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Dez Mulheres Muitas Vidas Scheilla Gumes e Adenor Gondim [A CAPA DO LIVRO É COMPOSTA POR ESSAS INFORMAÇÕES ACIMA, IMPRESSAS SOBRE A IMAGEM DE UMA COPA DE ÁRVORE, SEM FOLHAS, INVERTIDA]

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Dez Mulheres Muitas Vidas

Scheilla Gumes e Adenor Gondim

[A CAPA DO LIVRO É COMPOSTA POR ESSAS INFORMAÇÕES ACIMA,

IMPRESSAS SOBRE A IMAGEM DE UMA COPA DE ÁRVORE, SEM FOLHAS,

INVERTIDA]

Salvador, dezembro 2013.

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Orelhas:

Orelha frente:

Em terras mato-grossenses a presença da Comissão Pastoral da Terra é enfeitada pela graça e garra dos

grupos e associações de mulheres camponesas. São vozes femininas que se elevam para convocar,

anunciar boas notícias, incentivar a organização e formação.

Essas mulheres da terra, das florestas e das águas desafiam inúmeras dificuldades para superar séculos

de uma cultura patriarcal e excludente e instaurar novas relações de gênero. São vozes proféticas e de

resistência popular.

São as Miguelinas, Ivanildes, Raimundas, Ivanis, Leonoras, Lindauras, Dorcinas, Veras, Germanas,

Camilas. Mulheres que aprenderam a não ter medo de ser mulheres. Que assumem seu protagonismo e

conquistam autonomia econômica, política e social.

Elas, empoderadas, refletem e promovem as transformações necessárias para a construção de uma

sociedade mais justa e solidária.

Nossa gratidão, ternura infinita e profunda admiração.

Comissão Pastoral da Terra - Mato Grosso

Orelha verso: apresentação breve dos autores, com pequena foto.

Sou Scheilla. Nasci em Caetité, Bahia, em 1977. Escolhi o jornalismo para profissão porque queria contar histórias que pudessem inspirar as pessoas. Tento fazer isso escrevendo, filmando, pesquisando, inventando projetos e falando. O encontro com cada um desses mundos que se mostram pra mim, é o que me deixa viver mais.

Sou Adenor. Comecei a trabalhar como fotógrafo com meu pai, em Rui Barbosa, interior da Bahia, onde nasci, em 1950. Em 1965 fui para Itabuna. Aí vivi, fotografando 3x4 até 1972, quando fui para Salvador e me formei em Biologia. Desde a década de 80 fotografo o jeito de corpo e da alma do povo da Bahia, suas festas profanas e religiosas.

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“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim:

esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e

depois desinquieta. O que ela quer da gente é

coragem”.

Guimarães Rosa

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FICHA TÉCNICA:

Título: Dez Mulheres Muitas Vidas

Autores: Scheilla Gumes e Adenor Gondim

Editora: CEBI – Centro de Estudos Bíblicos

Este livro foi financiado com recursos de BFDW - Pão para o Mundo da CPT

Realização: BFDW, ELO - Ligação e Organização, Comissão Pastoral da Terra

Capa, projeto gráfico e editoração: Márcia Cruz e Ricardo Martins

Edição: Scheilla Gumes

Revisão: Paula Rios

Catalogação na publicação: Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184

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Sumário

Sumário..................................................................................................................................................5

Apresentações........................................................................................................................................6

SUPERAÇÃO Miguelina de Oliveira Campos.........................................................................................14

DIÁLOGO Maria Ivanildes Lima Santos.................................................................................................20

UNIÃO Raimunda Alves Lima................................................................................................................25

JUSTIÇA Ivani Vitanardi........................................................................................................................29

LEVEZA Leonora Brunetto.....................................................................................................................35

DETERMINAÇÃO Lindaura Zumack.......................................................................................................42

COMPROMISSO Dorcina Rosa de Vieira Cruz.......................................................................................48

SOLIDARIEDADE Vera Maria Lobo........................................................................................................52

ESPERANÇA Germana Benedita da Silva...............................................................................................58

DESEJO Camila Sales da Silva................................................................................................................63

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ApresentaçõesOs perfis dessas mulheres pretendem, em conjunto, ofertar ao leitor um pouco da história de

luta e permanência das camponesas no meio rural mato-grossense. Todas elas fazem parte da

Comissão Pastoral da Terra (CPT), no Mato Grosso, Brasil.

A ideia de realizar este livro partiu do contato de aproximadamente oito anos do ELO Ligação

e Organização com a Comissão Pastoral da Terra no Mato Grosso, em função do

acompanhamento ao projeto que esta desenvolve e que é apoiado pela agência de cooperação

internacional alemã, Brot fuer die Welt (em português, Pão para o Mundo - PPM).

Nas assembleias, nas reuniões do Conselho Regional da CPT, nas visitas aos trabalhos de

campo, foi se consolidando a certeza de que as mulheres têm um papel preponderante na

busca pela garantia do direito à terra para nela viver e produzir. Paralelo a essa percepção, em

função da política de promoção da equidade de gênero adotada por Pão para o Mundo, foi

incentivado esse debate no interior da Pastoral.

Mas essa proposta só faria sentido se as mulheres, protagonistas dessa história,

compartilhassem conosco a compreensão sobre a importância do registro de suas vidas. Como

fazer isto? Tivemos a sorte de que o processo de organização das mulheres da CPT tenha

levado à realização de um primeiro encontro específico destas, nos dias 02 e 03 de maio de

2013, oportunidade em que a ideia foi apresentada e discutida. A receptividade foi imediata.

Como então poderíamos por em prática a iniciativa? Em grupos organizados por microrregião

(Araguaia, Baixada Cuiabana, Médio Norte, Norte), as próprias mulheres definiram os

critérios e escolheram aquelas que as representariam, disponibilizando-se a compartilhar suas

histórias, contar suas vidas e, por meio destas, a vida de todas aquelas companheiras que no

seu cotidiano têm dito não ao latifúndio, a exploração do trabalho, a um modelo de

desenvolvimento que exclui a maioria da população do acesso a condições dignas de vida e

que compromete o futuro de nossa sociedade.

As mulheres, por sua vez, ao tempo em que representam tantas outras, são únicas. Com suas

diferentes vivências, demonstram os possíveis caminhos de superação a serem trilhados.

Cada região do estado tem suas peculiaridades e, objetivamente, percursos diferenciados de

luta. Esses aspectos também são notados.

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O produto que temos é, pois, o resultado de um esforço coletivo. De PPM, que partilhou

conosco do quão fundamental é esse registro para a história da resistência na terra, que tanto

tem apoiado nestes mais de 50 anos de atuação, e se dispôs a financiar os custos dessa

empreitada. Da CPT Nacional e regional Mato Grosso que desde o início compartilhou do

nosso desejo de retratar essas histórias e que se colocou a disposição para todas as

necessidades decorrentes. Do Cebi, que, conhecendo, o projeto do livro, se interessou por

editá-lo. De Scheila e Adenor, que fizeram com que a ideia se materializasse, embarcando

nesta viagem com enorme sensibilidade e respeito. De todas as entrevistadas, suas famílias e

comunidades, que abriram suas casas, seu cotidiano. E, de todas as mulheres da CPT Mato

Grosso, que, com sua lida diária, têm contribuído para construir uma sociedade justa.

A leitura não tem ordem determinada. Ler as histórias na sequência em que se apresentam é

percorrer uma espiral de sentimentos e soluções palpáveis para nosso país.

Seguros de que aqui vai algo bastante inspirador para o surgimento de muitas outras histórias,

desejamos boa leitura.

Maria de Fátima Pereira do Nascimento

ELO Ligação e Organização

Mathias Fernsebner

Brot fuer die Welt

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árvores, pedras, pássaros e sustos: mulheres!

Palavra dentro da qual estou a milhões

de anos é árvore.

Pedra também.

Eu tenho precedências para pedra.

Pássaro também.

Não posso ver nenhuma dessas palavras que

não leve um susto...

(Manoel de Barros)

Estas mulheres feitas de palavras são árvores!

Frondosas, antigas, acolhedoras e generosas de dar a vida espalhando seus longos braços

como aconchego de ninhos de histórias pessoais e comunitárias. Elas acolhem pessoas e

gentes diferentes que na luta pela terra se fazem povo e encontram na sombra delas seu lugar

de organizar objetivos, redigir reivindicações e denúncias. Elas são sombra necessária no

árido centro-oeste de enfrentamento do latifúndio, do agronegócio, da lei injusta e da

violência dos matadores.

Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dorcina Vera Germana Camila

Estas mulheres feitas de palavras são pedras!

Força e firmeza. Pedras comprometidas com seu lugar. Pedras que marcam o lugar e a terra

conquistada com a permanência da luta e sua vontade de ficar. Mas também são pedras de

avoar, de se atirar, de tirar do lugar. Pedras em movimento, essas mulheres se “ajogam” na

luta do povo e daí tiram a força necessária para enfrentar os poderosos, liderar processos

difíceis, criar estratégias comunitárias e ficar.

Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dorcina Vera Germana Camila

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Estas mulheres feitas de palavras são pássaros!

Algumas vieram de longe, aves migratórias no centro-oeste brasileiro. Vindas de longe ou de

mais perto, contam a história da grande peregrinação que a luta pela terra desenha

reinventando o mapa do modo mais rude e mais difícil. Algumas vieram pra serem

missionárias e acabaram nascendo de novo no lugar e pertencendo a esta primeira geração

gerada na luta e no amor pela terra. Outras são de perto mesmo, mas tiveram que “avoar” dos

cenários sociais conhecidos e tradicionais para serem mulheres novas de relações de poder

novas.

Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dorcina Vera Germana Camila

Estas mulheres feitas de palavras são susto!

Estas mulheres são susto! Elas conseguem na prática exercitar toda a agenda do movimento

de mulheres e feministas, articulando o mundo da casa e o da luta, pensando o mundo do

trabalho e da casa como quem já sabe como é que se superam os machismos na casa, na rua,

nas organizações, na política. Dos biscoitos e costuras, às negociações e debates públicos...

nada é estranho a estas mulheres! Elas querem a casa, a família, o homem que amam, a

filharada e @s net@s... mas não querem só o que é delas porque já descobriram que a luta de

cada uma é a luta de todas. E assim elas vivem do que fazem e do que dizem. Elas vivem de

amor porque é de amor que a luta é feita.

Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dorcina Vera Germana Camila

Estas mulheres feitas de palavras!

Este livro junta no texto mulheres que a vida juntou no centro-oeste brasileiro. Mulheres que

ensinam as palavras necessárias para a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e outras

organizações que encontram na história de vida dessas mulheres os significados e as

motivações de um projeto popular para o Brasil.

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Miguelina Ivanildes Raimunda Ivani Leonora Lindaura Dorcina Vera Germana Camila

... essas e tantas outras na luta pela terra.

Nancy Cardoso Pereira

Teóloga Metodista

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Camila, Irmã Vera, Germana, Miguelina, Ivani, Irmã Leonora, Dorcina, Lindaura, Ivanildes,

Raimunda. Não encontrei esses nomes em uma lista de telefones, de desaparecidos ou da

bolsa família.

Eu as fotografei e ouvi a historia de cada uma. Historias de quem busca um lugar ao sol,

começando dentro de casa ou da comunidade, acrescentando ao papel de apenas “dona de

casa” a criação de associações, grupos de trabalhos, participações em movimentos sociais de

luta pela terra e sindicatos.

Buscam justiça quando a omissão é regra e contribuem para um velho-novo momento do

campo. Tempo da luta pelas terras devolutas que pertencem ao povo brasileiro. Onde florestas

são dizimadas pela soja, pelo milho, pelo boi, marginalizando, à força, os pequenos

produtores que alimentam o Brasil e superpovoando as periferias das grandes cidades.

Entre essas mulheres, duas religiosas cujo foco da vida e do trabalho não é exclusivamente

um lugar no céu. Mulheres que não usam o nome de Deus em vão e pelas suas ações colocam

a própria vida em jogo. Brasileiras em processo de busca do que é ser e de seus direitos na

terra. Onde a lei e a vida pouco importam para uns, mas é de vital importância para a própria

nacionalidade.

Adenor Gondim

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Ouvir vozes por tantas vezes silenciadas enche os ouvidos da certeza de que não estamos

apenas começando. As trilhas estão abertas. Há que se adentrar, tomar posse do caminho.

Não há desânimo nas páginas que seguem. Esse, com certeza, não é ingrediente usado por

essas brasileiras nas suas receitas de fazer cidadania. Sensibilidade, paciência, confiança,

certamente, sim.

O Brasil aqui visitado é sombrio quando o assunto são os direitos do povo. Ainda assim, elas

se colocam na linha de frente e – sem metáforas – mostram a cara, em busca do adversário

que quer se ocultar, que se faz invisível, doce cordeiro, mas avança feroz, hostil, destruidor.

O povo brasileiro tem face, braços fortes, muitos nomes. Está aprendendo a ter voz, a dizer de

si, do seu lugar. Não quer fazer parte do inalcançável projeto de desenvolvimento que lhes foi

imposto e que é sempre do outro.

Elas, que representam um tanto significativo do Brasil, querem apenas o que é seu.

Scheilla GumesJornalista

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NESSA PÁGINA TEM O DESENHO DE UM MAPA DO MATO GROSSO COM O

ITINERÁRIO DA VIAGEM. FORAM PERCORRIDAS ONZE LOCALIDADES,

POR MEIO DE CARRO, ÔNIBUS E AVIÃO.

A PARTIR DE AGORA CADA CAPÍTULO É UM PERFIL OU HISTÓRIA. A

PÁGINA QUE ABRE O CAPÍTULO, ASSIM COMO A CAPA DO LIVRO, É

FEITA COM COPAS DE ÁRVORES DE CABEÇA PARA BAIXO. NO VERSO

DESSA PÁGINA DE ABERTURA DO CAPÍTULO, TEM SEMPRE UMA FOTO

DA MULHER EM PRIMEIRO PLANO. PARA CADA MULHER ESCOLHI UMA

PALAVRA QUE EXPRESSA O QUE ELA ME TRANSMITIU COM MAIOR

FORÇA EM SUA FALA. A SINTONIA COM OS ARTISTAS GRÁFICOS FOI

GRANDE. EU SINTO QUE CADA IMAGEM ESCOLHIDA EXPRESSA O

SENTIMENTO DA PALAVRA QUE EU ESCOLHI.

ANTES DO TÍTULO DO CAPÍTULO, QUE É ESSA PALAVRA QUE EU TE

FALEI, TEM UM TRECHINHO DA FALA DELAS, CHAMA-SE OLHO.

VAMOS LÁ?

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SUPERAÇÃOMiguelina de Oliveira CamposOlho – “quando a mulher não ocupa o seu lugar fica um lado pendente”

Miguelina de Oliveira Campos já foi uma mulher tímida. Esse jeito fazia com que ela optasse,

quase sempre, por estar longe de outras pessoas. Retraída, pouco falava. Até que descobriu

todo o seu potencial e resolveu encarar a missão que o mundo lhe reservara.

Ela soma dois títulos honrosos: é a primeira mulher na região a presidir uma Associação de

Produtores Rurais e, também, um Sindicato. Para exercer essas funções enfrentou todo tipo de

preconceito.

Tudo começou nas reuniões da igrejinha da comunidade, que é um lugar de referência muito

forte no Sítio São Manuel do Pari. Foi dali que surgiram a coragem e outras ferramentas

necessárias para as mulheres se organizarem, se reunirem. Elas viram que a participação ativa

da mulher na vida comunitária traz muitas melhorias para todos.

Formaram um grupo de mulheres, foram se fortalecendo e passaram a participar das reuniões

da Associação dos Pequenos Produtores Rurais de Aguaçu Monjolo e de São Manuel do Pari.

Começaram a expressar suas opiniões e assumir responsabilidades. Quando encerrou o

mandato em vigência, Miguelina foi indicada para assumir a presidência da Associação.

Junto com ela, outras mulheres compuseram a nova diretoria. Fizeram rifa, pagaram todas as

multas e dívidas, colocaram a documentação em dia e se tornaram lideranças de uma das duas

únicas associações de produtores rurais, entre as 22 do município, aptas a concorrer a recursos

públicos.

