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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E POS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA, ARTES E CULTURA REGIONAL SONYELLEN FONSECA FERREIRA WAYAMURI PANTONÎ AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO BOA VISTA 2016

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Page 1: WAYAMURI PANTONÎ AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO … · parte das atividades a serem desenvolvidas dentro do projeto de pesquisa Panton Piá: Registro e Análise na Terra Indígena

UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E POS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: LITERATURA, ARTES E CULTURA REGIONAL

SONYELLEN FONSECA FERREIRA

WAYAMURI PANTONÎ

AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO

BOA VISTA 2016

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SONYELLEN FONSECA FERREIRA

WAYAMURI PANTONÎ

AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO

Dissertação apresentada à banca examinadora como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Letras, na área de concentração de Literatura, Artes e Cultura Regional.

Devair Antônio Fiorotti

Orientador

BOA VISTA 2016

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SONYELLEN FONSECA FERREIRA

WAYAMURI PANTONÎ

AS HISTÓRIAS DO JABUTI DE CAETANO RAPOSO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

Letras da Universidade Federal de Roraima como critério para obtenção do

título de Mestre em Letras, defendida em 15/04/16 perante a banca

composta pelos seguintes professores:

Prof. Dr. Devair Antônio Fiorotti

Orientador/ UERR- PPGL/UFRR

Profa Dra. Rosângela Pereira de Tugny

Membro/UFSB

Profa Dra. Cátia Monteiro Wankler

Membro/ PPGL/UFRR

Profa Dra. Maria Helena Valentim Duca Oyama

Suplente

BOA VISTA 2016

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Aos narradores indígenas, em especial a Caetano Raposo.

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AGRADECIMENTOS

De agradecimentos é feito este trabalho, mas muito mais de ajuda e

colaboração. Tanto que torna-se difícil arrolar a todos sem esquecer

desmerecidamente ninguém.

Primeiro agradeço a quem devo o que sou e, aliás, só por causa deles é

que sou e porque comecei antes de mim. À minha mãe, Eliete Praia Fonseca,

amada para além do sempre, meu sol de amor, que tanto de sua vida, amor,

tempo, sabedoria e vivacidade dedicou a mim e meus irmãos. Só com você,

mamãe aprendi o amor e que ele existe, mas que também existe quem não

sabe amar.

Ao meu pai, Edmilson Batista Ferreira, espírito indômito e impertencível.

Levei muito tempo tentando compreendê-lo e hoje sou capaz de dizer que o

compreendo. A sua lição me disse que nada nem ninguém está sujeito a nada

nem ninguém, não importa o que ou quem seja. Aprendi que o amor existe,

mas é muito abstrato e até intransferível, por isso necessita do gesto para que

se estabeleça. Cara lição.

Aos meus irmãos Edyellen, Ellyelson e Renato Fonseca Ferreira que

me ensinam que o caminho se faz caminhando, ainda que por vias tortas e

trechos solitários, e que vale palmilhá-lo cada centímetro quando se tem um

pavimento de amor e amizade como os que temos.

Aos meus já e tão cedo velhos amigos com quem pude compartilhar

angústias, ideias, horas, livros, lágrimas e risos, que acreditaram em mim,

antes de mim mesma e assim sendo, cá estou lhes dizendo obrigada, Otacílio

Gabriel, Kalhianne Alves, Roberto Mibielli, Sheila Praxedes e Raiane

Costa dos Santos.

A Devair Fiorotti, assim, pois sua presença em minha vida vai além de

títulos e definições e porque seu nome, apesar da intrusão vocálica, já

prenunciava qualquer coisa de transformação para mim, para nós. Obrigada

por me ensinar que o tempo não é linear e por isso me readolescer de quando

em vez. Obrigada pela generosidade com que me apresentou às narrativas de

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Caetano Raposo e pela confiança, até demais, em minha escrita. Esse trabalho

é uma espécie de espelho em tintas negras, onde você pode ler-se. Obrigada.

Aos professores e colegas de curso do Programa de Pós-Graduação

em Letras da UFRR pelo conhecimento compartilhado em sala de aula.

Ao ensino público que me permitiu chegar aqui e dizer é possível

acreditar na educação como possibilidade de (re)humanização do homem, da

diminuição do sofrimento humano e das desigualdades sociais, de gênero,

racial e tantas outras. Que permitiu olhar para além da mera formação de

profissionais bem preparados, mas rumo de fato ao humano.

Às pedras do caminho, que me ensinaram a ser mais humana e a

continuar caminhando, pois por causa delas me dei conta de que poderia ser

maior que elas e apesar dos descaminhos, chegar aqui. Foi pela educação das

pedras que vi a pedra do tempo ressignificado e assim, empilhando as pedras

do caminho, jogar amarelinha com a pedra do tempo. Pois elas me fizeram

perceber que não apenas o meu destino, mas o de todos que a vida toca, o

nosso destino vai além.

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Tudo é perigoso; sobretudo quando tudo é gente, e nós talvez não sejamos.

Eduardo Viveiros de Castro

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RESUMO

Este trabalho apresenta e analisa as narrativas do jabuti de Caetano Raposo, indígena Macuxi, da comunidade da Raposa, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Roraima, Brasil. Narrativas que, embora criadas e difundidas pela tradição oral, são recriadas e complexificadas em instâncias semânticas, estéticas e literárias através da presença ativa do narrador. A partir disso, busca entender o que encanta nas narrativas de Caetano Raposo, além de por que surge esse encantamento. Discute, com isso, o processo de fabulação, associado ao riso do Jabuti presente na narrativa e sua relação com a performance. Palavras-chave: Literatura oral indígena, jabuti, riso, performance.

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ABSTRACT

This work aims to present and analyze the narratives turtle’s Caetano Raposo, indigenous Makushi, from Raposa community, in Raposa Serra do Sol indigenous territory, Roraima, Brazil. Although these narratives were created and spread by oral tradition, they are recreated and made more complex in semantic, aesthetic and literary instances through the active presence of the narrator. From that seeks to understand what delights in Caetano Raposo narrative, and why comes out this delightful. Argues, therefore, the process of confabulation, associated with turtle laughter present in the narrative and its relation to performance. Keywords: Oral indigenous narrative, Turtle, laugh, performance.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................... 10

CAPÍTULO I: Uma sequência de jabutis pelo mundo afora................. 14

Sobre cascos e artimanhas........................................................................ 17

Ipicui auti maiaué....................................................................................... 20

O carumbé................................................................................................. 30

A Onça....................................................................................................... 38

CAPÍTULO II: Da voz à letra.................................................................... 42

A fábula e as formas narrativas................................................................. 48

Panton: literatura indígena......................................................................... 56

A prática discursiva.................................................................................... 71

CAPÍTULO III: Hã'! Hã'! Hã'!– E o Jabuti ri............................................ 75

O riso do Jabuti.......................................................................................... 77

O riso do Raposo....................................................................................... 83

A performance............................................................................................ 92

CONSIDERAÇOES FINAIS....................................................................... 99

REFERÊNCIAS......................................................................................... 102

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INTRODUÇÃO

Não se passa imune às pessoas, nem a uma boa história. Pelo menos

eu não passei, ainda mais quando esta pessoa é um exímio narrador como

Caetano Raposo. Suas histórias têm como protagonista um animalzinho

inusitado como o jabuti e findam com uma contagiante e peculiar gargalhada:

Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!1 Incumbida de transcrever

a entrevista de Caetano Raposo pelo Prof. Dr. Devair Antônio Fiorotti, como

parte das atividades a serem desenvolvidas dentro do projeto de pesquisa

Panton Piá: Registro e Análise na Terra Indígena do Alto São Marcos e

Raposa Serra do Sol,2 fui capturada para o mundo de encanto destas

narrativas.

Indígena do povo Macuxi, um dos majoritários em Roraima, Caetano

Raposo é um artista da palavra, agraciado por uma memória admirável que,

apesar da intempérie do tempo e da frágil saúde, possui vigor criativo para

encadear uma série de narrativas fabulares, tendo como protagonista o astuto

jabuti. Nestas narrativas, todo casco e artimanha, apesar da fragilidade que sua

natureza inspira, o jabuti consegue, através da esperteza, ludibriar e vencer

animais muito maiores, entre eles sua predadora mais voraz: a onça.

Entrecruzando memória coletiva e talento pessoal invulgar, as narrativas

do ciclo do Jabuti de Caetano Raposo incitaram-me uma série de

questionamentos, resumidos aqui em uma única pergunta: O que torna estas

narrativas tão particulares dentre as demais que se nos apresentaram ao longo

do tempo e do espaço, já que com seu casco-escudo, o quelônio pode ser

encontrado em narrativas que vão da mitologia hindu, passando pelas fábulas

1 Essa é uma tentativa, fracassada desde já, de transcrição da risada do Jabuti de Caetano Raposo, já que tanto IPA (International Phonetic Alphabet) quanto especialistas consultados na área de Fonética e Fonologia não conseguiram representar os sons que se apresentam no momento da risada de forma satisfatória. 2 Projeto iniciado em 2007, primeiro registrou 29 narradores indígenas de 17 comunidades da TI São Marcos. Depois, concluiu em 2014 as entrevistas de mais 10 narradores, de seis comunidades, na TI Raposa Serra do Sol. Os narradores estão assim distribuídos: 27 homens e 12 mulheres, sendo por etnia: 24 macuxi; seis taurepang; seis wapishana; uma indeterminada. Na terceira fase, iniciada em 2015, o projeto está registrando e analisando cantos, rezas e supertições de indígenas dessas duas terras. Desde 2007 o projeto é financiado pelo CNPq e vinculado à Universidade Estadual de Roraima - UERR. A metodologia de coleta e trato com as narrativas sustenta-se principalmente na História Oral (ALBERTI, 2004).

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esópicas, às narrativas indígenas dos povos caribe e aruak?

Este trabalho nasce ainda do desejo de conhecer mais do povo cujo

sangue também corre em minhas veias, como tributo a meus ancestrais

indígenas. Assim como tantos outros projetos, este mudou muito desde sua

escritura primeira, mas em essência permanece fiel ao seu intento primordial.

Eu sabia que queria trabalhar com literatura indígena e me recusava – e ainda

recuso – a não acreditar que narrativas como as de Caetano Raposo sejam

menos do que isso: Literatura.

Nasce, além disso, do desejo de contestar a imagem do índio

emudecido, tartamudeando uma linguagem ininteligível que forjou sua imagem

desde A carta de Pero Vaz de Caminha e que durante muito tempo foi

difundida pelos viajantes e etnógrafos dedicados ao estudo dos povos

indígenas, a partir do século XVI, situação essa que estabeleceu até muito

pouco tempo atrás, uma espécie de união aduaneira cujo trânsito cultural exige

um valor muito mais oneroso dos elementos culturais provenientes do lado

indígena do que do não-indígena. Isto resultou na exclusão do indígena como

produtor simbólico de literatura e no seu extenso silenciamento, demonstrando

uma espécie de reserva cultural e, no limite, literária por parte da academia. É

também o reconhecimento acadêmico da riqueza cultural que representam os

narradores como Caetano Raposo e suas narrativas que, além de habitar e se

entrelaçar na voz e memória dos habitantes de Roraima, são pertencentes à

tessitura cultural do estado.

O método escolhido para lidar com as narrativas foi o da História Oral,

uma vez que produzindo as próprias fontes de consulta pode contribuir para as

diversas disciplinas das ciências humanas. Como afirma Verena Alberti:

A história oral pode ser empregada em diversas disciplinas das ciências humanas e tem relação com categorias como biografia, tradição oral, memória, linguagem falada, métodos qualitativos etc. dependendo da orientação do trabalho, pode ser definida como método de investigação cientifica, como fonte de pesquisa, ou ainda como técnica de produção e tratamento de depoimentos gravados (2005, p. 17).

Seguindo as etapas de entrevista, transcrição, conferência de fidelidade

e copidesque, a escolha deste método foi importante pelo fato de reconhecer

no entrevistado o ator/testemunha de acontecimentos, conjunturas,

movimentos, instituições e modos de vida contemporâneos (ALBERTI, 2003).

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Também, é relevante por reconhecer a narrativa enquanto elemento basilar na

construção de conhecimento acerca de uma perspectiva particular de um

sujeito, já que:

Um acontecimento ou uma situação vivida pelo entrevistado não pode ser transmitido a outrem sem que seja narrado. Isso significa que ele se constitui (no sentido de tornar-se algo) no momento mesmo da entrevista. Ao contar suas experiências, o entrevistado transforma aquilo que foi vivenciado em linguagem, selecionando e organizando

os acontecimentos de acordo com determinado sentido. (ALBERTI, 2003, p. 01)

Reconheço neste trabalho que, mais do que narrar as histórias do jabuti

transmitindo o legado cultural de seu povo pela oralidade, Caetano Raposo o

cria e recria em outra instância semântica através de sua performance. Por

performance podemos entender a relação estabelecida entre a linguagem

verbal e a corporal ou, como afirma o estudioso suíço Paul Zumthor:

performance é uma realização poética plena: as palavras nela são tomadas num conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão corrente (em princípio) que, mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como tal faz sentido ( 2005, p. 87).

Por isso, além do texto estabelecido por escrito, a análise ateve-se ainda

ao áudio e ao vídeo da entrevista com Raposo.

Nesse contexto, a História Oral enquanto método não compreende o

processo de transformar em linguagem vivências como uma tradução direta da

realidade, mas sim que “conhecimentos e ideias tornam-se realidade à medida

que, e porque, se fala. O sentido se constrói na própria narrativa; por isso se

diz que ela constitui (no sentido de produzir) racionalidades” (ALBERTI, 2003.

p.01). Esta perspectiva é muito importante no sentido de reconhecer a

relevância destes narradores enquanto produtores de conhecimento e de

contestar a representação do indígena emudecido, silenciado.

O primeiro capítulo é dedicado a um breve rastreamento da presença

dos quelônios em narrativas engendradas por diversas culturas espalhadas ao

longo do tempo e das latitudes. Trabalha-se aqui com a ordem, pois as suas

espécies apresentam características similares e de interesse ao trabalho aqui

presente: vagarosidade, fragilidade, mas que se transformam em sabedoria,

esperteza, nas narrativas. Presente em praticamente todos os cinco

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continentes, tartarugas, cágados e jabutis pertencem à mesma ordem, dos

quelônios e, embora compartilhem da mesma vagareza e casco, possuem

algumas diferenças morfológicas e de habitat. Enquanto cágados e tartarugas

são capazes de viver na água – doce ou salgada – o jabuti habita

exclusivamente a terra. Apresentamos, em seguida, como a espécie terrestre

do animalzinho, o jabuti, encontra-se presente nas narrativas indígenas

relatadas pelas crônicas dos viajantes e estudiosos da Amazônia, como

Charles Frederik Hartt, Couto de Magalhães, Silvio Romero, Theodor Koch-

Grünberg e Luís da Câmara Cascudo, além de apresentar Caetano Raposo, o

narrador das peripécias de carumbé.

Já o segundo capítulo debruça-se sobre as peculiaridades relativas à

narrativa de origem oral, a partir da análise das narrativas de Caetano Raposo

e da comparação com outras narrativas fabulares apresentadas no capítulo

anterior, analisando primordialmente enquanto texto literário. Discute como

estudiosos acerca das narrativas indígenas, tais como Jerome Rothenberg,

Dell Hymes, Dennis Tedlock, Barre Toelke têm se desdobrado para lidar com

estas narrativas que distintivamente das narrativas literárias escritas contam

com a presença ativa do narrador através da performance. Discute ainda como

as narrativas são recriadas na instância discursiva, uma vez que, aproximando

as narrativas de Caetano Raposo à fábula e ao que Alceu Dias Lima (1989) e

Maria Celeste Consolin Dezotti (2003) divisaram enquanto forma da fábula,

retoma a narrativa enquanto ato de fala. Por último, analisa a performance

vocal de Caetano Raposo ao longo das oito narrativas do ciclo do Jabuti,

observando as mudanças de timbre durante as trocas de turno de fala e

escolhas estilísticas feitas pelo narrador.

Por fim, o terceiro capítulo detém-se no que mais particulariza as

narrativas de Caetano Raposo: o riso. Analisa o riso enquanto recriação

estética, partindo da reflexão de Ariano Suassuna e também de Aristóteles de

que o homem é o único animal que ri, analisando os significados adquiridos ao

longo da narração. Em seguida, debruça-se sobre o riso levando em

consideração o contexto em que as narrativas foram (re)criadas passando por

aspectos sociais, culturais e mesmo políticos como aponta Paulo Santilli

(2006).

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CAPÍTULO I

Uma sequência de jabutis pelo mundo afora

Caetano Raposo: Aí convidou outros carumbés, companheiros dele. “Tu fica aqui, quando veado perguntar de ti, diga que você tá na frente.” Colocou outro mais na frente. Devair Fiorotti: Uma sequência de jabutis. Caetano Raposo: Éh, de jabutis.

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Tão antiga quanto a humanidade é a necessidade de traduzir em

estruturas narrativas as experiências vivenciadas no seio de uma dada cultura.

Articulando símbolos e engendrando sistemas de representação através da

linguagem, o homem cria tais estruturas que, dentre uma miríade de

possibilidades, intenta responder aos questionamentos acerca de sua

existência em meio ao cosmos. Ainda, a partir das narrativas, tenta justificar a

existência de fenômenos naturais com os quais depara(va)-se, tentam

questionar as atitudes do homem para com ou contra outros homens, etc. Isso

é o que, em geral, vemos nas narrativas. Aqui, narrativa será relacionada à

panton, à história dos povos macuxi, traduzida em narrativas históricas, míticas

e lendárias.3 É também a maneira que encontramos de construir sentidos e dar

significados aos acontecimentos da vida, para que nossa existência não se

perca na sucessão aleatória destes acontecimentos e, assim, nos

desintegremos no caos do existir.

Um elemento capaz de nos retirar desse caos, ou da apatia visguenta da

rotina, e nos lançar em outra dimensão da vida é o inusitado. No inusitado,

muitas vezes, habita a criatividade; nele, muitas vezes, agitam-se as

possibilidades da criação humana. Talvez por isso, o fato de animaizinhos tão

indefesos como a tartaruga, o jabuti e o cágado protagonizar em histórias nas

quais saem vitoriosos tenha sido o motivo que permitiu sua longevidade e

recorrência em muitas narrativas espalhadas ao longo dos tempos e lugares

distintos.

Aliás, longevidade e recorrência são as características do que Paul

Sébillot denominou como literatura oral, em 1881, na obra Littérature Oral de

la Haute-Bretagne (CASCUDO, 1984, p. 23). A literatura oral revela-se através

de um horizonte de conhecimentos e sabedoria engendrados no seio de uma

dada cultura perpetuados pela voz e pelo silêncio. Eles permitem ao gesto

ampliar os significados e corporificar o som através do movimento,

possibilitando a essas vivências serem impressas na memória de um povo.

Vivências que a cultura ocidental tentou domesticar através de gêneros

3 No segundo capítulo, dedico um subcapítulo "Panton: literatura indígena", para lidar com essa

palavra.

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estanques, classificando as narrativas coletadas em mitos, lendas, fábulas,

contos, como bem lhe soavam no momento em que foram ouvidas.

Luís da Câmara Cascudo em Literatura Oral no Brasil (1984),

reconhecendo a relevância dos conhecimentos transmitidos de boca a ouvido

na formação da cultura brasileira, divide-os em duas forças que mantêm a

literatura oral viva. A primeira, estritamente oral, incluiria histórias, cantos

populares e tradicionais, danças de roda, danças cantadas, danças de

divertimento coletivo, ronda e jogos infantis, cantigas de embalar (acalantos),

estrofes de velhas xácaras e romances portugueses com solfas, músicas

anônimas, aboios, anedotas, adivinhações, lendas, etc. A outra força se daria

através da reimpressão de antigos livrinhos oriundos de Espanha ou Portugal,

a produção contemporânea feita por processos de versificação popularizada.

Processos que fixariam assuntos da época, tais como guerras, política, sátiras,

histórias de animais, fábulas, ciclo do gado, da caça, amores e mesmo a

poetização de romances como Romeu e Julieta. Essa forma, em particular,

embora já vertida para a palavra escrita, afirma Cascudo, é parte da literatura

oral, uma vez que

Com ou sem fixação tipográfica essa matéria pertence à literatura oral. Foi feita para o canto, para a declamação, para a leitura em voz alta. Serão depressa absorvidos nas águas da improvisação popular, assimilados na poética dos desafios, dos versos, nome vulgar das quadras nos sertões do Brasil. (1984, p. 24)

Mas muito mais do que a transmissão irrefletida, esvaziada de

significação, estabelecida meramente pela automanutenção que demanda a

tradição, a transmissão feita pelas vias da oralidade é o compartilhamento da

vivência com o outro. Ela é uma maneira encontrada pelos povos para criar

entre seus membros a sensação de pertença a uma comunidade baseada na

experiência cotidiana, nas experiências que tornam o homem, de fato, humano.

Narrar foi e é inscrever-se na humanidade e na cultura, e a memória foi e é a

faculdade que nos permitiu e permite manter-nos nelas.

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Sobre cascos e artimanhas

Várias culturas apresentam em suas mitologias a tartaruga,

representando longevidade, persistência e sabedoria. Feurestein (2005) diz

que na mitologia hindu duas são as tartarugas primordiais: Akupara e Chukwa.

A primeira traria sobre seu casco a terra e o mar. A segunda equilibraria quatro

elefantes sobre as costas dos quais repousaria a terra. Nos textos sagrados de

Satapatha Brahmana, Vishnu, uma das potestades da tríade divina hindu, na

segunda de suas dez encarnações, teria adquirido a forma de uma tartaruga,

Kurma. Kurma tinha a incumbência de descer à Terra e recuperar tesouros

perdidos durante o dilúvio que deu vida à raça humana, dentre eles o elixir da

vida. Tarefa cumprida com a ajuda da serpente Ananta e da montanha

Mandara. Essa forma de Vishnu representaria a configuração do universo: seu

plastrão seria a terra, seu corpo, a atmosfera e sua carapaça, o céu.

Feurestein (2005) diz ainda que, assim como na cultura hindu, a chinesa

partilha do mito de que sobre o plastrão de uma tartaruga repousa a terra,

depois que a deusa criadora Nuwa tomou de uma tartaruga marinha seu casco

para servir de esteio ao céu quando Gong Gong, um deus das águas, destruiu

a montanha na qual se amparava. Diz também que outro mito chinês versa que

uma enorme tartaruga com cabeça de dragão saiu das águas de um rio e

revelou a Yu, o imperador fundador da dinastia Xia, qual seria a forma com que

dividiria o mundo e em cada ponto cardeal desta divisão seria governado por

um animal. O norte regido pela Tartaruga Negra, o sul pela Fênix, o leste pelo

Dragão e o este pelo Tigre. Feita de água, fogo e luz de estrelas, trouxe inscrito

no casco o Hong Fan, a regra geral. Alguns chineses antigos afirmam que

estas inscrições são uma forma primeva de sua escrita diagramática.

Feurestein fala ainda que os indígenas norte-americanos também

pagam tributo ao quelônio. Para o povo Iroquoi o universo é concebido como a

Ilha da Tartaruga, o lar do Grande Espírito que o teria assentado sobre as

costas do animal. Nessa ilha ninguém jamais havia experimentado o

nascimento, a morte ou a tristeza e do seu centro erigia-se, diretamente da

espinha dorsal da tartaruga, uma árvore sagrada. Essa crença difunde-se entre

outros povos habitantes da costa leste dos Estados Unidos. Contudo em uma

delas, ganha uma abordagem que distancia-se do aspecto mítico das demais

narrativas. Entre o povo Wabanaki, Mikcheech é o velho e trôpego tio do herói

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cultural Gluskap que, após uma série de desventuras, transforma-se em

tartaruga na tentativa de arranjar uma esposa.

Na cultura ocidental, a tartaruga ganhou popularidade através da fábula

"A tartaruga e a lebre", de Esopo. Na narrativa, a lépida lebre resolve apostar

uma corrida com a vagarosa tartaruga. Valendo-se de sua reconhecida

velocidade, a lebre decide, no meio da corrida, cochilar, enquanto a tartaruga

continua lenta e persistentemente seu trajeto, fato que acaba levando-a à

vitória.

Apesar de sua indefinição pátria, podemos atribuir ao narrador de

origens obscuras, Esopo, o título de pai daquilo que hoje conhecemos como

fábula. Esopo seria originário da Ásia Menor, não sendo raro ser descrito como

oriundo da Frígia, e teria vivido entre finais de século VII a.C. e VI a.C. Era

escravo na Grécia e foi reconhecido como um virtuoso fabulista, fato que o fez

conquistar sua liberdade. Esopo foi o principal entusiasta do gênero, levando-o

à sua popularização além dos limites da Grécia, lugar onde codificou a forma

da fábula e, apesar de gozar da boa companhia de homens ilustres de seu

tempo, não teve acesso à escrita, imortalizando suas narrativas através da voz.

As fábulas atribuídas a Esopo datam de cerca de dois séculos após sua morte,

pelo coligimento de Demétrio de Falero (SAMPAIO, 2006. p. 34) .

