonado como agora me vejo; nem posso admitir a hipótese de ter outra esposa, senão essa encantadora donzela em quem Brama parece ter reunido todas as virtudes e toda a beleza feminina.

— Pelo que vejo, o caçador foi caçado, ó rei!64

— Pensa o que quiseres, Madaivo... Quem pode tolher o pensamento de outrem? O certo é que não quero hesitar, nem perderei esta oportunidade feliz que os deuses me proporcionam.

— Dos grandes homens, como dos grandes rios, não se pode alterar o curso, ó rei. Casa-te, pois, com essa pobre filha de brâmanes, Ducimanto.

— Corrige tua frase, amigo! Sacuntala é filha do Rei Caucicá. Provém da mais alta casta que tem existido na Terra desde que Siva criou o mundo. Digna de ser rainha do Pendjab! Sim; casar-me-ei com ela, logo que venha a palavra de Canva, com seu assentimento e sua bênção. Isso talvez me retenha aqui por alguns dias. Em meu palácio ninguém dará por minha falta; minha veneranda mãe, e o honrado ministro Souna estão administrando o reino com justiça e sabedoria. Quero, pois, que se encerre hoje nossa estação de caça; levante-se o acampamento, regressem os arqueiros com as matilhas e os servos. Irás com eles, chefiando a caravana. Ficará apenas minha escolta, que Mataro alojará nas dependências do mosteiro. E tu dirás a minha mãe que desejo repousar por alguns dias nesta casa de oração e caridade.

— Ora ainda bem que estou livre dos urros do leão e da parolice dos monges; Vitória e imortalidade ao rei!

— Sê razoável, Madaivo... Quero que regresses ao palácio e dês carinhosa assistência a minha mãe, que respeites o velho Souna. Tenho confiança em ti, como teria num irmão. Se algo de grave sobrevier, agirás como eu agiria, se presente estivesse.

— Agradeço-te a confiança, ó caro Ducimanto. Permite, porém, que eu deixe repontar meu entusiasmo: "Vitória e imortalidade ao irmão do rei! E, quanto a nossa rainha...

— Nada dirás por agora, Madaivo. Quero que se guarde absoluto sigilo, até que eu próprio dê ciência, à corte, do notável acontecimento. Meu caso sentimental não será tema de comentários para aqueles áulicos desleais, interessados em povoar o palácio com falsas rainhas mercenárias.

— Cumprirei rigorosamente tuas ordens, ó rei.

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E Madaivo partiu, para dar cumprimento àquela honrosa comissão.

Dois brâmanes surgiram, então, na entrada da clareira.

— Vitória e imortalidade ao rei! — exclamou um deles. — Poderemos transmitir a Ducimanto a palavra de nosso venerável chefe Canva?

— Aguardo com ansiedade essa mensagem — disse o rei.

— Ser-me-á lícito neste local... e neste momento, ó rei?

— Mas sem dúvida, santo homem!

— Assim falou o venerável Canva — prosseguiu o brâmane, em voz pausada e solene: "O amor é mais forte que a morte, e só a honra torna a vida digna de ser vivida. Sinto-me ditoso ao saber que Ducimanto quer, para esposa, a filha de Caucicá; e visto que o Amor os uniu, e a honra é deles o apanágio, que Siva os proteja e lhes dê virtuosa prole".

— Esta mensagem cai sobre meu coração como um bálsamo benfazejo de esperança e de felicidade... Eu vos agradeço, respeitáveis sacerdotes de Agni. Farei aos deuses os tributos de minha gratidão.

Capitulo VII

Seria ocioso aduzir que aquele dia e os subseqüentes transcorreram sob uma brisa de amena alegria no velho mosteiro do Malini. Não obstante a discreta reserva sob a qual Ducimanto quis que se realizasse seu casamento, tudo parecia denunciar a tranqüila felicidade de que fruíam os ditosos cônjuges no retiro florido a que se acolheram nos primeiros dias. Os próprios monges limitaram ao mínimo as horas de suas penitências, e de seus pesados labores, para que se ouvissem longos cânticos de louvor a Siva, e ferventes súplicas a Sanumati, a protetora da família, pela perene felicidade do venturoso casal.

Sempre fugazes, porém, são os prazeres que a vida concede aos mortais. Os deveres da função real não poderiam, com efeito, permitir mais longa ausência ao amoroso Ducimanto. Duas vezes sete dias se haviam passado quando mensageiros da corte se apresentaram no ádito do mosteiro, portadores do urgente apelo endereçado ao rei. "Volta com a maior presteza", — recomendava a rainha regente, — "é teu dever indeclinável assistir à grande festa dos Antepassados, cuja data se aproxima". Não havia como fugir àquela imperiosa honraria, tradição que datava do tempo do Mui Glorioso Rei Puru, de quem Ducimanto era bisneto. Forçoso era partir.

— Sacuntala querida, — justificava o rei, consolando a esposa, apreensiva com a notícia daquela imprevista separação — longas e penosas cerimônias compõem a fúnebre comemoração a que devo presidir. As solenidades rituais me impediriam de apresentar-te

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como minha esposa à rainha regente e à corte, com a suntuosa exaltação que tu mereces, e que eu desejo realizar com toda a pompa. Tão cedo as cerimônias terminem, virei buscar-te. Tudo estará então preparado para tua entrada festiva no palácio de teu esposo.

— A liana será destruída pelas intempéries, sem a proteção do sândalo a que se enlaça... Eu ficarei triste como o loto ameaçado pela torrente que desce da montanha, meu querido. Mas esperarei, resignada, o teu regresso.

Tais eram as palavras de Sacuntala, tristes como um queixume de saudade.

— A sombra do cedro se alonga ao sol poente, minha amiga, mas não se separa nunca do tronco que a produz. Assim minha lembrança não se afastará deste solar, onde passamos a quadra mais feliz de nossa vida.

E Ducimanto, retirando do dedo um precioso anel, entregou-o à esposa, com estas consoladoras afirmações de sua fidelidade:

— Guarda e usa este anel, querida Sacuntala; é um talismã que irradia misteriosos poderes, e que valerá como penhor de nossa perene felicidade. O símbolo real que nele esplende protege-me mais que uma legião; aqui o vês: é o mesmo que, ao nascer, já têm gravado na mão esquerda todos os descendentes de Puru.

Sacuntala recebeu com desvelo a preciosa jóia, e sentiu-se confortada pelas palavras carinhosas do esposo. Mas as horas corriam velozes; a noite caiu sobre as florestas do Malini e os bosques floridos do mosteiro.

Capitulo VIII

A manhã seguinte ficou assinalada pela partida de Ducimanto. Todo o pessoal do solar devia acompanhá-lo até a orla da mata, entoando cânticos e votos de boa viagem. De longe se ouvia o clamor unânime: "Vitória e Imortalidade ao Rei!" Sacuntala e suas fiéis amigas deveriam ficar com recomendações severas zelando pela sagrada mansão, onde ninguém poderia entrar antes do regresso dos religiosos. A escolta do rei, as servas de Gautami, os membros e noviços da comunidade formaram um próstito imponente e vistoso. Chorosa, a esposa do rei itinerante subiu ao minarete mais alto do solar, de onde por mais tempo avistaria o cortejo real. De lá acenaria os últimos adeuses, com o manto sagrado de Cali.

Foi então que um homem de severa aparência se apresentou no vestímulo do mosteiro.

— Eis-me aqui, ó brâmanes — exclamou com voz trovejante. "Espero me conceda o venerando Canva a hospitalidade que Siva ordena e patrocina. Vinde, pois, e franquear-me a entrada!

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— Deuses Imortais! — disse Prianvadá — ali está um homem de semblante iroso, pedindo ingresso e hospitalidade! Mas nós não podemos desobedecer às ordens de Gautami...