Elas queriam acessar o Programa Nacional de Merenda Escolar (PNAE). Levantaram a

produção existente e conseguiram ajuda de um técnico para fazer o projeto. São dez

produtoras que participam regularmente.

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[FOTO DE MIGUELINA JUNTO AO PEQUENO ENGENHO – MOEDOR DE CANA]

Nas suas andanças, participando de encontros e reuniões, ela ouviu falar de apoio a projetos

para a formação de mulheres. “Muitas vezes, a gente não sabia dos nossos direitos”, diz

Miguelina. Com o auxílio dos assessores da CPT, conseguiram apoio da SAAP/FASE.

Realizaram oficinas, intercâmbio e participaram de reuniões em outros municípios.

Com o terceiro projeto, conquistaram a estrutura para qualificar a produção da rapadura. A

maior parte das famílias da comunidade produzia a rapadura isoladamente. Segundo

Miguelina, ficava cada uma no seu cantinho, sem conseguir avançar. Com um engenho maior

e mais adequado, agora produzem e comercializam, coletivamente, a produção.

Nesse ritmo, Miguelina tornou-se presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras

Rurais de Nossa Senhora do Livramento. Após o mandato como presidente, continua na

diretoria, somando 12 anos de dedicação à luta pela terra no estado do Mato Grosso.

Depois que eu aprendi a falar um pouco, perdi a vergonha de pedir. Pra mim eu não peço não, mas para o bem de todos da comunidade. Com esses projetos, hoje têm várias mulheres aí que melhoraram sua autoestima e viram que seu papel não é somente ficar atrás do fogão. Viram que podiam colaborar para melhorar a renda da família. Eu mesma, hoje, vejo o quanto sou importante na minha casa. Porque a família é um coletivo e quando a mulher não ocupa o seu lugar fica um lado pendente. Porque cada um tem a sua função. Cada qual na família tem o seu trabalho. Aqui, nós somos agricultores e esse trabalho da roça, se você não fizer fica faltando. O período do sindicato me fez enxergar que o fato de a gente estar na zona rural não nos torna diferentes das outras pessoas. Não temos condição de ter uma formação com graus elevados, mas a gente sabe muitas outras coisas. Sabemos o que a gente precisa. Aprendemos a ir a órgãos do governo, solicitar coisas. O sindicato me ajudou muito. A gente segue aprendendo. Nunca parei de aprender.

Ganhar coragem é também aprender a realizar desejos que parecem sonhos distantes e

inalcançáveis. Por isso, Miguelina liderou uma mobilização e conseguiu o transporte para que

27 mulheres participassem da Marcha da Jornada de Luta das Margaridas, em 2011, em

Brasília. “A gente só tinha o transporte mesmo. Fizemos as matulas pra ir. As farofas de

frango e as comidas que não estragam rápido. Quando terminou a marcha, a presidente Dilma

foi aos barracos falar com as mulheres. É inesquecível”, diz.

Não faltou fôlego para enfrentar todas as etapas de superação pessoal. Mas isso não era o

bastante. Ela precisou encarar os limites historicamente colocados na sociedade para as 15

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mulheres, principalmente, para a mulher do campo. Até bem pouco tempo, as mulheres

elegantes e vitoriosas eram as caladas, de olhos baixos, que sabiam se antecipar em atender os

desejos dos homens e andar um passo atrás, em sinal de respeito.

Eu sofri muito preconceito, mas me deu mais força para lutar. Muitos homens falavam que Miro (o marido) era bobo, porque me deixava sair. Como se alguma mulher fosse propriedade do homem. Falavam que eu ficava por aí batendo perna e ele aqui dentro de casa. Eu ficava triste porque eu estava lutando por melhorias até para esse tipo de homem que falava isso. E para nós o movimento dos homens é conjunto. As mulheres deixam os homens participarem. Mas só vão os homens que não têm preconceito, que entendem que o movimento é deles também. Que entendem que as mulheres não estão lutando pra elas mesmas, mas para toda a família. Primeiro, a mística era com homens e mulheres. Depois, decidimos ter um momento só de mulheres, para ficarmos mais à vontade.

Produção coletiva: em casa e na comunidade

Por serem uma propriedade familiar, todos da casa trabalham no serviço. Miguelina é um

braço forte em todas as etapas da produção. O forte da propriedade é a banana, comercializada

in natura e também como doce.

Na seca, quando as plantas sofrem, é época de aproveitar a cana. A rapadura, agora feita

coletivamente no Engenho da Associação, envolve também os homens. E os doces só as

mulheres. Elas fazem, principalmente, o furrundu: tiram o melado da cana e misturam com

alguma fruta como coco, banana, mamão ou abóbora.

As feiras são um importante elemento de sustentação do grupo das mulheres. Além de vender

os doces e artesanatos e conseguir uma renda que vem direto para as suas mãos, a feira lhes

ajuda a ganhar a confiança dos maridos. Por ser também um espaço de trocas solidárias, elas

voltam para casa trazendo o que estava faltando no depósito.

Alegria e gratidão

A família é a bússola que lhe traz segurança e conforto. Uma alegria especial lhe toma o

semblante ao falar deles, com quem divide o lar no momento, mas também do outro filho, da

filha e do neto.

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Mesmo conhecendo outras cidades, grandes e pequenas, a casa, no campo, onde vive com o

marido e o filho mais novo, é o lugar para onde quer voltar a cada vez que cumpre os seus

deveres fora. Eles se veem como um grupo e tomam decisões juntos. “Se eu não estou, fica

faltando minha opinião, as coisas não andam”.

Sem que ela percebesse, os seus desejos de mãe também foram se realizando.

Quando eu ia para a Igreja, eu pensava que meus filhos homens, quando eles crescessem e se casassem, se eles constituíssem família, que eles considerassem as suas mulheres. Porque primeiro, o homem não vive sem a mulher. E como eu quero ser bem tratada pelo meu esposo eu penso que eles devem tratar bem suas esposas. Quero também que eles me vejam como uma lutadora, defensora dos mais necessitados. Um dia, eu nem sabia que eles prestavam atenção no que eu fazia, aí, teve uma reunião de jovens e eu ouvi o meu guri falando pros colegas que ele considerava a mãe dele uma grande guerreira, por conta de tudo o que eu tinha passado de tantos preconceitos por estar à frente do sindicato e que considerava o pai dele como um grande ancião porque, pra ele, nossa vida é muito controlada. Porque ele vê que a gente troca tanta ideia e não precisa ter dinheiro, esse tipo de riqueza pra isso.

No Sítio São Manuel do Pari, vive uma grande família unida. E é em família que os

momentos mais especiais de celebrar a forte amizade, descontrair e confraternizar acontecem:

as festas. As festas são dedicadas aos santos de devoção. São um espaço, uma pausa para,

com alegria, agradecer pelas conquistas. Miguelina e suas irmãs Maria Lina e Maria Helena

herdaram dos pais o carinho que dedicam a Santo Antônio, que deu nome à Paróquia e a São

Gonçalo o mais adorado e presenteado.

Para ele, fazem uma festa grande. Todos dançam e cantam as toadas do cururu, no ritmo da

viola de coxo, do ganzá e do sapateado. O siriri também segue o som da viola, mas ao invés

do ganzá é acompanhado por um tambor de lata, “embrulhada” com um coro. “Aí é cantar,

tocar e bater o pé no chão”, dizem por ali.

Totalmente harmonizada com o marido Miro, ainda revira os olhos quando se lembra da

primeira vez que o viu. É para ir a festas com ele que gosta de se arrumar. “Quando a gente

tem uma vida controlada, as festas só têm gosto se for o casal. Só têm valor se a gente estiver

junto um com o outro. Já bastam esses trabalhos em que a gente passa tempos fora e não dá

mais pra ficar todo tempo junto”, diz ela.

O chão é a vida – terras de sesmarias

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“Depois que eu fui para o Sindicato, eu já enfrentei tanta coisa que eu nem acredito que sou

eu”. O equilíbrio entre o trabalho exaustivo e as atividades com a família e amigos é o

combustível extra que Miguelina encontra para enfrentar os desafios que tem pela frente.

No município de Livramento, a zona rural é composta por 75% da população. A Comunidade

de Santo Antônio, Sítio São Manuel do Pari, onde Miguelina vive há mais de 40 anos, é

formada por 15 famílias. Faz parte de uma das 106 comunidades de famílias que vivem em

terras tradicionais ou de Sesmarias na região. Considera como principal deles uma maior

organização para regularizar as áreas que ainda estão em conflito com o latifúndio. Não há

conflito armado, mas há uma desigual disputa de forças.

Foi feita uma tentativa de regularização fundiária (Projeto Varredura/Governo do Estado). O

trabalho não foi concluído. O Governo do Estado requereu 22 comunidades tradicionais para

fazer assentamento. Dentro disso, vieram os benefícios da construção de casa, mas o terreno

não foi loteado.

Os agricultores não sabem explicar onde é o lote deles e continuam sem documentação.

Antes, mesmo no nome de quem morreu há 80 anos, a família tinha o documento. E agora, o

Estado requereu e disse que é dele.

Um passo importante para a emancipação é o entendimento de que os fazendeiros também

não têm documento de posse das terras. Eles querem ganhar na força, com violência física ou

impedindo as pessoas de trabalhar.

Os fazendeiros que se acham donos não vão largar tão fácil. E nós não vamos largar tão fácil. Aqui é o lugar onde a gente vive. A gente come do nosso suor, do que a gente planta. E eles, muitas vezes, nem estão por aí. Estão longe, mas de olho nessas áreas. Os pequenos têm direito ao lugar em que eles vivem. Minha vida está aqui. Se eu perder isso aqui minha vida perde o sentido. Minha raiz, minha sobrevivência tá aqui.

A mulher tímida cedeu espaço para outra: consciente dos seus propósitos e possibilidades,

assertiva, carinhosa.

BOX 1: Projeto Varredura

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O Projeto Regularização Fundiária "Varredura" identifica, demarca e promove a regularização de

terras públicas do Estado. O Projeto tem se concentrado, prioritariamente, na região conhecida como

Baixada Cuiabana, envolvendo nove municípios (Acorizal, Barão de Melgaço, Chapada dos

Guimarães, Cuiabá, Jangada, Nossa Senhora do Livramento, Poconé, Rosário Oeste, Santo Antônio de

Leveger) e os municípios de Alto Paraguai, Arenápolis e Jaciara.

A Baixada Cuiabana é uma região densamente povoada por comunidades tradicionais, onde

as posses passam de geração em geração, com atividade agrícola voltada à subsistência do

produtor familiar e atendimento ao mercado regional com destaque na produção de farinha de

mandioca e pecuária de corte.

BOX 2 –

Cururu e Siriri são duas manifestações folclóricas da Região Centro-Oeste brasileira. Fazem parte dos festejos religiosos nas comunidades rurais e outras comemorações como casamentos e batizados

Câmara Cascudo, um importante folclorista brasileiro, afirma que o Cururu acontece como um peça de teatro, onde há momentos corretos para a apresentação de rezas e ladainhas. No Cururu, a música acompanha as orações, e, no Siriri, a música marca a dança.

Nas festas religiosas, o Siriri acontece após o Cururu. É uma dança realizada aos pares, e os passos executados pelos dançarinos são chamados de fornadas. Os homens tocam e puxam versos entoando a primeira parte da estrofe e o último verso cantado pelos outros participantes. As letras das músicas falam das coisas da vida de forma simples, alegre e triste. A coreografia da dança transmite o respeito e o culto à amizade.

Na coreografia básica da dança, as mulheres mexem as longas e coloridas saias com estampas florais e batem os pés descalços no chão, um ritual indígena que serve para afastar os maus espíritos. Os homens acompanham a toada e os passos com palmas e pisadas fortes. Usam sapatos porque fazem uma espécie de sapateado. O traje típico para os homens é uma calça mais folgada, camisa xadrez ou lisa, faixa de peão listrada, botina, chapéu de palha, faca na bainha, ajustada sob a faixa nas costas.

Há várias formas de se dançar o Siriri. No Siriri de Roda, os dançarinos tocam as mãos espalmadas do parceiro da esquerda e da direita, com movimentos rápidos. No Siriri de Fileira, as mulheres ficam à frente dos homens, e ambos batem palmas.

Fonte: http://www.marcosgeograficos.com.br/pdf/html.php?id=86

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DIÁLOGOMaria Ivanildes Lima SantosOlho – “nós não vamos matar ela agora porque ela está com as crianças”.

Sete filhos e doze netos. Longa história vivida durante os seus 57 anos. Sempre na terra, no

manejo do gado. Essas são marcas importantes na trajetória dessa mulher que não perde o

ânimo diante das dificuldades. Seu lema é levar a vida.

Ivanildes é mato-grossense nascida no Largo Grande, uma comunidade em Santa Terezinha.

Veio com os pais e de canoa pelo Rio Araguaia, para Porto Alegre do Norte, na época

chamada Beira Rio. Depois, foram até Canabrava do Norte.

Quando chegaram ali, não existiam estradas e nem pontes. Usavam canoa e andavam a pé.

Conviveu com muito mato, índios e onça. Ainda se recorda de algumas famílias que

chegaram depois: a família do Elias Bento, a de Jacobão, depois chegaram os Martins. E

desses, o Joaquim tornou-se seu marido e pai dos seus sete filhos. Ivanildes que era Porto

Lima, pessou a se chamar Maria Ivanildes Lima Santos.

Ela é uma mulher extremamente concentrada. Essa concentração é uma mistura do jeito de ser

contido. Mas não pelo aspecto negativo. Contido porque voltado para o essencial. É rezadeira.

Tem muita fé e ligação intensa com São Gonçalo.

Durante o período escolar das crianças, Joaquim ficava mais tempo no sítio e Ivanildes ficava

com os meninos na sede do município – Canabrava do Norte –, para facilitar o acesso deles à

educação formal. Nesse período, ela frequentou os bancos escolares e aprendeu a ler e

escrever. Nos finais de semana e nas férias, ficavam todos no sítio.

A área onde está o sítio da família de Ivanildes – Setor Jandaia, Sítio Santa Fé – e de seus

vizinhos foi invadida por um grupo anterior. Houve muito conflito. Quando tudo se aquietou,

eles compraram o lote das mãos de outro posseiro, como eles.

Era muito difícil porque isso aqui era tudo só capim. O fazendeiro dava só capim pro gado comer. A gente plantava mandioca o vento vinha e tirava tudo, derrubava

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tudo, arrancava porque não tinha mata pra poder aparar o vento. Banana, mandioca, tudo que nós plantávamos o vento carregava. Aí a gente foi deixando as árvores, ali pra frente, tem muita árvore, né, mas foi nós que deixamos. O fazendeiro continuou com o título e vendeu pra outro, aí esse outro fica toda vida ameaçando, dizendo que vai tomar. Quer que a gente pague outra vez. A nossa propriedade é pequenininha, não chega a 20 alqueires, mas tem várias que têm muitas, né? Aí fica difícil, esse que tem muitas, nem incomoda de lutar pra conseguir o título porque tem muita terra, assim fica mais folgado, sem pagar imposto. Agora, a gente que tem a terra pequeninha tem vontade.

Eles não têm o documento de propriedade da área e não tiveram nenhum benefício do INCRA

para se estabelecer. Ivanildes relata que o antigo fazendeiro, conhecido como Nelson, recebeu

do governo outras áreas em Alta Floresta (há 500 km dali), mas não foi feita a transferência

da propriedade.

A noção de passado, presente e futuro de Ivani está atrelada à família, à vida do marido, filhos

e netos. Sua esperança está neles. Falar deles lhe arranca um irresistível sorriso, que se abre

com os olhos, pondo forma a uma possível noção de infinito. Ela diz que as crianças salvaram

sua vida.

Grupo de mulheres – um ponto de virada

A misteriosa força das mulheres quando se tornam mães é manifestada na vida de Ivanildes.