Jean de La Fontaine (1621-1695), influenciado por Esopo, reconta a

famigerada corrida entre a lebre e o quelônio na obra Fábulas Escolhidas, de

1668. Entretanto, a despeito de Esopo, La Fontaine o fez não enquanto prosa,

mas enquanto verso, elevando o prestígio da narrativa entre os leitores da

época (COELHO, 1982). Coelho diz ainda que o fabulista preservou a

simbologia atribuída aos animais por Esopo: a lebre manteve-se representante

da empáfia e a tartaruga da perseverança.

Em Os Nascimentos (2010), primeiro livro da trilogia Memória do fogo,

Eduardo Galeano dispõe-se a narrar a história da América Latina através de

mitos indígenas fundacionais. Assim nos diz sobre o surgimento da tartaruga:

Quando baixaram as águas do Dilúvio, era um lodaçal o vale de

Oaxaca. Um punhado de barro ganhou vida e caminhou. Muito devagarinho

caminhou a tartaruga. Ia com o pescoço esticado e os olhos muito abertos, descobrindo o mundo que o sol fazia renascer.

Em um lugar que fedia, a tartaruga viu o urubu devorando cadáveres.

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– Me leva para o céu – rogou. – Quero conhecer Deus. Muito se fez de rogado o urubu. Estavam saborosos os mortos. A

cabeça da tartaruga aparecia para suplicar e tornava a meter-se debaixo da carapaça, porque não suportava o fedor.

– Você, que tem asas, me leva – mendigava. Farto da pidona, o urubu abriu suas enormes asas negras e

empreendeu voo com a tartaruga nas costas. Iam atravessando nuvens e a tartaruga, escondida a cabeça, se

queixava: – Como você cheira mal! O urubu se fazia de surdo. – Que cheiro de coisa podre! – repetia a tartaruga. E assim até que o pássaro perdeu sua última paciência, e se

inclinou bruscamente e jogou-a para a terra. Deus desceu dos céus e juntou seus pedacinhos. Na carapaça a gente vê os remendos. (GALEANO, 2010, p. 42-43)

Já aportando em terras brasileiras, Monteiro Lobato (1882-1948) seria o

próximo a propagar as peripécias do quelônio em suas histórias infantis,

revisitando a obra de Esopo e incluindo narrativas oriundas dos povos

autóctones. Ele, o quelônio, protagoniza várias das narrativas de Monteiro

Lobato presentes na obra Histórias de Tia Nastácia (1937). Por exemplo,

através da voz da amável negra, em “O cágado na festa do céu”, tia Nastácia

revela a Pedrinho, Narizinho e à boneca Emília o motivo pelo qual os indígenas

acreditavam ser o casco do animal repleto de segmentos. Na narrativa

acontecia uma grande festa no céu de três dias. Contudo, vagaroso como é o

cágado demorava-se a chegar. Por isso pede ajuda à perversa garça que, à

boa altura do solo, solta o pobre animal que se estilhaça. Com pena, Deus

restaura seu casco que, assim, adquire a aparência fragmentada que possui.

Já no casco da espécie terrestre do quelônio, o jabuti protagoniza outras sete

histórias, em que se depara respectivamente com o homem, a caipora, a onça,

a fruta, o lagarto, o jacaré e com os sapinhos.

Outro autor brasileiro que fez da tartaruga personagem de uma de suas

Fábulas Fabulosas (1973) foi Millôr Fernandes (1924 – 2012). Contudo, em “A

morte da tartaruga”, o bichinho não leva a melhor. Henriquinho desconsolado

acorda o pai ao saber da morte da sua tartaruga de estimação. Consternado e

convencido de que o momento é o propício para ensinar ao filho o significado

da morte, o pai persuade o filho a realizar um grande funeral. Entretanto,

contrariando as constatações de seus donos, a tartaruga dá sinais de vida,

frustrando a cerimônia. O que não desanima o menino que retorque ao

comentário do pai que não seria preciso mais realizar o funeral: “Vamos, sim,

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papai! – disse o menino ansioso, pegando uma pedra – Eu mato ela!”

(FERNANDES, 1999, p. 99)

Ipicúi auti maiaué

Apesar de inscrever o jabuti na literatura brasileira, Monteiro Lobato não

foi o primeiro a apresentá-lo enquanto personagem importante de narrativas e

escritos literários. Em Literatura Oral no Brasil (1984), Luís da Câmara

Cascudo perscruta as raízes da tradição oral brasileira. Organizada em dez

capítulos, a obra discute desde as fontes que mantêm a literatura oral viva,

passando pela contribuição dos povos formadores da cultura brasileira, até

chegar à classificação do repertório oral em contos, poesia, autos e danças

dramáticas. Cascudo reúne diversos relatos publicados pelos estudiosos da

cultural oral brasileira e pelos cronistas viajantes dispostos a desvendar os

mistérios da Amazônia e de seu povo. Em certa passagem, Cascudo aponta

para a recorrente presença do jabuti nas narrativas coligidas pelos viajantes:

As fábulas que encontramos nos divulgadores de estudos indianistas raramente deparamos na reminiscência popular brasileira talqualmente fora registrada pelo general Couto e Magalhães, Barbosa Rodrigues ou Carlos Frederico Hartt. As aventuras do jabuti aparecem ao redor do Conje (coelho) na sul América central. No populário brasileiro substituem-no o macaco, o sapo, a raposa. O jabuti denuncia a predileção indígena. É inútil procurar uma estória do jabuti, prestigioso na oralidade tupi, nas recordações dos pescadores do litoral nortista, mesmo praianos descendentes de tupi. O domínio do jabuti e de suas façanhas é o extremo-norte, Pará – Amazonas. (CASCUDO. 1984. p. 91-92)

Batizado de jabuti, yauti em tupi-guarani, a espécie terrestre da tartaruga

tornou-se tema principal da monografia de Charles Frederik Hartt, Mitos

Amazônicos da Tartaruga, publicada em 1875 e só vertida para língua

portuguesa em 1977 pelos esforços e dedicação de Luís da Câmara Cascudo.4

Na obra, considerada por Cascudo como a primeira coleção sobre o quelônio

divulgada no Brasil, Hartt narra oito façanhas do jabuti (e suas versões),

entremeadas por interpretações de viés astronômico. Ouvidas da boca de seu

fiel piloto, o indígena Lourenço Maciel Parente, de outros indígenas ou

estudiosos, como o capitão de engenheiros do exército, Joaquim Xavier de

4 O título da obra em inglês é Amazonian tortoise myths. O título traduzido por Cascudo é: Mitos amazônicos da tartaruga, contudo, no decorrer da obra, prevalece o uso da palavra jabuti.

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Oliveira Pimentel, Couto de Magalhães, Silva Coutinho, as histórias traçam um

itinerário narrativo que navega pelas águas do rio Amazonas, Tapajós, Branco,

até as fronteiras com o Peru. Recolhidas em Língua Geral, denominação para

as línguas de base indígena, em especial do tronco linguístico Tupi e que

abrangia vastas áreas e povos do território brasileiro no século XVIII, Hartt traz

versões das narrativas indígenas assemelhadas a de outras culturas como a

africana e a oriental, levantando a hipótese de que o ciclo do jabuti tenha sido

transplantado para o Brasil e difundido pelo contato entre os povos formadores

da cultura brasileira.

Uma questão tem sido levantada, se muitas das lendas que tanto se assemelham com as fábulas do Velho Mundo, não podiam ter sido introduzidas pelos negros; eu, porém, não vejo razão para entreter esta suspeita, porque elas são muito espalhadas; a sua forma é inteiramente brasileira, são mais numerosas justamente nas regiões em que não há negros ou em que os há em pequena quantidade e, além disso, elas aparecem não em português, mas na Língua Geral. (HARTT, 1988, p. 22)

Hartt embora salvaguarde as narrativas construídas no bojo das culturas

indígenas devido ao afastamento entre indígenas e negro e à sua narração em

Língua Geral, aponta para a semelhança entre a narrativa nomeada “Como o

jabuti venceu o veado na carreira” e a narrativa negra norte-americana sobre

Balder Deer (veado) e Brudder Coutah (jabuti). Na primeira, o jabuti vence às

expensas de seus parentes que se postam ao longo do percurso da corrida,

valendo-se da semelhança entre si e confundindo o veado que acredita ser o

mesmo jabuti da linha de chegada o da linha de partida. Na narrativa negra,

"Brudder Deer e Brudder Coutah" disputam o amor da mesma senhorita que,

para evitar ressentimentos entre os pretendentes, propõe uma corrida para

decidir quem levará sua mão. Empenhando-se na corrida Brudder Coutah

usando a mesma estratégia do jabuti brasileiro acaba conquistando a senhorita

em questão. Hartt, interpretando a narrativa, atribui aspectos astrológicos à sua

análise. A carreira entre o jabuti e o veado simbolizaria a mesma travada entre

“o sol, o vagaroso, e a lua, a veloz, e parece-me muito provável que os mitos

semelhantes do Amazonas possam ter a mesma significação” (HARTT, 1988,

p. 31). Sobre essa indefinição pátria das narrativas do jabuti, adverte Luís da

Câmara Cascudo que

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O processo não foi exclusivamente de exosmose, mas também de endosmose. As estórias tupis foram para os contos populares portugueses como as estórias populares portuguesas foram para os contos tradicionais dos tupis. Elementos, característicos, cenas, sabidamente da técnica oral lusitana, vivem nas reminiscências orais indígenas. E quando os ciclos, no advento do africano, coincidiam, a estória se fundia, fingidamente íntegra, mas revelando, aos olhos perspicazes, os veios denunciadores da fusão. (1984, p. 86-87)

Também no encalço do jabuti, José Vieira Couto de Magalhães lança em

1876, O selvagem, onde busca deslindar os aspectos e a importância da vida

indígena no território brasileiro. O General Couto de Magalhães tinha para isso

o conhecimento dado pelas gestões políticas nas províncias de Goiás, Pará,

Mato Grosso e São Paulo entre os anos de 1863 e 1889. A obra organizada em

oito partes dedica a sétima parte à mitologia zoológica indígena e são

encaradas como métodos de educação intelectual dos povos primitivos.

Na coleção que se segue, além do sentido simbólico que as lendas possam ter, assunto esse que eu não trato de investigar, porque me faltam ainda estudos de comparação, é muito claro o pensamento de educar a inteligência do selvagem por meio da fábula ou parábola, método geralmente seguido por todos os povos primitivos.

(MAGALHÃES, 2013, p. 208-209)

Nele, no subcapítulo nomeado como Lendas Tupis são apresentados

dez pequenos episódios nos quais o jabuti é personagem central, nos quais

Todos eles foram imaginados com o fim de fazer entrar no pensamento do selvagem a crença na supremacia da inteligência sobre a força física. Cada um dos episódios é o desenvolvimento ou desse pensamento geral, ou de algum que lhe é subordinado. (MAGALHÃES, 2013, p. 209)

Reconhecido pelos indígenas como o mais vagaroso dos animais, que

de acordo com Magalhães suscitou entre os tupis o prolóquio Ipicúi auti

maiaué, ou vagaroso como um jabuti, tem função civilizadora. A seu modo,

claro.

Cada vez que reflito na singularidade do poeta indígena de escolher o prudente e tardo jabuti para vencer os mais adiantados animais de nossa fauna, fica-me evidente que o fim dessas lendas era altamente civilizador, embora a moral nelas ensinada divirja em muitos pontos da moral cristã. (MAGALHÃES, 2013, p. 211)

Uma curiosidade com relação à explicação de Couto de Magalhães é

relativa à função e ao gênero com que ele interpreta tanto as narrativas quanto

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o narrador. De acordo com o estudioso, o narrador seria um poeta e sua

matéria poesia, asserção reiterada na passagem: “Quanto ao estilo das lendas,

há aí alguma coisa de tão singelo e infantil que é impossível vê-las sem

reconhecer que há nisso verdadeira poesia selvagem” (MAGALHÃES, 2013, p.

215).

Assim como Hartt e Couto de Magalhães, Silvio Romero debruçou-se

sobre a cultura oral brasileira e reuniu na obra Contos Populares do Brasil

(1865) a compilação realizada por outros estudiosos, narrativas de

proveniência europeia, africana e tupi, espalhadas por todo o território

brasileiro. O objetivo desta coleção, aponta Teófilo Braga em “Sobre a

Novelística brasileira”, texto que introduz a obra de Romero, possui um caráter

sociológico já que

Colligir essas tradições no syncretismo actual em que se acham, determinar a intensidade de cada elemento ethnico, é um processo de alta importância para avaliar como a par dá assimilação orgânica se está elaborando uma nacionalidade em todas as manifestações da literatura e da arte synthese affectiva, que individualisa e unifica uma nacionalidade em todas as manifestações da literatura e da arte. Foi sob este aspecto que ligámos uma singular importância aos Contos populares do Brazil, coordenando-os ethnologicamente, de preferencia a qualquer disposição esthetica. (ROMERO, 1865, p. VIII-IX, sic.)

Recolhidas basicamente em estados da região nordeste, as fábulas de

origem africana trazem o cágado enquanto figura central em cinco das

dezenove narrativas. Novamente a origem de certas narrativas indígenas é

colocada em questão, embora o autor sobre a contenda não se delongue.

Sobre esta indefinição pátria, Teófilo Braga admite que

A relação ethnica do negro com a pátria brasileira é vastíssima, como se vé pela abundância de Fábulas colhidas da tradição oral. Na Grécia a Fábula era também considerada como proveniente de uma civilização negroide, d'onde a sua designação de Fábulas lybicas, ethiopicas, e a identificação de Esopo com Âithiops A publicação moderna dos Contos dos Zulus, por Henrf Callaway, veiu esclarecer-nos sobre a evolução das fôrmas tradicionaes entre a raça negra, onde apparecem os contos do Renard, do Petii-Pôucet, e a elaboração de um fetichismo que perdeu a fôrma cultuai. (ROMERO, 1865, p. XXII, sic.)

Por isso e pela miscigenação com os indígenas, Braga atribui ao

contato cultural a presença do jabuti nas narrativas dos povos autóctones.

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Partindo para as narrativas de origem indígena, tal como Couto de Magalhães,

ressalta o caráter poético de tais narrativas, além de indicar sua relação com

aspectos mnemônicos quando declara que

Todos os que têm colligido tradições populares conhecem o phenomeno psychologico de desconfiança ou de medo com que o depositários d'esses thesouros poéticos respondem ás interrogações que lhes fazem; receiam descobrir essas reminiscencias queridas, julga-se expostos ao ludibrio dos indiferentes, tem medo ás' vezes que as suas palavras se tornem sortilegios com que os persigam. (ROMERO, 1865, p. 24, sic)

Também, no conjunto de narrativas míticas dos Baniwa, povo do tronco

linguístico Aruak, habitante da região do Alto Rio Negro, Amazonas, encontra-

se o surgimento dos quelônios, em especial, dos cabeçudos. De acordo com as

narrativas, ninguém podia atravessar o Bacaba-poço (Lago de Poperiana), pois

se o fizesse, atrairia a ira de um sucuri muito bravo que por lá vivia. (SANTOS,

2012, p. 203). Entretanto, um homem com seu filho, por ser muito tarde, decide

atravessar o Bacaba-poço. Um redemoinho arrasta a canoa e seu filho para o

fundo das águas. O homem então compreende que o sucuri havia devorado

seu filho e decide flechá-lo. Colocando-se a postos, o homem encontra uma

pessoa, o boto. O boto então avisa que o filho do homem não havia sido

devorado, mas vivia na maloca do Sucuri, sob sua rede. Seguindo as

orientações do boto, o homem entra numa maloca em que vive o Sucuri e sua

esposa. O homem consegue flechar o Sucuri, mas não sua esposa, e

consegue recuperar seu filho. Contudo ao retornar para sua casa, o menino

vive a tomar banho. O pai percebe que o filho não mais deseja viver entre os

homens e o deixa escolher onde quer viver. O menino então decide viver nas

águas, tornando se o pai dos cabeçudos. Alguns dos seus filhos continuam sua

geração de cabeçudos, outra dá origem aos jabutis, e ainda outra em uma

espécie de cabeçudo venenosa.

Adentrando as vastidões do lavrado de Roraima e nas vidas dos povos

por cá habitantes, o alemão Theodor Koch-Grünberg foi um estudioso a

percorrer as trilhas culturais e narrativas dos povos indígenas roraimenses.

Imbuído pelo espírito da volkerkünde alemã, iniciou sua viagem em 1911, com

a tarefa hercúlea de organizar detalhadamente os vocabulários de cerca de 23

povos indígenas, mitos, cantos, lendas e registros fotográficos. Embora “fadada

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ao fracasso”, como bem definiu Erwin Frank (2005), Koch-Grünberg reuniu nos

cinco volumes da obra Von Roroima zum Orinoco (1916), o resultado de sua

empreitada, o que o alçou ao posto de expoente da historiografia cultural dos

povos indígenas em Roraima. No segundo volume de sua obra, Del Roraima

al Orinoco: observaciones de un viaje hecho por Teodor Koch-Grünberg

por el Norte de Brasil y Venezuela durante los años de 1911 y 1913 (1981)

com a obstinação das premissas científicas, legou ao mundo parte dos

fabulários indígenas Karib. Circunscreve geograficamente essas narrativas e

retira-as da boca de um genérico tupi, como em geral se atribuía, e dá nome e

voz aos narradores indígenas. Também, vale destacar que essas narrativas

trazem à luz parte da cultura dos povos do tronco linguístico Karib ao qual

pertence o de Caetano Raposo, o povo macuxi.

As narrativas presentes no segundo volume de Koch-Grünberg foram

coligidas com a ajuda de seus companheiros de viagem, Akuli e Mayuluaípu,

dos povos arekuna e taurepang respectivamente. Enquanto os dois indígenas

narravam nas horas de ócio do acampamento, o alemão vertia do português

traduzido por Mayuluaípu para seu idioma as mais de 50 narrativas que

compõem a obra, além da transcrição em língua indígena do ciclo de Kone’wó,

Makunaima, Piaimã e Zilikawai. Nestas narrativas, a tartaruga (na tradução), ou

oazamuli (wayamuri), protagoniza três das narrativas que compõem o que

classificou o naturalista de fabulas animales. A tradução, a princípio, se

equivoca. Em Macuxi, por exemplo, existem as palavras wayamuri (jabuti),

pitura' (cágado) e warara' (tartaruga) e terekayá (tracajá) para designar

quelônios. Mesmo a tradução optando por tartaruga, iremos nos referir a jabuti

no texto de Grünberg.5

Na primeira fábula Iwaleká y Oazamuli, como definiu o volkekündler, o

jabuti encontra seu compadre macaco em cima da árvore de inajá, comendo

frutas e a ele pede:

– Ay, compadre, échame abajo algunas frutas! El mono contestó: – No, súbete así como he subido yo. La tortuga dijo: – Arrójame por lo menos una para probarla. El mono replicó:

5 Fonte Tiago Simplício Napoleão, indígena da comunidade Napoleão, na TI Raposa Serra do Sol.

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– No, súbete como he subido yo. La tortuga trató de subir, pero no lo logro. Había subido un pequeño tramo del tronco, pero volvió a resbalar hacia el suelo. El mono le mostro como debía subirse, pero la tortuga volvió a resbalarse hasta el suelo. Entonces le dijo al mono: Llévame arriba. El mono constestó: – Está bien. Voy a llevarte. Se bajo. Después llevó a la tortuga al árbol, la dejó sola allá y se fue corriendo. (KOCH –GRÜNBERG, 1981, p. 119)

A narrativa estende-se para o segundo conto, batizado pelo etnógrafo de

Oazamuli, Wailá y Kaikusé (La tortuga, el tapir y el jaguar). Ainda no topo do pé

de inajá o tapir, anta, agora faz o papel de pedinte.

– Ay, compadre, échame abajo frutas. La tortuga dijo: – No, súbete como he subido yo también. El tapir contestó: – Échame abajo frutas. Yo no puedo subir. La tortuga dijo: – No te echo abajo nada. Súbete como he subido yo. No le echo abajo ni una fruta. El tapir se fue. La tortuga comió todas las frutas. ((KOCH-GRÜNBERG, 1981, p. 119)

Desta feita, o Jabuti não sai tão incólume. Ao tentar descer do pé de

inajá cai sobre as espáduas e não consegue desvirar-se por talvez um mês

quando a onça o encontra e tenta comê-lo. Contudo, negocia sua vida em troca

da vida da anta e segue em seu rastro. Empunhando arco e flecha dados pela

Onça, o matreiro Jabuti segue as pistas deixadas pela anta, suas fezes, que

quando indagadas respondem a quantos dias de distância se encontra sua

dona. Já premeditando sua investida, concebe uma solução de muito engenho

e pouca ortodoxia para o mundo ocidental:

– Tengo sed, amigo mío, Orina en mi boca. He corrido mucho y no he encontrado agua. El tapir dijo: – Abre la boca. La tortuga dijo: – Mete el pene más dentro de mi boca. Mi garganta está completamente seca. El tapir lo hizo así. La tortuga mordió y agarro bien duro el pene del tapir. El tapir corrió de un lado a outro y golpeó la tortuga contra los árboles, pero ésta no lo solto sino que se aferró cada vez con más fuerza hasta que mato el tapir. (KOCH-GRÜNBERG, 1981, p. 119)

Depois de conseguir cravar a flecha no corpo da anta, o Jabuti então

apresenta à Onça sua refeição. A Onça então o encarrega de preparar a carne

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da anta enquanto procura lenha para assá-la. Ao voltar coloca a carne em uma

panela e a leva ao fogo. Entretanto, volta a buscar lenha enquanto o Jabuti

busca veneno para colocar na panela da Onça. O Jabuti encontra a árvore urari

da qual retira a casca (kumaloá) e joga na panela da Onça que morre após

ingerir a refeição. Com um osso da cabeça da Onça faz uma flauta e assim

caminha até encontrar um buraco na terra de onde toca: “Uayi zemilión, uayi

zemilión (ésta es la flauta de Zemilión, ésta és la flauta de Zemilión)”, evocando

pelo nome de outra onça que aparece. De repente, a tartaruga se vê

novamente em apuros:

– Qué dijiste compadre?, y saltó cerca del hueco, pero no cogió a la tortuga. Esta contestó: – Nada –, y se cayó de espaldas al hueco. El jaguar metió la mano dentro y agarro una pata de la tortuga. Esta dijo: – Ay compadre, esa és una raíz. Tú crees que es mi pierna. El jaguar solto la pierna y la tortuga exclamó: – Compadre, ahora te engañé, porque sí era mí pierna. Entonces se encontro con el pájaro “Kara’rá”. El jaguar le dijo: – Quédate aqui y no dejes escapar a la tortuga. Si ella escapa te como a ti. Voy a buscar mi azada. La tortuga estaba sentada en el hueco y oyó todo. (KOCH-GRÜNBERG, 1981, p. 121)

Entretanto o Jabuti novamente às custas de esperteza consegue

enganar o Kara’rá e fugir. Acha outro buraco onde toca a mesma canção e atrai

a atenção de outra onça, que o agarra. Dessa vez, para se livrar, pede que a

onça a atire num pé de açaí que ficava dentro da água e escapa descendo as

águas do rio.

A terceira e última narrativa, “Oazamuli y Waikín (La tortuga y el venado

de la sabana)”, começa rio abaixo. Subindo à terra seca, o Jabuti encontra o

veado que propõe uma corrida entre os dois. Assim que definem o percurso da

corrida, traçam suas estratégias para vencer. Enquanto o Veado confia-se em

toda sua velocidade, o Jabuti reúne seus parentes e ordena que se pusessem

a determinadas distâncias do caminho e que respondessem a cada pergunta

do veado. Assim:

El venado volvió a correr un trecho. Corría y corría. La tortuga contestaba ora por delante de él, ora al lado Después el venado volvió a llamar la tortuga le constestó por detrás de él. El venado volvió a llamar la tortuga y la tortuga contestó por delante de él. Después el venado llamó una vez más y la tortuga contestó de muy por delante. Entonces el venado corrió con todo su fuerza y dijo:

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–Ahora el jabuti está detrás de mí. (KOCH-GRÜNBERG, 1981, p.123)

Continuam a corrida até que o Veado esgotado deita-se sob um pé de

buriti e lá morre. Os jabutis então reúnem-se para descobrir onde ficou o veado

e descobrem seu corpo. O Veado então transformou-se na planta waikín-epíg e

o Jabuti em oazamuli-epíg, plantas mágicas usadas para ter sucesso na caça

de veado e jabuti, respectivamente.

Essas narrativas ganham importância por revelar parte dos

conhecimentos relacionadas ao edifício cultural sob a qual se erigiram a

memória coletiva dos povos indígenas do tronco linguístico Karib que por cá

habitam, entre os quais estão os povos Taurepang, Arekuna e Macuxi. Como

afirma Michael Pollak (1989, p. 3), retomando as afirmações de Maurice

Halbwachs, há pontos de referência que estruturam nossa memória, tais como

monumentos, paisagens, datas, personagens históricos, as tradições e

costumes, certas regras de interação, o folclore, a música e até mesmo as

tradições culinárias. De acordo com Pollak,

Na tradição metodológica durkheiminiana, que consiste em tratar fatos sociais como coisas, torna-se possível tomar esses pontos de referência como indicadores empíricos da memória coletiva de um determinado grupo, uma memória estruturada com suas hierarquias e classificações, uma memória também que, ao definir o que é comum a um grupo e o que o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais. (POLLAK, 1989, p. 03)

Sob essa perspectiva, a abordagem de Durkheim enfatizaria a força

“quase institucional dessa memória coletiva, a duração, a continuidade e a

estabilidade” (POLLAK, 1989, p. 03). Contudo, essa faculdade humana não se

estabeleceria através da imposição, mas da adesão afetiva que reforçaria a

coesão social, criando o que Halbwachs denominou de “comunidade afetiva”.