— Devemos expor-lhe o que se passa — sugeriu Anassuía. — Vem, depressa, comigo.

Desceram, rápidas, a larga escadaria e aproximaram-se do portão. Era o desconhecido um brâmane, certamente; suas vestes talares revelavam a casta sacerdotal, acrescidas, porém, de estranhos símbolos. Seu aspecto rude causou às timoratas moças indianas uma impressão chocantemente desagradável. Ao longe, na entrada da alameda, um serviçal se apoiava na carriola que os havia transportado.

— Venerando sacerdote — explicou Prianvadá, — peço-te encarecidamente que esperes por alguns minutos, apenas... O Rei Ducimanto, que aqui se achava hospedado, acaba de partir, e todos foram acompanhá-lo até a estrada do Senabi. Tem paciência, que não tardarão em regressar os discípulos de nosso pai Canva. Serás, então, recebido com todas as honras...

— E é para prestar descabida homenagem a esse cátria, chefe dos homens, — replicou em tom áspero o carrancudo recém-vindo — que se movem todos os servos de Siva?... E eu, piedoso monge de Ágni, terei de esperar pelos que desertam o seu posto? Ah! Não! Não esperarei!

E, imprimindo à voz um tom de mofa: "Que veio aqui fazer, nesta casa de oração e penitência, esse contumaz caçador, que blasona descender do grande Rei Puru?

— Senhor, — tentou ainda esclarecer a tímida Anassuía, — o rei esteve aqui por motivos muito sérios, que eu não posso revelar... Mas sei que voltará em breve.

— Pois não há de voltar! — bradou, furioso, o brâmane. E repetiu: "Não há de voltar! Que, salvo os preceitos divinos, toda a lembrança do que aqui se houver passado desapareça do espírito de Ducimanto e de sua gente! Que a treva do esquecimento caia sobre esse período de sua vida como o negrume da noite nas cavernas profundas do Caracorum!

Isto dito, com gestos de indignação, o irritado brâmane afastou-se. As duas moças, desatinadas, ainda tentaram uma providência: Prianvadá saiu por uma das portas laterais da mansão, e foi alcançá-lo já na estrada. Momentos depois voltava, com desanimadora informação:

— É Durvasa, o mais poderoso e temido dos Richi — elucidou à amiga. — Em vão dirigi-lhe fervorosas súplicas e lhe beijei a mão. Ele não quis voltar, nem desfez a maldição. É inimigo de Ducimanto. E afirmou que nosso pai Canva não tem poderes para revogá-la. Só Puru, com seus talismãs, poderia restituir a memória perdida por seu descendente; mas Puru morreu há mais de um século!

— Vem aí Sacuntala. Pensas que devemos referir-lhe o que se passou?

— Não, menina... Uma notícia tão triste causar-lhe-ia angustiosas apreensões. Devemos poupá-la. Motivos de pesar já não lhe faltam. Deste nosso segredo só daremos

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conhecimento a Gautami e a Canva. Eles, com suas preces e mortificações, talvez consigam minorar as conseqüências de tão clamorosa maldade!

Capitulo IX

O venerável Canva pouco mais se demorou. Voltava satisfeito: os sacrifícios em honra de Sanumati haviam motivado bons augúrios, que prometiam a Sacuntala a desejada proteção da deusa. Já essa grata certeza alentava o coração do piedoso sacerdote quando ao distante santuário aonde fora chegaram os mensageiros de Gaumati, para informá-lo quanto à visita de Ducimanto e ao que dela resultou. Canva, sincero crente, considerou a paixão fulminante do rei como natural conseqüência da ação benfazeja de Sanumati. Reenviou imediatamente os emissários com a resposta já conhecida, e consagrou-se às penitências e práticas impostas pela gratidão.

Retornando ao mosteiro do Malini, cuja direção espiritual exercia desde muitos anos, Canva confortou a filha adotiva, magoada pela ausência do marido, e, mediante sábios conselhos ditados pelo amor paternal, preparou-a para exercer dignamente, no palácio, na corte, e no recesso do lar, a árdua missão de rainha, esposa e mãe.

Uma nuvem, porém, pairava sobre a serenidade da mansão. O piedoso sacerdote e sua esposa haviam sido cientificados da ação maldosa de Durvasa, e compreenderam que o incoercível ódio dos Richi à dinastia Puru fora a causa principal daquela vingança tão desproporcionada ao insignificante incidente que lhe servira de pretexto.

De nada valeria qualquer tentativa no sentido de obter do próprio Durvasa um voto que conjurasse os males do anterior. Encontrá-lo, mesmo, seria impossível. De um Richi peregrino nunca se sabe de onde veio, nem para onde vai. Nem a que influências malfazejas se entrega para dispor de maléficos poderes que ultrapassam a inteligência e a capacidade dos mortais.

Nessas penosas cogitações consumia o venerando brâmane as suas horas, enquanto as três jovens, findos os trabalhos de rotina, corriam ao jardim para regar as suas violetas, as suas rosas, os seus lotos prediletos.

— Sacuntala querida — recomendava Anassuía, — tu não podes, nem deves, utilizar esses jarros tão pesados... Nem fica bem a uma rainha...

— Não tens razão, menina! Sanumati, que é uma deusa, vive agora na Terra, e não muito longe de nós... e vive num jardim do qual só ela e suas ninfas podem cuidar...

— Sim... mas uma deusa dispõe de meios para molhar as plantas sem que precise transportar pesados regadores...

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— Deita-te na relva e aprecia os nossos bailados, Sacuntala, — propôs Prianvadá. — E canta... A vida seria triste, sem as harmonias serenas... O canto nos consola... Faz-nos viver a canção.

— Faço votos para que não reapareça aquela famosa abelha — lembrou a Anassuía. — Cuidado! Hoje não terás o Ducimanto para afugentá-la!...

— Ele não tardará, o meu querido esposo, — afirmou Sacuntala. — Cada vez que contemplo e admiro este lindo anel, a confiança renasce em meu coração.

— Para as amarguras da alma não existe paliativo melhor que o da Esperança, minha cara.

Assim falava Prianvadá, no propósito de alentar o ânimo de sua boa amiga. Como facilmente se adivinha, as duas confidentes de Sacuntala nada haviam a esta revelado acerca dos temores que as preocupavam.

Entre vagas esperanças e fundados receios, mais dois meses fluíram no perpassar do tempo.

Nenhuma notícia concernente à esperada volta de Ducimanto em busca da esposa que por ele tão ansiosamente esperava. Soube-se, graças a fiéis mensageiros, que a festa dos Antepassados se realizara com o esplendor compatível com a tradição gloriosa de Puru. Soube-se mais que, acudindo a povos de províncias distantes, ameaçados por terríveis invasores, o rei partira à frente de aguerridas tropas, e, após sangrentas batalhas, destruíra totalmente o inimigo. Assegurada a tranqüilidade no país, Ducimanto regressou, aclamado, benquisto, triunfador. E, não parando em sua marcha irredutível, a caravana do Tempo, mais um mês se passou. E outro... e um terceiro...

Já não era segredo para ninguém que Sacuntala guardava no seio o fruto de seus idílicos amores. Os numes da floresta haviam favorecido aquela revelação de Siva, o criador dos homens.

Todas as felicidades se concedam àqueles que veneram os deuses do campo65!

Capitulo X

— Minha filha, é tempo de te recolheres ao lar de teu esposo. Motivos, sem dúvida poderosos, o têm forçado a adiar o cumprimento da promessa que te fez ao partir. Graves são as responsabilidades dos reis, e absorventes os seus encargos. Mas a lei sagrada impõe, à esposa, o dever imperioso de viver sob o teto do esposo, obediente e fiel. Ducimanto ignora que, dentro de poucos meses nascerá o filho destinado, — assim queiram os deuses! — a perpetuar a glória de sua dinastia. Eis por que resolvi que viajes para o sul, na certeza de que, logo que te veja, o rei te prodigalize os desvelos necessários àquela que vai ser mãe de seu herdeiro e sucessor.