Quando elas fundaram a Associação das Mulheres Sindicalizadas de Canabrava (AMAS), elas

tinham um lote:

Encostado no lote do sindicato, aí caminhava meio junto, toda vida o grupo de mulheres com o grupo do sindicato, sempre os maridos participavam do sindicato e as mulheres também. Construíram logo um barraquinho, mas caiu. Nós descuidamos daquele lote, aí uns rapazes falaram que iam ficar com nosso lote. Aí um dia eu levantei cedo, eu gosto de levantar cedo, nós marcamos pra ir capinar e os homens lá falaram que se nós fôssemos lá, nós não saíamos, mas eu achei que eles não tinham muita coragem de fazer isso, aí levantei cedo, chamei meus meninos, e eu fui. Peguei os três meninos e as enxadas e estava capinando e eles vieram e ficaram assim perto olhando e como eu cheguei primeiro que as outras e estava só eu mais os meninos, todos três pequenos eu fiquei com medo deles atacarem, eu falei: pai do céu, me proteja, ajuda que chega outras logo e aí eles ficaram ali e depois eu soube que eles falaram, eles até ficaram me olhando, depois, as mulheres foram chegando, as outras e eles saíram, aí eles falaram assim: nós não vamos matar ela agora porque ela está com as crianças.

Ivanildes foi convidada, em 2002, pela Comadre Joana, para participar de umas reuniões e

discutir os problemas. Junto com isso, o trabalho compartilhado em forma de mutirão para

ativar as hortas, fazer a farinhada.

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Ela logo aceitou o convite. Elas já tinham uma experiência anterior com o grupo das

comadres, que trabalhavam na roça mesmo. Plantavam feijão, gergelim, mandioca. Diz que

eram só as mais velhas e agora é um grupo de novas e velhas.

No tempo do grupo das comadres, ela morava na cidade. Vinha com os filhos pequenos a

cavalo. “Era menino na cela, dois, três na garupa, e assim mesmo eu vinha pra reunião.”

Eu participava do outro grupo e aí tornei participar desse também. É muito bom pra as mulheres terem uma visão mais clara das coisas. Naquele tempo as mulheres eram muito desinformadas, pisadas pelos maridos e pelos outros mesmo, tinham muita dificuldade de conseguir as coisas. Melhora tudo. Tanto a renda financeira como na mente, a sabedoria da gente melhorou muito. Se for uma mulher só fazer uma horta ela gasta muitos dias e se for um grupo, num dia, a gente faz uma horta e deixa prontinha. A gente já conseguiu cercar o quintal e no grupo cada um tem uma ideia. Às vezes, tem uma que não tem, a outra já chega e dá uma ideia e a gente melhora. Às vezes, uma coisa que está difícil, a outra já chega ali e tem uma visão mais clara, né?

As reuniões acontecem na segunda sexta-feira do mês. Elas se encontram durante a semana

para que todas possam ir. Existia um problema de transporte e agora elas pegam carona no

ônibus escolar.

Elas querem conseguir alguns cursos para as meninas mais novas. Segundo Ivanildes, as

“filhas das raízes” gostam de ficar no grupo. As raízes são Joana, Raimunda. Como as

meninas cresceram vendo as mães fazerem esse trabalho, elas querem continuar.

“A minha filha mesmo, a Gleudina, ela é secretária do grupo, ela se formou agora, fez

faculdade, se formou em Direitos Humanos, mas ela não quer sair da roça. Ela quer trabalhar

na roça. A gente sente muito orgulho daquelas que seguem”. O fato de se reunirem para

trabalhar em grupo e conversar traz resultados impressionantes.

Como mulher eu era muito desinformada, eu achava que a gente tinha que cuidar só da casa, dos filhos e nem bem saber cuidar deles eu não sabia, né? A pessoa que é criada muito na roça ela não tem muita educação pra falar com a criança, educar e com o marido também, aí com as reuniões a gente vai compreendendo, entendendo as coisas. Tem mais participação. Mas com o grupo de mulher foi que a gente foi tendo informação. Quando a gente está numa reunião, que eu vejo mulher falar que não se entendeu com o marido, que foi preciso separar, aquilo me dá uma tristeza, que não souberam controlar os dois. Porque o meu no começo também ele não dava muito apoio, mas aí a gente tem que saber conquistar a pessoa pra poder conviver. Graças a Deus hoje é o que vocês estão vendo, ele me ajuda pra eu poder ir e ele tem o maior interesse.

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Um resultado que, provavelmente, não está organizado em dados é, certamente, a diminuição

da violência doméstica e outras violências que assolam as populações nas regiões em que há

conflito agrário. É o ganho do diálogo como ferramenta para a dissolução de conflitos.

[FOTO DE IVANILDES JUNTO A UM FOGÃZINHO A LENHA, IMPROVISADO NO

MEIO DO TERREIRO, COM A SEGUINTE LEGENDA: CONFERINDO O FEIJÃO QUE

O FILHO PREPAROU ENQUANTO ELA ERA ENTREVISTADA]

A capacidade que elas ganharam de se posicionar, reivindicar seus direitos, pedir proteção,

denunciar injustiças foi também um canal para ganhar o respeito e a confiança dos maridos.

“No começo, eles sempre desconfiam quando a gente quer sair de casa. Não ajudam muito”.

No caso dela, foi um acontecimento muito triste que ajudou a chamar a atenção de Seu

Joaquim para o sentido dos grupos de mulheres nas comunidades. Era um momento em que a

polícia estava muito violenta em Canabrava do Norte. Logo que o município foi fundado. E

elas conseguiram interferir.

Um irmão do Joaquim foi massacrado, a polícia estava assim... muita revolta, né? Batia em todo mundo, qualquer coisinha eles batiam e meu cunhado viu. Ele tava na estrada de animal, viu e correu, não podia ter corrido né? Porque ele não devia nada, mas ele pegou e correu, aí quando ele correu eles atiraram nele porque disse que ele estava correndo que ele estava devendo alguma coisa. E estava errado em correr mesmo porque ele não devia nada, né? Pra que correr? Aí ficaram seguindo ele até que um dia pegaram ele e bateram demais, judiaram demais, ele chegou a vomitar sangue. Só porque correu. Aí, a família teve aquela dificuldade. Mas aí, nós mandamos uma carta naquele tempo até pro Dante de Oliveira, ele era deputado naquele tempo, nós mandamos uma carta em nome do grupo das comadres que socorressem o povo. Aí, o Dante mandou socorro. Foi o grupo das comadres que ajudou naquele tempo.

O nome do sítio, Santa Fé, foi sugerido por ela. E a fé é realmente presente na casa. Segundo

ela, toda família precisa ter um santo para festejar. Primeiro pensaram em festejar todos os

santos e rezar no 1º de novembro. Mas ela sofreu com uma alergia que quase ceifou sua vida

e, acredita que se livrou do problema graças a São Gonçalo.

Um dia Joaquim me levou daqui lá pra rua, cheguei lá fui pro balão de oxigênio, estava ruim demais, aí naquelas crises me dava vontade de apegar com São Gonçalo, meu pai tinha muito apego em São Gonçalo, aí parece que alguém me falava, se eu fizesse um voto de fazer a roda de São Gonçalo eu ia sarar, na mesma hora, eu pensava, quem? Não existe mais, eu vi, era pequena que eu vi, mas falavam

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que se eu não fizesse eu não sarava. Até que eu falei assim, eu vou fazer esse voto, eu vou caçar alguém que vai saber, aí tem um rapaz lá na rua que ele tira muita divindade, aí lembrei na ideia, falei: Edilson vai me ajudar. Aí fui lá e falei: Edilson, você vai me ajudar a fazer uma promessa com São Gonçalo, tenho que fazer uma roda de São Gonçalo, mas não sei mais quem canta. Aí ele falou: eu canto. Eu falei: quanto você cobra? Ele falou: não, não cobro é só você reunir o povo. Aí eu fiz e o povo gostou. Agora todo ano eu faço, a reza e a roda de São Gonçalo dia 1º de novembro. Todo mundo com as camisas de manga comprida, vestido largão.

Cura

Ivanildes tem o dom da cura. Além de ser a rezadeira do terço mais comprido da comunidade,

ela reza quebrante, arca caída, as costas de cobra e fabrica muitos remédios com as ervas

medicinais que cultiva em casa.

Ela tinha uma vizinha, a finada Dôca, que era rezadeira e que “passou” seus conhecimentos.

O que sabe sobre as ervas do cerrado deixou impressionada a Irmã Érica, que foi até

Cascalheira para ministrar um curso sobre remédios caseiros.

Irmã Érica falou assim: eu encabulei com essa Ivanildes, como que ela conhece tanta erva do cerrado, fiquei calada, mas pensei só comigo, você não me conhece, que eu fui criada no mato. Hoje em dia, o povo não aprende muito, né? Hoje em dia, é só estudo, estudo, estudo, o povo não tem muito prazo, né?

Hoje, ela acredita no diálogo. Em uma boa conversa para solucionar a maior parte dos

problemas. O jeito como rompeu o silêncio e aprendeu a se posicionar, falar, negociar,

reivindicar é comovente. Ivanildes é um exemplo revelador da superação de séculos de

silêncio imposto às mulheres. “Basta conversar, hoje em dia, só uma ligação, liga pra outra e

já consegue”.

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UNIÃORaimunda Alves LimaOlho – “Vou pagar só um mês pra ela, pra ela aprender a fazer o nome, pra quando ela for casar saber assinar”

Raimunda Alves Lima, mora há 20 anos no setor Maná, município de Canabrava. Tem 57

anos. Nasceu em Goiás, mas veio menina para São Félix do Araguaia, onde foi criada pela

mãe, que era agricultora. Os olhos rasgados não deixam passar despercebida a sua

descendência direta dos Carajás.

Casou-se, tiveram seis filhos. Foram para Canabrava para se livrar da malária que ameaçava

as crianças. Dedicada à família, Raimunda é visivelmente apaixonada pelo marido, Placides,

com quem está casada há 42 anos. Ele nasceu na Bahia, em uma cidade chamada Formosa do

Rio Preto. Foi para o Mato Grosso com 40 dias de nascido.

O corpo de menina esconde a trajetória de vida que lhe permite hoje ter nove netos. Entre as

marcas inevitáveis da vida, ela guarda a lembrança do período em que um dos filhos adoeceu

e perdeu os dois rins. Viveu com ele em Goiânia, longe de toda a família, para ter acesso à

hemodiálise. Até que conseguiu o transplante, quando ele recebeu um rim do irmão e ficou

bom.

Raimunda participa do grupo de mulheres há três anos e o considera como algo seu. “A gente

faz parte de uma família. A gente trabalha junto, trabalha em mutirão, é uma coisa muito

importante pra nós. Viajamos, trabalhamos juntos fazendo farinha, bordando, fazendo

croché”. Foi do conselho fiscal da Associação e agora é vice-presidente.

A mulher que se dedicou por tantos anos à casa e aos filhos, o que não é pouco, ganhou novos

desafios e responsabilidades. Ela tem espírito empreendedor. Preocupa-se com a agenda do

grupo, em organizar as reuniões, preparar o que vai ser levado para a feira. Os encontros

também são um espaço para elas falarem de si. Conversar sobre a saúde e estabelecer laços

contínuos de ajuda mútua.

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[FOTO DE RAIMUNDA AO LADO DO ESPOSO PLACIDES]

O trabalho coletivo, em regime de mutirão, qualificou a produção e melhorou a renda das

famílias. Além disso, as mulheres ganharam autonomia, porque o recurso que arrecadam é

administrado por elas.

As habilidades individuais são somadas e ganham maior expressão. A produção tornou-se

constante e elas organizaram uma feira em Canabrava. Primeiro, vendiam os produtos da

horta. A feira cresceu junto com o grupo e ficou conhecida como a Feira do Grupo de

Mulheres de Canabrava.

Junto com os produtos cultivados, passaram a oferecer artesanatos, doces, crochê, queijo,

requeijão. “Nós temos o barracão, nós temos a farinheira... Têm vezes que nós ficamos até um

mês reunidas lá no barracão fazendo farinha. Sai farinha, puba e polvilho. Preparamos

biscoitos, bolos, beiju”.

E o aprendizado coletivo foi muito além de aperfeiçoar suas técnicas. Em grupo, aprenderam

também a arte de dialogar, trocar ideias, chegar a consensos. “No grupo aparecem várias

ideias, cada uma tem uma ideia. Às vezes, eu vou até pensando uma coisa e quando eu chego

lá as companheiras falam as ideias delas e aquela minha não precisa, porque aquelas ideias já

estão valendo a coisa que a gente vê que é boa pra gente”.

Diante de alguma dificuldade financeira não se apertam. Fazem festa, pamonhada, galinhada.

"Quando nós estivermos aperreadas, vamos ver o que nós fazemos, e aí, vamos fazer uma

galinhada, uma festa, uma pamonhada, nós temos que resolver, né? Aí a gente faz, reunidas, é

bom, né?"

Ela nasceu em 13 de dezembro e por isso, é devota de Santa Luzia. Gosta de Santo Antonio e

participa dos festejos realizados para São Sebastião na comunidade.

Ah, a festa de São Sebastião aqui a gente não tem mastro, não tem a bandeira, não solta aquele giro, que tem lugar que é assim... aqui não, só a gente combina a festa, tem leilão, tem bingo, a gente sai pedindo na comunidade as coisas pra festa, aí, um dá uma leitoa, um dá um bezerro, um dá um frango, outro traz frango assado, aí na hora põe aquele leilão, aí, tem a missa e depois tem a festa e o leilão pra arrecadar coisa pra arrumar a igreja, que, agora mesmo, nós temos que arrumar um poço,

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fazer uma cisterna pra nossa igreja, aí, a gente reuniu sábado pra ver o que nós vamos fazer. Aí, nós vamos fazer mutirão, porque nós não fizemos festa esse ano, esse ano nós não fizemos o festejo, todo ano a gente faz, mas esse ano não deu, a gente não pôs na cabeça pra fazer, mas esse ano que vem agora nós vamos fazer, fé em Deus.

.

Alegria de todo dia

A união que tanto valoriza fora de casa é também o que dá o tom do cotidiano do seu sítio.

Ela e o marido colhem sementes crioulas, entregam polpas de frutas nos colégios. Criam

algumas cabeças de gado, galinha, peru, pato, porco.

Morar na roça e não criar nada você não tem graça, que são as coisas da roça, são as criações, é um peru, é o porco. Pra mim, é a alegria que eu tenho, me sinto feliz de estar com meus filhos ainda todos vivos, minha mãe, meus irmãos. Eu estar bem com meu esposo. De estar aqui na roça ainda forte, dando conta de fazer alguma coisa, de estar plantando...

O cultivo das frutíferas é feito em um sistema chamado de casadão, sendo que vários tipos de

frutas são plantados juntos. Acerola, goiaba, murici e as diversas frutas do cerrado como o

buriti, são usados para preparar deliciosos doces e licores, além da polpa de fruta.

[FOTO DE RAIMUNDA SEPARANDO AS SEMENTES COLETADAS E EM FASE DE

SECAGEM]

Ela sente muito por não saber ler. Aprendeu com a mãe que as meninas só estudavam para

assinar o nome na hora do casamento.

Era escola particular, aí ela pagou pra meu irmão, uns seis meses pra meu irmão, que é o mais velho, pra ele aprender, porque ele era homem. A Raimunda não. Vou pagar só um mês pra ela, pra ela aprender a fazer o nome, pra quando ela for casar saber assinar. Aí, eu estudei só um mês quando eu era nova. Aprendi a fazer o nome rápido, até a professora: ê a Raimunda quer casar porque já está fazendo o nome. Era a conversa dos mais velhos, dos pais.

Agora, Raimunda está estudando na comunidade, mas diz que já não consegue se dedicar

tanto porque fica muito envolvida com os bordados e com as coisas da casa. Sonha com

aposentadoria, mas não quer nem saber de parar de trabalhar. Só quer acalmar um pouco o

ritmo e equipar melhor a chácara para facilitar o dia a dia.