De certa forma, Koch-Grünberg não foi apenas o tradutor dessas

narrativas indígenas, mas seu fiador perante a cultura ocidental, o que permitiu,

no século XIX, que escritores sul-americanos se sentissem atraídos pelas

literaturas indígenas (SÁ, 2012, p. 20) e dessem ao mundo obras como

Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Los Pasos Perdidos (1953), de

Alejo Carpentier. Grosso modo, as literaturas indígenas têm sido interessantes

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enquanto fontes, mas ignoradas enquanto corpus, ficando relegadas a uma

espécie de limbo. Observa Lúcia de Sá (2012, p. 20) que

Não obstante, ainda são raros os críticos e historiadores literários que se detêm nesse processo de apropriação cultural. As fontes indígenas têm sido basicamente ignoradas, tanto como antecedentes indispensáveis para escritos posteriores quanto por seu valor intrínseco como corpus literário. Não há sequer uma história da literatura tupi ou caribe, por exemplo, e nenhum estudo sistemático da influência tupi-guarani ou caribe em obras brasileiras ou sul-americanas. Histórias literárias e antologias nacionais do Brasil e de países vizinhos raramente incluem o precedente indígena, mesmo quando se trata daquelas culturas consideradas mais avançadas, como a inca. Nas pouquíssimas ocasiões em que os textos amazônicos ou das planícies sul-americanas foram levados em conta, seu papel ficou restrito ao de mero material etnográfico ou matéria-prima sem valor estético ou literário. Por esse motivo, a própria noção de intertextualidade, fundamental para este estudo, nunca foi levantada.

A partir da obra de Koch-Grünberg, mais estudiosos voltaram-se para as

culturas dos povos autóctones da região do circum-Roraima. Alguns desses

estudos foram publicados em revistas como a Revista do Museu Paulista

(1950). No quarto volume da revista, encontram-se 69 narrativas colhidas entre

os índios Wapichana, povo do tronco linguístico Aruak. Intitulado Lendas dos

Índios Vapidiana, dentre as narrativas coletadas entre os anos de 1935 e

1949 por D. Mauro Wirth, da Ordem de São Bento, cinco narrativas são as que

trazem a figura do jabuti. A primeira narrativa foi contada por Cipriano do

Panelão, na comunidade de Uruca, no ano de 1938. Nela tanto macaco quanto

jabuti conseguem safar-se das investidas da onça através de um engodo. Na

segunda narrativa, de Edgar de Malacacheta, coletada em Boa Vista, em 1938,

são o pássaro jacuruaru e o jabuti que se desvencilham das garras da temida

onça. Nas últimas três narrativas apenas jabuti e onça, velhos rivais, tornam a

enfrentar-se. Recolhidas em Quixadá, no Rio Contigo, em 1937 (narrador

desconhecido), Lago Grande (Vicente Vapidiana de Anaruk), e Tabalascada

(Luiz Cadete), 1939, narram todas a vitória do jabuti sobre a onça.

Charles Weagley e Eduardo Galvão em Os índios Tenetahara (1961,

pp. 157-160) elencam 37 narrativas dentre as quais cinco tratam das investidas

do jabuti. A primeira narra a aposta do Jabuti e do Gambá em que a vitória

consiste em superar o adversário no maior tempo sem comer enfiado dentro de

um buraco e assim como em outras narrativas, o Jabuti acaba levando a

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melhor enquanto o gambá morre enterrado. A segunda narra a corrida entre

Jabuti e Veado. A terceira conta como o Jabuti enganou seus cunhados,

fazendo-os acreditar que era caçador de caititus, sendo descoberto, porém,

passa a retirar pedaços da própria perna para alimentar a família. Desfeita a

armação, acaba conseguindo enraivecer os cunhados que ameaçam atirá-lo

no fogo, livrando-se só por dizer que o fogo seria seu pai e nada sofreria caso

cumprissem a ameaça. Desvia-lhes a atenção dizendo que só morreria se o

atirassem na água. Caindo na lábia do Jabuti, assim o fazem, e mais uma vez

ele se salva, graças a sua esperteza.

A penúltima narra a vitória do Jabuti sobre a Onça, que, avistando o

Jabuti sobre um pé de inajá, pede que o quelônio jogue cocos. Temendo ser

devorado o Jabuti atira-se sobre o focinho da predadora, livrando-se. O Jabuti

põe-se a cantar vitória, o que provoca a ira da Onça que o agarra e com ele

ameaça copular. Entretanto, com muita conversa, o Jabuti reverte o jogo e

negocia a cópula, desde que ele o fizesse em primeiro lugar com a Onça.

Conseguindo seu intento, na troca de parceiro, o Jabuti se livra dos desejos da

Onça, enfiando-se num buraco, onde, à espera de sua saída, a Onça morre de

inanição. ´

Por último, o Jabuti vai à festa do Urubu às escondidas nas costas da

Garça. Perdendo a carona cai das nuvens e se despedaça no chão, sendo

remendado por Tupã, que condoído, restaura-lhe o casco. Essa narrativa

possui estrutura idêntica à contada por Monteiro Lobato, "O cágado na festa do

céu" e, também, aproximasse da narrativa apresentada de Galeano

anteriormente.

O carumbé

O carumbé ou Jabuti-Tinga (Geochelone denticulata) é o quelônio cuja

carapaça possui escudos poligonais com círculos centrais amarelos. Suas

patas possuem escamas avermelhadas o que os diferencia das demais

espécies de jabuti encontradas na Amazônia. Essa denominação é apenas

atribuída aos machos da espécie, já as fêmeas são chamadas de jabota. Em

tupi-guarani, carumbé significa o que é achatado e, na língua portuguesa, pode

também denominar as vasilhas arredondadas utilizadas por garimpeiros para

lavar cascalho.

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Assim descrito, faltava quem nos apresentasse suas peripécias, o que

foi feito na coleta da narrativa oral realizada pelo Prof. Dr. Devair Antônio

Fiorotti, no dia 26 de abril de 2014. Contudo, mais do que apenas ouvi-lo,

pudemos perceber o intrincado entrecruzamento que engendrou o lugar de

memória que habita Caetano Raposo e que se apresenta em suas narrativas

fabulares.

Nascido em 1946, filho de pais pertencentes ao povo macuxi, oriundo da

região da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Caetano Raposo, doravante seu

Caetano, nasceu já sob o contato com os brancos: “Eu nasci no meio dos

brancos, já. Já sim. Por isso que eu sou amigo dos brancos, eu nunca briguei

com ninguém, não. Eu me criei com eles aí, com os filhos deles, brincava com

eles aí. Eu nunca briguei, não”.

Em Pemongon Patá: Território Macuxi, rotas de conflito (2001),

Paulo Santilli afirma que existiriam duas autodesignações: Pemon e Kapon. Os

Kapon corresponderiam aos Akawaio e aos Patamona, habitantes da região ao

norte e leste do Monte Roraima. Já os Pemon agrupariam Kamarakoto,

Arecuna, Taurepang e Macuxi, habitantes da região da Gran Sabana e da

cordilheira Pacaraima. Dessemelhanças à parte, diz Santilli que tanto Pemon

quanto Kapon aparentam-se através da mitologia, já que consideram-se

descedentes comuns dos heróis Makunaima e Insikiran. Ainda de acordo com

Santilli (2001, p. 19):

Macuxi é a designação corrente para os grupos Pemon que habitam o sul da área circum-roraima, as vertentes meridionais do Monte Roraima e os campos ou savanas que se estendem pelas cabeceiras dos rios Branco e Rupununi, território politicamente partilhado entre Brasil e Guiana.

Também haveriam cinco subgrupos dialetais entre os macuxi,

identificados por Theodor Koch-Grünberg: Monoikó, Asepanggóng, Kenoloko,

Tewayá e Eliáng. Os macuxis habitam tradicionalmente a região que vai de

leste a oeste, do vale do rio Rupununi ao vale do rio Uraricoera (SANTILLI,

2010, p. 22). Contudo, vale acrescentar que atualmente essas fronteiras

mudaram, principalmente porque Boa Vista, a capital, é um reduto de milhares

de macuxi. Acerca da designação macuxi, Paulo Santilli (2001, p. 19-20,

parafraseando Nadia Farage) diz:

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O termo Macuxi aparece nas fontes historiográficas atinentes à região circum-roraima desde meados do século XVIII, quando tem início a ocupação colonial na área, a partir de duas frentes simultâneas: a colonização holandesa que, estabelecida na costa da Guiana, atingia o vale do Rio Branco em razão do tráfico de escravos índios – o qual envolvia povos indígenas desde a costa até o vale amazônico – e, de viagens esparsas de funcionários da Companhia das Índias Ocidentais, que operavam no entreposto de Arinda no Rio Rupununi, limite sul mais avançado da colônia holandesa do Essequibo; no mesmo período, a colonização portuguesa se fazia presente no vale do Rio Branco por meio de viagens esporádicas de traficantes de escravos índios e de funcionários coloniais vindos do vale do Rio Negro e, nos anos setenta, consolidar-se-ia em ocupação militar.

Santilli reforça a ideia de que a denominação macuxi surge do contato entre

brancos e índios, além de indicar que este contato começa muito antes dos

portugueses estabelecerem-se em terras roraimenses.

Desse contato, seu Caetano mudou-se de sua comunidade para a

capital Boa Vista, para trabalhar e estudar na Prelazia, onde estabeleceu

contato com a língua portuguesa de forma mais intensa. A esse respeito, ele

diz: “Aí, em 1963, 62, eu fui embora pra trabalhar com os padres aqui na

Prelazia. Fiquei oito anos trabalhando com os padres. Depois de velho, por isso

eu não sei falar bem português, não”. Caetano Raposo apresenta-se como a

personificação, paradoxal de certo, das questões políticas, históricas, sociais e

culturais pelas quais os indígenas do estado de Roraima, em específico,

Macuxi vivencia(ra)m. Indígena, falante de português e macuxi, líder indígena

tuxaua por 38 anos, foi vereador, vice-prefeito por um mandato; apesar de

evangélico, estudou com os padres da Prelazia, acompanhou as lutas que

confluíram na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e, além de

tudo, é um narrador inato.

Como se vê, Caetano Raposo esteve enlaçado à palavra e com a

capacidade da palavra, seja ela indígena ou não, escrita ou não, chegou, por

exemplo, à função de tuxaua. O tuxaua é o representante da comunidade,

responsável por mediar conflitos intracomunitários e mesmo forâneos, com os

não-indígenas. São eleitos pela comunidade e duas são as características

fundamentais para o cargo “‘Saber falar’ e ter um certo prestígio na

comunidade.” (CIDR, 1989, p. 48). Pierre Clastres também alude a essa

capacidade de diálogo. Para ele

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Sobre a tribo reina seu respectivo chefe e este reina também sobre as palavras da tribo. Em outros termos, e muito particularmente no caso das sociedades primitivas americanas, o índio, o chefe – o homem de poder – detém também o monopólio da palavra. Não se deve, junto a esses selvagens, perguntar: quem é seu chefe? Mas antes: quem é entre vocês, aquele que fala? Senhor das palavras: é esse o nome que muitos grupos dão ao seu chefe. (2012, p. 169)

Assim como para a função de tuxaua, para a de vereador e vice-prefeito

a palavra exerce papel mais do que definitivo. Assim, quando interpelado a

ocupar o papel de narrador, de artista da palavra, embora seu Caetano afirme

não falar bem a língua portuguesa, é capaz de encadear com maestria, oito

histórias tendo como principal personagem o jabuti, ou, como o chama,

carumbé. Ao início da narração, Caetano Raposo faz silêncio. Um breve

silêncio que denuncia a preparação para mais uma dupla personificação: a de

narrador e ator. É como se, por breves instantes, se preparasse para o

espetáculo que logo se iniciará, como o ator em cima da ribalta que repassa as

marcações, não de espaço, mas de memória ancestral, física e vocal. Começa

a narrar a fábula do jabuti e de sua mais forte e ameaçadora oponente, a onça.

Caetano Raposo (CR): Jabuti... Ele andou e encontrou macaco comendo inajá, os macacos comendo. Aí pediu [que] Macaco derrubasse inajá pra ele. “Derruba najá pra mim!” Macaco derrubou. Comeu. Pediu outro. Macaco derrubou. Até que Macaco se enjoou dele. Aí ele veio: “Rapaz, eu vou te buscar lá, eu vou te deixar aqui em cima do pé de inajá.” Aí colocou lá em cima, ficou comendo lá. Não demorou muito lá vem Onça. Onça veio e falou pra ele “O que é que o senhor tá fazendo aí?” “Não, eu subi aqui pra comer najá.” Dizendo ele que subiu. “Tá gostoso?” “Tá” “Então derruba um pra mim”. Derrubou pra Onça. “Mas tá gostoso, mesmo!” Comeu. “Derruba mais um”. Comeu. “Derruba mais um”. Até que Jabuti pensou: “Rapaz, eu vou matar essa Onça.” “Derruba mais um” “Então fica embaixo, na minha direção, bem embaixo de mim, mas pisca olho, não olha pra mim, não. Pisca olho. Eu vou te derrubar najá, pra

você.” Ficou aí piscado. Jabuti veio de lá e ó pá! E achou graça. Hã'!

Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!

A primeira das oito narrativas de Caetano Raposo soa bastante familiar,

principalmente quando a comparamos com a narrativa Iwaleká y Oazamuli,

coletada por Koch-Grünberg. Os personagens que travam os primeiros

diálogos tanto em uma como em outra são o Jabuti e o Macaco assim como a

árvore sob a qual se dá o encontro também é o pé de inajá. Outros pontos de

semelhança se dão com relação às ações desenvolvidas pelos personagens.

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Em ambas narrativas o Macaco leva o Jabuti ao topo da árvore e lá o deixa

como castigo. Isso leva o Jabuti à próxima complicação. Outro pedinte de

frutas, mas enquanto a narrativa apresentada por Koch-Grünberg traz a Anta, a

de Caetano Raposo o personagem é a Onça, embora o encontro com a Onça

se faça no adiantar da narrativa de Koch-Grünberg e com a Anta no adiantar

das narrativas de Raposo. Nas duas narrativas o Jabuti se safa, tanto do alto

da árvore quanto da Onça com a diferença de que enquanto Koch-Grünberg

apresenta o Jabuti tentando desvirar-se de sobre o próprio casco e assim

defronta-se com a Onça, Raposo narra o Jabuti livrando-se dos dois ao mesmo

tempo ao lançar-se da árvore sobre o focinho da Onça “piscada”. A narrativa de

Raposo resguarda semelhanças com a penúltima das narrativas dos

Tenetehara, como se verá adiante, no tocante ao lugar de encontro e na

estratégia traçada para sair do topo do pé de inajá. Transpassando as

adversidades das situações, o jabuti reinicia sua trajetória:

Isso aí, foi embora, andou, andou. Deu sede e aí encontrou poço grande, encostou lá pra beber água. Quando tava bebendo água, lá vem Açu. Açu pegou ele. Disse pro Açu: "Não, não vai me comer, não vai comer agora, não. Estou molhado, estou venenoso. Quando eu fico molhado eu sou venenoso. Cuidado!"

DF: O Jabuti falou?

CR: Eh, o Jabuti falando aí pro.

DF: Pra quem?

CR: Pro Jacaré-açu.

DF: Ah, o Jacaré-açu.

CR: Então vamos esperar se enxugar. Aí saíram pro seco, embaixo de uma árvore aí. Aí Açuzão sonento, também. Dormiu, dormiu, acordava, perguntava: "E aí? Tá enxuto?" "Não, vou começar a me enxugar agora. Mas eu tô perigoso, se você me comer, tu morre." Manhã. [Risos] Aí ficou aí. Tinha um pedaço de pau assim, jabuti pegou, levantou, Táaaaaaam! Em cima do Jacaré e caiu logo. Aí Jacaré acordou logo. "Rapaz, cê queria me matar, é?" "Não, não isso caiu lá de cima, isso caiu aí." "Também quase que me matava, acertando minha mão". Ele contou. "Se me acertasse aqui, eu ia morrer." Jabuti olhando aí. Jabuti também disse: "Se me acertasse aqui também, ia me matar, mas me errou" Tá bom. Sono de novo, jacarezão: "Coooooom, cooooomm". "Ah, agora eu sei onde é que é a morte dele." Pegou o pau e em cima do coisa. "Ele falou que era aqui." "Tãaaam! Tãaaam!" "Aai, aai." Acabou de matar ele. Matou

jacaré. Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!H ã'!Hã'

!Hã'! [Risos] Aí saiu, foi embora pro caimbezal. Aí encontrou, coco-

babão, caroço de coco-babão embaixo da pedra. Ficou quebrando aqui, Tah, e comendo. Aí onça encontrou de novo: "Ê, camarada! Que que tá fazendo?" "Tô comendo caroço do meu saco." "Será que é gostoso caroço do seu saco?" "É gostoso. Quer provar?" "Então me

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dê um." Tah! Deu pra ele. "E aí?" "Tá gostoso". Deu outro de novo. "Assim também, o seu saco deve tá gostoso! Vamos experimentar?" O saco do gato, da onça é atrás. "Então, senta aqui". Ele deu pedra, colocou pedra, aí onçazão e Jabuti: "Padauuuuuu", dois logo aí.

"Heimmm" " Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!" [Risos de todos presentes, principalmente com a risada imitada pelo narrador] Graça dele, aí foi embora, saiu de lá. Foi embora, foi embora e aí encostou no poço. Aí tava brincando o Luar, por aqui assim, quando bate na água, o Luar. Eles tavam brincando lá. Aí Onça disse: "Que que tá fazendo aí?" "Não, quero comer beiju, beiju de goma, beiju de goma. Tá lá dentro aí. Quero pegar ela, mas não tô podendo não. Tô mergulhando, mas meu fôlego não dá, não." "Aonde?" "Ali, olha. Tá ali." "É mesmo! Eu vou lá!" "Vai, mas é fundo. Vamos amarrar pedra e aí tu vai ligeiro." Carumbezão tirou olho do buriti, amarrou pedra no pescoço dele. "Tu vai lá, compadre, tu vai lá e traga pra nós." Aí onçazão, "Tchibum!". Desceu ligeiro. Aí lá, matou,

matou, enforcado e dentro d'água, matou. " Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!

Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!" E saiu de lá. Foi embora e

aí encontrou com outra Onça. Aí Onça perguntou dele: "O que que você come?" "Eu como veado, eu como paca, eu como." O Jabuti, né? "Eu como paca, eu como veado, eu como tudo caça. Eu como porco. Como tudo. E você?" "Eu também, eu como." Falou a Onça. "Então vamos cagar, vamos cagar nós juntos pra ver quem é que come mais, as sete estrelas vendo, não olha pra ninguém, não. Nem eu nem você, só olha pras estrelas, sete estrelas." "Tá." Bem juntinho, cagando aí. Aí o Jabuti trabalhou aqui e trouxe a merda da Onça pra ele e dele colocou pra Onça. Ficou lá. "Vamos ver!"

Viraram, levantaram. Merda da Onça só folha, só folha. Do Jabuti, pelo de caça, de veado, de porco, de toda caça, do Jabuti, [Carumbé]. "Rapaz, de novo!"Jabuti fez o mesmo processo. Onça não viu, não que ele fez.

DF: Passando por trás das costas, lá.

CR: Eh. Aí viraram de novo pra ver. Continuou. Onça só folha mesmo; do Jabuti [Carumbé] só pelo de caça. "Então Jabuti, tu vai matar anta pra mim comer." Ele sabia onde vivia anta, Jabuti, né? "Tá bem"; "Tá aqui flecha venenosa." Onça dando pra ele, né?

DF: Ahã.

CR: "Tá bem". Foi embora, ele sabia onde era a casa da Anta e foi direto pra lá. Chegou lá com sede, Anta tava trançando aí um jamaxim. Aí pediu Anta. "Taí água, tá aí, bebe água aí". "Não, eu quero do kumaaza'".

DF: Kumaaza' é o quê?

CR: Kumaaza' é um tipo de balde. Até que encheu o saco da Anta com kumaaza'. "Eu quero tomar água de kumaaza' ". "O que é que tá dizendo kumaaza'? Tá aqui kumaaza'." E tirou coisa dela aí e deu pra ele. Pra quê! Isso aí que ele queria, o Jabuti.

DF: Essa aí eu não entendi direito o final.

CR: Hein?

DF: Não entendi direito o final, não. Ele queria o quê, o Jabuti?

CR: O Jabuti queria a pimba da coisa.

DF: Da anta?

CR: Da anta! Queria a pimba da anta, aí a anta tirou a pimba dela e deu pra ele. Pra quê!

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DF: Pegou!?

CR: Pegou. Anta esqueceu do jamaxim dela e correu. Não caiu, não. Até cansou Anta, Anta caiu. Matou Anta. A flecha dele, colocou a flecha da Onça. Aí ele voltou, encontrou onça lá e perguntou: "Como é que é, compadre?" "Não, já tá morta." "Tá?" "Tá. Não falei que eu como caça? Matei." "Então, umbora ver!" Aí foram pra lá. Chegaram lá, tava antazona lá esticada. Aí cortaram ele todinho, ele deu buchada pra ele, pro Jabuti. Só buchada, não deu carne, não. "A carne é pra mim e a buchada pra ti." "Tá bem." Aí fizeram cozido pra eles. Aí a onça disse: "Rapaz, eu vou tirar vara pra fazer o jirau pra assar, né?" "Aí eu fico aqui cozinhando." "Pode cozinhar aí, mas não mexe com a minha panela, não. Não come minha boia, não." Onça, né?

O trecho da narrativa referente a morte da Anta, assemelha-se ao trecho

da narrativa coletada por Koch-Grünberg Iwaleká y Oazamuli, em que o Jabuti

negocia sua vida com a Onça em troca da vida Anta e o meio encontrado para

matá-la nos dois trechos é idêntico, uma mordida fatal no órgão sexual.

DF: Falou.

CR: Aí, "Tá bom." Aí sobrou um resto de veneno da flecha, aí colocou na panela da Onça, Jabuti. Aí chegou. "E aí? Tá cozido?" "Tá bom, tá bom, tá cozido. Vamos comer agora." Boia do Jabuti só panelada e da Onça, a carne. Comeram juntos e panela de Jabuti e panela da Onça. Tá bom. Comeram. Aí onça falou: "Ahhhhhh, minha boia tá amarga!" "Ahhhhhhhh, minha boia tá amarga!", Jabuti. "Ahhhhhh, minha boia tá amarga! Minha comida tá amarga" "Ahhhhhhhhhhhh, minha comida tá amarga!", Jabuti. Aí não demorou Onça, "Poh", caiu,

a Onça. Jabuti olhando pra ele. Matou Onça. "Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!

Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!". Aí foi embora, Jabuti.

Matou onça. Aí foi, tava subindo na serra, onça encontrou com ele. A serra que dava na laje. Foi brincar lá, o Carumbé. Subia na laje e de lá ele vinha. Saltava.

DF: Rolando.

CR: Rolando. "Pah. Tãaannn." Lá embaixo. Aí onça falou "Que que está fazendo aí?" "Não, estou brincando aqui, tô brincando aqui." "É gostoso?" "É gostoso! Que ver?" Saltou de novo. "Tãan." "Tá bom." "Então bora nós dois?" "Bora." Ele falou. "Tu vai primeiro compadre, tu vai primeiro. Eu vou atrás", Carumbé, né. Onça na frente e Carumbé atrás. Aí Onça saltou de lá, Carumbé atrás. Quando onça chegou lá embaixo e bateu na pedra.

DF: Já era.

CR: Aí vem Carubé de lá pra cá e acabou de matar ele. "Tá, ehhhhh".

" Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!".

É gostosa a brincadeira dele. [Risos] Aí foi embora, deixou ele aí pra urubu comer. Tinha uma serra cheia de pedra e Onça encontrou de novo. "Que tá fazendo aí, compadre?" "Não, estou rastejando Anta". Anta subiu aqui, essa serra aqui, e vou rastejar ela, mas estou sem companheiro pra pegar essa anta. "Eu vou pegar!" "Tu vai pegar compadre?" "Eu vou pegar." "Tá, então pega aqui, mas não sai, pega piscado. Não pega com olho aberto, não. Piscado. Não deixa ir

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embora, não." Aí subiu. Encostava na pedra, experimentava se a pedra tava frouxa. Foi-se embora até que encontrou pedra grande, entrou embaixo, aí saiu pedra. "Lá vaaaaai, compadre! Lá vaaaaai, compadre! Peeeeega, compadre! Seguuuuura, compadre! Não olha, não, pega piscado!" Aí ficou olhando de lá e onça: "Lá vem anta." Pegou Onça, aliás pedra. Pedra passou por cima dele. "Ermmmm."

Matou. Foi lá ver compadre dele: tava todo esmigalhado. " Hã'!

Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!". [Risos]

Oh, compadre! Saiu e aí foi embora. Aí encontrou com Veado. Disse: "Você é corredor?" "Sou corredor, eu sou corredor, disse o Veado, e você?" "Eu também sou corredor." "Então vamos experimentar nossa carreira?" "Vamos." "Tal dia." "Tá bom." "Nós vamos sair daqui. Aqui tá o igarapé, você fica d'outro lado e eu fico d'outro." "Tá." Aí convidou outros carumbés, companheiros dele. "Tu fica aqui, quando veado perguntar de ti, diga que você tá na frente." Colocou outro mais na frente, assim.