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Tal foi a decisão que o austero brâmane comunicou a sua filha adotiva. Sacuntala ouviu-a, submissa, lamentando apenas a separação a que as circunstâncias a obrigavam.

— Aperta-me o coração só o pensar que me vou separar de ti, meu pai; de todos vós, destas árvores e desta mansão que tanto amei!

— Também a nós a dor aflige — tornou Canva — mas o crente resigna-se à vontade dos deuses. Dois de meus discípulos acompanhar-te-ão até o palácio, e à presença de Ducimanto. Tuas inseparáveis amigas e demais servas que se julgarem necessárias para teu conforto e serviço, irão apenas até a entrada da cidade, porquanto não será decente que donzelas de sua casta sejam vistas no meio da multidão. Tudo será devidamente organizado para que da longa viagem não resulte o menor dano para tua saúde, minha filha; doces alegrias compensarão a mágoa da partida.

Adotada essa resolução, e após os longos conselhos com que Canva e Gautami instruíam sua filha, os preparativos para a viagem não se fizeram demorar. Na manhã seguinte os brâmanes entoaram, além das preces rituais, o cântico do Rig-Veda, no qual se pede a proteção especial dos deuses para os itinerantes. Canva, aproximando-se da soleira que a filha devia transpor, dirigiu-se a Hariti, seu discípulo amado e filho adotivo:

— Traze do altar do sacrifício, onde depositamos as oferendas a Sanumati, o pequeno véu, o leque e a flâmula votiva que oferecemos a tua irmã.

O jovem brâmane afastou-se, no cumprimento daquela ordem. E Canva pronunciou, em voz suplicante, a prece ao Fogo Protetor:

"— Ágni, ó Fogo Divino, Pai da Vida, tu que palpitas no seio da Terra e na cintilação das estrelas, tu que enches de ardor o coração dos amantes, tu que retorces o ferro como um junco, e espalhas mil lotos de luz pelo Universo, tu que aqueces e animas todos os lares, ó Ágni, protege a nossa filha Sacuntala, que se vai abrigar sob o teto de seu esposo".

Mal se haviam pronunciado as últimas palavras, que a comunidade repetia, a voz de Hariti se fez ouvir no pátio interno do mosteiro:

— Canva, meu pai!... algo de prodigioso acaba de se passar!

Logo em seguida, o brâmane reaparece no átrio onde todos se haviam reunido. Trazia um belíssimo véu de matizes azuis e dourados, um precioso leque, e a flâmula que o velho sacerdote pouco antes havia abençoado.

— Uma nuvem misteriosa enchia a capela — disse ele, ainda sob o império de forte impressão. — "Eu me senti deslumbrado: e, com os passos incertos, ao aproximar-me do altar, encontrei, com a flâmula, este véu, e este leque, que não são os que tu ali deixaste... Sei que não são, porque estive a teu lado.

— Não queira a humana inteligência saber a causa de todas as coisas — sentenciou Canva, sem se mostrar surpreendido. — Que com estas dádivas se atavie Sacuntala, quando comparecer diante de seu real esposo. Vai, Sacuntala; uma deusa te protege... Enxuga tuas lágrimas, e pensa na felicidade que te espera no aconchego amoroso de teu lar. A verdadeira

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virtude consiste em vencer, sem decair, os obstáculos que se encontram nos caminhos da vida. Hariti, meu filho, recorda ao rei que o amor é mais forte que a morte, e só a honra torna a vida digna de ser vivida.

— Assim farei, meu pai — assegurou o brâmane.

Triste foi o momento da despedida; mas o sol já se aproximava do zênite, e era forçoso partir. As tardas alimárias os aguardavam impacientes, na larga estrada do Malini.

Capítulo XI

Bela e populosa era a cidade de Senabi, capital do mais poderoso reino da índia. Cercado de jardins, e guarnecido por vistosas obras de arte, o palácio real, cuja construção se iniciara sob o Glorioso Rei Puru, atestava o inexcedível prestígio da dinastia que com ele se iniciara. E dessa linhagem ilustre, o soberano então reinante se revelara digno continuador, não só por suas virtudes como rei prudente e justiceiro, mas também por seu valor como chefe de povos e guerreiros capaz de altos cometimentos.

Do gabinete reservado aos trabalhos do rei, o primeiro ministro Souna observava, afastando uma faixa do reposteiro de veludo, o salão de audiências, onde Ducimanto, em pessoa, atendia, atencioso e benévolo, aos últimos solicitantes, cujos pedidos dois auxiliares anotavam em pranchetas de sândalo. A julgar pelas fisionomias, todos os requerentes saíam satisfeitos, e alguns mal continham o seu entusiasmo exaltando a bondade do rei, e seu espírito de justiça.

— Quando terminará esta pedincharia? — indagou Madaivo, que se aproximara do paciente ministro.

— O soberano que não ouve, atento, as súplicas de seus súditos é indigno das insígnias reais — observou Souna.

— Eu sei que isso se lê nos Vedas — retrucou o malicioso cortesão. — Mas o que não se lê, e ninguém negará que seja a pura verdade, é que Ducimanto precisa tratar de coisas mais sérias. Muitos dos pedidos aqui formulados poderiam ser resolvidos pelos rajás.

— E daí?

— Daí o nosso rei teria tempo para examinar, conosco, um problema pessoal que considero da maior relevância.

— Já sei de que se trata...

— Pois é precisamente isso mesmo... Ducimanto já passou da idade em que deve escolher uma esposa... Ora, eu tenho fortes motivos para supor que, ao regressar do planalto,

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ele houvesse resolvido o seu "caso" sentimental por uma solução que a mim parecia definitiva. Mas... eu notei que ele nunca mais aludiu, em conversa comigo, a esse episódio do qual eu tive pleno conhecimento. Episódio, aliás, digno de eterna lembrança, pois marcou o fim de suas últimas caçadas.

— Tampouco a mim, caro amigo, o rei nada disse acerca de seus amores. Nem — que eu saiba — à rainha regente, sua veneranda mãe.

— Infelizmente, eu, que sei alguma coisa do romance, nada posso adiantar... Ducimanto quer a iniciativa da revelação, e eu assumi um compromisso de honra para com ele. Mas julgo de meu dever, e de minha função, agir no sentido de remover esse bloco de gelo que pesa sobre o coração de nosso rei e nosso amigo. Ducimanto, conforme apurei, não tem a menor lembrança do que lhe aconteceu no velho mosteiro do Malini, onde permaneceu quase um mês. Não consigo compreender esse arcano. Paciência! Tentarei outra solução. Hansavati seria uma rainha adorável, — não concordas comigo, ilustre Souna?

Por um franzimento expressivo dos músculos do rosto o austero ministro deixou perceber que aceitava a idéia com certas restrições.

— Nada tens a recear, amigo. Hansavati, em minha opinião, seria uma rainha aceitável... Mas debalde ela canta, e baila, e se esforça por agradar ao rei... Ducimanto gosta de vê-la, trata-a bem, mas em matéria de amor... nada! Já começo a desanimar. Ei-la que canta sua mais bela ária no salão da rainha... Estás a ouvir? Proponho que façamos uma última tentativa assim que termine esta audiência. Ainda há solicitantes?

— Sim. Acaba de chegar uma jovem, visivelmente pronta para os deveres da maternidade, e que se faz acompanhar de dois brâmanes, trazendo um destes a mensagem de seu chefe.

— Nisso de monges e de moças transviadas eu desisto de interferir — disse Mandaivo. — Vou para o salão a fim de ouvir, mais uma vez, a pobre Hansavati. Até breve, ilustre Souna.

E o cortesão encaminhou-se para o local onde a perseverante candidata ao trono despendia, em vão, a sua virtuosidade na arte.