A intenção do grupo de mulheres, quando foi fundado, era a de melhorar a alimentação dessas

famílias e criar um espaço de conversa para elas. 27

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Nós não vamos tirar da nossa boca pra levar pra feira, porque nós precisamos nos alimentar melhor. A gente leva daquilo que sobra. Se por acaso: ah, meu canteiro tá pequeno. Só dá pra nós comer isso mesmo, não dá pra levar pra feira, vamos plantar outra. Naquele tempo, parecia que a gente não pensava assim de plantar a horta, de fazer o doce pra nós vendermos. Por acaso, às vezes, eu tenho a horta aqui, eu tenho as verduras, mas aí, eu já preciso comprar outras coisas, aí, a gente leva pra feira e aquele dinheiro já compra outras coisas que você precisa em casa. E também, a gente não precisa na hora que você quer comprar uma coisa, um remédio, uma roupa, não precisa estar: ô marido, me dá aí um dinheirinho. Você já tem o seu dinheirinho da feira. Ele que me pede, fala: cadê o dinheiro da feira? Eu falo: não, deixe meu dinheiro, eu tenho que comprar outras coisas. É bom demais. É coisa muito boa. Um grupo organizado. Nós não estamos organizadas porque nós estamos muito longe umas das outras. Mas no dia que nós nos reunimos pra trabalhar, a gente trabalha junto.

Raimunda, que admite estar aguardando a aposentadoria, é extremamente ativa. Ela também

faz parte do grupo de idosos. Está preparando a encenação da Roda de São Gonçalo para

apresentar em uma festa tradicional de São Félix do Araguaia. Em nenhum momento

demonstra cansaço, desânimo. Ela tem um brilho especial nos olhos. Será o amor? Amor,

sim! Mas um amor maior, fraterno, que nos ata ao mundo com leveza e esperança.

Depois do grupo de mulheres e da rede semente, levo uma vida que a gente não se sente sozinho. Você sabe que você tem mais alguém ao redor de você. Além de eu e ele têm mais minhas companheiras, os maridos das minhas companheiras que são todos amigos, né? E qualquer coisa a gente se reúne. Muito mais importante que a gente ficar, que nem têm muitas aí, minhas cunhadas, filhas, as filhas eu falo: vamos pro grupo! É muito bom. Aquele dia que você tá em reunião você conta caso, você ri, você fica alegre, você esquece tudo, certas coisas da vida, e aí, é uma coisa assim muito boa.

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JUSTIÇAIvani VitanardiOlho – “Ele ficou com tudo que nós tínhamos: panela, roupa. Eu saí só com a roupa do corpo, só com a roupa

do corpo”.

Ivani Vitanardi nasceu no distrito de Protásio Alves, município de Nova Prata, Rio Grande do

Sul. Aos quinze anos, os pais dela venderam as terras no Rio Grande do Sul e foram para

Santa Catarina. Ali, compraram terra também. Sempre trabalharam na roça.

Era comum, nas famílias dos pequenos proprietários rurais – agricultores que vivem do que

produzem no manejo da terra – as crianças com cinco, seis anos de idade, no turno oposto ao

da escola, acompanharem os adultos nesses afazeres. Foi assim com Ivani, que estudou até a

sexta série e diz que gostava muito. Só não foi adiante porque os pais não tiveram condição.

Quando se casou, ela e o marido trabalharam com arrendamento. Não tinham terra própria.

Passavam longos períodos em terras de terceiros, sob contrato. Em 2002, surgiu vaga de

trabalho no garimpo, no Mato Grosso, por causa do ouro. O marido, Ivo, decidiu ir. Ela, para

não comprometer o casamento, deixou os pais, irmãos e outros familiares e o acompanhou.

Dona Ivani tem fala simples e pensamento organizado. É uma mulher grande, alta, elegante.

Com olhar doce e acolhedor. Ele, homem comprido, de corpo rígido e longilíneo. Formam um

belo casal: mestiço, tipicamente brasileiro.

Seu Ivo fala pouco. O contrário de Dona Ivani. Ela é questionadora. Crítica e indignada, sem

ser rancorosa. Sua disposição e energia estão voltadas para fazer girar a roda da vida. A prova

disso é a superação de um câncer de mama. Mas, além de muita disposição, quer que esse giro

seja perpassado por respeito e justiça.

Já no Mato Grosso, ele ia para o garimpo e ela, com as crianças, não tinham para onde ir.

Ficou um tempo na sede do município – Nova Guarita – para que os pequenos tivessem

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acesso à escola. Antes, no sul, ela trabalhava em um posto de saúde. Em Nova Guarita passou

a trabalhar como doméstica.

Pagavam aluguel e viviam com muita dificuldade. Essa queda brusca na condição de vida da

família fez que ela se somasse aos sem-terra. Dona Ivani descobriu que qualidade de vida,

para ela, é no campo.

“Eu queria ter as coisas do sítio pra comer. Roça só é difícil pra quem não gosta de trabalhar.

Nós sempre fomos acostumados, a comer carne de porco, frango, ter a vaquinha de leite, ter o

queijo, ter a nata da gente, as coisinhas assim. Então pra mim, a cidade não me serve”. Por

isso, abandonou tudo e foi para um acampamento em busca de terra para, nela, trabalhar e

viver.

Agora, tem 60 anos. Sete deles vividos no Projeto de Assentamento (PA) Renascer, Lote 21,

que pertence à comunidade Frei Galvão, no município de Nova Guarita. É ali que recebe

filhos e netos para os sagrados almoços de confraternização aos domingos.

O jeito expansivo deixa perceber a felicidade que sente com a conquista, quase definitiva do

seu sítio. A área é, ainda, um projeto de assentamento do INCRA. Os lotes estão marcados,

mas ainda não têm energia elétrica e o recurso para a construção das casas não foi

disponibilizado.

Mesmo assim, a rotina no campo e o manejo da terra são uma mola propulsora em sua vida.

Eles não são aposentados. O resultado do trabalho dos últimos sete anos já é visível, mas Seu

Ivo trabalha fora para complementar a renda do casal. Produzem parte dos alimentos que

consomem. Não precisam comprar carne, leite, mandioca, frango.

Plantaram muitas mudas de árvores frutíferas. Elas fazem sombra para plantas rasteiras como

feijão, andu e outras. As frutas são destinadas ao consumo próprio e à venda. Plantam

cupuaçu, banana, laranja, pocã, limão. A sombra também é importante para o gado.

[FOTO DE IVANI COM O MARIDO IVO NA JANELA DE CASA]

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Junto com isso, já iniciaram um projeto de reflorestamento com mudas de árvores nativas.

Ivani faz parte do grupo das mulheres e da diretoria da associação. Elas assinaram um projeto

para capacitar trinta mulheres para o cultivo do mel. Elas estão, agora, batalhando pelo projeto

de hortas comunitárias.

Quanto ao abastecimento de água, em sua propriedade corre um riacho. Eles pretendem

adquirir um motor a combustível para bombear a água. Por conta dos trabalhos externos de

Seu Ivo, é Dona Ivani quem puxa a água através de baldes, para a manutenção da casa, do

cachorro, gato, das galinhas, para tudo.

No momento, a ausência de energia elétrica é um limitador da autonomia financeira deles.

Com a idade, já não suportam enfrentar certos serviços, sem algum suporte. “Eu desisti da

horta porque não aguentei mais, machuquei o joelho esses dias e não consegui mais puxar

água. É difícil uma pessoa com 60 anos puxar água.”

Ivani nem pensa em se acomodar. Com os recursos da aposentadoria e dos projetos, junto com

os aprendizados dos cursos, pretende ampliar a área plantada e a quantidade de animais da

criação. Pensa até em fazer as hortas com recurso próprio:

Se sair a aposentadoria, eu vou fazer uma horta irrigada pra a gente vender verdura. Com dinheiro nosso mesmo. Porco então, não tem que chega. A gente não pode vender tudo, né? Nós temos nossos filhos também que moram na cidade. Os três são casados, mas aí, se mata pra nós tem que matar pra eles também. Todo fim de semana eles vem pra cá, então a gente cuida pra não vender todos os leitões. Mas se fosse vender, ixi! Não tinha quantia que a gente não vendia.

Ivani tem três filhos. Todos escolheram profissões urbanas e vivem com suas famílias na sede

do município Nova Guarita. A família é muita unida e se ajuda mutuamente. Nos finais de

semana, os dois filhos homens decidiram que vão ajudar Seu Ivo com a retirada da lenha, para

poupar Dona Ivani de alguns serviços mais pesados.

A relação entre ela e Ivo também é harmonizada. Ela diz que eles nunca brigaram. Sempre

conversam e decidem tudo juntos. Se discordarem, sabem esperar. Desde que começou o

acampamento Ivani participa dos movimentos. É preciso viajar, ficar fora de casa. Nas

primeiras vezes, ele demonstrou dúvida, mas nunca disse para ela não ir.

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Quando tinha que viajar de repente, ele dizia: ah, mas pra tudo tem jeito, vai! Já que já andou muito pode ir de novo mais um pouco. Ele não é de dizer você não vai. Também, eu não saio sem falar pra ele. Eu já deixo sempre bem claro. Até um dia, um dos agentes da CPT veio me buscar pra ir a um encontro em Colider, cidade próxima. O marido estava lá na fazenda trabalhando. Eu falei: não, não vou não! Eu estava até ali na estrada caçando uma vassoura pra varrer o pátio. Ele falou assim: não, mas Dona Ivani, a Dona Leonora está esperando a senhora lá, vamos lá! Aí eu fiquei indecisa, pensativa porque eu não tinha falado nada pra Ivo. Aí eu vim, escrevi um bilhete. Letra pequena ele não enxerga, tem que ser umas letras bem grandes. Peguei um papel, escrevi umas letras bem grandonas, onde que eu tinha ido e colei contra o rádio, porque nós temos uma mania que quando entra dentro de casa já liga o rádio. Colei contra o rádio e ele foi ler. De noite, quando nós voltamos: conseguiu ler? Ele falou assim: quando eu vi a casa fechada imaginei que tu tinha ido pra algum lugar. Mas ele não me proíbe não, e ele não tem ciúme de eu sair junto com meus companheiros, não. Ele já conhece quem a gente é, então, é bem legal assim.

Eles aguardam o material do INCRA para construírem sua casa. Não sabem por que o recurso

não foi disponibilizado. E a energia elétrica deveria ter alcançado o assentamento como parte

do Programa Luz para Todos do Governo Federal.

Atualmente, na área que ocupa com mais sete famílias nunca teve conflito direto com os

fazendeiros vizinhos. Não houve enfrentamento direto, pistoleiros. Mas na justiça teve muita

disputa.

Uma vez o fazendeiro fez uma montagem com foto como se eu estivesse queimando um boi ali no fundo. Na verdade, foi assim: o boi morreu da capação e o caseiro dele viu que meu marido estava botando a lenha pra queimar, veio pedir pra queimar o boi. Na hora, tava aqui outro rapaz que cuidava da outra fazenda e que tinha vindo chamar meu marido pra trabalhar, onde ele trabalha até hoje. Aí, esse rapaz ouviu tudo e falou assim: deixa aí que de tarde eu venho com o trator. Não bota fogo não! Por causa da seca. O desgraça desse fazendeiro foi e fez uma montagem eu botando fogo no boi e eu fui chamada no juiz em Cuiabá. Quase morri lá dentro. Meu Deus do céu, quando eu vi a foto no nosso processo e era eu mesmo, não era outra pessoa não. Nunca deixei meus companheiros fazerem nada pro fazendeiro, nem pro caseiro, eu queria aquela paz, nós queríamos era a terra, não era brigar ou fazer desordem, não. Eu não queria isso aí, mas ele na justiça, ele brigou muito.

As brigas eram sempre na justiça. Ivani teve outro enfrentamento com o juiz da Vara Agrária,

na época. O povo tem consciência de que o correto é ir para a justiça. Mas confia,

desconfiando, já que a lógica que rege a construção desse país, é histórica e repetidamente

desfavorável ao pobre.

Eu perguntei: vocês vão documentar a terra pra ele? Ele falou assim: não, é terra da União, nós não podemos documentar pra fazendeiro nenhum não. Eu digo: então, porque que nós não temos direito? Porque que o senhor quer tirar nós daqui pra dar terra pra ele? Ele não me respondeu. Ele não quis me responder. Foi bem ali na

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frente da casa... ele não me respondeu. Só que, sei lá, eu acho que a justiça, quando cai muito dinheiro, né? A justiça fica balançando, quer o dinheiro também, né? Não pode ver dinheiro. Só que eu acho que tinha que ser bem diferente, né?

De quem é o direito?

A indignação toma conta da voz e dos gestos de Ivani quando ela se recorda das diversas

situações de conflito, injustiça e violência que enfrentou desde que passou a atuar no

movimento de luta pela terra no estado do Mato Grosso.

[FOTO PAISAGEM ENTRADA DO SITIO DE IVANI E IVO]

A começar pelos Direitos das Mulheres. Em uma propriedade agrícola, a renda é da família. A

profissão da mulher não é reconhecida. Como o padrão é o homem ser considerado o chefe da

casa, muitos homens decidem sozinhos o que vão fazer com a renda que é fruto do trabalho

delas também. Então, a mulher precisa de alguma garantia nesse sentido.

Considera também que a juventude abandona o campo porque ninguém está se preocupando

em criar alternativas para os jovens. “Eles querem estudar, querem ter uma renda, querem ter

autonomia”.

Mas as violências e injustiças passam por situações de excessiva brutalidade. Muitas vezes, as

pessoas são expulsas dos acampamentos pelos “guachebas” dos fazendeiros. Ivani se recorda

de uma vez em que:

O fazendeiro, no dia 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, às nove e meia da noite, veio com uma turma de guaxeba1 e tirou nós dos nossos barracos embaixo de um temporal tão grande, chuva tão forte, segurou nós das 21h30 até as 3h30 da madrugada em cima de um caminhão embaixo de chuva sem nada pra se cobrir e despejou nós lá na cidade de Nova Guarita. Ele ficou com tudo que nós tinha, panela, roupa, eu saí só com a roupa do corpo, só com a roupa do corpo. Eles ficaram com tudo das pessoas, não devolveram nada, entramos na justiça e até hoje nós não ganhamos nada, nada, nada. E a terra é da União também, né?

.

Histórias desse tipo se repetem a todo tempo. É uma briga em que o mais forte que dispõe de

recursos e armas ameaça, amedronta, aterroriza e mata os que vão para o enfrentamento. “A

Justiça não prendeu ninguém até agora. Por isso, que eu digo que os sem-terra não têm valor

1 Guaxeba é a forma como nessa região do Brasil são conhecidos os capatazes. Mandatários dos grandes fazendeiros, que ameaçam os agricultores familiares.

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nenhum, porque como é que pode que só sem-terra morre, fazendeiro não morre e ninguém

faz nada por nada”.

A crueldade não tem limites. Dá a sensação de estar em outra época da história, em que valia

a lei do olho por olho, dente por dente. Outro caso alarmante foi o do envenenamento da

comunidade do lote 10, chamada Toca da Onça. Eles tinham plantação organizada e

forneciam alimentação escolar. Perderam tudo! Os fazendeiros compram a lei. As terras são da União. E por que o Estado, o governador, os deputados não decidem isso? Eles deviam decidir. Olha que nem aquela área ali na frente que desmatou tudo, arrancou tudo fora o capim, ali é lavoura, vão plantar soja. Nós vamos ser prejudicados. É terra da União ali também, do Estado. Agora ali eles vão fazer lavoura, o veneno vai passar (...) 24h por dia e os coitados ali no acampamento sofrendo. Como que o governo, como que o INCRA deixa fazer isso aí? De que jeito que eles arrumam documento pra fazer isso? Por isso, que eu estou indignada com a justiça. Qualquer coisinha que a gente vai fazer precisa muito documento, precisa muita coisa e nunca dá certo, sempre falta uma coisinha, falta outra e um empurra pra outro e como é que pro fazendeiro não tem isso? Por quê? Por isso, que eu queria saber. Isso aí que eu queria saber. Por que fazendeiro consegue”.

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LEVEZALeonora BrunettoOlho – “Aquele dia era pra eu e ele morrer na ponte, mas ele veio na frente e morreu”

Leonora Brunetto é pequenina, delicada e gentil. Os gestos sutis, assim como a voz, são

precisos, sem faltas ou sobras. Seu aspecto frágil esconde a força de uma mulher valente.

Perseguida e vigiada durante 24 horas, já escapou pelo menos duas vezes de atentados à sua

vida.

Uma mulher que enfrenta as ameaças, os próprios medos e a crueldade humana para lutar pelo

que acredita. Sabedoria ou poder? Não dá para saber ao certo. Talvez, as duas coisas. Mas é,

certamente, a leveza que a faz escapar ilesa de tantas situações limite.