DF: Uma sequência de jabutis.

CR: Eh, de jabutis. Aí chegou o dia deles. Aí o veado perguntou: "Já, compadre?" "Já, compadre, vamos embora!" Saíram. Veado saiu torto daí. Aí perguntou: "Compadre?" "Erhmm!" Responderam lá na frente. Veado é bicho todo [esperto], carreira do Veado é de 80 quilômetros por hora.

DF: É ligeiro.

CR: "Compadre!" "Erhmm!" Lá na frente. Foi embora, foi embora, foi embora, foi embora, compadre foi embora. "Compadre!" "Erhmm!" Veado cansou, diminuiu carreira. Chegou no ponto deles lá, lá ele estava.

DF: Lá no final?

CR: Lá no final, estava lá.

DF: E descansado ainda? [Risos]

CR: Eh, descansado. [Risos] "Cheguei muito perto, compadre." "Eu não falei que eu sou corredor?" "Tá bom, compadre." Vieram com a língua desse tamanho, assim.

DF: Do lado de fora?

CR: Cansado, cansado, cansado. Aí o Carumbé achou graça dele " Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!".

Professor, até aí que eu sei.

A última narrativa de Caetano Raposo encontra semelhanças entre

autores como Esopo e sua fábula “A tartaruga e a lebre”. Nela temos a

presença de um quelônio que é desafiado por um animal veloz, a lebre. Já na

de Caetano embora tenha-se a presença de um quelônio, o Veado faz as

vezes de animal veloz.

Outra narrativa que traz a corrida entre animais de distintas velocidades

é a de Charles Frederik Hartt, de origem Munduruku, de título “Como o jabuti

venceu o veado na carreira”. Nela, à semelhança da de Caetano Raposo, o

Jabuti reúne seus parentes de casco e os distribui ao longo do percurso da

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corrida. Contudo, diferente de Caetano Raposo, engabelado o Veado de Hartt,

corre até não mais poder e morre. Assim como também os Jabutis se dispõem

ao longo do caminho e morre o Veado na narrativa de Koch-Grünberg,

intitulada “Oazamuli y Waikín (La tortuga y el venado de la sabana)”. Contudo

na narrativa de Raposo, o Veado permanece vivo para ver sua própria derrota.

A onça

Dentre as oito narrativas de Caetano Raposo, decerto um antagonista se

destaca dos demais: a onça. Predadora por excelência, a panthera onca, a

onça-pintada ou jaguar é o maior felino do continente americano e o terceiro

maior do mundo, ficando atrás apenas do tigre e do leão. Carnívora, sua

ferocidade também figura boa parte das mitologias ameríndias, já que sua

poderosa mordedura é capaz de destroçar a mais forte das carapaças ou

mesmo um crânio humano. Ela está no topo da cadeia alimentar da floresta, à

exceção da predação por parte do homem com intuitos comerciais, ainda em

voga nos dias atuais. Ela pesa mais que um homem adulto, é capaz de

rastejar, nadar e mesmo subir em árvores para alcançar suas presas.

Em muitas mitologias, surge como personagem de destaque. Nas

culturas indígenas, a onça tem um papel representativo nos mitos etiológicos e

de origem. Betty Mindlin (2002) perscrutando os mitos indígenas da origem do

fogo, detecta entre os povos da família linguística Jê (Kaiapó-Gorotire, Timbiras

orientais, Xerentes, Apinaiés, Krahô, Suyá) uma forma recorrente em que dois

homens saem para caçar ninhos de arara no alto de uma rocha. Cunhados,

enquanto um atira os ovos de arara ao que está embaixo, acaba ficando preso

por lá. Passando fome e sede acaba sendo resgatado por uma onça pintada

macho que o leva para casa e lhe apresenta carne assada, até então

desconhecida do homem. Contudo a esposa da onça tenta devorá-lo a todo

custo e acaba sendo morta pelo homem que foge e leva consigo a carne

assada para sua aldeia de origem. Apresentada à nova forma de alimentação,

a aldeia enceta, então, uma caçada em direção à casa das onças, de quem

pretendem roubar o fogo.

Mais adiante em seu artigo, Mindlin apresenta o mito dos Suruí de

Rondônia, em que a onça (Mekô) também era dona do fogo. Os homens

desconhecedores da existência do fogo não cozinhavam e sentiam frio. Vendo

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a penosa situação dos homens, Palop (Nosso Pai), pede a Orobab, um

pássaro preto, que roube o fogo da onça. Palop, para que Orobab não seja

devorado de pronto, besunta o pássaro com uma substância amarga.

Encontrando-se com a onça, Orobab consegue distraí-lo e sentar-se muito

perto ao fogo que lhe chamusca o longo rabo. Conseguido seu intento, o

pássaro foge e pousa primeiro numa árvore de urucum, depois numa árvore

cujo nome ainda não se encontrou equivalente em língua portuguesa e por

último na árvore do Pau-Brasil. Depois disso, os homens conseguem fazer fogo

friccionando galhos de qualquer uma dessas três árvores.

Já para os jabuti, ainda em Rondônia, havia um sol eterno que acabou

sendo devorado pelos ‘demônios’ onça. Esses demônios também devoravam

humanos. As mulheres grávidas tornavam-se onças. Os humanos que

sobreviveram resolveram queimar um velho pajé para substituir o sol. Contudo,

o pajé depois de muito se coçar na fogueira, não apenas transformou-se em sol

como em galanteador. Isso despertou os ciúmes dos homens, que o matam.

Outro pajé mais moderado foi eleito para queimar no lugar do sol. Assim surgiu

novamente o Sol, espantando para sempre as onças monstruosas.

Para os Marubo, segundo Júlio Cezar Melatti, os Inovakenáwavo ou

Inonáwavo, também conhecidos como gente da onça, depois de escaparem da

extração de seus olhos pelos macacos-prego, encontram Rovoshavo. A mulher

então lhes concede o fogo e eles a renomeiam como Tome. Os Inovakenáwavo

saem à caça de queixadas, relegando sempre a Tome, Taokate e Rami, as

mulheres, as partes menos nobres da carne. Elas então decidem apagar o

fogo, em seguida transformando-se em pássaros. Os Inovakenáwavo, sem

fogo, veem que precisam comer carne crua e transformam-se em onças.

Pedro Agostinho (2009) também recolheu mitos indígenas nos quais a

onça tem papel de destaque. Em uma das narrativas de Mitos e Narrativas

Kamayurá, o herói cultural Mavutsini(n) tem por sobrinhos um clã de onças,

Yawat. Em busca de madeira, Mavutsini(n) chega perto da morada do clã. Lá,

um de seus sobrinhos pretende devorá-lo enquanto outro o dissuade da ideia.

Em compensação, Mavutsini(n) o leva para sua casa para que escolha uma

das moças que o aceite em casamento. Com medo de serem devoradas pela

futura sogra, nenhuma das moças aceita casar com Yawat. É diante da

negativa que Mavutsini(n) começa a criar a humanidade, moldando em barro,

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barbante e caroços de mangaba as futuras noivas de Yawat. No dia do

encontro entre os nubentes, um mal entendido acaba por fazer com que as

noivas sejam acolhidas por Awaratsi(n)ng, outro irmão-onça. Entretanto, a mais

nova das noivas, grávida, é enganada e devorada pela sogra. Do ventre da

mulher são retirados dois meninos, Kwat (Sol) e Yaì (Lua).

Tal como os Kamayurá outros povos possuem, com algumas variações,

narrativas nas quais gêmeos são retirados com vida do ventre materno em

virtude da morte causada pela onça e de quem também podem ser parentes

diretos. Algumas dessas narrativas são encontradas em As Lendas da

Criação e Destruição do Mundo como Fundamentos da Religião dos

Apapocuva-Guarani (NIMUENDAJU, 1987, contracapa), Os índios

Tenetehara (WEAGLEY & GALVÃO, 1961), Shoma Wetsa: A história de um

mito (MELATTI, 1989, pp. 56-61), Watunna (CIVRIEUX, 2005), Antes o

mundo não existia: mitologia dos antigo Desana-Kehíripõrã (KÊHÍRI,

1995), Lendas dos índios do Brasil (BALDUS, 1946, Pp. 37-47).

Esta temática, modifica-se em parte na narrativa de Clemente Flores,

indígena taurepang (FIOROTTI, 2014). Narrando o mito de Macunaimö e Xicö,

Clemente Flores nos diz sobre a morte da mãe dos heróis causada pelo inimigo

de seu marido, a Onça. Desviando a mãe do caminho seguro ao trocar as

penas de pássaro que serviam de sinal. A mulher acaba indo parar na casa da

esposa da Onça, Dona Sapa que a mata e esconde seu corpo em um jamaxim.

Alertados pelo canto de um pássaro, Macunaimö e Xicö vão em busca da mãe

e descobrem seu corpo. Para salvar-se da Dona Sapa transformam-se em

besouros e voltam ao útero materno. Posteriormente, traquinamente, matam a

Onça.

Theodor Koch-Grünberg assim define o papel da onça dentre as

narrativas cotejadas entre os Arekuna e Taulipang:

Con la mayor frecuencia aparece el jaguar, pero casi siempre desempeña un papel lastimero. Lo vencen y engañan no sólo fuerzas superiores como el fuego, el rayo y la lluvia sino también hombres y animales. En cambio, unos animales insiginificantes se distinguen por su astucia, como vemos en la leyenda de héroes al roedor agutí y en las fábulas a la tortuga terrestre. (1981, p.28)

Para os Maxakali, Inmoxã, pertencente ao grupo linguístico Macro-jê,

espécie de demônio selvagem e canibal na qual transformam-se, após a morte,

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aqueles que não obedecem aos preceitos religiosos nem as regras da

convivência em comunidade. De acordo com os Maxakali, os possuídos por

Inmoxã devem ser desenterrados e cremados, assim não continuarão a vagar

em busca de alguém para devorar. Possui corpo repleto de pelos e cabelos

longos, além de lâminas nos pulsos para dilacerar suas presas, seus pontos

frágeis são os orifícios: ânus, olhos, boca, ouvidos e umbigo. Sua manifestação

animal realiza-se enquanto a onça. Assim como Inmoxã, dos maxakali,

Jaguarový, entre os Apopocúva Guarani (NIMUENDAJU,1987, p. 51) é uma

onça-demônio sobrenatural e imortal que descansa sob a rede da divindade

Nanderuvçú, esperando lançar-se sobre a humanidade, da qual nem os

guerreiros mais destemidos escaparão da voracidade da fera azul.

Entre os não-indígenas a onça também exerceu fascínio como entre

João Guimarães Rosa no conto Meu tio o Iauaretê e Alberto Mussa em Meu

destino é ser onça (2009). Na obra Estas histórias (1985), em uma narrativa

com fortes marcas de oralidade, Guimarães Rosa apresenta em um monólogo-

diálogo a história de um caboclo, filho de uma índia guarani e um branco,

contratado por um fazendeiro para “desonçar esse mundo todo”. Percebe-se a

intervenção de um interlocutor, que mais do que conversar com o onceiro,

presencia sua transformação no animal tão caçado por seu locutor, além de,

talvez, ser seu algoz.

Já Mussa parte de um longo e minucioso estudo, a partir das obras de

André Thevet, frade católico e viajante pelas terras brasileiras, para reconstruir

de forma poética, aquilo que poderia ter sido uma grande narrativa mitológica

dos Tamoio, ou dos famigerados índios antropófagos Tupinambá.

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CAPÍTULO II

Da voz à letra

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Pierre Chompré (1923) define de maneira curiosa o que seria a fábula:

Fabula, divindade allegorica, filha do Somno e da Noite. Diz-se que desposara o Engano, e que o seu contínuo entretenimento era contrafazer a historia. Representa-se com mascara no rosto, e magnificamente vestida. (CHOMPRÉ, 1923, p. 158)

Curiosa por, incontinenti, apresentar a fábula do alto de duas de suas

características primordiais enquanto forma consagrada: a personificação e a

alegoria. Não raro, a fábula é definida como uma narrativa breve, de caráter

alegórico, em que animais são dotados da capacidade de fala e personificam

qualidades e defeitos humanos, arrematada por um ensinamento de ordem

moral. Entretanto, ao trazer aspectos como contrafeição à história e a sua

representação com máscara no rosto e magníficas vestes, Chompré indica

outras possibilidades para além daquilo que se consagrou enquanto forma

textual escrita.

Tendo dupla origem no latim fari e no grego phaó, as duas raízes

etimológicas da palavra fábula remetem ao ato de falar, contar algo (COELHO,

1984, p. 115). A origem da fábula se perde nas areias do tempo, nas

imensidões geográficas percorridas pelos narradores fabulares e pela algaravia

de vozes que trouxe à luz este gênero consagrado pela tradição literária. A

descoberta da escrita cuneiforme pelos Sumérios nos dão algumas indicações

sobre a possível pátria das fábulas, o que nos indica que este gênero é um

modo universal de construção discursiva (DEZOTTI, 2003).

A fábula compartilha com o conto e o mito as formas apriorísticas das

narrativas que vieram a figurar no mundo literário, uma vez que compartilha

suas origens na oralidade. Oralidade que perpetuou e perpetua conhecimentos

engendrados no seio de uma dada cultura, ajudando a configurar sua memória

coletiva. Como indica Lovisolo

A memória histórica ou coletiva, repete-se, é fundamental para o sentimento nacional, para a consciência de classe, étnica ou das minorias, sendo constitutivas das lutas contra a opressão ou a dominação. Valorizada, então, quer por sua participação na construção da identidade e da comunidade, quer pelo papel que desempenha no fortalecimento e emancipação dos fracos, ela não pode nem deveria ser esquecida. (1989, p.16)

Le Goff diz que a relação entre mito e memória dá-se no sentido em que “O

primeiro domínio onde se cristaliza a memória coletiva dos povos sem escrita é

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aquele que dá um fundamento – aparentemente histórico – à existência das

etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem” (1990, p. 428).

Dentro das sociedades consideradas “primitivas”, estas formas

narrativas demandam muito mais do que a transmissão de forma irrefletida,

esvaziada de significação, estabelecida meramente pela automanutenção que

demanda a tradição. A transmissão destas formas narrativas é o

compartilhamento da vivência com o outro. É a maneira encontrada pelos

povos para criar entre seus membros a sensação de pertença a uma

comunidade baseada na experiência cotidiana, nas experiências que tornam o

homem, de fato, humano. Narrar é uma maneira de inscrever-se na

humanidade e na cultura, e a memória é a faculdade que permite manter-nos

nelas. Não obstante, Mnemosine, a deusa grega Memória, mais do que reger

esta incomparável faculdade, rege também a poesia, o que faz do poeta um

intermediário entre passado e futuro, já que pela voz era capaz de atingir

outros homens de memória.

Esta capacidade de encontrar ressonância entre os membros de uma

comunidade dá-se em virtude da plasticidade com relação ao material narrativo

contado. Já que, como indica Le Goff (1990, p. 429), “a memória transmitida

pela aprendizagem nas sociedades sem escrita não é uma memória 'palavra

por palavra'”, muito menos uma forma de aprendizado mecânica, automática,

mas uma “reconstrução generativa”. O papel importante caberia à dimensão

narrativa, o que atribuiria mais liberdade e mais possibilidades criativas à

memória. São estas possibilidades que divisamos nas narrativas de Caetano

Raposo.

Contudo, escrever foi a principal forma encontrada pela humanidade

para lutar contra o esquecimento, para capturar, ainda que momentaneamente,

a realidade através das palavras. Escrever é também a tentativa desesperada

da humanidade de adiar o seu retorno à insignificância, ou melhor, à não-

significação que se dá com o término de sua existência, a morte, a pior forma

de esquecimento. Desta maneira, na tentativa de perdurar para além do

esquecimento e da morte, escrevemos.

Entretanto, são tortuosos os caminhos que levam da rememoração à

escrita. Assim como a memória, a escrita é o campo das representações

simbólicas e nele estabelece-se um território contestado no qual o domínio é

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disputado ferrenhamente:

Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (LE GOFF, 1990, p. 427)

Assim como a memória, a escrita, ou a decisão do que será escrito, é

seletiva. Desta forma, como indica Pollak (1992, p. 203): “Nem tudo fica

gravado. Nem tudo fica registrado”. Entretanto, os motivos desta seleção são

muito menos inconscientes, como acontece com o processo de memorização,

do que ideológicos, além de que a relação entre as textualidades advindas da

oralidade e a escrita ainda não é ponto pacífico dentro dos estudos literários, o

que afasta da academia narrativas nascidas e perpetuadas na tradição oral.

Voltando a definição Chompré, a fábula enquanto filha da Noite e do

Somno nos remete ao hábito noturno de se contar histórias, como destaca Luís

da Câmara Cascudo (1981, p. 228-229), e pode remontar a diversos povos. Ele

diz que o hábito de contar fábulas e outras formas narrativas só poderia

acontecer nas primeiras horas da noite, após o expediente de trabalho. Caso

contadas de dia, os narradores sofreriam penalidades, como a infelicidade,

cabaças arremessadas ao nariz, mães transformadas em zebras, fulminações

por raios e uma inconveniente aquisição de um rabo de cotia. Esse tipo de

narrativa alcançou ampla receptividade entre o público infantil que, capturados

pela fábula, podia ouvir animaizinhos e suas peripécias antes de ir dormir. Além

disso, contadas pelos pais, as fábulas eram e são eficiente instrumento

moralizante e pedagógico, também um ótimo entretenimento nos preparativos

para as noites de sono das crianças.

Já as partes segunda e terceira da definição de Chompré trazem os

aspectos mais instigantes da fábula. Casada com o Engano, a divindade tem

por entretenimento contrafazer a história. Essa asserção em muito subjaz ao

aspecto performático e discursivo da forma fabular de Esopo e de Seu

Caetano. Primeiro por revelar que enquanto forma dinâmica nascida do

encontro entre narrador e público, a fábula era adaptada ao círculo e à situação

em que era narrada. Tanto que estudiosos como Manuel Aveleza de Souza

afirmaram que aspectos como a moral da fábula não existiam, sendo resultado

de “acréscimo tardio, acéfalo, acrescentado por copistas em épocas

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posteriores, alheio, portanto, ao texto original da fábula” (2003, p. 19). Assim a

relação entre fábula e mentira foi sendo estabelecida ao longo do tempo, dada

à inexatidão temporal de seu surgimento, só se poderia situar num tempo em

que os animais falavam. Ou seja, num tempo imemorial, distante da

comprovação empírica e lógica, o que só pode incorrer em mentira. A relação

com a mentira é visível na definição dada por Aelius Theon (I. d. C), quando

afirma que “A fábula é um discurso mentiroso que retrata uma verdade” (apud

DEZOTTI, 1988 p. 12). Assim, pelo fato de ser resultado da criação humana,

da invenção ou em termos literários da ficção, da arte de confeccionar

narrativas a partir de temas e personagens do cotidiano e não de uma

existência biossocial, comprovada pela realidade objetiva, a fábula se

relacionaria à mentira.

Todavia a contrafeição a história da definição de Chompré ganha outro

viés quando levamos em conta por exemplo o contexto cultural e histórico em

que as narrativas de Caetano Raposo foram contadas. Levando em

consideração o contexto cultural indígena, o conceito de história e o princípio

de historicidade podem não corresponder aos concebidos pelo ocidente. Esta

perspectiva é explorada por Joanna Overing em "Mito como História": que

discute o posicionamento de estudiosos como Pierre Clastres e Claude Levi-

Strauss com relação à concepção de história por parte das sociedades

indígenas. De acordo com Overing, para Clastres os povos indígenas

constituiriam um modelo político não-coercitivo no qual, ao contrário do

coercitivo, o poder não adviria da coerção, da violência e por causa delas

resultaria a inovação, a mudança e a historicidade. Já para Lévi-Strauss, as

sociedades indígenas distinguem-se em sociedade “quentes” e “frias”.

Participando desta última, as sociedades indígenas seriam a-históricas, no

sentido que combinariam o tempo mítico e tempo presente num regime

temporal que eliminaria a história.

Arrogando uma concepção de história e historicidade condizente com

cada povo indígena distinto e sua metafísica, após descrever parte das

atividades desenvolvidas em uma comunidade Piaroa, Overing afirma que

Do mesmo modo, a prática cotidiana dos Piaroa também inclui o próprio ato de afirmar postulados cosmológicos a respeito do mundo, o que pode ser associado ao fato de que a prática cotidiana dos Piaroa é constitutiva de uma metafísica específica. Ainda que essas

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observações pareçam óbvias, muitas vezes se esquece – principalmente nas abordagens que tentam separar as práticas sociais ilusórias das realmente reais (o que é muito comum quando o assunto em questão é a fala ritual) – o que o ato de pronunciar palavras é uma forma de prática, de modo que a palavra em si é sempre um aspecto da realidade social, e portanto constitui experiência. Em suma, é legítimo falar-se da relação entre a palavra e a experiência no mundo. A força da palavra não se limita ao proposicional; ela faz mais do que simplesmente dizer algo que é verdadeiro (ou falso) a respeito da realidade. A palavra tem efeito sobre a prática no mundo esteja ou não em harmonia com as proposições a respeito do mesmo [sic]. O realmente construído também é real, e portanto tem efeito real sobre as ações no mundo. (1995, p. 128-129)

Isso sinaliza a possibilidade de compreensão das narrativas indígenas

do povo Macuxi para além da instância unicamente ficcional. Como veremos,

nas narrativas de Caetano Raposo, há uma subversão causada por essa

possibilidade com relação à história do Estado nacional com a qual vem

estreitando paulatinamente o contato. Admitindo a palavra e seu efeito sobre o

a prática do mundo, podemos pensar que a realidade indígena é uma criação

pela palavra, principalmente quando nos deparamos com a definição de

panton, melhor discutida adiante.

Por último, quanto à citação de Chompré, a máscara e a vestimenta

magnífica dizem-nos muito da própria estruturação narrativa e dos recursos

estilísticos e performáticos do narrador da fábula. A máscara porque revela o

duplo movimento realizado pelo narrador durante a enunciação fabular:

primeiro usa personagens animais para responder por ações e sentimentos

humanos, depois usa humanos para julgar essas ações e sentimentos numa

espécie de máscara que antropomorfiza animais e denuncia os vestígios

animalescos ainda presentes no ser humano.

Em suma a definição dada por Chompré traz à baila questões

essenciais para serem discutidas neste trabalho, pois admitimos que as

narrativas de Seu Caetano em muito se aproximam às fábulas, e que ele as

narra num tríplice imbricamento, separado apenas para demonstrar de forma

didática como a figura do narrador é capaz de enriquecê-las sobremaneira e de

entrelaçar palavra e voz, demonstrando sua complexidade e sofisticação

narrativas. Desta forma, exploramos as fábulas de Seu Caetano enquanto

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forma literária, prática discursiva e enquanto narrativa performativa.6

A fábula e as formas narrativas

A fábula se configuraria como uma narrativa breve, alegórica, de grande

potencial pedagógico em que homens, deuses e principalmente animais

antropomorfizados, envolvem-se em situações cotidianas das quais podem

exercer variados atos de fala (DEZOTTI, 2003), como aconselhar, questionar,

censurar, mostrar, etc. Outra característica inerente ao gênero fábula é a

atribuição da fala a animais, distinguindo a capacidade de linguagem como

estritamente humana, que diferencia o homem do mundo natural. Estas

características são o que possivelmente explicam o fôlego milenar desta forma

de narrativa, assim como o fato de sua maleabilidade discursiva poder ser

incorporada às diversas situações e temporalidades. Apesar de seu grande

potencial pedagógico em função das morais atribuídas à cada uma das

narrativas ao final de seu desenrolar, as fábulas não nasceram voltadas para o

público infantil. As fábulas eram contadas para público diverso.

Apesar de sua indefinição pátria, se atribui ao narrador de origens

obscuras, Esopo, o título de pai da fábula. Esopo seria originário da Ásia

Menor, não sendo raro ser descrito como oriundo da Frígia, e vivido entre finais

de século VII e VI a.C. Era escravo e foi reconhecido como um virtuoso

fabulista, fato que o fez conquistar sua liberdade. Esopo foi o principal

entusiasta do gênero, levando a sua popularização além dos limites da Grécia,

lugar onde codificou a forma da fábula e apesar de gozar da boa companhia de

homens ilustres de seu tempo, não teve acesso à escrita, imortalizando suas

narrativas através da voz. As fábulas atribuídas a Esopo datam de cerca de

dois séculos após sua morte, pelo coligimento de Demetrio de Falero. Parte do

mérito da contribuição de Esopo dá-se no fato de ter atribuído a animais

virtudes e defeitos humanos como a previdência à formiga, a majestade ao

leão e etc. A despeito de sua origem oral, a fábula esópica encontrou

consagração através da escritura.7

Ao analisarmos as oito narrativas de Seu Caetano, encontramos

6 Esse último tópico será analisado no final do terceiro capítulo, tendo em vista sua relação íntima com o riso do jabuti. 7 Informações sobre Esopo podem ser encontradas Coelho (1982); Souza (1982); Sampaio ( 2006).