Souna aproximou-se, respeitoso, do rei, para apresentar-lhe, como lhe cumpria, os três recém-vindos.

— Senhor, — assim falou então — reservei intencionalmente para o fim de tua audiência, por me parecer digno de acurada atenção, o caso destes sacerdotes e da jovem a quem fizeram companhia numa longa viagem do vale do Malini até a corte. Eles trazem uma respeitosa mensagem de seu chefe, o venerável Canva. Queres ouvi-los?

— Sem dúvida, meu caro Ministro. Que entrem!

Ducimanto observou com certa curiosidade os três solicitantes. Sacuntala, tímida como sempre, de olhos semicerrados, tinha sua beleza realçada pelo véu de ouro e azul que lhe emoldurava o rosto mimoso. Toda a sua pessoa irradiava um encanto singular. Ao fitar o rei pela primeira vez, esboçou brevíssimo sorriso, quase imperceptível. Ducimanto não

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demonstrou pelo menor indício tê-los reconhecido. Correspondeu, impassível e hierático, à saudação que lhe dirigiam.

— Podeis falar — declarou o ministro. — O rei ouve, atento, vossas palavras.

Capitulo XII

— Ó grande rei, — disse Hariti — meu venerável pai Canva, Penitente de Ágni, Sacerdote de Siva, e chefe espiritual de nossa Ordem, mandou-me aqui para reavivar em tua mente estas palavras sagradas: "O Amor é mais forte que a morte, e só a honra torna a vida digna de ser vivida. Esta jovem é tua esposa, senhor. Tu a desposaste, segundo os santos ritos, há poucos meses, no mosteiro do Malini. E assumiste, para com ela, um compromisso de amor, e de honra. Cumprindo os inflexíveis mandamentos de Siva, e obediente à vontade de nosso pai, ela aqui veio para se abrigar sob o teu teto, e aguardar as tuas ordens.

Enquanto ouvia a estranha mensagem, Ducimanto revelava, no olhar e nos gestos, a maior surpresa. E, passando a mão na testa, como quem realiza esforço ingente de memória, declarou:

— Veneráveis sacerdotes, em tudo isso que dizeis por parte de vosso chefe deve haver deplorável engano. Não me recordo, absolutamente, de haver jamais desposado esta moça, que me parece, no entanto, digna de todo o meu respeito, de toda a minha simpatia. Não me lembra ter estado no mosteiro do Malini. Alguém, maldosamente, iludiu vossa boa-fé, venerandos brâmanes, e a desta jovem que vosso chefe me enviou. Embora dela tenha muita pena, não a devo receber em meu palácio...

Sacuntala sofreu, corajosamente, o doloroso golpe. Dir-se-ia que por efeito de inexplicável intuição ela temia, ela esperava o amaríssimo transe. Soerguendo o véu, fitou o ingrato amante, e disse-lhe: "Sou eu, Sacuntala, ó Ducimanto, meu querido! Por infelicidade perdi aquele anel que tanto queria mostrar-te agora... Mas... que se passa contigo, para que me repudies tão cruelmente?"

— Não — reafirmou Ducimanto — eu nunca te desposei, linda jovem.

Envolvendo-o num olhar de comovente tristeza, a pobre moça ainda ousou proferir esta queixa sentida: "Ah! Ducimanto, meu esposo, não te recordas dos momentos de amor que passamos no bosque do Malini? Eu confiei tanto em ti! Porque me abandonas? Que fiz eu, para incorrer em teu desagrado?" Debalde ainda insistiram os monges, tentando aduzir esclarecimentos. Explicaram que o anel a que a moça aludira havia caído no lago Mirzapur, quando ela ali se banhava no último pouso da viagem. Ducimanto não se convenceu. A bruma do esquecimento caíra, definitivamente, sobre seu espírito vivaz e solerte. E ele reiterou a decisão já proferida: "Não a receberei em meu palácio; nem seria decoroso que o fizesse".

E declarou, convicto de que tal fosse a verdade: "Esta jovem foi vítima de algum impostor. Senhor Ministro Souna, quero que isso se apure com a maior presteza. Não é

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admissível, porém, que esta pobre moça, no estado em que se encontra, continue em companhia destes sacerdotes que a trouxeram. Que se providencie para que ela seja recolhida ao asilo do Senabi, onde aguardará o nascimento da criança.

Retirando-se, então, do salão de audiências, o rei se dirigiu ao ministro, numa tentativa de justificação:

— Souna, asseguro-te que nunca, em minhas aventuras, conheci esta formosa filha das florestas malinis. Quero, porém, minorar o vexame que sofreu. Dá tuas ordens para que ela seja tratada com todo o desvelo. Ela parece-me digna de ter sido desposada por um rei. E que se guarde o mais rigoroso segredo acerca de tudo o que se relacione com este penoso episódio. Resguardemos a honra desta jovem e infeliz montanhesa que, sem dúvida, fala com a maior sinceridade...

Capitulo XIII

E tudo se fez em inteira conformidade com as determinações do rei. Hábeis emissários acompanharam os brâmanes em sua viagem de volta. Iam referir a Canva o ocorrido, e pô-lo ao corrente das suspeitas formuladas por Ducimanto acerca daquela insólita mistificação. Noutro rumo, em luxuosa carruagem da corte, devidamente escoltada, Sacuntala foi conduzida ao abrigo designado para sua temporária residência.

Enquanto o ministro ultimava essas providências, o rei consentiu em ouvir as canções da formosa Hansavati. A orquestra palaciana executou os seus mais apreciados números. Lindos bailados concorriam para o encanto da festa. Mas Ducimanto, com grande pesar de Madaivo, não parecia interessado, nem pela cantora, nem pelos demais participantes da esmerada tertúlia. Aquela última cena da audiência operara em seu conturbado espírito uma radical transformação. Por fim, chamando a um de seus gabinetes particulares o leal amigo e confidente, quis cientificá-lo do drama íntimo que o agitava.

— Madaivo, — declarou — preciso de teus conselhos, de teu bom-senso, de uma palavra tua que me convença de que não estou enlouquecendo... Mas não sei o que se passa no âmago de meu ser... Um brâmane, vindo dos contrafortes do Himalaia, disse-me hoje: "O Amor é mais forte que a morte, e só a Honra torna a vida digna de ser vivida". Assalta-me, agora, uma idéia esquisita: eu já ouvi essa frase numa vida anterior...66 Como explicar isso, meu bom amigo? Bem sei que a raras criaturas Siva outorga tão alto privilégio: o de recordar uma existência anterior.

— Mas por que teria sido numa vida anterior à atual? — opinou Madaivo. — Não vejo a necessidade de ir tão longe. Eu próprio, no dia e no momento de minha partida, por me haver demorado ainda por alguns minutos no bosque do Malini, (e disso deves estar lembrado!) — pude assistir à chegada dos monges enviados por Canva, e ouvi a mensagem

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que um deles te transmitiu, em tom solene: "O Amor é mais forte que a morte", — e por aí além. Tratava-se exatamente da mensagem de Canva, que tu ouviste no jardim do mosteiro. Bem sabes o que de tudo isso resultou...

Uma dúvida atroz e outras em seguida, como as avalanches nos flancos do Caracorum, desabaram sobre o atormentado espírito do rei. Teria ele estado, conforme o depoimento do amigo, nos bosques e jardins do Malini? Mas... como explicar que de nada se recordasse, afora aquele preceito dos Vedas? Como seria possível harmonizar os elementos do incompreensível problema, entre a negativa de um, e as afirmações categóricas de outro?

O debate do transcendente tema consumiu algumas horas, sem resultado apreciável. De si para si Madaivo bem quereria aventar a hipótese de um eclipse de memória; mas uma natural reserva lho impediu. Quem admitiria uma crise mórbida de amnésia em homem tão sadio, na força da idade?