Irmã Leonora é filha de italianos. Os avós paternos, antes da Itália, viveram na

Tchecoslováquia. Os pais pisaram em terras tupiniquins, junto com a primeira leva da

imigração italiana, no final do século dezenove.

O pai, bebê recém-nascido, e a mãe, uma menininha de pouco mais de um ano, aportaram em

Porto Alegre. Dali, suas famílias andaram por três meses mato adentro até chegar em

Charqueadas, lugar onde se estabeleceram. Foi lá que, em 22 de outubro de 1945, nasceu

Leonora Brunetto.

Formou-se professora no Rio Grande do Sul e exerceu a profissão por 18 anos. Já era religiosa

e missionária. Desde cedo, seus finais de semana eram dedicados aos encontros com pessoas

ligadas a sindicatos de trabalhadores rurais e com a “juventude da roça”. “Meu pai tinha o

sangue da luta. Se estivesse vivo, certamente estaria no movimento social”, diz Leonora,

convicta das escolhas que definiriam sua vida.

“O que anima a gente é a partilha que eles têm. Se alguém não tem o que comer o outro chama e dá o que comer. E também a intimidade, de família, de chegar na casa do outro e pedir. Às vezes eu me desanimo. Mas, quando eu olho para o povo, penso: não! Não dá pra parar.

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Envolvida com a luta pela terra no Mato Grosso há 13 anos, ela sempre esteve ligada ao

campo. O cheiro da terra impregnado nos sentidos desde a infância é a inspiração e o guia

dessa senhora que, por toda a vida, desbravou os rincões do Brasil na luta pela terra e pelos

direitos das mulheres.

No começo dos anos 80, Leonora recusou o convite da Congregação das Irmãs do Imaculado

Coração de Maria, da qual faz parte, para trabalhar como missionária na África. Um oceano

era distância demais para ficar entre ela e seu pai doente. Em troca, aceitou ir para Presidente

Kennedy, Tocantins (na época, Goiás). Não era um lugar tão distante, mas também, não

menos desafiador.

Chegando lá, assumiu a paróquia local. Começou, então, a trabalhar junto com a Comissão

Pastoral da Terra (CPT). “Foi uma época de guerra”, lembra ela. Naquele período, muitos

posseiros foram assassinados. A Irmã chegou a ir para a cadeia, junto com outros jovens que

faziam parte da luta pela terra. Trabalhou, durante um tempo, com o Padre Josimo, que foi

assassinado.

Depois dessa empreitada, o Maranhão surgiu como próximo destino. Passou a viver entre

quilombolas e ribeirinhos, sempre no meio rural, e com o trabalho focado na formação de

lideranças jovens. “Foi uma luta bem forte. Conseguimos uma terra que era ocupada pelo

grande e famoso Sarney”. Fazia parte de áreas da União, ilegalmente ocupadas, que foram

desapropriadas pela justiça.

Os missionários vão para onde são chamados. As mudanças de endereço continuaram e, sem

perder o ritmo, Leonora foi transferida do Maranhão para o Rio Grande do Norte. Lá,

encontrou um pouco de tranquilidade, trabalhando com a juventude e as mulheres em hortas,

e produção de remédios caseiros. Desse período, resultaram onze grupos juvenis organizados.

Viveu também em Brasília, quando trabalhou com o Movimento Sem Terra. ficou nos

acampamentos e participou de um ano de formação da juventude do MST. Foi então, que a

Congregação solicitou que ela fosse para o norte de Mato Grosso. “Quando eu cheguei,

existiam muitos acampamentos. Paupérrimos. Em Novo Mundo, em Nova Canaã do Norte”,

conta.

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Em todos os lugares por onde passou a serviço da luta pela terra, Leonora viu e enfrentou

agressões. Mas garante que em nenhum deles viu tanta violência como Tocantins e Mato

Grosso. “Aqui no Mato Grosso, o agronegócio tomou conta. Tudo é pouco pra eles",

argumenta.

Em nenhum momento, Leonora naturaliza a violência. A sua indignação é explícita, firme,

quase palpável. Mas os muitos anos de luta também a ensinaram a consciência das

dificuldades, dos limites e as muitas formas de encarar os desafios.

Essa semana eu parei na frente do mandante que pagava 90 mil reais a quem desse fim na minha pessoa. Eu fui lá e falei com ele. Nós nem comentamos nada sobre isso. O que eu disse é que nós precisamos lutar e assentar o povo. Precisamos de terra para assentar o povo.

.Enfrentar tudo isso é mesmo uma marca da sua condição de existir. E, certamente, vem daí a

clareza dos caminhos a serem trilhados na direção de afirmar os direitos do povo à reforma

agrária.

Quando chegou ao Mato Grosso, então com 55 anos, Irmã Leonora atendia os 18 municípios

da região Portal da Amazônia, norte do estado. Pediu ajuda ao Movimento de Pequenos

Agricultores e ao Movimento dos Atingidos por Barragens para alcançar o primeiro passo que

considera básico: formar gente. “Não dá pra fazer nada sozinho. Quando eu vi que não tinha

lideranças, tive que sair em busca de ajuda”.

Para estruturar um trabalho e começar a formar as lideranças, começou a organizar grupos da

Pastoral da Juventude Rural – trabalho que desenvolvia com o Pe. Paulo de Alta Floresta – e

grupos de mulheres, com muito apoio da equipe central da CPT.

As mulheres

Em meio às comunidades e aos grupos do Portal da Amazônia, encontrou muito sofrimento.

Viu mulheres sendo espancadas, sem o direito de sair de casa, de ir e vir. Mais uma vez,

dedicou-se ao fortalecimento delas que, junto com a juventude, são o fio condutor do trabalho

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de Leonora. “Eu, pessoalmente, sempre vi que onde tem a mulher de frente, vai. E sempre

digo a elas: tragam suas filhas”.

Mesmo a Pastoral da Terra, que tem um trabalho amplo, sem o recorte de gênero, reconhece a

importância da participação feminina, já que os avanços são muito grandes quando as

mulheres estão envolvidas na luta pela terra e nos projetos para a permanência nela.

Mesmo diante da minha Igreja, que traz em certas situações da bíblia mais uma força para o machismo, sempre vi o sofrimento de muitas mulheres. Ouvi muitas histórias tristes, diante das quais não consigo calar, não consigo parar. Por mais que a gente queira parar, não para.

Há grupos organizados de mulheres nos acampamentos em Nova Canaã do Norte, Nova

Guarita, Panorama e no assentamento em Canarinho e Terra Nova (comunidade de São

Pedro). Elas produzem pães, bolachas, sucos, horta irrigada, ajudam a escola agrícola. A

próxima etapa é fazer pães para a merenda escolar.

Além de produzir de forma organizada, as mulheres estão à frente nos momentos mais duros.

Quando vão fechar uma rodovia, elas estão junto. Vão para a porta do INCRA, da CGU.

Enquanto isso, os maridos começam a assumir mais os filhos e ter algumas tarefas

domésticas. O machismo diminui também a partir das formações em gênero.

Organização dos grupos

Depois de tantos anos de atuação no Mato Grosso, tanto tempo dedicando-se à formação de

gente interessada, Leonora conta com orgulho como os grupos estão organizados – ainda que,

como ela mesma alerta, às vezes, pessoas enviadas pelo agronegócio se infiltrem nos espaços

para contaminar e tentar desfazer a coesão da articulação.

Em primeiro lugar, está a formação, em que os acampados (ou assentados) discutem gênero,

modos de produção e associativismo coletivo. Então, os grupos se organizam e, em geral, são

estimulados a formar uma associação para, dispondo do CNPJ, ter acesso aos recursos

públicos como o Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF) e conseguir ampliar

a renda, fornecendo alimentação escolar.

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Com a comercialização coletiva, passam a participar de eventos, feiras e integrar redes, como

a Rede de Economia Solidária. Fortalecidos pela capacidade de gerar riqueza e atuação em

conjunto, começam a participar de instâncias de representação e ter atuação política regular.

“Um acampamento que se envolve com a luta faz muita diferença”, assegura a Irmã Leonora.

Atentados

A luta pelo direito à terra cobra um preço alto. Em 2013, houve dois tiroteios no

acampamento de Novo Mundo. Durante a noite, um bombardeio. Pessoas foram atingidas;

crianças, aterrorizadas. No dia seguinte, os acampados mostravam as mãos cheias de

projéteis. As mulheres deixaram o acampamento e ele se desarticulou.

A condição de liderança na região transformou o cotidiano de Leonora Brunetto, que passou a

ter os passos vigiados, vinte e quatro horas por dia. A missionária já figurou até em uma

publicação da ONU, como integrante de uma lista de 10 ativistas pelos direitos humanos sob

proteção no país. Até mesmo a entrevista para esta publicação ocorreu em local público, sob

muita tensão. Segundo a missionária:

É difícil. Não é fácil. Para mim, é muito difícil. Não pelo fato de ser vigiada 24 horas por dia. O que estou fazendo e o que não, onde estou... Todo mundo sabe. Mas não tem como parar. Difícil é quando você olha a situação do povo, essa miséria. Que um dia tem o que comer no outro dia não sabe se tem.

Há uns dois anos, tentaram explodir o seu carro. Na época, havia um conflito em Marcelândia,

na Gleba Maicá, onde foram despejadas 85 famílias. “Tinha uns guachebas2 envolvidos no

meio da polícia. As casas foram arrancadas, colocaram fogo. Os agricultores perderam o

trabalho de dez anos”, conta Valdir Seze, voluntário da CPT e acampado em Nova Canaã do

Norte. Leonora acompanhava essas famílias. “Um dia”, conta Valdir,

Leonora precisou passar numa estrada que não tinha desvio. Ela estava dirigindo e vinha no carro com mais dois rapazes. Esbarrou num pacote, que explodiu embaixo do carro e estourou três pneus. Ela foi com o carro dançando e parou 300m à frente na casa de uma pessoa. E o pior: os caras que colocaram os explosivos vieram oferecer ajuda. A vida da gente é isso aí.

2 Guaxeba é a forma como nessa região do Brasil são conhecidos os capatazes. Mandatários dos grandes fazendeiros, que ameaçam os agricultores familiares.

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Em outro momento, no Maranhão, escapou de uma emboscada armada em uma ponte.

Moradores da região desconfiaram e correram para avisar. Um colega, que saiu antes acabou

morrendo. “Aquele dia era pra eu e ele morrer na ponte, mas ele veio na frente e morreu. Eu

consegui desviar o caminho. Passei por uma barquinha, num ponto bem acima. Não passei

pela ponte”, narra, emocionada.

Apesar da tensão sempre presente, Leonora permanece jovem: cheia de anseios, esperanças e

olhar novidadeiro a cada dia. O mesmo olhar é tranquilo, alegre. Típico dos que confiam na

vida.

Medo de morrer? Olha, medo, medo a gente tem. A gente sempre olha... Quero viver mais! Mas pela causa o medo fica para trás. O que já aconteceu e foi bom é maior do que o que não aconteceu. Se eu disser que não tenho medo estou mentindo. Mas Deus dá coragem!.

Box 1

“Vou te contar uma história que me mostra a força, a grandeza que a mulher tem:

Quando nós conseguimos uma área chamada de “Cinco Mil”, um tal de Chapéu Preto

chegou à noite, entre meia noite e uma da madrugada. Ele chegou com dois caminhões,

acordou todo mundo. Teve homem que saiu pelos fundos e entrou no mato. Sabe o que

as mulheres fizeram? Nem eu acredito. Elas saíram dos barracos com as crianças, foram

para frente dos caminhões e falaram para os fazendeiros:

– Você pode colocar nós no caminhão, mas todas nós.

Elas fizeram uma fila e colocaram os filhos de colo no colo e os maiorzinhos na frente

delas.

– Pode matar todas nós e jogar no caminhão. – Eram umas 20 mulheres, mais ou menos

– Primeiro você mata nós (sic) e as crianças. Aí você pode jogar no caminhão. Mas

vocês primeiro vão matar os nossos filhos e depois a gente. Porque aí, a gente tem

certeza que a mãe foi e o filho foi.

Um homem tinha ficado. Quando eles viram isso, eles [maridos] foram voltando,

voltando e se juntando.

Ele podia ter atirado e matado todinhas. O fazendeiro arrancou o carro e foi embora.

Acho que o pistoleiro não funcionou. Teve que sair. Tinha muita criança de colo e

pequena”.

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Box 3

Na semana em que foi realizada a entrevista com Leonora, aconteceram algumas

rodadas de negociações entre justiça, representantes dos latifundiários grileiros e

mediadores dos acampados. Esse acordo buscava assentar 250 famílias. Os fazendeiros

estavam cedendo 10% das áreas da União que eles usam. O destino dessas terras são

famílias que há mais de 10 anos vivem embaixo da lona. Após muitas tentativas,

entende-se que esse acordo é a melhor solução para evitar que haja mais mortes. “Se

houver conflito, vai ser muito pior pra eles, porque eles são os culpados. Eles estão

evitando que haja conflito”, diz Leonora.

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DETERMINAÇÃOLindaura ZumackOlho – “Ele queria escravizar essas pessoas, aqueles pobrezinhos que não tinham entendimento iam continuar

trabalhando”

Lindaura Zumack pouca gente sabe quem é. Mas se perguntar por Baixinha, rapidamente você

chega à casa dessa mulher. Ela é bem baixinha mesmo. Mas quando abre a boca, ecoa uma

voz aguda e firme. Um gigante aparece na sua frente.

Olha com seriedade. Parece um teste, para intimidar. Sem abrir mão desse modo que é

praticamente um recurso de sobrevivência, sabe ao mesmo tempo tornar a vida leve e

engraçada. Adora ler. Devora com os olhos tudo que lhe cai nas mãos. Além da Bíblia, os

favoritos são os romances. Mas, ressalva: “Gosto de ler tudo!”

Baixinha tem 57 anos e se aposentou como agricultora. Há 18, mora em Juína, na Gleba

Iracema 2, Sítio Toca da Onça. Juína está na divisa com Rondônia. Situa-se inteiramente

dentro do bioma Amazônia e é cidade-polo da microrregião do Aripuanã, no Mato Grosso.

Às gargalhadas, conta como escolheu o nome para o sítio. Dá para perceber um pouco da sua

personalidade. “Em Minas, tem o Atlético Mineiro, que é Toca do Galo, Toca da Raposa é o

Cruzeiro. Aí, eu falei, bom, aqui é mata e na mata tem onça. Aí, pensei: Toca da Onça”.

A Gleba Iracema é uma comunidade muito organizada e agradável. Tornou-se uma referência

por conta do Torneio do Leite (ver box), uma festa que mobiliza produtores de toda a região.

Lindaura diz que está em um pedacinho do paraíso e que agora sonha com a chegada da

internet.

Mas para encontrar o paraíso, percorreu muitas estradas. Compara sua vida a uma novela em

que um novo capítulo se escrevia a cada dia. Ela é mineira. Cresceu e se casou em Minas.

Vestido branco, igreja, civil, tudo a que tinha direito. Viveu 13 anos de um casamento de

princesa.

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O casamento terminou e provocou uma mudança radical na vida de Lindaura e de seus quatro

filhos. “Depois que acaba o respeito é como um vaso, você quebra ele, você cola, mas fica a

rachadura, não é o mesmo. O casamento é assim, no meu entender. O vaso. Você tem que

fazer de tudo pra não deixar o vaso cair e quebrar”.

No caso dela, restaram os cacos e um imenso amor pelos filhos. Lindaura encarou a vida após

a separação com a força misteriosa de quem tem o coração ferido. E, justamente por conta

dessa ferida, desconfiava do próprio coração: "Você tem que ir pela cabeça porque o coração

trai”. Fala do ex-marido, já falecido, com cuidado.

Eu não permiti nunca que meus filhos falassem do pai. Eu dizia sempre: ele não foi bom esposo, mas vocês não têm nada a ver com isso, é seu pai. Amanhã, se ele precisar, vocês vão cuidar dele. Eu não queria que nada de mal acontecesse não, eu acho que quem ama não mata, não fere, eu acho que cuida, quer que a outra pessoa seja feliz.