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características parecidas ao gênero literário da fábula. Contudo, temas e

personagens, algumas vezes, são diversos dos concebidos na cultura não-

indígena. Trazemos o conceito de fábula aqui na tentativa de pensar um gênero

usado por um indígena que, pelo contato com o mundo branco, não podemos

afirmar ser estritamente indígena. Apesar de essa dúvida, temos cuidado ao

estabelecer este diálogo entre a cultura ocidental (fábula) e a narrativa de seu

Raposo, pois a realidade ameríndia apresenta organização e estrutura

específicas.

Vale mencionar que, quase sempre, narrativas como de Caetano

Raposo têm sido tratadas pelo viés sacralizante do mito. Isso tem contribuído

para manter essas narrativas à parte dos estudos literários, a despeito de ser

um gênero que tem origem na tradição oral e origem em culturas consideradas

de matriz não-ocidental, como se esse fosse um papel para antropólogos. Em

geral, isso afasta e nega a participação de narrativas e narradores

extraordinários no âmbito acadêmico literário. Aliás, a origem na tradição oral e

a tentativa de classificar as narrativas indígenas em especial tem colocado

muitos estudiosos das formas narrativas em grandes dificuldades.

Em Las formas Simples (1972), André Jolles discute a contiguidade

entre as textualidades advindas da oralidade e sua relação com a escrita. A

leda, a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o memorável, o conto e o

chiste seriam as formas simples que, segundo ele, são

aquellas formas que también han surgido del lenguaje, pero que parecen prescindir de esta sólida base que, hablando gráficamente, con el tiempo se ubican en outro estado de agregación: aquellas formas que no si encuentran incluidas ni en la estilística, ni en la retorica, ni en la poética, tal vez en la “escritura”, las que, aunque pertenecen al arte, no llegan a ser obras de arte, aunque poéticas no son poemas (1972, p. 16)

Jolles atribui aos irmãos Grimm a configuração do conto, sem antes

refletir sobre a origem desta forma simples e da etimologia da palavra conto:

O importante na palavra Marchën não é o seu sentido etimológico, que se encontra no alto alemão mâri (lenda, fábula) ou no gótico mêrs (conhecido, célebre). Tampouco o fato de Marchën ser um diminutivo depreciativo de Märe (narrativa, tradição) e designar, pois, uma história curta, até um simples boato que se propaga sem que se saiba se é exato ou verídico. O que nos interessa é uma forma que tem nomes diferentes, segundo as línguas, mas em que todos concordam

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em atribuir à coletânea de Grimm e sua expressão essencial. (1976, p. 182)

Outro estudioso do mito, Eleazar Mielientiski, em A poética do Mito

(1987), também associa imaginação mitológica e substrato psicológico,

contudo ressalta que a relação entre o mito e a literatura é geneticamente

estabelecida uma vez que:

a mitologia mais antiga compreendia como unidade sincrética rudimentos tanto da religião e das mais antigas concepções filosóficas (que, é verdade, se formaram no processo de superação das fontes mitológicas) quanto da arte, antes de tudo da arte verbal. A forma artística herdou do mito o modo concreto-sensorial de generalização e o próprio sincretismo. Em seu processo de evolução, a literatura utilizou os mitos tradicionais com fins artísticos por muito tempo. (1987, p. 1)

Contudo, avançando no perscrutamento das características gerais do

pensamento mitológico é que surgem as contiguidades com o gênero fábula,

quando declara que

o homem “primitivo” ainda não separava nitidamente a si mesmo do mundo natural circundante e transferia para os objetos naturais as suas próprias características, atribuía a esses objetos vida, paixões humanas, atividade econômica consciente e útil, possibilidade de se apresentar com face física antropomorfa e ter organização social, etc. (MIELIENTISKI, 1987, p. 191)

Desta forma, encontramos contiguidades entre mito e fábula já que

esta se configuraria como uma narrativa breve, alegórica, de grande potencial

pedagógico na qual homens, deuses e principalmente animais

antropomorfizados, envolvem-se em situações cotidianas das quais pode-se

exercer variados atos de fala como aconselhar, questionar, censurar, mostrar,

etc. Outra característica inerente ao gênero fábula é a atribuição da fala a

animais, distinguindo a capacidade de linguagem como estritamente humana e

que diferencia o homem do mundo natural.

Theodor Koch-Grünberg (1981), no segundo volume de sua obra

classifica e compila cinquenta narrativas. Na introdução da obra, Koch-

Grünberg classifica as narrativas em: mitos da natureza e lenda de heróis,

contos de fadas, fábulas de animais e contos humorísticos, definindo a fábula a

partir de suas contiguidades com outras narrativas coletadas:

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Los cuentos animales tienen en parte un caracter etiológico, ya que explican las características, los colores, y las formas de los animales por sucesos de los tempos primitivos. Se encuentran entonces, por lo general como espisodios en los mitos y cuentos de hadas. Otras son fábulas de animales propriamente dichas, en donde se enfrentan la astucia y la imbecilidad, la habilidad y la torpeza, la fuerza y la flaqueza La misma tendencia de las fábulas de animales tienen los cuentos de Kene’wó. El protagonista es un hombre sagaz y intrépido, que vence en astucia especialmente a los jaguares y los mata, pero que al final perece por uma pequenez, como muchos hombres valientes: un escarabajo lo mata. Son anécdotas llenas de humor, algunas de una comicidade grosera, que provienen de épocas muy distintas y que aún en la actualidad deben su existencia al placer de fantasiar, según se pude reconocer por algunos rasgos completamente modernos. (1981, P. 17)

Contudo, Sérgio Medeiros, na introdução de Makunaima e Jurupari

(2002), tece críticas à perspectiva etnocêntrica do naturalista em classificar as

narrativas como “confusão desordenada”, em vez de abundância de sentidos

ou riqueza poética. De acordo com Medeiros, conceitos como os utilizados por

Koch-Grünberg teriam pouca eficácia perante as narrativas indígenas, já que

pela compilação do alemão um mito poderia ser um conto que seria uma lenda

que seria um mito que seria um conto e etc. Mas estes mesmos conceitos

estariam falidos não pela utilização equívoca, mas porque

Atualmente, o estudo dos gêneros narrativos indígenas ainda não solucionou os impasses ou dificuldades que cercam a transposição para a realidade oral ameríndia de conceitos eminentemente livrescos, oriundos do contexto cultural europeu, de maneira que o leitor não deverá estranhar se a mesma “confusão desordenada”, no emprego de tais conceitos, nos textos de outros etnólogos teoricamente mais ousados e consistentes que Koch-Grünberg, como, por exemplo, o já citado Claude Lévi-Strauss, estudioso dos mitos ameríndios, [ocorrer]. (2002, p. 18-19 )

Ou seja, a partir de Medeiros, a narratologia ocidental ainda não

conseguiu dar conta de um aspecto crucial no acontecimento da narrativa

indígena: a presença de um narrador vivo, atuante e sócio-culturalmente

localizado. Desta fenda surgem alguns estudos encetados dentro da

etnopoética, como os de Denis Tedlock, Dell Hymes e Barre Toelke.

O termo etnopoética surgiu em meados dos anos 60, criado por Jerome

Rothenberg, com o objetivo de ampliar para além da poesia consagrada pela

tradição ocidental a perspectiva de literatura. Rothenberg, dessa forma,

reformulou as antologias poéticas, nas quais incluía ao lado de poetas como

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William Blake e Arthur Rimbaud, canções ameríndias. A etnopoética então tem

por diretriz, nas palavras de Pedro Cesarino, encarregado do texto de

apresentação de Etnopoesia no milênio,

a suspeita de que certas formas de poesia, assim como certas formas de arte, permeavam as sociedades tradicionais & de que estas formas geralmente religiosas não apenas se assemelhavam, mas há muito já haviam realizado o que poetas experimentais e artistas estão tentando fazer (ROTHENBERG, 2006, p. 06).

Dentro desta percepção, até mesmo os sons, aparentemente sem

sentido dentro da poesia indígena, são traduzidos a partir de uma perspectiva

transcultural, o que Rothenberg definiu como Tradução Total. Assim,

Rothenberg traduz como um modo de informar o que sentiu ou viu da atuação

de outra pessoa; verdadeiro até onde fosse possível, para sua “imagem da vida

& reflexão sobre a fonte” (ROTHENBERG, 2006, p. 40-41).

Também Dell Hymes e Dennis Tedlock asseveram que a forma narrativa

prosaica não é mais significativa ou expressiva para representar as narrativas

indígenas, o que seria mais eficazmente empreendido através de versos,

entretanto, a partir de perspectivas diferentes. Hymes concebe o verso através

da organização retórica do texto, na transcrição em estrofes, cenas e atos,

definindo o verso através da disposição sintática e lexical dos elementos. Já

Tedlock baseia-se em aspectos como a qualidade da voz, nas pausas feitas

durante a narração, entonação e outros aspectos prosódicos.

Em In vain I tried to tell you – essays in native american

Ethnopoetics (2004), Dell Hymes investiga a organização textual interna de

narrativas pertencentes ao Chinook e suas variedades, partindo de narrativas

coletadas por etnógrafos como Henry Schoolcraft. Segundo Hymes (2004, p.

150)

In general, Chinookan narratives are organized in terms can be called “acts”, “scenes”, “stanzas”, “verses”, and “lines”. [..] A variety of features contributes to the organization of the text, and hence to recognizing that organization. Two types of iteration, descriptive cataloguing (as in verses 36, 37) and cumulative repetition of action (as in 21-25), provide evidence of integral units. There are minor forms, or small sub-genres, that are recognizable across texts, such as the idyll (38), the speech of remonstrance (cf. Hymes 1968a: 186), the song as a set piece (stanza K)

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Dennis Tedlock trabalhando com os Zuni do Novo México, entre os anos

de 1964 e 1965, tendo como narradores Andrew Peynetsa, bilíngue em inglês e

Shiwi’ma (língua Zuni), e Walter Sanchez, monolíngue, reuniu em Finding the

center (1999) as narrativas transcritas de acordo com sua proposição. Dessa

forma, as oito que compõem a obra são precedidas de um guia para leitura em

voz alta (Guide to read aloud). No guia, pausas são representadas por um

ponto, voz alta por letras maiúsculas, letras minúsculas para voz mais baixa,

travessões para prolongamento das vogais e assim por diante.

Tanto a percepção da narrativa indígena de Hymes quanto a de Tedlock

possuem um lado positivo: o de reconhecer a presença ativa do narrador no

momento da transcrição gráfica e o desejo de perpetuarem e fazerem ressoar

suas vozes assim como ouvidas no momento da narração. Buscam manter,

assim, o encantamento ou talvez, melhor, recriar o encantamento das

apresentações originais. Contudo, ao mesmo tempo, subestimam a capacidade

narrativa deste mesmo narrador, em razão de idealizá-lo como um indígena

desconhecedor de outras formas narrativas e de seus usos, já que

estabelecem o verso como única forma de produção textual indígna. O que

também redundaria de certa forma em uma perspectiva idealizada do indígena,

já que se ignoraria o contato com a cultura não-indígena, “branca”, possuidora

do conceito e da literatura escrita, contato que no caso do povo Macuxi se faz

desde o século XVIII, tentando associar à produção indígena a ideia de não

maculada pela poética ocidental e dela estranha, distante e destoante.

Já Barre Toelken, assume uma perspectiva mais contextualizada das

narrativas indígenas Navajo, pois percebe que a complexidade da língua, da

cultura, da variação das situações e contextos modificam funções destas

narrativas (1987, p. 388). Assim, estabelece quatro níveis semânticos para as

narrativas do ciclo do Coiote: de entretenimento, moral, medicinal e de

feitiçaria.

Level I of the Navajo Coyote tales can be called the entertainment level; that is, the surface story with all its descriptions of Coyote’s selfish, humorous – and occasionally heroic behavior. Level II can be called the moral, or evaluative level, where each Coyote’s actions will be registered and responded to according to how it reflects or flaunts Navajo values and morality. The function of Level III is, then, medicinal: the conscious application of the story and its imagery to specific ailments and their treatments during healing rituals. (TOELKEN, 2004, p. 390-391, itálico no original)

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O último nível seria aquele em que a palavra, a narrativa fere, prejudica

e até mesmo mata.

Thus, when witches wish to damage the health of others, they use selected parts of the same Coyote stories in their rituals; the difference is that instead of integrating the story with a model of order and restoration, their idea of deployment is to use images, symbols, and allusions separately, divisively, analytically, in order to attack certain parts of the victim’s body, or family, or livestock. (TOELKEN, 2004, p. 396, itálico no original)

Toelken ilustra os níveis semânticos das narrativas do Coyote no

seguinte quadro, sob a perspectiva Navajo (2004,p. 398):

I Entertainment literary Disorder (dramatized and

resolved according to

community values)

II Moral

Worldview

evaluative order

III Medicine Ritual

(restorative)

order

IV Witchcraft Ritual

(destructive)

Disorder (aimed at

individuals, contrary to

community values)

Entretanto de acordo com uma perspectiva objetiva do próprio autor,

este quadro se apresentaria da forma (TOELKEN, 2004, p. 399) :

life

death

Every

day life

Ritu

al lif

e

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Mais simpáticos à proposição de Toelken, já que reconhece além da

presença do narrador dentro da narrativa, a presença do público, podemos

aproximar as narrativas de Seu Caetano daquilo que o autor elencou como

primeiro e segundo níveis. Embora as fábulas do ciclo do Jabuti produzam no

espectador o riso, ele não é o único objetivo das narrativas. O riso apresenta-

se com outros intuitos como será explorado no terceiro capítulo.

Concepções como as de Rothenberg, Tedlock, Hymes e Barre Toelke,

em contraponto às narrativas de Seu Caetano, nos levam a ponderar sobre a

possibilidade não apenas da existência de uma etnopoética, mas de uma

etnopoiesis ou etnopoiética, em que o fazer poético expande-se para também o

conhecimento da elaboração de narrativas, numa articulação entre o termo

ethnos, que significa povo em suas origens gregas, e poiesis, também de

origem grega que significa criar, fazer, numa aproximação daquilo assim

definido por Gilberto Mendonça Teles:

pode-se pensar em dois ramos da POÉTICA: um, que conserva o nome de Poética e provém da tradição aristotélica, estudando a lírica, a ficção (narrativas) e o teatro; e o outro, com o nome Poiética, com a preocupação de recuperar no étimo do termo todos os problemas da origem, do nascimento da obra literária. Uma psicologia da criação. Neste sentido a Poética se preocuparia com a obra produzida, tendo pois a função crítica de uma metalinguagem, enquanto a Poiética se voltaria para o fenômeno da criação com todas as suas implicações. Essas duas faces se juntam para dar conta da totalidade possível do

I Entertainment

II Moral worldview (Navajo)

- cooperative, sharing, group-

centered

II Moral worldview (Skinwalker)

- competitive, acquisitive,

individual-centered

III Ritual (Navajo)

- restorative, integrative, healing

III Ritual (Skinwalker)

- destructive, alienating, deadly

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conhecimento da literatura. (TELES, 2009, pp. 16-17)

Assim, a etnopoiesis levaria em conta não apenas os aspectos literários, mas

também outros aspectos como a performance e o contexto cultural no qual as

narrativas e poesias vieram à luz.

Panton: literatura indígena

A discussão, anteriormente encetada, acerca da complexidade das

narrativas indígenas e de sua classificação em gêneros é um dos motivos para

que elas ocupem uma espécie de deslugar dentro dos estudos literários. Outro

motivo por vezes apontado é o fato destas narrativas serem engendradas no

cerne de culturas que não conceberam o conceito de literatura, como o

entendemos. Contudo, nunca é bastante relembrar, principalmente no caso do

povo Macuxi, que o contato com o “branco” que dispõe desse conceito e dessa

sistematização já se faz desde o século XVIII. Além do que os povos reunidos

sob a designação pemon, como os Macuxi, dispõem de uma concepção que

reúne, como nós nomeamos, as narrativas de caráter mítico, lendário, fabular e

mesmo histórico: panton.

Na língua indígena macuxi a palavra panton designa história, como

declara Severino Barbosa, habitante da comunidade indígena São Jorge,

quando interpelado a contar os mitos e lendas de sua comunidade (FIOROTTI,

2015, no prelo) “Ahn, panton, história, nós chamamos panton, panton” e

também como já indicado por Paulo Santilli (2001, p. 16), Frei Cesáreo

Armellada nas obras Tauron Panton (2012; 2013) e já dicionarizado (AMÓDIO

& PIRA, 2007; RAPOSO, 2008). Panton também é o que nomeia o projeto

Panton Pia’ no qual foram coletadas narrativas de 37 indígenas da região da TI

Raposa Serra do Sol e São Marcos.

Entretanto, a tradução de panton enquanto história nos leva a

considerar sentidos outros, além daquele que a considera como a sucessão de

fatos ao longo do tempo, como sugere Le Goff:

Mas nas línguas românicas (e noutras), 'história' exprime dois, senão três, conceitos diferentes. Significa: 1) esta "procura das ações realizadas pelos homens"(Heródoto) que se esforça por se constituir em ciência, a ciência histórica; 2) o objeto de procura é o que os homens realizaram. [...] Mas a história pode ter ainda um terceiro sentido, o de narração. Uma história é uma narração, verdadeira ou

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falsa, com base na "realidade histórica" ou puramente imaginária – pode ser uma narração histórica ou uma fábula. (1990, p. 18)

Para compreender as narrativas do jabuti é necessário divisar que o

jabuti goza de grande consideração entre os povos indígenas, pois que pode

ser encarado como um aliado à vida do homem, já que sua carne serve como

alimento. Afirma Valdélio Perez Ribeiro, macuxi da comunidade Santa Rosa em

entrevista ao projeto Panton Pia’, quando indagado sobre as mudanças

sofridas na alimentação da comunidade:

Eh, na parte da carne sempre mudou, não é? Depois que a gente tem, tá criando os nossos animais como gado, porco, galinha, essas coisas assim, não sei no passado, que eu não me lembro, mas acho que mudou, com certeza. Eh, porque segundo as histórias dos antigos, dos mais velhos, uma parte da alimentação da carne era só através da caça mesmo, ali era uma região que tinha um monte de jabuti também. Segundo o pessoal, tinha tanto jabuti que eles faziam parede de casa só de casco de jabuti, só. (FIOROTTI, 2007)

Como se pode ver, o jabuti mostra-se um verdadeiro polivalente, além da

carne, seu casco chegou a ser utilizado na construção de moradias como

material de construção ou na imitação do formato como afirma Terencio Luiz da

Silva da comunidade Ubaru, TI Raposa Serra do Sol:

Era com aquela palhoça, faziam malocão que ali a tradição mesmo. Mas eles faziam também casas em formatos de jabuti. Chamam de jabuti. As casas eram assim, deixa eu fazer um desenho aqui rapidinho. Eh, fazendo preservação, era redondo aqui e aqui era assim. Aqui era redondo né? Era tudo de taipa. De barro na parede faziam tipo vara unida mesmo, era a vida deles. Hoje eu fiz uma vez, mas como a gente aprendeu agora essa casa. (FIOROTTI, 2007)

Também na confecção de amuletos, puçangas ou feitiços como canta América

Perez Torres, indígena da comunidade do Barro:

Upiakonya, enaimîpî Seurima pii’pîke Paaka pii’pîke Waikin pii’pîke Wayamuri’ piipîke Um, mararîpra kamo’ pii’pîke Yasikîpîto’ya imîya Mîrîpî etekeimatane eporîpî to’ya Sausaupiya, sausaupiya O’niwanî sîrîrî eru Inna Esewankonoma sîrîrî, ye’nemokapa masa era’maita’ [Alguém fez mal para você

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Com o coro do Seurima Couro de boi Couro do veado Casco de jabuti Bastante pele de caça Colocaram tudo na garganta dele Encontraram ele quando ele estava quase morrendo Vamos com Sausau O que tá passando contigo, cunhada? Sim Estou muito triste agora, mas deixa ver] (FIOROTTI, 2007)

Ademais o casco do jabuti também é utilizado enquanto utensílio doméstico e

instrumentos musicais. Outra curiosidade que conquistou a empatia do homem

é o fato de o jabuti se criar por si próprio, como muito espirituosamente nos

informa Alcuíno de Lima, taurepang da comunidade do Taxi, TI Raposa Serra

do Sol através de uma adivinha assim formulada

Qual é animal que nasce no mundo, que nasce no mundo, se cria no mundo, não conhece pai, nem mãe, nem irmão, nem parente nem nada. Qual é esse animal? [...] Eh, animal tem é muito por aqui, é perto, é fácil de pegar.[...]

Ao passo que a resposta se dá:

Jabuti! [...]: O senhor já viu jabuti criar com a mãe? Já viram ele se criar junto na... junto da mãe do pai, da irmã, do irmão? Ele não se cria por conta dele? A história tá aí professor. Eu vou dar isso pra você passar não a coisa pra adivinha, pra fazer adivinhação pros alunos. Esse é uma adivinhação, como sempre eu falo esse é mais importante esse daqui, que ninguém sabe. Esse eu tirei, não é pela minha cabeça. Eu tirei essa história pelo jabuti. Já achei jabutizinho desse tamainho assim.[...] Pequenininho, desse tamainho sem mãe. Fica grande na mata rapaz, não conhece a mãe. Agora ele só vive chorando, procurando a mãe. Ele não vive com aquela água nos olhos? Diz que tá chorando, ainda tá lembrando da mãe, do pai. (FIOROTTI, 2007)

O ser humano, a partir da concepção de Alcuíno de Lima, encontraria no jabuti

uma espécie de cúmplice das agruras da vida sobre a Terra e das até então

insolúveis questões: De onde viemos e por quê? O jabuti é presa de animais

maiores e de maior poder e, diante deles, é munido apenas de sua capacidade

de resiliência. De certa forma, é desprezado pela natureza na concessão das

defesas naturais e dos postos mais altos na cadeia alimentar, como bem define

José Melquíades Peres, macuxi da comunidade Aleluia, TI Raposa Serra do

Sol: “Que jabuti não prejudica ninguém, né. Não morde, não tem arma, não tem

força nenhuma” (FIOROTTI, 2007).

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Ainda, quando o filho de Macunaíma e Ci morre, é colocado "numa

igaçaba esculpida com a forma de jabuti e pros boitatás não comerem os olhos

do morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita

dança e muito pajuari" (ANDRADE, 1988, p. 27). No total, Mário de Andrade

cita o Jabuti cinco vezes, com destaque para no final da obra. Primeiro foi

numa lápide, que já tinha sido jabuti, que ele escreve: "NÃO VIM NO MUNDO

PARA SER PEDRA" (p. 165) e, logo depois, Pauí-Pódole, o Pai do Mutum, dirá

a Macunaíma:

Ah, herói tarde piaste! Era uma honra grande pra mim receber no meu mosqueiro um descendente de jabuti, raça primeira de todas... No princípio era só o Jabuti Grande que existia na vida... Foi ele que no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo e sua cunhã. Estes foram os primeiros fulanos vivos e as primeiras gentes da vossa tribo. (ANDRADE, 1988, p. 166)

O jabuti, nas palavras de Mário de Andrade, é o animal que dará origem ao

povo de Macunaíma, relacionando à cosmogonia dos Macunaima assim como

também visto no primeiro capítulo em relação aos chineses, hindus e povo

Iroquoi.

Já a onça não dispõe da mesma simpatia entre os indígenas. Ela traz

consigo predação e morte. Sua posição hierárquica na natureza a faz presente

e importante em muitos mitos fundacionais, mas em eterna chacota nas

narrativas fabulares a ponto de inspirar a seguinte afirmação de Dionísio

Antônio Severino, karapiwa8 da comunidade Araçá da Serra, TI Raposa Serra

do Sol:

Ah, o Jabuti sempre foi esperto, não é? Apesar de ele não andar ligeiro. E a Onça perdeu, todo tempo a Onça perdeu pro Jabuti. Então, a Onça sempre foi perdedora. Perdeu pro Jabuti, perdeu pro Macaco, só ganhou pro Veado. Perdeu pro Fogo, perdeu pro Relâmpago. A Onça sempre foi assim. Sempre a pessoa que diz assim: "Olha eu sou forte.", às vezes o cara que não é nem forte, aí mais forte do que ele vai dizer: "Rapaz, eu, coitado, eu sou fraco, né." Mas destar que o cara é, né. Então a Onça sempre foi assim, querer ser o mais valente, o mais forte, o mais corredor, sempre perdeu. (FIOROTTI, 2007)

No limite, a onça também representa o outro, geralmente mais selvagem

e feroz, com quem se trava relações das quais sempre se sairá em

8 Designação dada aos filhos da união entre os indivíduos dos diferentes grupos Karib e wapixana. (OLIVEIRA, 2012, P. 36)

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desvantagem e, por isso mesmo, contra quem deve-se sempre ficar atento.