Capítulo XIV

Foi então que se apresentou no palácio, com as feições alteradas pelo terror e a palavra tartarnudeante, o dirigente do grupo encarregado de levar Sacuntala ao asilo a que se recolheria.

— Perdoa, ó Rei! — exclamou o pobre homem possuído de justos temores — não foi nossa a culpa! Um acontecimento que não podíamos prever impediu que cumpríssemos tua ordem.

— Que houve? — indagou Ducimanto.

— A moça cuja guarda nos foi confiada desapareceu!

— Como assim? Explica-te, homem!

— Um prodígio, ó Rei! Quando já nos aproximávamos do destino, em plena estrada, uma nuvem toldou nossas vistas, e alucinante vertigem tolheu-nos a consciência do que se passava em torno. Pude apenas ver que uma chama de intensa luz se abateu sobre a moça, deslumbrando-me o olhar. Quando conseguimos retomar nossas forças, ela já não se achava entre nós, e nenhum vestígio deixou!...

Não havia como recusar crédito àquela narrativa, ditada, como bem se percebia, sob a pressão do terror. Sacuntala desaparecera, levada por deuses ou ninfas da floresta. Baldados seriam os esforços humanos para localizá-la. Poderoso como era, Ducimanto cada tentou. "Bem eu disse, — pensava — que aquela moça era digna de ser desposada por um rei!..."

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Alguns dias transcorreram sem que o soberano da índia sob a penosa impressão daquelas ocorrências obtivesse de seus mais esclarecidos conselheiros qualquer explicação satisfatória. Mas estava iminente, e não se fez demorar, o terceiro evento, não menos inverossímil, daquela seqüência marcante em seu destino atribulado.

Numa dependência do palácio, dois guardas do rei, acompanhados por numerosas testemunhas, apresentavam, acorrentado, a seu chefe Sima, um pobre homem, que se dizia pescador no lago Mirzapur, e que fora surpreendido quando, no mercado principal da cidade, pretendia vender a quem mais desse, não um peixe, mas um anel de incalculável valor. Inquirido sobre a origem daquela preciosidade, Cavitrá limitava-se a dizer:

— Eu não roubei esta jóia, senhores! Ela veio a minhas mãos pela vontade dos deuses! Sou um pobre pescador do Mirzapur, e assim vivo há muitos anos!... Alimento mulher e filhos com o fruto de meu trabalho... Ontem, ao recolher minha rede, agarrei um peixe dos maiores que ali se encontram. Resolvi vendê-lo em postas; foi então que, no seu bucho, achei este anel67.

— Tens imaginação de sobra para inventar bonitas histórias — retrucou Sima. — Mas nesta não cairemos nós, responsáveis pelos tesouros do rei. Que aves de certa espécie devorem objetos brilhantes, é comum; mas peixes? Em caso algum!... Receio que percas a vida por conta desta fábula tão mal arranjada. Sabes que neste anel se vê gravado o símbolo do rei?

— Como poderei eu saber, senhor, se minha ignorância é total no que se entende com letras e símbolos? Nunca me ensinaram o valor desses sinais misteriosos... Mas agradeço aos deuses que te inspiram essa revelação, senhor guarda real! Se este precioso anel pertence ao rei, estou que Ducimanto há de querer recompensar, e não castigar, o pobre pescador que no exercício de sua profissão o descobriu no fundo do lago. Como e quando ali foi parar, só ele, o rei, poderá nos dizer. De minha parte, bem sabeis, nunca entrei neste palácio, nem poderia ter tido acesso aos relicários reais... Quem disser que um mesquinho pescador do Mirzapur logrou devassar as câmaras secretas do rei, e dali retirar uma jóia para vendê-la no mercado, estará desmoralizando a vigilância que vos compete exercer. Ducimanto não confiará mais em vós...

— Este homem foi industriado por algum sabichão esperto, advertiu em voz baixa, um dos guardas. Ou nós aceitamos a história do peixe, ó Sima, ou confessaremos nossa incapacidade. O mais acertado é levar, já, o anel ao rei; ele resolverá quanto ao destino que se deva dar a este velhaco.

— Tens razão — concordou o chefe. — É isso precisamente o que nos cumpre fazer.

Sima colocou o anel, com supersticioso respeito, sobre o fundo de veludo de pequenina salva de prata, e subiu aos aposentos do rei. Djaluca, um dos guardas, aproveitou o tempo de expectativa, para dirigir ameaças e remoques ao pobre Cavitrá.

— Tu cantas bem, mas não entoas...

— Por isso mesmo não me exibo em público; nunca passei de um modesto pescador, — disse o homem, que parecia demonstrar uma imperturbável tranqüilidade.

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— Eu gostaria de tomar teu corpo como alvo para meus exercícios de arco, — prosseguiu o guarda.

— Sou tão magro, e pisca-pisca, que tuas setas se perderiam, e tu ficarias desacreditado, também, como atirador...

— Não me irrites, desgraçado! Eu tenho no cinto um afiado punhal!

— Há um deus protetor dos pescadores, ilustre guerreiro! Quem ferir um deles injustamente, pode contar com sete anos de azar! E eu te arranjaria outros sete anos, para reforçar tua crença nos deuses.

— Olha que eu te enforco naquela árvore, patife!

— O rei há de indagar quem pendurou tão feio espantalho no seu jardim, e quando souber que se trata do pescador que lhe encontrou o anel, tu te verás em sérios apuros!...

— Libertem esse homem! — gritou alguém.

Era Sima, que voltava apressado, e já de longe exclamando:

— Depressa! Libertem esse homem! Tirem-lhe as correntes do braço! O rei quer vê-lo, e dar-lhe uma valiosa recompensa!

— Vitória e imortalidade ao rei! — bradou Cavitrá.

— Escapaste de boa, meu amigo, — opinou o guarda que se havia conservado silencioso durante a espera. — Djaluca, por via de regra, não atura a terceira réplica dos meliantes que incorrem na sua antipatia.

— Inteligente como é, descobriu que não sou meliante, ilustre guerreiro!

Desembaraçado de suas algemas, Cavitrá foi conduzido à presença do rei. Sua demora foi curta. Ducimanto fêz-lhe uma única pergunta. Obtida a resposta, ordenou que dessem ao pescador uma bolsa com avultado número de moedas de ouro. O rei estava possuído de profunda depressão nervosa.

— É a primeira vez que vejo um homem reaver uma jóia perdida, e lamentar-se, como se o ferisse a desgraça! — assim falava Cavitrá ao chefe dos guardas, em tom confidencial.

— Não queiras comentar o que viste e ouviste — aconselhou Sima. — E vai-te em paz; trata de organizar uma vida nova, visto que bem o mereças...

Capítulo XV

Tristes os dias que se seguiram ao reaparecimento do anel. Reintegrado na posse de sua memória, graças à magia daquela relíquia, Ducimanto acusava-se, lamentava-se,

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desesperava-se, por ter repudiado de forma tão cruel a esposa a quem tanto amava. Isolado de tudo e de todos, recebia nos seus aposentos, em breves visitas, somente o seu amigo Madaivo, que debalde despendia toda a sua dialética para reanimá-lo com palavras de esperança. Ducimanto replicava, com seu desalento sem remédio:

— Meu amigo, tu conheces o provérbio: "Todo o humano socorro é inútil àquele que, voluntariamente, se atirou ao fundo de um abismo".

— Mas tu não agiste com o domínio de tua integral vontade, ó Ducimanto. Deves ter sido vítima de algum malefício, — e os brâmanes disso estavam informados — visto que tua saúde não admite a hipótese de um delíquio mental.

— Que mal teria eu feito, para merecer tal castigo?