Duro recomeço

Ela resolveu ir para Rondonópolis, no Mato Grosso, onde morava sua irmã mais velha. E as

crianças não abriram mão de ir junto. “Foi tudo conversado com eles. Eu disse: a mãe, de

patroa, de dama, vai passar a empregada. A mordomia que vocês têm não vão ter mais”.

Para fixar residência e iniciar vida nova, escolheu Pedra Preta, pequena cidade próxima a

Rondonópolis. Rapidamente, fez amizades e nunca lhe faltou trabalho. Foi boia-fria, até

conseguir emprego como cozinheira em uma fazenda de soja.

Acredita que a oportunidade de ter uma terra própria para trabalhar e viver surgiu graças ao

carinho dos amigos de Pedra Preta. Como sabiam que ela trabalhava na terra, perguntaram se

ela gostaria de participar do Movimento Sem Terra:

Então, fiquei feliz em participar, porém nós fomos num movimento que não teve sucesso no princípio. E foi invadindo a “Itiratupã” que é Pantanal, mas foi mesmo para fazer uma pressão, não que ia ganhar lá, né? E sim, qualquer parte do mundo. Aí, fomos despejados de lá...

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O grupo todo foi cadastrado pelo INCRA e estava aguardando serem assentados. Eram,

aproximadamente, 500 pessoas. Receberam, então, a visita de uma liderança do Sindicato dos

Trabalhadores Rurais de Juína, que ofereceu terras: “ele perguntou se a gente aceitava vir pra

cá. Que era distante, mas que aqui tinha terra. Então, se nós quiséssemos, ele já passava em

Cuiabá, no INCRA, e avisava que a gente tinha aceitado”.

O INCRA selecionou 53 famílias, mas a conquista da terra não passa somente pela posse de

um papel assinado. “Pra falar a verdade, a gente nem sabia onde estava. Nós viemos fechados

dentro duma carreta, não dava pra esticar a perna, se você quisesse esticar a perna, tinha que

ficar em pé. Eles soltaram a gente, dentro da mata, na beira do rio”.

Quando chegaram ao local destinado ao assentamento, a pessoa que tinha se identificado

como representante do sindicato e fez toda a mediação junto ao INCRA, não dividiu as terras

e reivindicou para ele a madeira. “Ele mandou os capangas acompanharem os caminhões pra

intimidar, mas não pra fazer, porque a terra já era do INCRA, já estava negociada”.

Tiveram problemas com outra liderança. A pessoa que os ajudou com a viagem e mediações

junto ao INCRA. Eles pagavam cada um, uma pequena taxa para esse homem. O valor era

suficiente para custear despesas de aluguel, alimentação, transporte e ainda uma sobra.

Mas ele mexia com tráfico, com coisas ilícitas. Ele queria escravizar essas pessoas, aqueles pobrezinhos que não tinham entendimento iam continuar trabalhando, aí eu falei: não, peraí! Agora você ganhou terra, foi o tempo todo muito bem pago. Então, peraí, aqui você não vai mexer com droga. Ele ameaçava por fogo, quem saísse do grupo, entendeu? Ele se achava ali...

Depois que a área foi loteada, os sítios foram se definindo e os aproveitadores foram expulsos.

Estava posto o desafio: conseguir permanecer ali. Sobreviver às agruras provocadas por

outros seres humanos e pela natureza. Viver na terra e da terra.

Diante dessa crise de liderança, eles precisavam encontrar uma pessoa realmente

comprometida com os interesses do coletivo. E notaram em Baixinha esse perfil. Ela foi eleita

representante da comunidade. E vestiu a camisa. Arregaçou as mangas e foi em busca de

projetos.

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Começaram a preparar o terreno para os primeiros plantios de arroz, feijão e outros alimentos

básicos, em regime comunitário. O INCRA dava a semente. Baixinha buscou cursos para

capacitar os agricultores, a exemplo de apicultura, manejo de pasto, enxerto de mudas. Junto

com isso, os financiamentos para viabilizar a produção.

Mas ao adentrar a mata, a malária pegou firme. Muita gente adoeceu e abandonou suas terras.

Baixinha estava muito determinada. Conseguiu que o irmão Manuel assumisse as questões

relacionadas à saúde. Ele tinha alguma experiência na área e providenciou para que a equipe

da (na época) SUCAM3 atuasse no local, erradicando a malária.

A liderança dela e de sua família foi fundamental em muitos momentos. E na organização dos

espaços comunitários, foi especial. Ela cedeu parte do seu lote para fazer a sede da

Associação e da escola que hoje ocupa a função de posto de saúde. Um dos filhos,

Marquinho, foi o primeiro professor.

Parte das terras desse loteamento foi destinada a famílias de Juína. Mas eles não ocuparam os

lotes porque o local não tinha estrutura nenhuma. Não foi simples para Baixinha se livrar da

lista de urgências que tinha em mãos: conseguir estradas, posto de saúde, escola, alimentação

escolar, transporte.

E onde não tem gente, não vai progresso. Só vai progresso onde tem número, porque o político vê isso e é certo, se tem gente, vai recurso, vai estrada, vai hospital, vai ônibus... Tinha que ter escola para as famílias de Juína virem morar aqui. Eu tive que conversar com meu filho, que tinha estudo, pra ele dar aula pras crianças. Aí, eu convenci a prefeitura, peguei os nomes, fui de lote em lote pegando os nomes num caderno, dos filhos que ainda estavam em Juína, pra vir estudar. Aí, que as famílias vieram.

Descobrir a vocação da propriedade rural

No manejo da terra, descobriram que ela precisava de um investimento muito alto em adubos.

Ela não é produtiva. Como se diz na linguagem do campo, “a terra tem que ser muito

dobrada”. O terreno todo tem muita pedra e dava uma doença no arroz que eles descrevem

como uma ferrugem, que queima a palha. Não é uma terra viável para agricultura.

3 http://www.funasa.gov.br/site/museu-da-funasa/sucam/45

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[FOTO DE LINDAURA COM A PLACA DE MADEIRA EM QUE ESTÁ ESCRITO O

NOME DO SITIO – TOCA DA ONÇA]

Tiveram, então, que descobrir a vocação de suas terras. Assim, além dos pequenos animais e

hortas que produzem para consumo próprio, eles criam gado de leite e abelhas. Vendem o

leite, o bezerro macho e o mel. É uma comunidade muito bem sucedida. Todos cresceram e

têm estabilidade econômica. Realizam o maior torneio leiteiro da região.

A Toca da Onça produz galinha, ovos, mel, carne e leite. Comercializam o excedente desses

produtos e, com a renda, adquirem os demais itens de sua necessidade. Lindaura se sente uma

mulher realizada, vivendo em um pedacinho do paraíso. E isso se expressa em seus olhos e no

sorriso farto. Tem quatro netos. O orgulho que sente pelos filhos se reflete nela mesma. “Eu

vejo muitas famílias construídas com pai e mãe, com tudo tranquilo, que não tem a estrutura

familiar que eu tenho. Pra mim isso é uma riqueza, uma bênção”.

Diz que tem muita mordomia e que não troca por nada a paz, a tranquilidade e o conforto da

roça. Tem energia elétrica, água gelada e carne fresca na geladeira. Ela mora em uma casa de

alvenaria, extremamente agradável. Como já estava aposentada, quando saiu o material do

INCRA, fez um empréstimo e ampliou a construção. Colocou cerâmica no piso e fez a

varanda ao redor de toda a casa.

Porque morar na roça e não ter uma área pra por uma rede...Tem que ter uma rede, ou então essa fresquinha para sentar assim e prosear. E eu gosto de fazer reunião, culto, receber pessoas, eu gosto de ver o povo, então fica legal ter uma área. Quando tem evento aí na comunidade um bocado de gente vem, põe barraca aqui...

Valeu a pena!

Sonha com a chegada da internet na Gleba Iracema. Mas o que ela mais gosta de fazer é

viajar. Não se intimida com a possibilidade de envelhecer. Quer logo completar 60 anos para

viajar de graça e conhecer todas as praias do nordeste.

Com as duas filhas casadas e os dois filhos homens em casa, ela se sente uma mulher quase

livre. Eles são totalmente independentes, sabem se cuidar e, principalmente, sabem cuidar da

mãe. Mas ela diz estar sempre pensando neles, quando sai de casa por uns dias.

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O carinho e dedicação dos filhos fazem com que ela se sinta realizada, apesar de não ter um

parceiro do lado. Muitas vezes, rejeitou a aproximação de outros homens, por conta dos

filhos. Além de sentir-se cansada com a rotina exaustiva que tinha. Quando batia a solidão,

não deixava de pensar nas filhas mulheres, ainda pequenas. E a ideia de ter um homem em

casa logo desaparecia.

O pastor falou que eu devo arrumar um homem de Deus, não é todo homem que não presta. Falei: eu concordo, mas de repente vai me dar trabalho e não alegria, e aí? Quero deixar porque eu sou feliz assim. Eu viajo quando eu quero... Dizem que quando dá certo não tem problema. Um compreende o outro. Mas eu não achei essa pessoa. É difícil, mas eu sou feliz assim.

Destaque – Torneio Leiteiro

O Torneio Leiteiro, realizado pela Associação dos Trabalhadores Rurais da Gleba Iracema

(ASTRAGI) é um acontecimento que movimenta a economia e a cultura da comunidade.

Teatro, música e dança compõem a programação da festa que reúne produtores de toda a

região. É um concurso e ganha a vaca que produzir mais leite. Como pano de fundo, são

trabalhadas questões relacionadas ao tratamento do gado, como a ração orgânica, uso mínimo

de remédios, para, além de aumentar a quantidade, produzir leite com qualidade. Lindaura e

os filhos são importantes lideranças na organização do torneio.

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COMPROMISSODorcina Rosa de Vieira CruzOlho - “Como que vai ficar esse povo lá no mato com os barracos de lona?”

O que mais motiva Dorcina a superar os próprios limites é a certeza de que as mulheres

devem ter seu próprio norte. E ela se coloca do lado de quem está disposta a colaborar para

criar caminhos que permitam à mulher do campo se emancipar. E, o principal, ela acredita, é a

formação para a consciência dos direitos e deveres. Para o exercício da cidadania.

Dorcina Rosa de Vieira Cruz tem 48 anos. Chegou em Juína com os pais, em 1985. Conheceu

aquele que se tornaria seu marido nas reuniões da Pastoral da Juventude. Casou-se, estudou e

vive na cidade que considera sua. Não tem filhos por conta da “pressão arterial

descontrolada”.

Mas a sua energia maternal de doação e compromisso incondicional com o outro foi muito

bem canalizada. Dorcina é bastante criteriosa com a qualidade de vida no campo. Rejeita a

ideia de que o campo é um paraíso, mas acha a cidade uma grande ilusão. Por isso, está

interessada em estratégias e políticas públicas para tornar confortável a vida rural.

Para ela, conquistar a terra não é suficiente. Seu trabalho sempre esteve voltado para as

estratégias de permanência ali. Muitas vezes, o trabalho no campo demora a dar retorno

financeiro. É lento e corre o risco de ser pouco lucrativo.

Depois de 25 anos de serviços prestados, três deles na coordenação geral da Associação, hoje,

ela é uma assessora experiente. Uma mulher em busca constante. Quer mais formação, mais

projetos. É sonhadora, criativa e inquieta. O mundo, na voz e nos gestos de Dorcina, mostra-

se como um vasto rol de possibilidades.

E, claro, nesse mundo em que ela acredita, a mulher tem lugar de protagonista. Um lugar

especial na estrutura da produção agrícola familiar. Acredita que a sede de estar no meio do

povo trabalhando, buscando o melhor para si mesma e para a família está dentro da mulher.

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Fica incomodada porque sabe que muitas mulheres ainda se colocam diante dos homens

sentindo-se inferiores. “Não é assim que a gente vai abrir um caminho pra nós, mas a gente

tem que parar com esse negócio de perguntar pro homem... não é perguntar, a gente tem que

ter as ideias da gente e pra isso, precisa de formação. Então, o que eu me preocupo muito

mesmo e quero fazer uma especialização pra me aprofundar é a questão da mulher”.

Mesmo diante de situações muito difíceis, Dorcina nunca teve dúvida sobre o seu trabalho e a

necessidade de seguir em frente. E a força principal está, justamente, na capacidade das

companheiras em resistir a toda sorte de agruras que se lhes apresentam para produzir,

comercializar e viver com dignidade como produtoras rurais.

Elas sabem fazer, mas precisam de tantas outras coisas pra chegar no mercado, que é isso que barra, é a burocracia que existe, porque precisa de CNPJ, precisa de registrar o produto delas, precisa de passar pela vigilância sanitária, precisa ter um escritório de contabilidade, nossa é muita coisa. Eu acho que a palavra-chave pra elas saírem desse negócio é além das políticas públicas pras mulheres, mas não chega na ponta é acessar a papelada. Os homens ajudam porque elas trazem dinheiro pra dentro de casa... Mas eles ajudam, sim. O que os homens atrapalham é na hora de passear. Eles falam: ah, mas por que ir no passeio? Vamos descansar. Você sabe que os homens vão fazer a comida pras mulheres irem fazer formação? Muitas vezes, muitas vezes, eu já fui nos encontros, ajudei as mulheres e os homens vão fazer o lanche, vão fazer a comida. Então, os homens não atrapalham, eles ajudam.

Essa aposta no envolvimento feminino com o que deseja e acredita está baseada em

experiências muito concretas. Certa feita, a equipe divulgou pelo rádio e televisão local que

seriam iniciadas as turmas de formação. O número esperado era de 150 mulheres. Prepararam

tudo para 180.

Não tinha apoio de transporte, nada. E aí, no dia, foi chegando gente, foi chegando gente. Chegaram 628 mulheres. A gente olhava: o que nós vamos fazer com tanta mulher? Chamamos a coordenação e a equipe toda teve que reorganizar a estrutura. Uma vai pro mercado, outra vai pra papelaria. E aí, o local que a gente tinha arrumado não coube as mulheres ... Mas resolvemos tudo. Considero esse um grande exemplo do interesse das mulheres.

Ponto de virada

Em uma assembleia da CPT, em dezembro de 1990, os agricultores constataram que o seu

produto ia para os atravessadores e o retorno financeiro ficava com eles. Sem conseguir

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retorno financeiro, o cultivo não se justificava. Decidiram comercializar, juntos, o que

produziam.

Para isso, precisava ter uma associação, para levar um nome só. Criaram em junho de 1998, a

associação de produtores rurais, Associação de Juinenses Organizados para Ajuda Mútua

(AJUPAM). Reuniram toda a produção. Alguns tinham vinte sacas, outros cinquenta.

Colocaram tudo em um caminhão e venderam em Maringá.

Deu muito lucro e animou os produtores a cultivar a pupunha, o guaraná, a castanha, o

gergelim, salgadinhos de banana e abrir outras linhas de comercialização no Paraná, em São

Paulo. São fornecedores para marcas consagradas de orgânicos, como a Mãe Terra.

Paralelamente, os grupos de mulheres foram estimulados para que elas também participassem

da vida da Associação, dos processos de tomada de decisão e se envolvessem ativamente com

a produção agrícola familiar.

Apesar de todas as dificuldades com a infraestrutura de transporte, estradas e equipe para o

acompanhamento constante dos trabalhos em cada localidade, muitos grupos de mulheres se

tornaram independentes. Estão organizados e usufruem de qualidade de vida, fruto exclusivo

do trabalho coletivo.

Dorcina conta que muita gente que vinha a pé, a cavalo, de bicicleta para as reuniões da

Associação hoje vem de carrão, de caminhonete ou um carro bom de passeio. Quem não tem

carro, tem moto. E trocam todo ano. O cavalo é para o lazer no sítio.

Fui na comunidade Nossa Senhora das Graças visitar e a capela estava rodeada de carro. Gente do céu, há dez anos eu vim aqui... a capela era de madeira, uma capelinha assim, ou só o barracão, hoje é alvenaria. Tudo de piso, esse piso de cerâmica. Tudo iluminado, energia pra tudo quanto é lado, água pra tudo quanto é lado puxada na energia, a caixa de água lá.