Nesta relação podemos associar tal selvageria e ferocidade ao não-índio, ao

“branco”, em especial os fazendeiros. Encontramos indícios desta perspectiva

na narrativa contada por Domício Pereira da Silva, macuxi da comunidade Sol

Nascente, TI São Marcos:

É que um Veado tinha um gado. Aí quando foi um dia a Onça foi lá e levou um boi pra ele: “Veado, toma conta do meu boi?” “Tá bom. Pode deixar aí com meu gado.” Aí ficou tomando conta. Aí quando foi com cinco anos, aí a Onça decidiu ir lá, disse que gado dele tinha aumentado, aí queria metade do gado do Veado. Aí diz que o Veado tava triste lá, aí o Macaco vinha. O Macaco chega: “O que foi, camarada? Tá triste?” “A Onça deixou um boi aqui, tá com cinco anos, e agora diz que já produziu e quer levar metade do meu gado.” “Rapaz, deixa de ser besta! Tu diz pra ela me esperar amanhã até nove horas, que eu venho aqui advogar teu caso.” O macaco falava que ele tava andando. “Mas tu vem?” “Eu venho. Não pode dividir gado enquanto eu não chegar.” “Então tá bom.” Aí já ficou mais animado, que o Macaco ia advogar o caso. Quando foi oito horas, Onça chegou. “Ah! camarada Onça, Macaco disse pra tu esperar ele.” “Que hora que ele vai chegar?” “Nove horas ele ficou de chegar.” “Então tá bom. Eu vou esperar.” Deu nove horas, nada. Nove e meia, nada. Dez horas lá vem ele: “Lá vem ele.” Mas já vinha com coisa na cabeça pra ganhar gado do Veado. Aí ele disse: “Agora, camarada Macaco.” “Agora, rapaz. Agora que eu venho chegando. Eu ia saindo lá de casa, tava aqui na metade da viagem, mandaram me chamar, mandaram me chamar que o meu pai tava sentindo dor pra ganhar nenê.” “Mas, camarada Macaco, onde é que tu já viu homem ganhar nenê?” “Pois é, e como é que tu quer que teu boi produza?” Aí ele

advogou causa, ganhou só uma questão. (FIOROTTI, 2007)

A narrativa aborda o que foi cunhado, de acordo com Paulo Santilli,

como projeto de gado e fez parte da implantação da pecuária entre os

indígenas por volta da década de 80 pela Diocese de Roraima, como

alternativa ao escasseamento da caça e fazer frente à ocupação do lavrado

perante os fazendeiros. O projeto consistia em ceder, em sistema de rodízio,

durante cinco anos algumas cabeças de gado às comunidades indígenas,

responsáveis então pela reprodução e trato do gado, projeto adotado nos anos

seguintes pela Funai (SANTILLI, 2001, p. 42).

De acordo com Jaci Guilherme Vieira, a atividade pecuarista teve início

em 1787, com a implantação dos primeiros rebanhos nos campos gerais,

através da fundação das “Fazendas do Rei” (2014, p. 42). Três foram as

fazendas implantadas: São Bento, São José e São Marcos. A primeira entre o

rio Uraricoera e o rio Branco – oeste do estado de Roraima –, a segunda

próxima ao Forte São Joaquim e a última entre os rios Uraricoera e Tacutu,

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onde atualmente é a TI São Marcos – norte do estado. A partir de então as

relações entre os não-índios e os índios adquiriram outro feitio: os índios e

suas terras passaram a ser disputados entre fazendeiros. Os índios pela mão-

de-obra maciça que representavam e as terras para expandir a atividade

pecuarista nascitura. Para, então, garantir a manutenção destas relações,

vários expedientes clientelistas foram utilizados, como a oferta de bens

industrializados em troca dos serviços prestados pelos indígenas, além do

recrutamento de crianças indígenas para a lida com o gado, o compadrio

(SANTILLI, 2001, p. 39).

O compadrio está relacionado, nas religiões cristãs, ao sacramento do

batismo. Através dele torna-se filho de Deus e membro da Igreja e pelo qual

ascende-se a salvação eterna. Claude Lévi-Strauss, em Estruturas

elementares do parentesco (1982), investigando as estruturas assimétricas,

aponta para a índia meridional e seu sistema de parentesco. Assim, Lévi-

Strauss evidencia o compadrio estabelecido entre homens que cedem irmãs ou

filhas:

Em todos os lugares onde se pratica um método simples de troca direta ou indireta, fundado sobre estas estruturas elementares de reciprocidade que são as cessões de irmãs e de filhas, a relação de cunhados, ou, como preferimos dizer, o compadrio, possui uma importância marcada por agudo caráter de ambiguidade. Os cunhados dependem verdadeiramente, de maneira vital, um de outro, e esta dependência mútua pode criar alternadamente, às vezes também simultaneamente, a colaboração, a confiança e a amizade, ou então a desconfiança, o temor e o ódio. Na maioria das vezes, a arbitragem entre estes sentimentos opostos é assegurada por: um comportamento social rigorosamente fixo, e por todo um sistema de obrigações e de interdições reciprocas, dos quais o tabu dos sogros (incluindo neste termo todos aqueles que em inglês são designados como "in-iaw") é somente um elemento. (1982, p. 479)

Ou seja, a cessão de mulheres naquela comunidade gera assimetrias

na relação entre compadres e mais do que obrigações, e talvez por causa

delas, animosidades entre os compadres. Peter Rivière em Forgotten frontier:

ranchers of nothern Brazil (1972) assim descreve o batismo entre os

roraimenses:

Baptism is regarded as being a vital ritual for the young child, and whenever possible takes place soon after birth. This is easier now than in the past, when access to a priest was more difficult. The baptismal registers in the prelazia in Bôa Vista reveal that in the past it was not unusual for several members of the same family to be

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baptized together. The stress on early baptism is related to the high infant mortality rate in the region and beliefs concerning the fate of the souls of the unbaptized. The baptism ceremony itself is a very simple affair; it is not necessary for the godparents to be present, although they normally are. If the parents are unable to provide godparents, it is quite usual for the priest or a saint to be named. In spite of the high infant mortality rate – few families have not ex-perienced the loss of a child – neither childbirth nor infant care is hedged in with ritual activities. Although, once again, this may reflect the belief in the eternal salvation of an innocent's soul, it should be noted that ritual is on a very low key in all aspects of Roraimaense life. (1972, Pp. 73-74)

Mais adiante, Riviere se delonga sobre a relação de compadrio e afirma

que a forma mais importante com ela é estabelecida é através do batismo.

Contudo, mais do que estabelecer laços de parentesco, o compadrio também é

explorado com objetivos políticos e econômicos, resultando numa relação de

patrão-cliente, como afirma Riviere: “The choice of compadres is more often

than not made with an eye to some potential advantage and thus operates as a

system of patronage” (1972, P.85).

Marcos Lanna em A estrutura sacrificial do compadrio: uma

ontologia da desigualdade? (2009), citando Pitt-Rivers, atenta para a

sinonímia entre a palavra “padriño" e a palavra “patrón” na Andaluzia, além de

apontar para o uso cotidiano da expressão “meu patrão” no Brasil. Afirma que

“Em ambos os locais as palavras convergem, estão em relação hierárquica”

(2009, p. 07). Para Lanna o batismo seria a incorporação a uma sociedade

moral e, sob a lei canônica, os pais ao dedicarem seus filhos a santos teriam

os padrinhos como intermediários. Assim a criança seria a primeira dádiva na

relação de compadrio. A segunda seria o nome dado pelos padrinhos a criança

e a última a dedicação da própria criança.

Por ser um valor máximo, a graça não é nunca perfeitamente retribuída, mas algo que coloca seu recebedor numa posição inferior, com a obrigação de retribuir. Vê-se, com isso, já que a dádiva é uma relação instável desequilibrada, não se retribui identicamente, ao mesmo tempo, a alguém em posição social idêntica. Percebe-se, ainda, como a troca é uma síntese entre dois movimentos em sentidos opostos, cada um criando sua dívida. Dessa forma, é possível afinal definir o compadrio como a troca da pessoa física pela pessoa social, esta simbolizando um valor superior maior do que aquela. Ainda: o compadrio é a troca do afilhado pela graça, uma troca assimétrica, ainda que recíproca. (LANNA, 2009, p. 08)

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Em virtude do caráter instável e desequilibrada da dádiva, depois da

dádiva da criança aos padrinhos, restariam apenas assimetrias e

desequilíbrios.

Em alguns locais e momentos históricos, os padrinhos receberiam outras prestações materiais, as quais podem simbolizar a própria pessoa do afilhado e o trabalho deste é a contraprestação mais valiosa que ele poderia dar em troca da graça (ou uma continuação lógica, uma reprodução da dádiva inicial que seus pais fizeram aos padrinhos). Se a pessoa física foi dada pelos pais biológicos antes do batismo, o trabalho constitui o dom da pessoa social do afilhado, algo com certo conteúdo sagrado, que se aproxima da graça como modo de retribuição. O afilhado é, ao mesmo tempo, um sujeito que dá e um objeto que circula, semelhante às mulheres no modelo das estruturas elementares do parentesco de Lévi-Strauss, um valor simbólico e um veículo de valor, sua incorporação. Se o dom mais valioso que os pais biológicos podem fazer é o do seu filho, ou de alguns direitos ligados ao seu filho, o afilhado pode dar mais dele mesmo, do seu trabalho. Isso sugere o aspecto sacrificial do compadrio. (LANNA, 2009, p. 08)

Contudo, Lanna observa que a prática redistributiva por parte dos

patrões não está implicada nessa relação. A troca entre afilhados e padrinhos

incorreria em patronagem como observa Lanna, já que as graças recebidas

pelo afilhado, seu nome, sua existência e o recebimento do Espírito Santo, em

suma sua vida seriam uma dívida permanente de vida. Além da lida do gado

como menciona Santilli, foi muito comum que crianças fossem dadas para

serem criadas por famílias de fazendeiros e mesmo por pessoas da cidade. Há

relatos desses no projeto Panton Pia'. Essas crianças, no geral, viviam em

situação de escravismo, exercendo, no caso feminino, trabalhos domésticos.

Como relatou Fiorotti,9 indígenas em situação de compadrio, eram inclusive

amarrados para apanhar, caso contrariassem os interesses do padrão.

A dimensão de compadrio presente na palavra compadre surge ao longo

das oito narrativas contadas por Seu Caetano. O termo “compadre” é utilizado

pelo Jabuti ao referir-se à Onça e a derrotando. Nas narrativas do Jabuti de

Koch-Grünberg, a palavra aparece quatro vezes; na narrativa de seu Caetano,

aparecem 19. Presente na narrativa de Raposo, o termo mobiliza toda uma

gama de relações sócio-históricas e de poder estabelecidas a partir do contato

entre não-índios e índios que reconfigurou não apenas a divisão e

9 Informação fornecida em orientação deste trabalho. Há relatos de hoje professores, filhos de fazendeiros à época, de terem assistido indígenas irem para o tronco, apanhar.

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estabelecimento de produtividade de terras a partir da criação do gado, mas

aspectos culturais pela introdução de dogmas cristãos, como o batismo. Com a

derrocada da Onça, do compadre, numa leitura simbólica, invertem-se as

relações historicamente estabelecidas entre não-índios e índios de predatismo

e exploração.

Entretanto, se o jabuti não possui a mesma capacidade de predação e

mecanismos de defesa natural que a onça, uma particularidade anatômica o

faz sobressair a feroz inimiga: a sua capacidade reprodutiva. A começar pelo

órgão sexual que pode alcançar mais da metade do tamanho de seu plastrão,

desdizendo assim aquilo que sua aparência frágil sugere e a terminar pelo

número de filhotes nascidos a cada ninhada: entre um e quinze. Esses fatos

aliados à longevidade do jabuti, o colocam fora do risco de extinção,

exatamente o contrário da onça.

O ouvinte ingressa no mundo fabular do Jabuti de pronto, assim que o

narrador atribui movimento ao simpático animalzinho, através dos verbos de

ação “andou” e “encontrou”:

Jabuti... Ele andou e encontrou macaco comendo inajá, os macacos comendo. Aí pediu [que] Macaco derrubasse inajá pra ele. “Derruba najá pra mim!” Macaco derrubou. Comeu. Pediu outro. Macaco derrubou. Até que Macaco se enjoou dele. Aí ele veio: “Rapaz, eu vou te buscar lá, eu vou te deixar aqui em cima do pé de inajá.” Aí colocou lá em cima, ficou comendo lá. Não demorou muito lá vem Onça. Onça veio e falou pra ele “O que é que o senhor tá fazendo aí?” “Não, eu subi aqui pra comer najá.” Dizendo ele que subiu. “Tá gostoso?” “Tá” “Então derruba um pra mim”. Derrubou pra Onça. “Mas tá gostoso, mesmo!” Comeu. “Derruba mais um”. Comeu. “Derruba mais um”. Até que Jabuti pensou: “Rapaz, eu vou matar essa Onça.” “Derruba mais um” “Então fica embaixo, na minha direção, bem embaixo de mim, mas pisca olho, não olha pra mim, não. Pisca olho. Eu vou te derrubar najá, pra você.” Ficou aí piscado. Jabuti veio de lá e ó pá! E achou graça. Hã! Hã! Hã! Hã! Hã!'”

A utilização do verbo na forma do pretérito perfeito situa de antemão o

ouvinte: uma situação vivenciada e superada. Já a atribuição de verbos de

ação ao Jabuti cria uma situação curiosa e irreverente, uma vez que de animal

extremamente covarde, cuja maior estratégia de sobrevivência na natureza é a

autodefesa e a inação, transmuta-se em esperteza, criatividade e atividade. Ao

Jabuti são atribuídas ações tipicamente humanas, como a capacidade de fala,

de fuga dos instintos puramente animais através da criatividade e

premeditação: ele personificado. De animal assujeitado pelas intempéries e

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predadores naturais, passa a sujeito das ações e das narrativas, fato muito

comum nas fábulas.

A natureza é assim ludibriada, indicando a posição que não apenas o

Jabuti, mas nós seres humanos devemos assumir perante os fatos naturais e

situações adversas que se nos interpõem – irreverência e criatividade. Dentre

as oito narrativas, todas seguem uma linearidade lógica e cronológica, nas

quais a estrutura básica textual – início, meio e fim – é seguida. Há, também, a

contextualização do ouvinte/leitor acerca do espaço em que se desenrola a

narrativa, neste caso podendo ser associado ao espaço geográfico do circum-

Roraima, já que incorpora às narrativas animais pertencentes à fauna (jabuti,

onça, anta, jacaré-açu, macaco, veado) e flora (najá, coco-babão, olho de

buriti) da região, além de termos relativos à cultura indígena (beiju, jamaxim,

flecha com veneno, kumaza’).

Assim o Jabuti enfrenta seus principais predadores naturais, dentre os

quais a Onça, que é seu predador natural, que representa o perigo à

continuidade de sua existência. Buscando meios de sobreviver em meio ao

lavrado do circum-Roraima, o Jabuti usa de artimanhas criativas para enfrentar

e, por conseguinte, levar à derrota seu predador felino. Um aspecto de

importância crucial para demarcar a transição temporal entre uma narrativa e

outra é a derrota de seus oponentes, seguida de uma risada característica do

Jabuti.

Caetano Raposo interage com o ouvinte no momento em que, se

dirigindo a ele, a respeito da subida do Jabuti ao alto do pé-de-najá, fala:

“Dizendo ele que subiu”, criando uma cumplicidade narrativa com o público que

culminará com “: Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”. Essa

sonora e contagiante gargalhada marca os términos e passagens nas

narrativas fabulares de Caetano Raposo sobre o jabuti, imitando-o e criando-o

respectivamente, imprimindo a ele uma personalidade irreverente e

debochada. É a risada do jabuti que empresta outros sentidos não apenas à

narrativa, mas aos ouvintes. Ela indica que o texto vibra, o leitor o estabiliza e o

integra àquilo que é ele próprio, logo sendo ele que vibra de corpo e alma

(ZUMTHOR, 2005, p. 53). Através desta risada, o jabuti pontua sua vitória

perante a morte. A morte é a experiência que mais radicalmente comprova que

somos seres de tempo, que também pertencemos à história natural como nos

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fala Benjamin: “A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode relatar. É da

morte que ele deriva sua autoridade. Em outras palavras: suas histórias

remetem à história natural” (1987, p. 208).

Caetano Raposo cria onomatopeias para representar os sons feitos

pelos animais. Sons como os emitidos pelo Jacaré-açu enquanto dorme

esperando o Jabuti secar-se e livrar-se do alegado veneno. Ou como quando

já livre da ameaça do Açu, depara-se novamente com a onça.

Aí saiu, foi embora pro caimbezal. Aí encontrou coco-babão, caroço de coco-babão embaixo da pedra. Ficou quebrando – Tá – e comendo. Aí Onça encontrou de novo: “Ê camarada! Que que tá fazendo?” “Tô comendo caroço do meu saco.” “Será que é gostoso caroço do seu saco?” “É gostoso. Quer provar?” “Então me dê um.” Deu pra ele. “Tá gostoso”. Deu outro de novo. “Assim é também o seu saco, deve tá gostoso! Vamos experimentar?” O saco da Onça é atrás. Então ele pensa que deu pedra pra ele em cima, ele colocou

pedra, aí onçazão e Jabuti “Padauuuuuu”, dois logo aí. “Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”. Graça dele, aí foi

embora, saiu de lá

Desta vez o ardil consiste em convencer a Onça de que assim como os

seus testículos são comestíveis, os dela também o seriam. No momento em

que a ingênua Onça coloca os próprios testículos entre duas pedras, o jabuti

toma distância e pula com as duas patas sobre as pedras. Não sem antes

emitir uma espécie de brado vitorioso: “Padauuuuuu”, com que alcança o seu

intento. Todos esses sons podem ser melhor conferidos no CD anexo, com a

narrativa de seu Caetano.

Esses expedientes vocais projetam-se ricamente no imaginário do

ouvinte, tornando-o mais do que público, em cúmplice do Jabuti, além de

imprimir quase que cinematograficamente em nossa mente o cenário e as

ações mobilizadas pelos personagens, como na seguinte narrativa em que o

cenário pode ser atribuído às áreas de lagos comumente encontradas no

lavrado roraimense:

Foi embora, foi embora e aí encostou no poço. Aí tava brincando o luar por aqui assim, quando bate na água. Eles tavam brincando lá. Aí Onça disse: “Que que tá fazendo aí?” “Não, quero comer beiju de goma. Tá lá dentro. Quero pegar ela, mas não tô podendo não. Tô mergulhando mas meu folego não dá, não.” “Onde?” “Ali, olha. Tá ali.” “É mesmo! Eu vou lá!” “Então vai. Mas é fundo. Vamos amarrar pedra e aí tu vai ligeiro.” Tirou olho do buriti, amarrou pedra no pescoço dele. “Tu vai lá, Compadre, e traga pra nós”. Aí Onçazão: “tchibum”.

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Desceu ligeiro. Aí lá, matou. Enforcado e dentro d'água. “Hã'! Hã'!

Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”. E saiu de lá.

Em boa parte das narrativas em que o Jabuti enfrenta a Onça, podemos

entrever o desejo não apenas de garantir sua sobrevivência, mas o de

assegurar sua vitória através do subjugo intelectual. Essa postura perante as

situações que se lhe interpõem oferecem a oportunidade de transpassar as

hierarquias da cadeia alimentar, mas também de afirmá-las quando o

personagem em questão é a Anta.

Foi embora e aí encontrou com outra Onça. Aí Onça perguntou dele: “Que que você come?” “Eu como veado, eu como paca, eu como...” O jabuti, né? “Eu como paca, eu como veado, eu como tudo caça, tudo. Porco. Como tudo. E você?” “Eu também como”, falou a onça. “Então vamos cagar nós juntos pra ver quem é que come mais, vendo as sete estrelas, não olha pra ninguém não. Nem eu nem você. Só olha pras sete estrela.” Tá. Bem juntinho, cagando aí. Aí o Jabuti trabalhou aqui e trouxe a merda da onça pra ele e dele colocou pra Onça. Ficou lá. “Vamos ver!”. Viraram, levantaram. Merda da Onça só folha, só folha. Do jabuti, pelo de caça, de veado, porco, de toda caça, do jabuti, [carumbé]. “Rapaz, de novo!”. Jabuti fez o mesmo processo. Onça não viu, não que ele fez. DF: Passando por trás das costas, lá. CR: Éh. Aí viraram de novo pra ver. Continuou. Onça só folha mesmo, do Jabuti, carumbé só pelo de caça. “Então Jabuti, tu vai matar anta pra eu comer.” Ele sabia onde vivia anta, Jabuti, né? “Tá bem.” “Tá aqui flecha venenosa.” Onça dando pra ele, né? DF: Aham. CR: “Tá bem”. Ele sabia onde era a casa da anta e foi direto pra lá. Chegou lá com sede, Anta tava trançando aí um jamaxim. Aí pediu Anta. “Taí água, tá aí, bebe água aí”. “Não, eu quero do kumaza' ”. DF: Kumaza' é o quê? CR: Kumaza' é um tipo de balde. Até que encheu o saco da anta com kumaza'. “Eu quero tomar água de kumaza'”. “O que é que tá dizendo kumaza'? Tá aqui kumaza'.” E tirou coisa dela, aí e deu pra ele. Pra quê! Isso aí que ele queria, o Jabuti. DF: Essa aí eu não entendi direito o final. CR: Hein. DF: Não entendi direito o final, não. Ele queria o quê, o Jabuti? CR: O jabuti queria a pimba da coisa. DF: Da Anta? CR: Da Anta! Queria a pimba da Anta, aí a anta tirou a pimba dela e deu pra ele. Pra quê! DF: Pegou!? CR: Pegou. Anta esqueceu do jamaxim dela e correu. Não caiu, não. Até cansou Anta, Anta caiu. Matou Anta. A flecha dele, colocou a flecha da Onça.

Esse desejo de subjugar pela inteligência muito nos lembra outro ilustre

personagem da tradição oral brasileira, embora suas ações tenham potencial

menos ofensivo, o esperto Pedro Malasartes. De origem indefinida, segundo

Câmara Cascudo, “Malasartes português, Urdemales espanhol é o centro de

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interesse reunindo estórias de muitas origens, castelhanas, francesas,

italianas.” (CASCUDO, 1984. p. 173). Na narrativa coletada por J. Leite de

Vasconcelos em 1882, Cabeceira de Bastos, Pedro Malasartes encontra no

alto de uma serra uma casa de ladrões. Dizendo-se barbeiro que andava a

fazer barbas pediu socorro, espantando os ladrões, dos quais apenas um

permanece para o jantar. Propondo-se a fazer a barba do ladrão corta-lhe a

língua fora e aproveita o jantar. Continuando sua caminhada, Malasartes vai a

outra serra onde sobe em um pinho. Debaixo desta árvore os ladrões fugidos

preparam o jantar. Malasartes aproveita o descuido dos ladrões e urina nas

panelas do jantar. Sem nada perceberem os ladrões provam do jantar e

gostam. Em seguida atira-lhes sobre a cabeça uma cancela. Descoberto,

Malasartes foge para a beira de um rio onde é capturado por um boneco de

visgo confeccionado pelos ladrões, que acaba sendo jogado no rio.

Embora a narrativa coletada por Vasconcelos Leite tenha um final trágico

para o protagonista, recebendo como punição a morte, outras narrativas

difundem as peripécias de Malasartes, como em “A sopa de Pedras”, em que

aproveitando da ingenuidade e boa vontade de seus vizinhos consegue

preparar uma refeição para si, garantindo sua sobrevivência. Em outras

narrativas, Malasartes ludibria avarentos, mesquinhos e poderosos em favor

dos pobres.

Assim como nas aventuras de Malasartes, as narrativas de Caetano

Raposo longe estão da moral maniqueísta da cultura ocidental. Analisando o

caráter trickster do herói cultural dos Pemons, Makunaima, Lúcia Sá declara

que

De fato, se procurarmos uma característica de Makunaíma presente na maior parte ou, quem sabe, em todas as suas narrativas, veremos que é sua capacidade de adaptação – o que Ellen Basso chamou de “flexibilidade e criatividade pragmática” da cultura e dos tricksters kalapalos. Se, ao lermos essas histórias, nos distanciarmos de categorias fixas como “bem” e “mal”, iremos constatar que Makunaíma é simplesmente mais adaptável e mais criativo do que seus irmãos ou os demais personagens que o rodeiam.” (2012, p. 62)

Estas mesmas características são extensivas a alguns personagens que

circulam nas narrativas indígenas, em especial nas de Caetano Raposo. Ou

seja, não parece haver diferenças categóricas entre o comportamento de

tricksters como Makunaíma (SÁ, 2012, p. 64). Nesta perspectiva, o Jabuti

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adquire traços trickster ao recorrer à capacidade de adaptação e criatividade

para vencer os obstáculos que lhe interpõem, não se adequando a uma moral

típica ocidental, por exemplo. Dando sequência às narrativas de Caetano

Raposo,

Aí ele voltou, encontrou Onça lá e perguntou: “Como é que é, compadre?” “Não, já tá morta.” “Tá?”. “Tá. Não falei que eu como caça? Matei.” “Então, umbora ver!” Aí foram pra lá. Chegaram lá, tava antazona lá esticada. Aí cortaram ela todinho, ela deu buchada pra ele, pro Jabuti. Só buchada, não deu carne, não. “A carne é pra mim e a buchada pra ti.” “Tá bem.” Aí fizeram cozido pra eles. Aí a Onça disse “Rapaz, eu vou tirar vara pra fazer o jirau pra assar, né?” “Aí eu fico aqui cozinhando”. “Pode cozinhar aí, mas não mexe com a minha panela , não. Não come minha boia, não.” Onça, né? DF: Falou. CR: Aí, “Tá bom.” Aí sobrou um resto de veneno da flecha, aí colocou na panela da Onça, o Jabuti. Aí chegou “E aí? Tá cozido?” “Ta bom, tá bom, tá cozido. Vamos comer agora.” Boia do Jabuti só panelada e da Onça, a carne. Comeram juntos e panela de Jabuti e panela da Onça. Tá bom. Comeram. Aí Onça falou “Ahhhhhh, minha boia tá amarga!” “Ahhhhh, Minha boia tá amarga!”, Jabuti. “Ahhhhhh, minha boia tá amarga! Minha comida tá amarga” “Ahhhhh, minha comida tá amarga!” Jabuti. Aí não demorou Onça: “Pouuu”, caiu. Jabuti olhando pra ele. Matou Onça. “Há’ há’ há’ há’ há’ ”. Aí foi embora, jabuti. Matou onça

O conteúdo dessa narrativa (assim como aquele em que a Onça quebra

seus testículos) tanto chamou a atenção de Mário de Andrade, que a atribuiu

ao personagem de sua obra Macunaíma (1928), quando depois de caçar uma

anta só recebe de seu irmão mais velho Jiguê, as tripas. Dizemos que o Jabuti

possui traços trickster porque parece a personagens como o coiote nas

narrativas indígenas norte-americanas e mesmo Makunaima nas narrativas

pemón. Contudo, o Jabuti se difere de um trickster tradicional, já que não

representa um herói cultural, como o próprio Makunaima, além de também não

possuir capacidade metamórfica.