— Mas não admitamos, tampouco, a suposição de um castigo. O que parece, Ducimanto, é que os deuses da bondade e da sabedoria ainda não obtiveram de Brama o poder absoluto para dominar o Universo, sobre o qual ainda tripudiam os espíritos do mal.

— Por que motivo estarei eu sofrendo tamanho desgosto, meu amigo?

— Porque o sofrimento redime, purifica, eleva as almas no juízo de Siva — prosseguiu Madaivo. — Tu estás passando por uma provação; e dizem os Vedas que aos transes mais rudes, Deus há de dar um fim68.

— Ainda bem que me confortas, meu amigo... Que dor sinto no coração quando me lembro do olhar de tristeza de Sacuntala, e das súplicas que me dirigiu: "Ah! Ducimanto, meu esposo, eu confiei tanto em ti! Porque me abandonas? Que fiz eu para incorrer em teu desagrado?" ó deuses imortais, dizei, porque nesse momento não a apertei a meu peito, não a beijei, não a tomei nos braços, como fizera no bosque do Malini?... Amor, cruel amor, tu não és só mais forte que a morte, és mais forte que a vida também! Onde está, onde está aquela que eu amo, e que, certamente me ama ainda? Onde está? Onde está?

Nesse melancólico teor alongava-se o queixume do desditoso rei indiano... Não era passível que ele se interessasse pelos graves problemas do governo, nem devia ser visto pela corte naquele estado de prostração moral. Noticiou-se, pois, que ele passaria longo tempo no sossego de um retiro nas montanhas, para se refazer de mágoa tão profunda.

Capítulo XVI

— Eu te agradeço, Madaivo, o sacrifício de me acompanhares até esta montanha tão distante de nosso palácio, onde tudo respirava conforto e alegria de viver. Não quero, porém, que corras o perigo de viajar à noite pela floresta. Irei só, até a mansão de Matali, o fiel condutor de Indra, a qual daqui já se avista.

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Madaivo despediu-se do rei, tendo deste ouvido a recomendação de não olhar para trás. Interessado, porém, em saber como se comportaria aquele homem tão maltratado pela desdita, quando se visse só naquela remota paragem do mundo, o imprudente não se afastou do bosque, de onde se pôs a observá-lo. Momentos depois gritava: " — Ducimanto, meu rei e meu senhor, acode-me! Sinto que vou morrer!"

Ducimanto correu ao bosque de onde partira o grito. Nenhum monstro ameaçava a vida do fiel confidente; mas este desmaiara, e uma voz forte se ouviu: "Ducimanto, sê bem-vindo! Matali te aguarda, para conduzir-te à região onde a raça indomável do Dânavos, excitada pelos Eichis infernais, está praticando as maiores atrocidades contra os piedosos crentes de Brama! Indra quer que destruas aquela raça maldita!".

— Aqui estou para cumprir a vontade de Indra! — exclamou o rei.

E tratou de reanimar o amigo, que se assustara apenas por ter cometido a imprudência de observar a carranca tremenda de Matali. Em seguida, tomou o rumo que o levaria à mansão do fiel servidor de Indra.

Capitulo XVII

Teria sido uma visão fantástica? Um delírio, talvez? Mas o carro de Indra ali estava, e Matali nele instalou o descendente de Puru, para a viagem que iriam iniciar, na direção do Oriente. Ultrapassando, em altura, os cumes do Himalaia, o assombroso aparelho cortava as nuvens com incrível rapidez. Os opulentos rios do Pendjab, lá em baixo, pareciam fitas de prata... As montanhas mais imponentes do mundo deslizavam, velozes, como se a superfície da Terra não passasse de um extenso tapete semovente... Caudal de estrelas, a Via Látea perpassava nos rumos do Infinito, e os astros turbilhonavam em espirais de luz...

— A luta que vais travar representa uma rude provação, meu amigo — revelou Matali. — Mas Indra, o Complacente, perdoará a falta de caridade que cometeste negando a uma pobre jovem, que te suplicava, o ingresso em teu palácio.

— Submeto-me à vontade de Indra — disse, conformado, o rei. — Sim, eu pequei, e muito me arrependo do erro que cometi.

Ei-los de volta... Fora tremenda a luta, mas rápida. Cinco vezes Ducimanto vira o Sol realizar o seu curso pelos Espaços de Varuna. Cinco dias, apenas durara a guerra? Brilhante apoteose glorificou a vitória do moço rei, que, ainda sob o deslumbramento daquele espetáculo paradisíaco, mal podia transmitir suas impressões.

— Estou profundamente desvanecido pela generosidade de Indra — dizia o rei ao companheiro da mirífica aventura. — Nenhum mortal jamais recebeu tamanha honraria! Na presença de todos os Devas, Ele me fez ocupar um trono, e ornando-me com guirlandas das

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mais belas flores de Suargá, traçou em meu peito o símbolo sagrado. "Agora, sim", — disse — "estás redimido. E reconquistarás tua esposa, porque te tornaste digno dela".

— Já nos aproximamos de teu reino, ó Ducimanto. Eis os belos jardins da bela Sanumati. Devo deixar-te neste local onde vivem a Deusa da Esperança e suas ninfas prediletas. Vitória e imortalidade ao Rei! Sê feliz com tua esposa que há cinco anos espera por ti!...

Capítulo XVIII

Sim; deve ter sido uma visão... um delírio talvez... Mas cinco anos haviam passado na Caravana do Tempo! Cinco anos! Como explicar esse tremendo mistério, senão pelo poder supremo dos deuses imortais?69

Assim meditava Ducimanto, ainda incerto quanto ao rumo que deveria tomar, quando viu duas moças, em cuja companhia peralteava um menino. O que mais surpreendeu o rei indiano foi ver que o jovem trazia, como brinquedo, um leãozinho muito pequeno, pouco antes retirado, sem dúvida, do covil materno.

— Cuidado com esse bicho, ó Salvada! Ele vai te arranhar! — repreendeu uma das moças.

— Duvido! — exclamou o menino, sem dar importância alguma à advertência. — Eu não tenho medo nem da leoa!...

— País extraordinário este, onde um menino como travessura, se apodera de um leãozinho em carne e osso! — pensou Ducimanto. E, em voz alta: "ó jovens, quem é este menino, cuja energia me deixa surpreendido? Sois do solar de Sanumati?"

— Sim — respondeu uma delas. — Velamos por este menino, o Salvada, que nasceu e tem vivido em nossos bosques.

— Isso logo se vê — acrescentou o rei. — Eu gostaria de conversar com ele, enquanto espero o carro que me vai levar à corte de Senabi.

— Também eu sinto que vou gostar de ti — declarou o menino. — Espera por mim, meu senhor!

E saiu a correr, reaparecendo pouco depois sem o leãozinho, o qual, certamente contrariado em seus interesses enquanto servira como brinquedo, deve ter dado provas de alegria ao retomar o seu posto no aconchego materno.

Ducimanto foi ao encontro da criança, e, em caminho, apanhou alguma coisa que caíra na relva.

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— Cuidado, Salvada, meu filho! — exclamou — Olha que na corrida deixaste cair o teu bracelete! Felizmente eu o vi; aqui o tens!

— Senhor — disse uma das mocas — por piedade! Larga esta pulseira! É talismã poderoso!

— Mais uma razão para que não se perca na relva — replicou o rei. — Quero eu próprio colocá-lo no braço do menino.

E assim fez.

— Foste imprudente, ó peregrino! Este bracelete transforma-se numa serpente, se for tocado por quem quer que seja, salvo os descendentes de Puru!

— E o Salvada descende de Puru, ó jovens? Dizei! Descende este menino de Puru?

— Sim; é o filho de Sacuntala e do Rei Ducimanto; tem um pequenino sinal na mão esquerda... e...

— Meu filho! Meu filho! — exclamou o rei indiano, erguendo nos braços o menino, com efusões de ternura que bem se justificavam. E, no mesmo tom de alegria: "Eu sou teu pai, ou viste? Onde está tua mãe?