Dorcina é hoje voluntária na Associação. Diz que está no sangue, não consegue se desligar

dos grupos. Está, aos poucos, se envolvendo com a Rede de Economia Solidária: “eu estou

assim, fazendo os contatos porque na hora que eles lá falarem que tem algum recurso, tem

alguma coisa, a gente vai encaixando elas”.

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Gleba Iracema

Outra frente de trabalho fundamental para Dorcina foi a organização do Assentamento Gleba

Iracema, que é hoje, uma comunidade exemplar. Ainda se lembra da chegada das famílias que

vieram ocupar a área. “A gente acompanhou desde a época quando o pessoal veio lá de

Rondonópolis, uma carreta de pessoas. O INCRA chegou cinco anos depois para dividir os

lotes”.

Não passou por situações de enfrentamento com risco de morte, mas considera as negociações

ali bastante conflituosas. “Negociação com fazendeiros e até o fazendeiro decidir que ia

vender e o INCRA comprar mesmo de verdade”. Dorcina conta que, certa feita, tiveram que

fechar a agência do Banco do Brasil, em Juína.

O PRONAF não vinha, não vinha e nem aquele recurso que o INCRA mandava que era pra começar a trabalhar na terra. Eles não vinham e aí (...) como a gente vai ficar com esse povo lá no mato? Porque era mato, mato mesmo. Como que vai ficar esse povo lá no mato com os barracos de lona? Era bem difícil, não tinha como. Na época da chuva, não tinha nem estrada, também na época da seca, a estrada era horrível, mas pelo menos dá pra passar e na época da chuva não dava pra passar.

O trabalho com o grupo de mulheres na Gleba Iracema também deu certo. Hoje, elas já estão

produzindo, beneficiando frutas, produzindo outros tipos de vegetação, licores e conservas,

aproveitando as frutas locais.

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SOLIDARIEDADEVera Maria Lobo– olho: “A mulher é exemplo. O que ela faz e conquista se espalha muito rápido para os outros.”

Inspirada nas vidas de São Vicente e Santa Luzia, a carioca Vera Maria Lobo abandonou o

conforto da família de classe média para ganhar o Brasil, em defesa dos mais pobres.

Renasceu por duas vezes: a primeira, na favela, e a segunda, no meio rural, onde até hoje vive

o sonho de construir um mundo cada vez melhor para as pessoas.

Descendente de orientais, Vera nasceu em meio ao frescor das montanhas de Petrópolis, no

Rio de Janeiro, em 26 de abril de 1941. A mãe era filha de libaneses. O pai, sírio, veio para o

Brasil durante a guerra de 1914. A lembrança da fresquinha Petrópolis não desapareceu. Até

hoje, mais de 30 anos depois, sofre com o calor do Mato Grosso, onde fixou residência.

Teve seis irmãos e uma infância feliz. A casa era sempre movimentada com a presença de

muitos amigos. A mãe, D. Angelina, era dama de caridade. Em seu lar, valores como

solidariedade e partilha eram praticados e valorizados.

Ainda bem nova, Vera envolveu-se com a vida religiosa. Conheceu a pobreza dos morros de

Petrópolis e pôde constatar o sofrimento do povo. Em meio às atividades religiosas, conheceu

a vida de São Vicente e Santa Luiza e sentiu necessidade de se dedicar aos mais pobres.

Entrou para a Companhia das Filhas da Caridade, no Rio de Janeiro. Durante dez anos, morou

no Colégio Santa Isabel, onde a formação adquirida fez reforçar o ideário de trabalhar pelo

próximo. Acometida por um câncer linfático – Doença de Hodgkin – viu-se obrigada a voltar

para casa e se recuperar.

Vera formou-se professora e achou que nunca seria outra coisa na vida. Entretanto ficava

inquieta sempre que espichava os olhos para os morros da cidade e lembrava-se de tanta

pobreza.

Chegou a ser convidada para acompanhar a formação das noviças, mas estar em uma casa

fechada não a deixava muito satisfeita. Ocorreu, então, o Concílio Vaticano II, no início dos

anos 60, trazendo a mensagem de aproximação entre a Igreja e os fiéis. Foi o ponto de virada

em sua vida. Vera acredita que o concílio estimulou que a vida religiosa voltasse às origens,

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com um grande foco na dedicação aos pobres. Começava, assim, o movimento para a

formação das Comunidades Eclesiais de Base no Brasil.

Uma nova Vera

Vera Lobo foi morar em uma favela no Rio de Janeiro, experiência que funcionou com um

verdadeiro batismo:

Se na minha cidade eu tinha visto algumas coisas, na favela, então, desmontou tudo. Vi situações de muita pobreza, muita marginalidade, muito sofrimento. Ainda mais que a favela ficava atrás do presídio Frei Caneca, que já foi desativado. Pelo caminho a gente via os presos, as fugas, que eram meio programadas. Muitas mortes, a gente sofria.

Não apenas a violência, mas a degradação da vida humana também bateu fundo em Vera, que

àquela altura já estava na casa dos trinta anos. “Na entrada da favela tinha um lixão, aí você

via, muitas vezes, gente tirando do lixo para comer, não tinha água”, conta. “Isso gerou uma

revolução dentro da gente”.

Essas experiências mexeram com as suas perspectivas de mundo. Aquele não era o mundo

seguro e tranquilo da família, nem era tão organizado quanto o que teve no colégio. Vera

revisou os próprios conhecimentos. Achou que eles de nada valiam. Mas foi ali que percebeu

o valor da presença, da ajuda mútua e descobriu o jeito de compartilhar o que sabia e ajudar

os próximos.

[FOTO DE VERA LENDO A BÍBLIA]

Renascida, mais uma vez

Depois da favela, em 1979, foi morar em Acorisal, Mato Grosso. Esse era um sonho muito

antigo. Queria ser missionária junto aos indígenas. “Só que a minha cabeça de missionária era

terrível. Pensava que ia chegar aqui e definir como eles tinham que fazer as coisas”, lembra.

“Na favela foi meu batismo e aqui foi a crisma, eu digo assim”.

Ela considera a Vera de hoje mais agradável que a de tantos anos atrás. Diz que a essência é a

mesma, mas tornou-se capaz de compreender melhor o outro. E de se adaptar aos imprevistos

que surgem todo dia, ao que não está controlado, organizado. “Eu tive que passar por um

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novo processo de aprendizagem, no qual eu continuo, para entender a fala do povo. O jeito de

falar, os termos que usavam. Aprendi a pedagogia para trabalhar a partir do que vinha do

povo”.

No início dos anos 80, a equipe da Comissão Pastoral da Terra que já atuava naquela região

lhe propôs uma parceria. O Pe. Paulo, que já vivia em Acorisal, foi conhecer as comunidades

eclesiais de base e articulou a vinda das irmãs para ajudá-lo nos trabalhos. “Ele conhecia todo

mundo pelo nome. Articulava o grupo e nós ficávamos encarregadas dos encontros de

formação de lideranças de comunidade. Isso foi algo que veio calar no coração do povo”,

lembra a Irmã Vera Lobo.

A terra: Projeto Varredura

Na época em que foi implantado o Projeto Varredura, a comunidade recebeu a visita das

equipes do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e do Instituto de

Terras de Mato Grosso (INTERMAT). A CPT propôs fazer três experiências para desenvolver

uma proposta de reforma agrária, com os agricultores agrupados, segundo as características

das suas terras: tradicionais (sesmarias), terras da união e outros.

A região onde atua a Irmã Vera é a de sesmarias. Com o Projeto Varredura, as terras foram

divididas em glebas as quais seriam regularizadas como assentamentos. Houve muita

dificuldade de compreensão das famílias sobre esse processo, já que vivem em propriedades

dos seus antepassados.

Mas muitas terras foram passadas de pai para filho, sem registros em cartórios. O Projeto

Varredura previa a regularização dos proprietários. Assim, os filhos não puderam ter suas

terras regularizadas, porque não tinham o documento de posse. E todas as subvenções e

financiamentos do governo brasileiro para a agricultura familiar não contemplam os filhos,

que não estão regularizados.

Também surgiram problemas com a nova divisão dos lotes. Às vezes, a roça, a área de cultivo

ficava muito distante da moradia. Como fazer a divisão equilibrando tudo isso? “Foi muito

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trabalhoso, mas se conseguiu fazer. No final, aqui nessa área, deu certo”, conta Vera,

satisfeita.

Viver da terra: as mulheres

Era muito comum, na década de 80, a saída dos homens “válidos” (a partir de 14 anos), para

as glebas na região Nortão. Iam para a construção de estradas, de cercas e outras obras de

infraestrutura. Eram seis meses ou mais fora de casa. Voltavam fracos, doentes, com malária.

Voltavam para casa, passavam dois meses, faziam um filho e retornavam ao Nortão. O

dinheiro que deixavam para armazém era pouco. As mulheres tinham que cuidar da casa, dos

filhos e da roça.

Tudo passa pela terra, pelo cuidado com a terra. A mulher é exemplo. O que ela faz e conquista se espalha muito rápido para os outros. Não que os homens não façam as coisas e não estejam presentes, mas as mulheres são mais abertas ao trabalho coletivo. As mulheres tem uma capacidade muito grande de trocar informações. Os homens fazem em outro nível e elas fazem nesse nível da miudeza. Elas não deixam a bandeira cair.

[FOTO DE VERA EM PÉ NA PORTA DE CASA]

As mulheres davam continuidade ao regime dos mutirões para “dar conta do serviço”. A

maior lavoura era a de mandioca. Faziam a farinha de forma artesanal, de origem indígena. A

primeira Casa de Farinha nasceu na comunidade da Barra do Buriti. Quem cedeu o pedaço de

terra foram Dona Gregória e o marido.

Com o passar do tempo, os associados viram que o espaço era pequeno. Eles foram pegando o

jeito de fazer tudo junto: decidir e depois realizar. Outras comunidades viram e seguiram o

exemplo. Produziam mais e era menos cansativo. Puderam vender um pouco melhor, ainda

que permaneça a questão do intermediário.

Também na Barra do Buriti, nasceu o primeiro Recanto das Mulheres. Uma sala pequena em

que elas se reuniam para conversar. O primeiro grande assunto foi redescobrir os seus valores,

a autoestima. Quais eram as qualidades das mulheres e quais as dos homens. Elas perceberam

algumas semelhantes e outras não.

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Outro assunto era o próprio corpo. A prevenção ao câncer de mama, o exame ginecológico, a

mamografia... cada nova descoberta era rapidamente compartilhada com todas elas. No grupo,

o conhecimento sempre foi algo coletivo.

Nessas conversas, as mulheres trocam saberes, experiências de vida, contam o que sabem e

gostam de fazer. Algumas começaram a tecer redes, tapetes e cobertas de camisetas de malha

que não serviam mais. Outras aprenderam a fazer xarope, pomadas com ervas medicinais.

Vera considera que duas coisas eram básicas para os grupos deslancharem: formação e

organização. Sente-se feliz com os resultados do trabalho que deu sentido à sua vida. “Vejo

que podemos morrer em paz, porque temos continuadores. Não somos mais tão necessárias

como antes”, garante.

A Irmã deseja que as novas mulheres assumam com toda a garra. Ela acredita que ser mulher

traz possibilidade e oportunidade de transformar a realidade em que vivemos. Quer seja a

realidade familiar, comunitária, social e do mundo. “Mesmo que seja um cisquinho”, diz.

Sonhos

O povo no campo lida, sobretudo, com a vida, com a esperança. “Dizem que a gente não pode

ter só um sonho. Tem que ter pelo menos mil. Para quando realizar um, ir logo em busca de

outros”. E ela sonha muito. Sonha alto. É quase uma oração na qual projeta seus desejos de

sociedade mais igualitária, em que todos percebam os direitos que todos possuem.

Que a violência não cresça. Que o relacionamento entre as pessoas seja de mais estima, bem querer, menos competitividade, menos ganância. Que o deus dinheiro não seja o Deus. Que tenhamos um Deus mais amoroso e libertador. Que haja não só a solidariedade nos momentos de tragédia, mas que seja algo do cotidiano. Que todos tenham direito à saúde. Que não tenha morador de rua. Que não existam crianças ou mulheres prostituídas. Que a natureza não seja usurpada de todos os bens que ela tem, mas que nos ajude com o pão de cada dia. Que a água seja um bem para todos. Que tenha também mais mulheres, acreditando no seu poder, na sua capacidade, na grande missão que têm de transformar seu entorno. Que elas possam realizar os sonhos e projetos em família. Que possam ser felizes! ‘Ponto final’”.

Box: Alegria e pipoca: o nascimento da Associação dos Agricultores e Agricultoras da

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Comunidade de Mutum ‘Feito por nós’

“Num desses mutirões, em que estavam se ajudando, elas se lembraram de mim e disseram que

queriam minha ajuda. E eu fui. A reunião foi lá na Barra do Buriti. Aí eu fui falando: eu não sei

nada para ajudar vocês. Eu posso escutar vocês e ver quem pode ajudar. Elas diziam: a gente só

quer o seu apoio.

Aí elas disseram que queriam diminuir um pouco a dificuldade do trabalho com a farinha. Aí eu

contei para o pessoal da CPT para ver se eles tinham alguma ideia. Eles vieram. Tinha também o

Padre José Grassi, que não conhecia muito de farinha.

Elas mostraram tudo como elas faziam. O ralador que era uma lata furada... e ele fotografou tudo,

para levar para a Itália para ver se conseguia algum recurso. Elas ficaram de conseguir um

barracão. Elas falaram para os maridos e eles pensaram que era coisa de partido político. Aí não

acreditaram. Disseram quantos partidos prometem coisas e nunca aconteceu nada?

Então, combinamos de não discutir com os maridos. Vamos fazendo. Aí eles viram que elas iam

mesmo e ajudaram. Atravessaram o rio para conseguir madeira. Nesse tempo, o José Grassi tinha

chegado da Europa. Ele não conseguiu muito, mas descobriu uma instituição para a qual a gente

podia apresentar um projeto. Aí teve que criar a Associação. As mulheres fizeram pipoca e

distribuíram pra todo canto porque nascia uma associação. E foi feita com mulheres e homens”.

Festa da Semente

Há dez anos, a Irmã Vera ajuda a organizar a Festa de Trocas de Sementes Crioulas, de Mudas

de Plantas Medicinais e de Mudas de Árvores Frutíferas. É uma realização da Comissão

Pastoral da Terra, em parceria com o poder público local, na Comunidade do Mutum. A Festa é

um mote para um trabalho grande de criação de alternativas qualificadas para o homem, a

mulher e o jovem do campo no campo.

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ESPERANÇAGermana Benedita da SilvaOlho: “Eu não sei o que eu tinha, porque mesmo nessas condições aprendi a ler e escrever”

Germana foi incentivada pelo irmão, que era presidente do sindicato, a se envolver com a luta

pela terra. Quando ela começou a participar das reuniões do sindicato, em 1994, o número de

mulheres, era muito pequeno. Mas mesmo assim, enfrentou o desafio e chegou a fazer parte

da diretoria.

Conheceu muita gente e saiu de certo isolamento comum às populações das áreas rurais no

Brasil, pela falta de transporte, telefonia, estradas. Germana percebeu que o trabalho coletivo

precisa ser muito interligado, conectado. Notou a importância de trocar informações,

aprendizados, conhecimentos para a conquista dos seus direitos.

Essas vivências transformaram a vida dela. Extremamente calada, mal abria a boca. O

compromisso com os companheiros e companheiras, de socializar informações fez que ela

superasse essa dificuldade.

O marido, seu Getúlio, não gosta de sair de casa, de viajar e ficava inquieto quando os

convites “do movimento” começaram a chegar para Germana. Mas essa mulher, de jeito sério

e comprometido não deixou rastros de dúvida sobre suas verdadeiras intenções. O

companheiro logo percebeu que não precisava interferir. Ao contrário. Viu que se ajudasse,

seria melhor para toda a família e para a comunidade.

Os filhos também perceberam a importância de dedicar um tempo da vida a adquirir mais

formação, mais conhecimento e de socializar o que sabem. Os mais velhos escolheram

profissões e trabalhos formais, com carteira assinada. Mas Camila, a mais nova, está seguindo

os passos da mãe.

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Em meio a muito trabalho e conquistas, devido a um problema de visão, ela achou melhor se

afastar, porque ficou preocupada em lidar com tantos documentos. Segundo ela, poderia

“deixar passar” alguma coisa importante e prejudicar um companheiro ou companheira.