A colaboratividade também é uma das características da narrativa que

evidencia a peculiaridade cultural dos povos indígenas. Em uma fábula de

Esopo, muito assemelhada em tema à de Caetano Raposo, “A Tartaruga e a

Lebre”, temos uma corrida estabelecida entre dois animais em condições

desiguais de competição. Entretanto, ao contrário da fábula de Caetano

Raposo, na fábula esópica a Lebre vale-se do conhecimento da fraqueza de

sua vagarosa opositora enquanto a Tartaruga vale-se da prepotência

vangloriada pela Lebre com relação à própria velocidade. Vemos, então, a

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natureza, ou melhor, as limitações por ela impostas, sendo burlada pela

inteligência.

Aí encontrou com Veado. “Você é corredor?” “Sou corredor, eu sou corredor e você?” “Eu também sou corredor” “Então vamos experimentar nossa carreira?” “Vamos.” “Tá o dia.” “Tá bom.” “Nós vamos sair daqui. Você fica do outro lado e eu fico do outro.” “Tá”. Aí convidou outros carumbés, companheiros dele. “Tu fica aqui, quando Veado perguntar de ti, diga que você tá na frente.” Colocou outro mais na frente. Uma sequência de jabutis. Aí chegou o dia deles. Aí o Veado perguntou “Já, compadre?”. “Já, compadre, vamos embora!” Saíram. Veado saiu torto daí. Aí perguntou: “Compadre!”. “Ê...!” Responderam lá na frente. Carreira do veado é de 80 quilômetros por hora. “Compadre!” “Ê...!” Lá na frente. Foi embora, foi embora. “Compadre!” “Ê...!”. E ele cansou, diminuiu carreira. Chegou no ponto deles lá, lá ele estava. Lá no final, estava lá. Éh..., descansado. “Cheguei muito perto, compadre.” “Eu não falei que eu sou corredor?” “Tá bom, compadre.” Vieram com um palmo de língua desse tamanho assim. Cansado, cansado, cansado. Aí o Carumbé achou graça dele:

“: Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!”

O tom de irreverência que permeia todas as narrativas através do

emprego de vocábulos surpreendentes como a adjetivo “torto”, para qualificar a

forma com que o veado lavradeiro inicia a corrida, e “piscado”, evidenciam

outra peculiaridade. Além de pontuar a vitória sobre o veado lavradeiro,

parecem indicar também a maneira como se deve encarar as situações que se

nos põem: com irreverência, sagacidade e colaboratividade, lembrando-nos

aquilo que Benjamin já havia nos dito sobre outra forma narrativa aparentada

do mito e fábula,

O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças, que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância […]. O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem. (1987, p. 215)

Ensina, ainda, como repete a narrativa de Caetano Raposo, que as

narrativas permite-nos vivenciar o fenômeno da morte e compreender que ela

não está alijada da vida, como a modernidade quer nos estabelecer com toda

sua velocidade e imediatismo.

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A prática discursiva

Aristóteles foi o primeiro a definir a fábula em Arte Retórica (1964),

localizando a fábula enquanto um dispositivo argumentativo utilizado pelos

oradores com intuito de descobrir os modos de persuadir o público audiente.

A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a combinação dos atos; chamo caráter (ou costumes) o que nos permite qualificar as personagens que agem; enfim, o pensamento é tudo o que nas palavras pronunciadas expõe o que quer que seja ou exprime uma sentença. (ARISTÓTELES, 2007, p. 36)

A fábula seria então criação do orador para compor seu discurso de

exemplo e assim narra fatos que podem ser apresentados como reais. Ao

apresentar a fábula esópica da raposa que atravessou o rio, Aristóteles indica

um aspecto essencial da fábula: a divisão da narrativa em duas partes. A

primeira parte consistiria na narrativa (mythos) e a segunda, epimítio

(precedente à narrativa) ou promítio (antecedente) assim nomeadas pelos

retores antigos, segundo Dezotti (2003).

Partindo da análise das fábulas de Fedro, e por consequência as de

Esopo, a estrutura da fábula foi analisada por Alceu Dias Lima (1984) que

identificou o que chamou de a forma da fábula. De acordo com Lima, a fábula é

a articulação dos discursos narrativo, interpretativo ou moral, e pragmático ou

metalinguístico e é este último aspecto a lograr significante importância na

análise das fábulas esópico-fedrianas. Essa divisão pode ser identificada como

na fábula a seguir de Esopo citada por Dezotti (2003):

A tartaruga e a lebre Uma tartaruga e uma lebre discutiam a respeito de sua velocidade. Então fixaram um prazo e um local e separaram-se. A lebre, rápida por natureza, descuidou-se da corrida e, tendo-se deitado à beira do caminho, adormeceu. E a tartaruga, consciente de sua lentidão, não parou de correr e, tendo ultrapassado a lebre, que dormia, alcançou o prêmio da ventura. A fábula mostra que muitas vezes o esforço venceu uma natureza relapsa.

Embora Lima ressalte que a forma da fábula não se aplique a todas

narrativas fabulares, o que dá lugar ao efeito de fábula, ou seja, “toda

sequência que, independentemente do texto em que se encontra, evoca, por

sua própria forma, a de uma fábula” (2003, p. 14), é o discurso metalinguístico

Discurso

narrativo

Discurso

moral Discurso

metalinguístico

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presente na palavra “moral” ou em variantes como “a fábula ensina” ou a

mudança na entonação da voz do narrador que revela a estrutura enunciativa

da fábula, de acordo com Lima. É através também deste discurso que se

retoma a figura do alocutário, do público, se atualiza a narrativa e se esconde o

ator humano por trás da narrativa na qual podem protagonizar animais, para no

final revelar que é este humano que quer ensinar, mostrar, censurar, louvar,

aconselhar e etc.

Nessa perspectiva, o narrador é quem conduz o público na interpretação

da fábula. Além disso, é a moral que indica o dinamismo e aplicabilidade da

fábula a diversas situações discursivas. Como aponta Dezotti (1999, p. 139-

140) quando traz a fábula "O rouxinol e o gavião", contada por Hesíodo.

Destinada a reis e a seu próprio irmão Perses adapta sua moral com o intuito

de advertir seus destinatários que acima da força bruta e da fragilidade existe

uma justiça divina, no caso advinda de Zeus, sob a qual estão assujeitados.

Palmilhando as pesquisas feitas por Lima, Dezotti (1999) retoma o

aspecto discursivo da fábula esópica enquanto ato de fala, além da forma

tripartite em que se estrutura. Dedicando-se a percorrer os caminhos tomados

pela fábula grega da prática discursiva à sua fixação enquanto gênero literário,

Dezotti identifica duas realidades textuais:

a fábula literária, texto autônomo que institui seu próprio contexto por meio de epimítios, tal qual a documentam as coleções esópicas, e a fábula encaixada, aplicada a uma dada situação discursiva por um locutor que decidiu construir seu ato de fala por meio de uma narrativa. (1999, p. 138)

Averiguando textos de Heródoto, Hesíodo e Homero, Dezotti constata

que:

Da fábula como gênero discursivo já institucionalizado na cultura grega como um ato de fala realizado por narrativas é que deriva a fábula como gênero literário. Esta, porém, ao contrário da prática discursiva, não permitia ao locutor valer-se dos fatores situacionais para indicar ao interlocutor o valor ilocucional da narrativa. Isso porque a fábula autônoma instaura, pela própria linguagem, sua própria situação discursiva. Por isso é necessário pressupor-se que, quando se torna gênero literário, a fábula se institucionaliza com um esquema discursivo canônico que prevê a explicitação, em promítios ou em epimítios, de modo como o texto narrativo deve ser interpretado pelo alocutário (1999, p. 141)

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Ainda de acordo com os fatores situacionais, o locutor poderia omitir uma

das partes da fábula, deixando ao alocutário a tarefa de reconstituir o esquema

discursivo, a partir de relações intertextuais estabelecidos entre as fábulas, o

que acaba por alçá-lo a co-elaborador da fábula (1999, p. 141-142). Não à toa,

expedientes como esse, em que o ouvinte ou leitor precisa reconstituir a moral

da fábula através de indícios situacionais ou textuais concederam à fábula,

antes da denominação mythos, a de ainos, cognato de ainigma, enigma na

transliteração para o português, já que exigia do alocutário um esforço

interpretativo do alocutário (DEZOTTI, 2003, p. 23).

Enigma também é o que configura aquilo que nas narrativas de Seu

Caetano poderiam ser associadas ao que Lima e Dezotti identificaram

enquanto discurso moral. Como pode-se perceber na narrativa a seguir:

Aí encontrou com Veado. Disse: "Você é corredor?" "Sou corredor, eu sou corredor, disse o Veado, e você?" "Eu também sou corredor." "Então vamos experimentar nossa carreira?" "Vamos." "Tal dia." "Tá bom." "Nós vamos sair daqui. Aqui tá o igarapé, você fica d'outro lado e eu fico d'outro." "Tá." Aí convidou outros carumbés, companheiros dele. "Tu fica aqui, quando veado perguntar de ti, diga que você tá na frente." Colocou outro mais na frente, assim. DF: Uma sequência de jabutis.

CR: Eh, de jabutis. Aí chegou o dia deles. Aí o veado perguntou: "Já, compadre?" "Já, compadre, vamos embora!" Saíram. Veado saiu torto daí. Aí perguntou: "Compadre?" "Erhmm!" Responderam lá na frente. Veado é bicho todo [esperto], carreira do Veado é de 80 quilômetros por hora.

DF: É ligeiro.

CR: "Compadre!" "Erhmm!" Lá na frente. Foi embora, foi embora, foi embora, foi embora, compadre foi embora. "Compadre!" "Erhmm!" Veado cansou, diminuiu carreira. Chegou no ponto deles lá, lá ele estava.

DF: Lá no final?

CR: Lá no final, estava lá.

DF: E descansado ainda? [Risos]

CR: Eh, descansado. [Risos] "Cheguei muito perto, compadre." "Eu não falei que eu sou corredor?" "Tá bom, compadre." Vieram com a língua desse tamanho, assim.

DF: Do lado de fora?

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CR: Cansado, cansado, cansado. Aí o Carumbé achou graça dele "Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!". Professor, até aí que eu sei.

Assim como na forma da fábula podemos distinguir um discurso narrativo

– onde a temática da corrida mantém-se, indicando a manutenção da tradição

oral indígena e ao mesmo tempo sua atualização através da linguagem

despojada e dos recursos estilísticos utilizados pelo narrador – e um discurso

metalinguístico e interpretativo amalgamados pelo riso final do Jabuti,

indicando a contribuição criativa do narrador e compartilhando com o público a

interpretação de suas fábulas. O próximo capítulo dedica-se a essa

interpretação.

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CAPÍTULO III

Hã'! Hã'! Hã' – E o Jabuti Ri

CR: Jabuti veio de lá e ó pá! E achou graça. Hã'!

Hã'! Hã'! Hã'! Hã'!Hã'!Hã'!Hã'!Hã'Hã'!Hã'!

Hã '!Hã'!Hã'!Hã'!

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A presença ativa de Caetano Raposo enquanto narrador-performer

movimenta uma série de recursos que criam as narrativas do ciclo do Jabuti,

mas nada de forma tão marcada quanto a risada que ao animalzinho atribui. As

narrativas de Caetano Raposo compartilham com outras narrativas não apenas

o protagonismo por parte do Jabuti como as ações por ele desenvolvidas. Em

boa parte das narrativas, o Jabuti apresenta-se como a corporificação da

esperteza, tomando atitudes em que muitas das vezes beiram à crueldade.

Como em:

Foi embora, foi embora e aí encostou no poço. Aí tava brincando o luar por aqui assim, quando bate na água. Eles tavam brincando lá. Aí Onça disse: “Que que tá fazendo aí?” “Não, quero comer beiju de goma. Tá lá dentro. Quero pegar ela, mas não tô podendo não. Tô mergulhando mas meu folego não dá, não.” “Onde?” “Ali, olha. Tá ali.” “É mesmo! Eu vou lá!” “Então vai. Mas é fundo. Vamos amarrar pedra e aí tu vai ligeiro.” Tirou olho do buriti, amarrou pedra no pescoço dele. “Tu vai lá, Compadre, e traga pra nós”. Aí Onçazão: “tchibum”. Desceu ligeiro. Aí lá, matou. Enforcado e dentro d'água. “Ha’ha’ha’ha’ha’”. E saiu de lá.

Esta atitude repete-se em outras duas narrativas. Na narrativa, embora a

mera presença da Onça já represente suficiente ameaça para sua existência, a

Onça não estabelece confronto direto com o Jabuti. Contudo, o Jabuti

aproveita-se da Onça e sua despretensão e a mata. Entretanto, a gargalhada

do Jabuti reverbera não apenas ante o público, mas também no cerne da

compreensão deste mesmo público a ponto de praticamente absolver o

quelônio. Nas outras narrativas o conflito entre o Jabuti e outros animais

maiores e seus predadores é estabelecido de imediato e ao Jabuti cabe

apenas lidar com a situação que lhe é interposta. O que nos leva a afirmar que

é esta risada que particulariza a narrativa de Caetano Raposo ante outras, pelo

menos nenhum outro narrador do projeto Panton Pia' (FIOROTTI, 2007) nem

mesmo da revisão bibliográfica realizada executam tal risada.

Já dizia Aristóteles em Partes dos animais (2010, p. 136) que o homem

é o único animal que ri. Não apenas ri, como bem atalhou Henri Bergson

(1983), como também faz rir e muito embora sob o riso exista um apanágio de

atitudes e sentimentos humanos, inclusive a crueldade, é pelo viés do cômico

que este trabalho se desenvolve. Para Propp (1992, p. 38) ainda que se ria de

um animal, é em virtude de evocar a lembrança do homem ou de a ele

assemelhar-se: “O cômico sempre direta ou indiretamente está ligado ao

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homem. A natureza inorgânica não pode ser ridícula porque não tem nada em

comum com o homem”. Assim também o assegura Bergson

Poderia também ter sido definido como um animal que faz rir, pois se outro animal o conseguisse, ou algum objeto inanimado, seria por semelhança com o homem, pela característica impressa pelo homem ou pelo uso que o homem dele faz.

Não há comédia sem riso, já a recíproca não é verdadeira. Remontando

novamente a Aristóteles da A poética (1964), o estagerita indica a gênese da

comédia, gestada no ventre das artes da mimeses, na qual também se nutriu a

tragédia, sendo uma diferente da outra pelo fato de esta imitar os homens

melhores do que em realidade são, e aquela por imitá-los piores. Entretanto

estes homens piores não o eram a ponto de imitarem todos os vícios, mas só

os ridículos: aquelas taras e defeitos não dolorosos e não corruptores.

Mas se o homem é o único animal que ri, antes mesmo do homem,

antes de tudo veio o riso, como apresenta George Minois (2003, p. 23) citando

parte do texto encontrado no século III, o papiro de Leyde. Deus deu sete

gargalhadas de onde nasceram os setes deuses: Luz, Água, Hermes, Geração,

Destino, Tempo e, do choro do riso, a Alma. Já oito gargalhadas dá o Jabuti de

Caetano Raposo entre uma narrativa e outra, que à primeira impressão parece

configurar uma espécie de riso-refrão, que marca o término de uma e anuncia

outra narrativa. Mas a cada repetição um novo significado pode ser dado à

risada do Jabuti. Fazendo rir o Jabuti, Caetano Raposo institui-se

definitivamente enquanto narrador e estabelece um movimento incessante de

aproximação e afastamento entre narrador-público e público-sentidos das

narrativas.

O riso do Jabuti

O riso do Jabuti de Caetano Raposo faz rir. À primeira vista pela

inusitada atribuição da capacidade humana de rir ao animalzinho. O riso acaba

sendo uma reação diante do inesperado, uma vez que permite que se

estabeleça um jogo intelectual com o inesperado como afirma Dominique

Arnould, citado por George Minois (2003). Essa reação provoca

distensionamento após o assustador encontro com a voraz Onça. Este jogo

intelectual revela a faceta lúdica do riso do Jabuti. Esta faceta que provoca

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excitação sensorial através da sonoridade da gargalhada e, talvez, por isso

mesmo, encontre tão forte ressonância perante o público e, assim, imprima

profundamente o riso do Jabuti em sua memória cognitiva e mesmo afetiva,

quase não deixando tempo para que o público avalie racionalmente o

significado daquele riso.

O riso assim seria também um jogo lúdico cuja característica maior, de

acordo com Johan Huizinga (2000), é o divertimento. A concepção de jogo de

Johan Huizinga torna-se interessante quando amplia para além do humano e

assim do lógico a atividade lúdica. Embora assuma o jogo enquanto fenômeno

cultural, o estudioso assume que o jogo começa mesmo antes da própria

civilização, com os animais. E ainda que esta concepção assuma o aspecto

irracional do jogo enquanto divertimento, não se isenta de uma função

significante. Partindo para a concepção de jogo já inscrito enquanto fenômeno

cultural, Huizinga nos lembra que dentro da cultura o primeiro jogo estabelecido

pelo homem foi a linguagem. O estudioso assim assume a linguagem enquanto

um jogo constante entre a matéria e as coisas pensadas que ocultaria uma

metáfora, um jogo de palavras.

Nesse caminho, nas narrativas de Caetano Raposo teríamos uma

espécie de metajogo em que Jabuti e Onça, seres nascidos na/da linguagem,

estabelecem outro jogo com o público através da performance do narrador.

Jogo viabilizado por passagens como na primeira narrativa de Caetano Raposo

em que narrando a subida do Jabuti no pé de inajá, dirige-se ao entrevistador e

comenta: “Dizendo ele que subiu”. Jogo que culmina com a risada do Jabuti

que mobiliza por sua vez o riso do público. É este jogo que estabelece o

movimento de aproximação entre humanidades do performer e do público

através do riso repentino que logo transforma-se em jogo intelectual.

Em contrapartida, o riso despende certo distanciamento por parte de

quem ri com relação a situação vivenciada, como assume Propp (1992, p. 31):

“O riso ocorre em presença de duas grandezas: de um objeto de riso e de um

sujeito que ri – ou seja do homem.” Assim sendo, ao menos no plano narrativo,

o Jabuti de Caetano Raposo é capaz de afastar-se do risco de morte iminente

provocado pela presença da Onça com sua risada final, numa espécie de

exorcismo do medo. Ao mesmo tempo esse afastamento também é possível ao

público, além de ser-lhe proporcionada, ainda que temporariamente, a

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possibilidade de libertar-se do medo da Onça, pela ruptura da lógica da cadeia

alimentar, da subversão dos papéis exercidos desde os tempos imemoriais por

predador e presa.

Essa subversão avia os caminhos da comicidade das fábulas do Jabuti

porque possibilita no plano narrativo aquilo de que é impossível desvencilhar-

se no plano real, causando uma espécie de riso catártico que aproxima

narrador-personagem e público pelas vias da comicidade. Também o riso do

Jabuti alivia os rigores impostos pelo mito. Relembrando que tanto Jabuti como

Onça são seres de linguagem, nascidas dela, pudemos perceber no traçado

histórico de ambos que muitas vezes estão atrelados ao mito.

Libertando-se do medo da Onça e rindo dela, o público liberta-se e ri

também do medo da morte, extinguimos, ainda que simbólica e

momentaneamente, a própria morte. O homem então pode rir e libertar-se da

consciência daquilo que é inexorável à sua existência: o tempo, a memória e a

morte. O riso ganha um status humanizador, pois nos lembra que tanto Jabuti,

Onça e homem estão sob as mesmas leis naturais. Assim temos um

movimento de aproximação. Do rir de alguém passamos a rir com alguém,

criando reverberação ou como bem percebeu Bergson (1983)

O riso parece precisar de eco. Ouçamo-lo bem: não se trata de um som articulado, nítido, acabado, mas alguma coisa que se prolongasse repercutindo aqui e ali, algo começando por um estalo para continuar ribombando, como o trovão nas montanhas.

Outros motivos para o riso podem ser apreciados em Ariano Suassuna

(2013), comediógrafo, teórico e autor cômico, que em uma de suas aulas-

espetáculo narra a história de dois cegos: um forte e completamente cego,

outro fraco e cego de um olho só. O fraco convence o forte a passearem de

bote sob a condição de que enquanto este remasse, aquele comandaria o

leme. Já em alto mar, o cego forte dá uma remada e deixa escapulir o remo de

sua mão, que acerta o cego fraco no único olho bom que lhe restava e que diz

“Pronto!”. O cego forte ouvindo isso, pensa que chegaram ao seu destino e

desembarca. Suassuna então pergunta ao público por que se ri de uma história

assim tão horrorosa e retoma a definição de Aristóteles para o cômico

“Desarmonia de pequenas proporções sem consequências dolorosas”

(ARISTÓTELES apud SUASSUNA, 2008, p. 145). Usando a história para

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discutir a definição de Aristóteles, Suassuna aponta para dois recursos

fundamentais que causam o riso: a de localizar as personagens enquanto

seres de linguagem e o de estabelecer um gesto cômico ao mesmo tempo que

a ação possivelmente prejudicial se desenvolve.

A primeira coisa que eu fiz foi comunicar a vocês que era uma história inventada pelo povo brasileiro, então os dois cegos são dois personagens abstratos, imunes ao sofrimento, né, não sofrem porque não existem. E depois, mesmo assim, em um momento perigoso de a gente sentir compaixão, que o riso desaparece, é o momento em que fura o olho, eu, então, de propósito, fiz o gesto de palhaço (puxa remos imaginariamente), aí ó, pronto, aí vocês riram. Claro, porque eu anestesiei a sensibilidade de vocês, pra vocês não se aperceberem das possíveis consequências dolorosas da ação. (SUASSUNA, 2008)

Estes dois recursos são perceptíveis ao longo das narrativas de Caetano

Raposo. De primeiro porque Caetano Raposo é interpelado a contar as

histórias do Jabuti por um entrevistador. Logo tem-se que o público de antemão

sabe que trata-se de uma recriação da realidade, e mesmo narrativa, já que

pode-se perceber a presença recorrente de narrativas como as da corrida entre

o Veado e o Jabuti em outras culturas e épocas.

Logo, o riso atribuído ao animalzinho é uma recriação. A essa recriação,

Ariano Suassuna vai definir de riso estético: “Aquele tipo de Risível recriado ou

possível de ser recriado pela Arte riso do qual as principais categorias são o

Cômico e o Humorístico” (SUASSUNA, 2008, p. 143). Partindo da definição de

recriação que abrange o riso estético, temos nas narrativas de Caetano

Raposo a atribuição de ações e da capacidade de fala aos animais. Essas

revelam que a atribuição se trata de uma criação pertencente ao mundo

narrativo. Ao término da narrativa e da investida contra a Onça há o riso. O riso

então seria um gesto que distanciaria o público das possíveis consequências

dolorosas da ação do Jabuti contra a Onça, o que anularia a crueldade das

ações, já que distanciaria o público do sofrimento causado à Onça.

Como nas narrativas em que Jabuti encontra a Onça brincando na laje,

observando a lua refletida na água, há momentos em que o riso torna-se

incômodo e constrangedor. É quando o caráter puramente cruel do Jabuti

demonstra-se. Contudo, o próprio Suassuna ao analisar a concepção de

Hobbes sobre o riso e mais tarde a de Stendhal aceita a crueldade enquanto

elemento na forma com que se ri dos outros. Não há embate claramente

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estabelecido entre os dois velhos rivais, mas ainda assim o Jabuti abate a

Onça.

Isso poderia resultar em uma antipatia do público para com o Jabuti,

entretanto o riso atenua a percepção do dano causado à Onça. Tanto que

Jabuti e Onça tornam a encontrar-se e a enfrentar-se para então novamente

acontecer a morte da Onça, demonstrando aquilo que Ariano Suassuna aponta

na teoria de Aristóteles: a falta de consequências dolorosas na ação, pelo

menos para o narrador, o Jabuti e o ouvinte. Estes recursos evidenciam a

existência de Jabuti e Onça enquanto seres de linguagem libertando o público

das consequências reais da existência desses animais, em especial da Onça,

no mundo biossocial.