Pela primeira vez o poderoso rei da índia abraçava o filho tão ardentemente desejado para a glória e perenidade de sua dinastia!

— Quero ir ter com minha mãe — disse o menino.

— Irei contigo, meu filho! Ensina-me o caminho.

— É verdade, meu senhor, que tu és Ducimanto, o rei, em quem ela tanto fala?

— Sim, meu querido filho; sou eu, Ducimanto, teu pai!

Sacuntala, avisada de que um cátria forasteiro havia impunemente erguido nas mãos o bracelete do filho, vinha, ansiosa, inteirar-se do ocorrido.

A meia distância da misteriosa mansão, num jardim que lhes fazia relembrar o sítio florido de seus amores no Malini, Ducimanto teve, enfim, a doce alegria de rever aquela que era toda a sua vida, toda a sua esperança. E saudou-a com toda a ternura do coração:

— Sacuntala, minha querida esposa! Eu te amo, eu sou teu esposo, perdoa-me o mal que te fiz... Desfeito o malefício cruel que me feriu, aqui estou para levar-te comigo!

— Deuses imortais — exclamou a comovida rainha — eis que meu amado me quer, e vem cumprir o que me prometeu no bosque sagrado do Malini!

Seria impossível reproduzir as palavras de carinho e reconfortante alegria com que se consolaram os felizes cônjuges depois de tão amargurada ausência.

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— Cinco longos anos esperei por ti, na certeza de que virias — recordou a lacrimosa esposa. "Desapareceu num carro de fogo" — dizia-se — "dele nunca mais haverá notícia". Mas Sanumati fortalecia minha crença; ela foi meu amparo, o meu consolo, a minha Esperança. "Sei que ele te ama ainda, e que muito tem sofrido por tua causa" — dizia-me. "Resiste e espera, sem descrer no bem".

— Não chores mais, querida. Permite que eu retire esta última lágrima que pende de teus olhos. Retorna à vida, e que a alegria te doure a alma. Confiemos na bondade dos deuses imortais.

— Leva-me contigo, meu amado. A esta hora os lotos pendem nos bosques do Malini. É nosso dever, porém, prestar o tributo de nossa gratidão a Sanumati.

— Sede felizes, meus filhos; que Sacuntala possa fruir as alegrias do lar; que Ducimanto seja um modelo para os reis, que se devem consagrar à felicidade dos povos. Ide em paz; honrai os preceitos divinos. Vosso filho será um digno herdeiro do grande rei, e vossos nomes serão lembrados por muitos séculos nas Sete Regiões do Mundo70, pela glória imortal do Amor, da Honra e da Virtude.

Assim falou Sanumati; e em suas palavras proféticas termina esta velha história.

FIM

1 Dríades eram as ninfas dos prados, das campinas e dos pássaros.

2 "Ó rainha, tu me ordenas que renovo uma dor terrível..." Eneida, canto II, 3 — Virgílio atribui esta exclamação a Enéias, quando a rainha Dido, de Cartago, lhe pediu que contasse como se dera a queda de Tróia.

3 Eginardo devia saber que esse episódio da Eneida, não passa de um absurdo que a imaginação de Virgílio romanceou. O fugitivo Enéias passou por Cartago trezentos anos depois da morte de Dido...

4 "À sombra das faias" — expressão de Virgílio no final das Geórgicas.

5 Referência ao notável poema de Henry Austin Dobson (1840-1921), no qual se lêem estes melancólicos versos: "Time goes, you say... Ah! No!... Alas... Time stays... we go..."

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6 Expressão usada por Davi, quando recusou as pesadas armas que lhe ofereceram para dar combate ao gigante Golias. Não afeito ao manejo das referidas armas, preferiu o jovem, enfrentar o inimigo apenas com a funda, e, por uma certeira pedrada o derribou.

7 "Depois disto, logo, (terá sido...) conseqüência disto." Ora nem sempre a simples sucessão de dois fatos permite asseverar que o segundo seja, necessariamente, resultante do primeiro.

8 Poema em estrofes sáficas, composto no ano 17 a.C. por Horácio, a pedido de Augusto, o que foi cantado pelo povo por ocasião das festas centenárias da fundação de Roma.

9 Xenofonte chefiou, na jornada de regresso, a coluna mercenária grega que ao termo de malograda expedição à Pérsia, realizou a famosa "Retirada dos Dez Mil".

10 Eram assim denominadas as leis que Carlos Magno expedia para que vigo. rassem no Império, especialmente nas "marcas", ou terras de regiões distantes, onde a autoridade se exercia por emissários enviados pelo imperador.

11 O leitor notará a delicada ironia que se contém no período assinalado. Longas eram as lições, mas a causa devia ser outra...

12 A passagem citada por Agilberto, para evidenciar que o sábio Alcuíno tinha por patrono um gozador epicurista está nas Odes, I, 11, 8.

13 Passagem da Carmen Secular, estr. XII, cuja tradução o próprio Alcuíno antecipou.

14 Trata-se de Aristóteles, assim muitas vezes designado por ter nascido em Estagira, na Macedônia.

15 Estas palavras não têm sentido próprio; indicam apenas, por uma convenção, as diferentes formas do raciocínio, conforme a Lógica.

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16 Princesa austrasiana com quem Carlos Magno se consorciara pouco antes em segundas núpcias.

17 "Si fractus illabatur orbis, Imparadum ferient ruinae" Horácio, Odes, Iir, 3, 8. A tradução está no texto.

18 Carlos de Heristal perdera sua filha mais Telha, Rotrutles, que ele desejava dar em casamento ao imperador bizantino. Em sua crônica Vita Impcratorts Karoli Hegis Magni Eginardo não revela a quem destinava o soberano sua filha Ema; talvez ao rei da Mércia, (Inglaterra), seu amigo e aliado. Mas o amor inutilizou esses desígnios políticos...

19 Asichen, cidade alemã, mais conhecida entre nós pelo nome francês (Aix-la-Chapelle) era a capital do Império Carlovíngío.

20 Por físicos eram designados, naquele tempo, os médicos.

21 Note o leitor que esta fala de Astrida esta em forma de verso, e, como tal, pode ser escrita e lida. Aliás, por um verso se inicia este conto.

22 A mudança de tratamento aqui se explica: é que Carlos Magno já não se dirigia somente à esposa, mas a todos os circunstantes.

23 Estrofe da Carmen Secular, de Horácio, a que se refere a nota da página 7.

24 O apogeu da grandeza romana, ensinam os modernos tratadistas, se deve fixar no período da segunda guerra púnica. Daí por diante veio o declínio das liberdades, e, em conseqüência, a ruína da Republica. O Império sob Augusto já apresentava sinais inequívocos de decadência.

25 Designamos por polis a cidade que gozava de autonomia política; era sede de um Estado. Nosso idioma não possui uma palavra especial para esse caso. Note o leitor que o francês tem ville para o sentido genérico, e cite para indicar a cidade-estado.

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26 Nas biografias de Rômulo e de outros varões romanos, o paciente historiador beócio resumiu as narrativas de Antígono, de Valério de Âncio e de outros mais, com o que nos prestou bom serviço, pois os autores romanos da época imperial passam muito por alto sobre a fase da Realeza.

27 Gemina tornou-se um nome querido em Roma. Assim se chamou uma ilustre dama patrícia que, no século IV, cultivou a Filosofia, estudou na Escola de Atenas e deixou obras reveladoras de suas tendências iteoplatônicas.

28 "Dá duas vezes quem dá logo", velho brocardo latino, prova de que a intencional protelação do prometido é mal que a sabedoria popular impugna desde a mais remota antigüidade.

29 Assim eram denominados os mais idosos próceres da cidade, que formaram o Senado Romano, cuja autoridade, como se sabe, foi decisiva nos primeiros séculos da História, até o advento das tiranias e do poder imperial que o degradaram.