[FOTO DE GERMANA COM O MARIDO E OS FILHOS]

Dona Germana e seu Getúlio criaram os filhos somente com os frutos da agricultura familiar.

Nunca tiveram outra atividade. Durante um bom tempo, o ponto alto da lavoura era a

mandioca. Como a maioria das famílias locais, eles produziam farinha e com a venda do

excedente da produção, completavam a compra de mercado.

Com a queda da produção de mandioca, tiveram que criar alternativas de sobrevivência. Com

as informações adquiridas nos encontros do movimento, fizeram o cadastro no Programa

Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), para fornecer alimentação escolar. A polpa de

frutas é o principal produto fornecido pela família.

E, apesar de ter saído da diretoria do sindicato, o trabalho com o Grupo de Mulheres Feito por

Nós não parou. Uma frente de trabalho capitaneada pelo Grupo, responsável por alavancar a

Associação dos Agricultores e Agricultoras da Comunidade de Mutum ‘Feito por Nós’ é a

padaria.

A padaria surgiu da necessidade da comunidade de consumir o pão fresquinho. Quando viram

a possibilidade de, além de consumir o pão mais gostoso, melhorar a renda, que estava muito

baixa, por conta da crise da mandioca, muitas famílias aderiram ao projeto.

O pão é produzido diariamente. Tem uma escala, com os responsáveis por cada dia. Uma

taxa, proporcional à produção, é dedicada ao “fundo” que criaram para manutenção de

equipamento e de energia.

Quando tem bastante encomenda, cada família chega a receber mais de um salário mínimo no

final do mês. Junto com a polpa de fruta e outros produtos, eles conseguem arrecadar mais de

dois salários mínimos por mês. Além de melhorar a renda, economizam com o que deixam de

comprar no mercado e melhoram a qualidade do que vai para a mesa.

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Esse esquema colaborativo, de ajuda mútua, é um dos segredos do sucesso de Germana e sua

família. Até mesmo os filhos que têm trabalho assalariado, fora da propriedade familiar,

colaboram financeiramente com o que precisa em casa.

Apesar das melhorias nas condições de vida da família, os sonhos e projetos de futuro não

seriam tão impactantes, se não fosse a mudança de perspectiva de vida que o Grupo de

Mulheres trouxe para Germana. Segundo ela, houve uma transformação da própria identidade.

Aprendi a conhecer quem eu sou. Me sinto mulher, não totalmente realizada, mas definida. Sei até aonde posso chegar porque muitos tropeções a gente leva por falta de saber lidar com as coisas, o que eu posso o que eu não posso. Colocar a mão até onde meu braço pode alcançar. É, ter uma segurança, uma definição própria, não ser levado, porque hoje o mundo está aí, não por dizer que eu sou uma pessoa já de idade pra não entrar nas coisas do mundo, né? Mas se a pessoa tem mais firmeza, ela fica mais segura desses atos.

.

Com todo o equilíbrio, força de trabalho e esforço individual, o êxito do empreendimento

rural familiar se esbarra em políticas públicas. São abertas as linhas de crédito, mas não tem

acompanhamento técnico.

Essa lacuna faz com que muitos produtores fiquem endividados, porque quando ele consegue

acessar o crédito, por falta de orientações técnicas adequadas, a lavoura não vai adiante.

Germana observa também que o investimento público é muito baixo por projeto.

Estive na secretaria de agricultura, reivindicando recursos para a recuperação das farinheiras e a resposta é que não tem recurso na pasta, então, fazer que nem assim, isso é uma parte que é uma parte de política pública porque pra nós não basta ter uma pasta da secretaria de agricultura, ter o secretário e não ter recurso pra investimento, então, falta muito essa parte da vida no campo.

Cabeça erguida

Para ela, unidas, organizadas, as mulheres fazem muita diferença na luta para qualificar a

permanência do homem e da mulher no meio rural. Mas Germana ainda se frustra com o

comportamento de algumas companheiras. “Muita gente se apega no machismo para justificar

o comodismo, a aceitação. Nesses casos é difícil”.

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Germana não esmorece. Imagina que a vida dos 50 (anos) em diante não será igual ao que foi

antes. Mas ela recorre à autoestima para não se curvar diante das dificuldades, dos problemas.

Ela adquiriu a sabedoria de transformar os problemas em molas propulsoras, que levam a vida

para frente.

Do tempo em que estudar não era prioridade, além de tudo, nasceu mulher. Muita gente da

comunidade, da mesma geração que ela, ficou sem aprender a ler e escrever.

Fui de encontro com professora eu aprendi ler e escrever, não tenho assim, conclusão concreta. Naquele tempo que nem colégio tinha, o professor vinha assim, pegava casa de família, dava aula uma semana, na outra semana já não tinha mais. Eu não sei o que eu tinha, porque mesmo nessas condições aprendi a ler e escrever”.

Hoje, os estudos são prioridade em sua casa.

Hoje meus filhos eu sempre falo pra eles assim, que é pra eles estudarem, formarem, não que, ah, se você não estudar você não é ninguém, a partir do momento que a pessoa tem uma atividade ela é alguém na vida, mas assim, o estudo, hoje, já é uma forma de assegurar pra ele ter um mercado de trabalho. O estudo pra mim e pra eles é essencial”.

É um item tão importante na agenda de Germana que ela recomenda a toda juventude que está

saindo do campo mais atenção a isso. E brada para que os meios oficiais também estejam

atentos:

Eu diria para a juventude, assim, que tivesse pé no chão pra não arrepender depois, porque o futuro está aí e o futuro dos jovens é hoje, não é o amanhã. Pra mim o futuro deles já é pra estar acontecendo no hoje, não é falar que o jovem é o futuro de amanhã. O amanhã é o amanhã e eles já são o de hoje. Queria que eles tivessem pé no chão de que saísse, mas não por um abandono, mas por uma busca de uma formação, de repente de uma faculdade, de um curso a mais pra eles estarem tendo sua formação de profissional, numa área ou em outra...

Não para de fazer planos. E esses planos, totalmente coerentes com a sua história de vida,

envolvem bem mais gente que ela, o marido e os filhos.

Eu tenho o sonho de que a nossa escola tenha uma estrutura física pra lazer e mesmo pra a parte de complementação no estudo porque a nossa escola hoje ela obtém segundo grau completo pra conclusão de estudo, mas não tem uma estrutura física pra trabalho de matéria de educação física, então, quando têm os jogos competitivos, faz os times e saem pra competir lá fora e perde, e volta frustrado, eles voltam frustrado porque a estrutura física onde eles treinaram não se comparou com onde eles foram competir, então, isso eu tenho um sonho que seja uma hora trabalhada essa parte pra melhoramento do próprio lugar.

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Germana sente que o produtor rural é pouco valorizado no Brasil. Mas não se arrepende de

nenhuma das suas escolhas. Ao contrário. Ela diz que seu sonho é ter uma propriedade maior

para produzir com mais variedade e deixar um pedaço de chão para os filhos. Na sua filha e

companheira de trabalho, Camila, ela deposita boa dose de esperança de continuidade.

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DESEJOCamila Sales da Silva

olho – “não tem que ter diferença de trabalho de homem e de mulher é só saber lidar com o trabalho que

precisa ser feito”.

Ela é um tipo meigo. Aborda cada assunto de forma pensada e delicada. Fala baixo e devagar.

Camila Sales da Silva é a filha mais nova de Dona Germana – importante liderança na

Comunidade do Mutum, Jangada. A mãe é uma referência importante para Camila, que em

casa é chamada de Neide.

A falta de oportunidades para a juventude rural está resultando no envelhecimento da

população camponesa. Ela é a representante das mulheres jovens da região, que estão

interessadas em se qualificar como produtoras rurais e desenvolver projetos ligados à terra.

Enfim, Camila é uma das poucas jovens brasileiras que ainda acredita na possibilidade de

viver no campo.

Faz parte da primeira turma de formandos do curso de agroecologia oferecido no município

de Jangada. Apesar de apontar uma série de faltas no curso, ela está muito empolgada.

Acredita que com os novos conhecimentos poderá atuar melhor, tanto na propriedade da

família, como em outros projetos de qualificação da produção rural no município.Sempre que aparecerem as oportunidades nós temos que agarrar, mas também não devemos esperar apenas oportunidade, nós também temos que adquirir, fazer as nossas oportunidades surgirem porque ficar parado e esperar também não faz diferença, nós temos que construir também. Ser os novos construtores.

Ela nota, por exemplo, que se houvesse mais acompanhamento técnico, a produção

melhoraria e surgiriam mais oportunidades para os jovens. “Muitos estão saindo para outras

localidades em busca de emprego. Eu vejo que isso não é bom para os jovens porque ao invés

de nós desenvolvermos nosso município, nós damos desenvolvimento a outras localidades,

enquanto nós jovens podemos desenvolver aqui”.

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As lembranças da infância são de muitas brincadeiras, mas também de trabalhar junto com os

pais no plantio e na colheita. Ela não tem nenhuma queixa dessa fase. Ao contrário. Sente

muito orgulho por saber lidar com a terra. Coisa a que muitos amigos não tiveram acesso.

Considera-se uma privilegiada. Porque ia para escola, brincava com os colegas, trazia os

colegas também para roça, cavava com a plantação. “Tudo isso em forma de diversão, mas

era uma oportunidade. Meus pais ensinaram desde pequena a lidar com a vida, trabalhar.

Agora é a faculdade, né? Ver o que eu posso fazer”.

Ela não está muito decidida sobre os próximos passos. Quando criança, pensou em ser

jornalista. Agora, está dividida entre agronomia ou alguma outra carreira ligada ao magistério.

No fundo, o que ela quer é uma profissão que possa exercer com qualidade e colaborar para o

desenvolvimento da localidade em que vive.

Camila tem mais três irmãos. Os três têm curso superior. Em matemática e educação física.

Quer fazer como a irmã que mora em Cuiabá, há quatro anos, mas vai voltar, assim que colar

grau. Ela só não abre mão de participar do Grupo de Mulheres. Ir aos encontros, participar dos

cursos, trocar experiências com outras jovens e também com as mulheres mais experientes.

Camila participou da Jornada Mundial de Juventude, no Rio de Janeiro. Ela já conhecia

Brasília e Mato Grosso do Sul, mas nunca tinha viajado de avião.

Meus amigos que estavam disseram assim: nós chegamos na cidade maravilhosa. Eu pensei assim, bem que eu poderia vir estudar aqui no Rio de Janeiro e voltar pra lá. Eu pensei nisso, porque vi que é uma cidade bem estruturada e também nós fomos a passeio, é diferente de quando a gente mora lá, né? Aí, talvez se fosse morar, aí falava assim: ô, lá no meu município é bem melhor do que aqui.

Mesmo diante dos possíveis benefícios de um centro urbano bem estruturado, Camila não se

confunde.

Eu gosto daqui porque tem tudo bem natural. Lá é bem mais difícil porque tudo, pra gente sair tem que estar com dinheiro. Não que aqui onde nós moramos não tenha que ter, mas se nós sairmos aqui, conversamos com o vizinho e troca com alguma coisa. Lá, assim, vizinho, a gente pode até estar morando perto deles, mas sai pro serviço mal vê eles, fala um bom dia, boa tarde ou nem, às vezes, fala bom dia, boa tarde. Aqui é bom porque tipo, bem mais fácil de lidar com as pessoas do que na cidade e, aí eu vejo que aqui é bem mais fácil. Porque, às vezes, a gente vê, só pela aparência: ah, bem que poderia morar lá, porque lá é muito melhor, tem mercado, tudo perto, mas não adianta ter mercado e não ter o dinheiro pra manter o que você

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quer. A estrutura depende bastante também, mas também tem que ver qual que é o melhor, porque não adianta sair daqui, morar na cidade e tipo, lá assim, o ar puro lá a gente não tem pra respirar igual nós temos aqui. Eu gosto de morar, gosto dos animais tudo, mas o que eu mais gosto é de ver o natural daqui, fazer também, tentar mudar aqui, o jeito de ser. Buscar novos projetos pra ver se tem melhoria, não de construir novos prédios porque isso daí também prejudica muito aqui, quando vem a chuva, não tem pra onde correr as águas, igual na cidade quando acontece chuva e não tem como as águas correrem, tem tudo assim, nós temos o pedacinho da nossa terra, tem como cultivar, vejo que é bom produzir, tirar o próprio alimento da sua terra, é bem mais saudável.

O laboratório que não teve na escola de agroecologia teve em casa. A família cultiva

mandioca, milho, banana, mamão e outros.

Variedades. A monocultura é muito prejudicial aqui pra nós, não adianta plantar só uma cultura, nós temos que desenvolver pra ter várias culturas de plantações, até pra manter a família porque a maior parte do sustento daqui de casa vem é da padaria e daqui da agricultura familiar. Minha mãe faz entrega pra escola que é da agricultura familiar. Está sendo bem aceita.

Sobre a relação entre homens e mulheres no curso de agroecologia, ela fala sobre a

importância de garantir que ambos tenham acesso ao mesmo tipo de conteúdo e à situação de

aprendizagem. Para Camila, tudo que os homens fazem as mulheres podem fazer. E vice-

versa. Eu acho que não tem que ter diferença de trabalho de homem e de mulher é só saber lidar com o trabalho que precisa ser feito. Já vi muitas mulheres estarem virando pedreira, trabalho que é do homem, elas também estão sabendo lidar com isso. Igual também falam que comida é mulher que faz, os homens também, como meu pai mesmo, quando nós não estamos aqui ele que cozinha. Tem que não ter mais esse machismo dos homens.

Uma das atividades importantes no cotidiano de Camila é a padaria comunitária. É um

empreendimento coletivo, tocado pelas mulheres. Se for produtora rural, Camila quer ter um

negócio próprio. “Até perguntei por que não estão pagando meu sindicato? Disseram que é

porque estão esperando ver se eu vou seguir esse tipo de profissão mesmo ou uma outra

profissão, como a de professora”.

Compara a sua vida à da mãe. Mesmo tendo que trabalhar, hoje encontra outro tipo de

estrutura. Usa energia elétrica, água encanada. Mora em casa de alvenaria. O acesso à saúde

ainda é muito ruim, mas era pior. “Eu ainda ouço falar que a vida ainda está muito ruim, mas

pra mim eu vejo que está bom, porque pelo que minha mãe conta, que naquela época pra

beber água tinha que pegar na cacimba, rumar na cabeça e agora a água sai na porta da casa,

tem geladeira, tudo do bom e melhor. Não tem tudo, mas já considero bem mais fácil”. 65

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Apesar de ser muito jovem, Camila demonstra muita consciência das suas escolhas. Alerta

que para viver na roça é preciso insistir, persistir. Mas é preciso também ter acesso à

formação. Aprender as técnicas e contar com acompanhamento.

Camila confirma que quer voltar para a escola onde ela começou a estudar e também ter o

tempo para trabalhar com agricultura familiar: “sendo professora, nem que for diretora,

alguma coisa que eu consiga mudar a estrutura da escola e virar uma fazendeira, mas não uma

fazendeira dos grandes latifúndios, e sim produzir alimentos saudáveis”.

Os planos são incontáveis. Para a propriedade da família, para a escola... Mas ela não quer

desistir do jornalismo. Casamento e filhos, só depois de concluir os estudos. Pensa que se for

professora, depois que já estiver com um salário, pode financiar a segunda formação e

escrever sobre a sua região. “Quem sabe? O ENEM tá aí! Mas ainda tenho o sonho de ser

professora e voltar pra cá mesmo”.

Muitos jovens saem em busca de trabalho porque acham que aqui agricultura familiar não dá rendimento, mas não adianta nada eles saírem pra ir em busca e, muitas vezes, eles saem da agricultura familiar, mas faz, às vezes, muito mais do que se estivessem na sua própria terra, saem pra trabalhar para os fazendeiros. Poderia estar dando rendimento aqui e eles saem pra fazer pra outro e aí, às vezes, não é nem o pagamento que era pra ser. Mas assim, tipo, fala assim: ah, eu estou pra Cuiabá. Acha que é bonito falar que está numa cidade, mas, às vezes, lá é bem pior do que aqui.

fim

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