30 Usando, em uma saudação a Quinto Ênio, da curiosa aliteração "O Tite Taci, tute tibí tanto tulisti!" — Cícero, apesar de sua notória austeridade, parece ter parodiado o primeiro rei romano.

31 Feciais eram os sacerdotes que zelavam pelas boas relações do Estado com os povos vizinhos; sua função corresponde a uma diplomacia incipiente. Augures eram os que consultavam o futuro, mediante Cerimônias religiosas, sacrifícios de animais, ou observação de fenômenos da natureza.

32 "Onde tu fores Gaio, serei eu a Gaia" — esta resposta de Gemina veio a ser a fórmula de assentimento da noiva, nas cerimônias nupciais futuras.

33 "Abrindo com os brados o manto que vestia, e tornando a cobrir-se, Rômulo deu o sinal para o momento" — diz Plutarco. (Rómulo XIV) — De onde se conclui que tudo estava, combinado; Tito Tácio foi iludido em sua boa-fé.

34 Valário de Ancio afirma terem sido 727 as donzelas raptadas, número este que outros autores julgam exagerado.

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35 Por muito tempo vigorou o costume de apoderar-se o jovem esposo da esposa logo após a cerimônia nupcial, o que de alguma forma se considera uma reminiscência do rapto.

36 "Dia que deve ser marcado por uma pedrinha branca", antiga expressão latina que significa uma data digna de eterna e agradável lembrança.

37 A primeira e principal ponte lançada sobre o Tibre, e que, por isso mesmo, assumiu grande importância para o progresso de Roma e cidades próximas, só foi reconstruída e tem o nome de "Ponte Sublícia" sob o reinado de Anco Márcio (sóc. VII a.C). Convém, contudo, designá-la desde logo assim para facilitar a narrativa.

38 Plutarco afirma que Rômulo tomou por esposa esta Hercília, e dela teve prole. Não cita, porém, as fontes dessa informação, que, se verdadeira, não deixaria de ser repetida por outros historiadores.

39 Refere-se o texto ao imperador Diocleciano, que, no ano 305 de nossa era renunciou ao império para viver em sua quinta de Salona, na Dalmácia, onde nascera e passara sua meninice.

40 Agora era a praça pública de Atenas onde se reunia a Eclésia, ou a Assembléia dos cidadãos que tinham direito de voto. Pentélico era a montanha de onde se retirava o mais belo mármore da Grécia. Hécate nome grego da deusa Diana.

41 Pireu era o porto de Atenas, abrigo e ponto de partida das galeras.

42 Cerâmica era a mais notável rua de Atenas, onde funcionavam famosas oficinas de ceramistas.

43 Palácio onde residiam os arcontes e os hospedes ilustres do Estado.

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44 Confirmam os historiadores que em Trezene e Esparta havia muito mais respeito e consideração pela velhice do que em Atenas, onde os Jovens, por via de regra, descuravam desse dever de tão alta significação humana e moral.

45 Para decidir, dividia-se a Assembléia em demos ou grupos de 500 cidadãos.

46 As sentenças oraculares eram dadas em forma de dísticos, em hexametroa. Tentou-se uma tradução em decassílabos, como foi possível.

47 Evoé era o grito de alegria dos gregos. Degenerou entre nós em exclamação carnavalesca...

48 "Basileu" era o que presidia as reuniões do arcontado.

49 Estádio, medida de comprimento da antiga Grécia; eqüivalia, aproximadamente, a 177 metros.

50 Convém advertir que Tirteu, sendo ateniense, falava o dialeto jônico; mas compôs aquelas famosas estrofes no dialeto da Lacônia, o dórico, visto que se destinava a espartanos. O jônico era mais elegante, porém o dórico mais severo e majestoso.

51 O "talento" não era uma moeda, mas uma quantia, correspondente a seis mil dracmas, moeda grega de prata, cujo valor real devia ultrapassar de pouco o nosso cruzeiro. Cinco talentos eram, naquele tempo, uma soma considerável.

52 Comandante de trirreme.

53 O episódio está referido em CHAVANNER, LEmpire de Tcheou e em MASPERO, Histoire du Monde, rol. IV, La Ohine Antique, cap. III.

54 Zaratustra (on Zoroastro) foi o lendário profeta que, segundo supunham os gregos, por volta do século VII a.C. ensinou aos Medos e outros povos iranianos a doutrina do

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Masdeísmo, religião que se funda na existência de duas divindades: a do bem (Ormuzde) e a do mal (Arimã). "Assim falou Zaratustra" (frase que precedia os ensinamentos do livro sagrado, o Zend-Avesta, — é o título de famoso livro do filósofo alemão Nietzche (1844-1900), obra escrita sob a forma de aforismos, sugerindo o fortalecimento do homem pelo culto exagerado da vontade e do individualismo.

55 Do poema dramático de Calidasa forarn totalmente omitidos Vatravati, governante do palácio de Ducimanto, quatro servitats do mesmo palácio; a deusa Aditi e seu esposo Casiapá; Parrataí, chanceler do reino; Badrasená, chefe dos arqueiros do rei; Dasarna, religioso. De alguns brâmanes e arqueiros não foi preciso, sequer, mencionar os nomes. A forma do conto permitiu reduzir os sete atos e as cinqüenta cenas da Sacuntala aos dezenove capítulos que se vão ler.

56 Não se sabe se Calidasa viveu no V ou VI século de nossa era.

57 O cuco, pássaro cujo dolente canto os relojoeiros tão rudemente deturparam, tornando-o rápido em demasia.

58 Vinte anos esperou Penélope por Ulisses; mas não tinha sido repudiada por ele. Alceste, a esposa de Admeto, esta, sim! — atingiu ao máximo a dedicação conjugal, dando a vida para salvar a do esposo.

59 O rio Indo, cujas águas descem do Pendjab para o sul.

60 Nemrod foi um rei lendário da Caldéia, famoso como caçador inveterado. Cita-o a Escritura como "o grande caçador diante do Eterno".

61 Semideusa, protetora das donzelas, da maternidade e da Esperança.

62 O nome da môga indiana significa precisamente "a que diz lindas palavras".

63 Acerca do canto do coquilo v. nota apensa ao prefácio.

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64 Madaivo não era um jogral, ou histrião, mas, sim, um confidente do rei, como se Terá. Daí sua linguagem, às vezes um tanto desrespeitosa mas sempre reveladora do amigo que bem quer servir.

65 "Letitlas ad ille Deos qui novit agrestes", (Virgílio)

66 A recordação de frases ouvidas, ou de cenas ocorridas em uma vida anterior tem sido objeto de imaginosas produções poéticas de várias épocas e de várias literaturas. Em seu livro Sete Lendas de Amor, a propósito da poesia "Devaneio, talvez..." (pág. 42) — já o autor destes contos teceu comentários sobre o interessante tema.

67 Compare-se esta velhíssima história do anel de Ducimanto, com a que os firegos contavam, acerca do famoso anel de Polícrato, tirano de Samos.

68 Recorde-se aqui o belo verso de Virgílio: "O passi graviora dabit Deus his quoque finem!..." Eneida C., V.

69 A passagem de longo período (anos ou séculos) em poucos dias, senão momentos, tem sido objeto de muitas histórias. O grego Luciano já explorou o tema, também utilizado pelo clássico Manuel Bernardes na Nova Floresta, e pelo americano Washington Irving no Hip Van Winkle.

70 Alguns tradutores preferem a forma antiga "Sete Ilhas do Mundo"; mas é sabido que nos livros religiosos da antigüidade a palavra "ilhas" não se restringia ao sentido estritamente geográfico do termo, caso em que o poeta não diria "sete". Não se justifica tal limitação, uma vez que Calidasa quer se referir ao mundo inteiro.