Ainda de acordo com a definição do riso estético, o riso do Jabuti

apresenta-se como recriação perante outras narrativas cujas semelhanças

temáticas e/ou de sentidos se apresentam. Como quando comparamos as

narrativas coletadas por Theodor Koch-Grünberg ou mesmo com a narrativa de

Esopo A tartaruga e a lebre. Comparada a esta, a narrativa de Caetano

Raposo acerca da corrida entre o Jabuti e o Veado Galheiro, apresenta

consideráveis diferenças embora mantenha a semelhança temática em que um

animal extremamente veloz estabelece uma competição com um animal muito

vagaroso. No riso do Jabuti dado contra o Veado corredor parece subverter a

moral ortodoxa da fábula esópica. Se na fábula do escravo grego temos uma

competição em que valores meritocráticos são colocados em evidência através

da fórmula: “A fábula mostra que muitas vezes o esforço venceu uma natureza

relapsa” (ESOPO in DEZOTTI, 2003, p. 69). Na narrativa de Caetano Raposo

temos uma competição em que a esperteza e a colaboratividade entre os

jabutis são as grandes vencedoras.

Outra posição sobre o riso analisada por Suassuna é a de Sigmund

Freud, na qual “o Risível é a repentina revelação do sexual sob o simbólico”

(2008, p. 150). Não obstante, o som atribuído por Caetano Raposo à risada do

Jabuti em muito lembra o som emitido pelo quelônio durante a cópula, seja pela

fricção entre plastrão e casco, seja vocalizado pelo próprio bichinho, o que não

deixaria de causar riso, por evocar a metáfora entre a relação sexual e

situações nas quais há um dos envolvidos sairá em desvantagem ou mesmo

prejuízo.

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Mas a característica do riso que perpassa todas as oito pantoni do Jabuti

é a de riso de zombaria ou escárnio, importantíssimo para a compreensão de

obras literárias, de acordo com Vladimir Propp (1990, p. 28). Partindo seu

estudo acerca do riso de zombaria, Propp o baseia como objeto da derrisão e

para cada objeto haveria meios mais específicos e outros mais gerais, dentre

os quais, o teórico elenca o de fazer alguém de bobo, ação bastante provocada

pelo Jabuti contra a Onça. Propp recorre a um termo russo para definir a ação

de fazer alguém de bobo, odurátchivanie. Em nota de rodapé da tradução

brasileira, o termo russo carrega em si além do sentido de logro ou engabelo, a

manifestação da própria imbecilidade por parte da vítima do odurátchivanie. Ou

seja, a vítima compartilha a culpa pela situação de engodo.

Se nos casos precedentes a comicidade é provocada por impressões repentinas e inesperadas, o procedimento do odurátchivanie pode constituir a base de comédias em muitos atos e de narrativas mais ou menos longas. A vítima de odurátchivanie pode tornar-se tal por sua própria culpa. O antagonista vale-se de algum defeito ou descuido da personagem para desmascará-la para escárnio geral. Há casos, entretanto, em que aquele que é feito de bobo parece não ser culpado embora todos riam dele. (1990, p. 99-100)

Assim o Jabuti atuaria no sentido de revelar a ignorância como defeito

mortal da Onça, ideia que circula entre os depoimentos de indígenas como

Clemente Flores: “Também, onça é besta, né?” (FIOROTTI, 2007). Essa

interpretação talvez seja uma percepção de que o apego a desejos ou mesmo

atitudes criam obsessões que nos afastam do padrão aceitável, mesmo em

relação à esperteza. Tornando a odurátchivanie, Propp (1990) indica que sua

presença é sustentáculo fundamental das comédias que vão do teatro de

marionetes passando pela commedia dell’ arte italiana e pelas comédias de

Shakespeare. Também servindo de sustentáculo ao folclore cômico e narrativo,

as anedotas, populares, facécias, Schwanke, fabliaux, assim como os contos

maravilhosos de animais e os satíricos. Propp aponta para o fato de que

mesmo em narrativas folclóricas, há subjacente sátiras sociais em que os

enganados são representantes das classe que oprimem e exploram o povo.

Isso por exemplo é o que mais se destaca na obra de Bakhtin sobre Rabelais:

uma inversão de papeis em que a opressão pode ser questionada, por meio do

riso, principalmente carnavalesco e popular (1987).

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O riso do Raposo

Voltando à análise de Suassuna sobre a obra de Bergson acerca do riso,

o dramaturgo vai afirmar que, embora não tenha nada que comprove tal

opinião nos exegetas do teórico, sua teoria se fundamentaria nas ideias de

Schelling e Hegel sobre a liberdade e a necessidade (2008, p. 151). Segundo a

análise da obra de Hegel, o homem, livre e espiritual de nascimento, confronta-

se com a necessidade e sua face brutal, mecanizada e cega. Uma face dividida

entre a nobreza de espírito e as paixões mais grosseiras que dilaceram o

homem tanto em seu mundo interior quanto em sociedade, que o obriga a viver

em coletividade.

Já partindo do reverso da concepção de Trágico de Schelling, o Risível

nasceria da inversão entre a assunção do homem enquanto sujeito de sua

liberdade e da necessidade enquanto objeto mecânico, duro e hostil da

natureza. Ou seja, a necessidade então passaria a sujeito, tomando os modos

mecanizados da natureza, agora objeto. Nas palavras de Suassuna “Quer dizer

que para Schelling, um ato humano torna-se risível quando o homem,

renunciando explícita ou implicitamente à sua condição de ser livre, assume os

modos mecanizados da natureza” (2008, p. 152).

Por trás do riso do Jabuti, há o riso de Raposo, entremeado por vários

discursos resultantes do contexto sócio-histórico conflituoso entre os macuxi e

os não-índios. Assumindo o ciclo do jabuti como uma metáfora dessas

relações, pode-se interpretar o riso não como sujeição às necessidades, mas

como denúncia e resistência às relações estabelecidas em virtude de tais

necessidades e à possível naturalização delas, como por exemplo, a já

mencionada relação de compadrio.

Paulo Santilli, em Riso castiga os costumes (2010), admite o riso

enquanto “princípio político pervasivo, que incide sobre as esferas da

hierarquia e da reciprocidade, ou, de modo mais amplo, sobre a estrutura

social, trazendo à tona o valor da autonomia pessoal” (2010, p. 106). Embora

atenha-se às relações de parentesco e afinidade no âmbito da aldeia, Santilli

traz considerações interessantes quando ampliadas ao contato com o não-

índio. O estudioso aponta para o fato de o riso ser um princípio de sociabilidade

que perpassa o conjunto das relações sociais. Assim, o riso e aquele que faz rir

teriam, dependendo de sua posição hierárquica na família ou aldeia, um duplo

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papel de aproximar os indivíduos como o de afastar, afim de estabelecer a

primazia dos indivíduos sobre as relações sociais pelas quais se organizam,

obedecendo ao princípio de igualdade.

Els Lagrou em Rir do poder e o poder do riso (2006), analisando as

narrativas míticas e performances entre os Kaxinawá, mostra as relações entre

o humor e o conhecimento nativo sobre o mundo e também admite o riso

enquanto socialidade e agência ritual entre as pessoas e o mundo animado. O

riso então seria um poderoso instrumento de captura do outro, seja outro

gênero ou outra cultura, e da perspectiva do outro em prol da manutenção da

harmonia. Enquanto agente ritual,

O humor expressa um conhecimento de como agir sobre o mundo que os protagonistas dos mitos careciam. Nos mitos, os poderosos donos de saberes cruciais à vida eram conquistados e mortos. No ritual, estes mesmos seres são “alegrados” e seduzidos. A agência ritual subverte o tempo mítico do conflito para produzir o tempo histórico, um tempo no qual pessoas são produzidas com base nas qualidades construtivas de seres poderosos, conhecidos por suas capacidades predatórias. (LAGROU, 2006, p. 56)

Diz ainda que o rir do outro principalmente do estrangeiro, ou do que pertence

à outra cultura é uma forma de aproximar-se dele para melhor ser si mesmo

numa espécie de devir em que o outro pode se tornar como nós mesmos e o

mesmo se tornar o outro (2006, p. 72). O que pode se tornar uma contraface

cruel como veremos mais a seguir.

O riso do Jabuti de Caetano Raposo cria um movimento de aproximação

e também cria uma espécie de cumplicidade indulgente entre público e Jabuti,

pois o público pode apreciar a narrativa enquanto sátira social em que a Onça

é, numa analogia com os personagens da realidade social dos povos

indígenas, encarnada como os a priori mais fortes na comunidade, também os

fazendeiros, e por isso mais abastada e forte, porém derrotada. Ao Jabuti, cabe

também a empatia do público que através do animal consegue sentir-se

justiçado dos séculos de espoliação e dizimação de sua gente e cultura. O riso

passa a ser então reflexão sobre os conflitos sociais vivenciados a partir do

contato com a cultura não-indígena. Assim, rindo, Caetano Raposo ri junto com

o jabuti ao mesmo tempo em que constrói o riso dele, o de si mesmo e o de

seu povo diante do opressor. Na leitura simbólica, o riso impede que se

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cristalize a hierarquia em que o não-índio ocuparia posição superior ante o

índio.

Esta perspectiva, porém, nos sugere uma outra mais pungente, a

contraface cruel aludida anteriormente, a do ceticismo. George Minois (2003)

ao analisar o riso na comédia de Aristófanes entrevê o desejo de provocar a

reflexão acerca do cenário político que desenvolvia-se na Grécia por volta dos

fins do século V a. C. Contudo, ao contrário do que aparentava ser, o riso em

Aristófanes, de acordo com o autor, não era revolucionário e sim conservador.

Como nas festas, o riso da comédia visa ao confronto das normas, a repetir um mito fundador, a excluir os desvios e os inovadores, para manter a ordem social. Ele censura os mantenedores da ordem antiga apontando o dedo da derrisão para os perturbadores. (MINOIS, 2003, p. 40)

Voltando ao riso do Jabuti de Caetano Raposo, esta perspectiva também

insinua-se: a de que o riso denunciaria uma situação não para criticá-la em sua

injustiça, mas para acusar aqueles que provocam insubordinação às normas

vigentes, relegando ao ridículo a tentativa daqueles que buscam modificar as

posições hierárquicas. O riso transforma-se numa espécie de concessão

temporal em que é possível afrouxar as rédeas das convenções e opressões

sociais, apenas para voltar a elas com fôlego suficiente para suportá-las até o

próximo momento em que o riso seja novamente permitido tal qual válvula de

escape. Este ceticismo pode ser notado principalmente na relação dos

indígenas das gerações mais novas face aos mais velhos, que os têm levado à

negação aos costumes, língua e tradições de seus povos em virtude do contato

com o não-índio e suas tecnologias, patente na fala de Lucinézio Peres Ribeiro,

comunidade Sabiá, TI São Marcos, para o Projeto Panton Piá:

[...] o que a gente vê hoje é que a tecnologia vai derrubar um pouco, assim, um pouco da tradição indígena. Aqui na comunidade, uns tempos atrás os alunos faziam dançar muito o parixara, de vez em quando apresentavam fora, hoje não, hoje já pararam de dançar parixara. A tradição já tá ficando pra trás, estão esquecendo. Então, já assim da tecnologia, os alunos vão começar a fazer curso agora, a gente vai fazer curso de informática. Antão vão com certeza abrir outras ideias, vão ter outras ideias na frente e vão esquecer da tradição indígena, hoje. (FIOROTTI, 2007)

Fala reiterada por Aristides Macuxi da mesma comunidade:

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Entonces, é por aí que nós temos, que às vezes, muitas vezes nós perdemos nossas tradições devido ao branco; perdemos aquela nossa cultura e tal. Não interessa mais hoje, porque os jovens nossos, não têm uma língua Macuxi pra ensinar àquelas crianças. Hoje nós queremos pagar uma professora pra levantar nossas crianças com aquela língua, que melhor de aprender é quando tá começando a falar.

Apesar de todo ceticismo, Caetano Raposo apresenta uma outra forma

de lidar com o outro sem deixar a si:

Eu quero aprender, eu sou gente, eu sou gente, eu quero aprender. Porque o branco tem, eu quero ter, também. Eu não quero ficar o tempo todo ali como índio, no chão, no pó, não. Então, eu penso diferente, eu quero que o meu povo aprenda que são índio, mas ninguém não vai esquecer a nossa cultura nem tradições, ninguém esquece, não. Nós somos índios, vamos tomar caxiri, vamos comer damorida, ninguém esquece, não. Eu penso assim. [...] Hoje eu vejo, agora diferente, todo ano o mundo muda e os brancos acompanha e eu lá sem saber de nada? Pra passar fome, pra passar necessidade? Não! Não quero não! Eu quero acompanhar. [...] Hoje tem vacina 11 horas, nós vamos descer pra tomar vacina, injeção no meio dos brancos, fazendo aquilo ali. Então doutor, eu quero assim: índio, índio, mas é gente, inteligente. Eu sou índio, mas gente inteligente, nós somos. Quero viver assim, eu sou índio, ninguém tira não, minha cara. Não tem pelo, não tem pelo, não tem nada. [...] É diferente, não tem nada não. Eu sou índio, com o meu idioma eu falo mais do que português. É prática, índio. Então, eu quero viver assim: índio, índio civilizado. Eu sou civilizado, tenho o documento aí, tenho o documento, eu voto como qualquer um brasileiro, eu sou brasileiro, eu me entendo assim. Eu sou índio, mas eu sou brasileiro, brasileiro nativo, roraimense nativo daqui. Eu gosto, eu gosto quando me chamarem índio. Não me chamem de caboco, eu falo sempre pros brancos, não me chama de caboco. Porque caboco entende, é filho do branco com índia, é caboco. Agora com índio mesmo puro, é índio. Pode me chamar de índio, aí eu me encho de orgulho aí, quando me chamam de índio. Opa! Eu sou índio. Porque índio? Isso é que conta, que conta, índio, conta, pronto. Tá dizendo que ele é índio. Então eu sou é índio, não sou caboco não, eu sou índio, sou índio. Então é por aí assim, começamos a escola da Raposa, hoje a Raposa tá aí diferente, muitos índios já saíram ali da Raposa pra ensinar o povo como professor. Que a primeira escola que chegou na Raposa, ninguém queria. O Conselho indígena não queria a escola, não queria política, não queria, não, nem documento. Seu Jaci, eu cheguei uma vez quando eu era vereador lá no Gavião, eu cheguei lá, Jaci tinha ido como ontem, ele tinha queimado os documentos do parente tudinho [ênfase], era desse tamanho assim, aí me amostraram. “Não, índio não precisa de documento, não. Documento do índio é isso aqui, isso aqui, calcanhar tudo cheio de calo aí, tudo rachado, isso aí é documento do índio. Índio não precisa, não, de documento”. Mentira, rapaz, eu falei não, não, ele vai precisar, tá mentindo aí. Aí como é que ele vai pro exterior, sem documento, hoje? Hoje precisa. Hoje tá querendo colocar os filhos pra ser candidato a deputado federal. Filho dele.

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Em sua fala, Caetano Raposo deixa claro o desejo ao acesso a bens

materiais produzidos pelos não-índios, pelos "brancos"; aos serviços públicos

proporcionados pelo estado nacional; mas sem deixar de lado os bens

culturais, a língua e a tradição indígenas. Esse acesso, a partir da fala de

Caetano, retiraria os indígenas de condições consideradas não-civilizadas, de

fome e condições de vida precárias e principalmente de falta de

reconhecimento enquanto cidadão brasileiro. Nisso residiria o paradoxo ser-

índio e não-ser-índio sob a perspectiva de quem teve acesso aos dois lados

envolvidos na relação entre índios e não-índios. Reflete também sobre as

acusações de perda de identidade que sempre são feitas contra os indígenas

que buscam o acesso à sociedade nacional.

Essa perspectiva nos remonta a Fernando Ortiz e seu Contrapunteo

Cubano del Tabaco y el azúcar (1983), em que pode-se vislumbrar que as

relações estabelecidas entre culturas diferentes não acabariam na completa

assimilação de uma pela outra, mas na troca recíproca na qual nenhuma das

duas sai imune, a transculturação.

Entendemos que el vocablo transculturación expresa mejor las fases del proceso transitivo de una cultura a outra, porque éste no consiste solamente de adquirir una distinta cultura, que es lo que en rigor indica la voz angloamericana acculturation, sino que el proceso implica también la pérdida o desarraigo de una cultura precedente, lo que pudiera decirse una parcial desculturación, y, además significa la conseguiente creación de nuevos fenômenos culturales que pudieram denominarse neoculturación. Al fin, como sostiene la escuela de Malinowski, em todo abrazo de culturas sucede lo que em la cópula genética de los indivíduos: la criatura siempre tiene algo de ambos progenitores, pero también siempre es distinta de cada uno de los dos. (1983, p. 90)

Sob o aspecto social das relações estabelecidas entre os próprios

indígenas podemos avaliar as considerações de Pierre Clastres em De que

riem os índios (2012). O texto traz dois mitos dos Chulupi, índios que vivem

ao sul do Chaco paraguaio. O primeiro tem como personagem principal um

velho xamã confuso e concupiscente que empreende uma expedição em busca

da alma do bisneto. O segundo traz a figura do tolo jaguar que também

empreende uma viagem cheia de imprevistos. Como afirma Clastres (2012, p.

160), “Esses dois mitos apresentam xamãs e jaguares como vítimas de sua

própria estupidez e de sua própria vaidade, vítimas que por isso merecem não

a compaixão, mas o riso”. Clastres também pontua que essas não são as

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principais causas do riso provocado por xamã e jaguar quando analisa-se a

posição de ambos na relação vivida que mantêm com os índios, já que “longe

de serem personagens cômicas, ambos são ao contrário seres perigosos,

capazes de inspirar o medo, o respeito, o ódio, mas nunca a vontade de rir”

(idem). Em suma, de acordo com Clastres, os índios riem do que temem e

então o riso admite um caráter simbólico poderoso. Sendo impossível realizar

na esfera do real, é no plano narrativo que se dá cabo ao que se intenta: matar

o medo.

Trata-se pois, para os índios, de colocar em questão, de desmistificar a seus próprios olhos o medo e o respeito que lhes inspiram jaguares e xamãs. Esse questionamento pode operar-se de duas maneiras: seja realmente, e mata-se então o xamã julgado muito perigoso ou o jaguar encontrado na floresta; seja simbolicamente, pelo riso, e o mito (desde então instrumento de desmistificação) inventa uma variedade de xamãs e jaguares tais que se possa caçoar deles, já que são despojados de seus atributos reais para serem transformados em idiotas da aldeia (2012, p. 162).

O riso torna-se um equivalente da morte, o ridículo passa a ter um

potencial letal.

Vê-se aparecer aqui uma função por assim dizer catártica do mito: ele libera em sua narrativa uma paixão dos índios, a obsessão secreta de rir daquilo que se teme. Ele desvaloriza no plano da linguagem aquilo que não seria possível na realidade e, revelando no riso um equivalente da morte, ensina-nos que, entre os índios, o ridículo mata. (CLASTRES, 2012, p. 163)

Clastres ainda adverte para o fato de que não raro existe a transmutação de

xamã em jaguar, uma vez que um dos dotes do xamã é a capacidade de

metamorfosear-se em animais, sendo um de seus preferidos o jaguar ou onça.

Betty Mindlin também aborda a relação metamórfica dos xamãs ou

pajés e onça em Couro dos espíritos (2001). De acordo com a autora, para os

Gavião-ikolen de Rondônia, além de ter por animal preferido de estimação, a

onça, qualquer onça no mato, a qualquer hora do dia é wãwã, o pajé. Contudo,

não é apenas o ataque que causa o pavor no encontro com a fera, mas

também a aparição dela

é o chamado do pajé para quem encontrou a onça virar wãwã também, para aprender. São instantes: o pajé vem, veste o couro do jaguar. Num piscar de olhos é gente outra vez, a onça se foi. Ficamos com o medo maior, o caminho-obrigação: virar pajé, ser onça e outros seres, conhecer os espíritos. (MINDIN, 2001, p. 75)

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À concepção de que é costume dos xamãs transformarem-se em onça

soma-se o relato de Theodor Koch-Grünberg no seu diário de viagem:

Temos onças em quantidade suficiente na vizinhança. As serras

próximas lhes oferecem vários esconderijos. Agora é tempo de acasalamento, por isso ficam ousadas e perigosas. No porto encontramos fezes frescas durante o nosso banho matinal.

Em noites claras, entre 7 e 9 horas da noite e às 5 da manhã, uma delas anda pela mata ribeirinha do riozinho e, em tons horripilantes, expressa seus sentimentos apaixonados. Uma outra lhe responde do monte Suhí. Por fim, nós nos acostumamos a esses passeios ao luar. De certo modo, fazem parte de nossa solidão. Uma noite porém, a coisa fica impossível. Estamos sentados confortavelmente, conversando junto ao fogo, quando, de repente, uma delas urra “hu-hu-hu “bem perto da casa. Agarro minha Winchester e saímos de maneira furtiva. Schimdt segura Kaikuschí, que quer correr corajosamente ao encontro de seu inimigo fidagal e xará, o que provavelmente não lhe faria bem. A onça, pelo visto um senhor velho, nem faz caso dele. Aproxima-se a uma distancia de dez passos e rosna furiosa atrás de um algodoeiro à entrada da casa. Infelizmente, está escuro como breu. No fim, a fera corre atrás da clareira e se perde na floresta, uivando e rosnando aborrecida. [...]

Alguns dias depois, quando conto para Manduca nossa experiência noturna, ele diz:

“Não era uma onça, era um xamã que queria buscar seu banco”. Replico: “Por que ele não me disse? Eu teria levado o banco para

fora”. Na casa há um escabelo grande em forma de onça, esculpido em

madeira grossa, como os bancos que os xamãs usam em suas curas noturnas (KOCH-GRÜNBERG, p. 282-283.)

Já no terceiro volume de sua obra, dedicada a registros etnográficos

como cantos e instrumentos musicais, Koch- Grünberg reitera essa ideia ao

afirmar que

Los piaches están firmemente convencidos de que pueden

convertirse en jaguares con ponerse ‘el traje de jaguar’, ‘kaikusé’, ‘zamatale’. En esto ellos vuelven todo el cuerpo de modo que su abdômen quede para arriba. La espalda queda hacia abajo como jaguar y se vuelven hacia atrás.

Cuando los piaches están muy embriagados se convierten en jaguares sin saberlo. Akuli contó que en una gran fiesta de baile en el Roraima, él se había convertido en la misma casa del baile en un jaguar y por certo, delante de los ojos de toda la gente, que huía y trancaba la casa. También había subido a un poste y se había caído. Cuando la gente se lo contó al día siguiente, él se había avergonzado mucho.

Hay piaches malignos que al enemistarse con alguna persona se convierten em jaguar, la espían en el caminho y la matan. (KOCH-GRÜNBERG, PP 174, 175)

Partindo para estudos antropológicos, uma teoria pode revelar mais do

pensamento ameríndio, principalmente acerca de como esse pensamento

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concebe o sujeito no mundo, cunhado de perspectivismo por Eduardo Viveiros

de Castro. De acordo com Viveiros de Castro

[...] os animais são gente, ou se veem como pessoas. Tal concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma “roupa”) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. (2011, p. 351)

Contudo, nem todos animais estariam dentro do regime perspectivista.

Para Viveiros de Castro o perspectivismo parece incidir principalmente sobre

predadores e carniceiros tais como jaguar, sucuri, urubu ou harpia; e sobre

presas tipicamente humanas, como pecari, macacos, peixes, veados e antas. E

cada espécie veria a si mesmo como gente e as demais enquanto predadores

ou presas. Assim, não seria difícil localizar as narrativas de Caetano Raposo

dentro da teoria perspectivista, já que conta com personagens tanto

predadores como a Onça e o Jacaré-açu; como presas, o próprio Jabuti,

macacos, Anta e Veado. Além disso, dentro do perspectivismo animais falarem

(e rirem) não seria fato extraordinário, como afirma o antropólogo

Já para os índios, eu diria, os leões – no caso, os jaguares – não apenas podem falar, como somos perfeitamente capazes de entender o que eles dizem; o que eles querem dizer com isso, entretanto, é outra história. Mesmas representações, outros objetos; sentido único, referencias múltiplas. (VIVEIROS DE CASTRO, 2011, p. 387)

Ou seja, apenas aqueles que possuem a capacidade de adotar os

pontos de vista e mesmo a forma corporal das diversas subjetividades dentro

do perspectivismo seriam capazes de mediar o diálogo entre as espécies.

Esses seriam os xamãs. Ou os narradores, embora com objetivos diferentes.

Aqueles de administrar as relações entre animais e humanos, estes entre

humanos e humanos. A partir de então, o riso do Jabuti de Caetano após a

derrota de seus oponentes poderia ser interpretado como uma espécie de

antropofagia em que não há a ingestão, literal, do outro, até pelo contrário. O

riso assemelha-se mais a um regurgitamento libertador frente ao medo.

Contudo, a cada morte da Onça é conferida ao Jabuti ainda mais ligeireza,

esperteza. O que nos conduz a outro pensamento desenvolvido por Viveiros de

Castro sobre a tomada do ponto de vista do Outro, desta vez um Outro inimigo.

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Em outro artigo, "O medo dos Outros" (2011) rebatendo a pergunta de

Pierre Clastres “De que riem os índios?”, Viveiros de Castro tenta responder o

que temem os índios. Segundo o antropólogo, em consonância com Clastres,

os índios temem exatamente aquilo de que riem: jaguares, xamãs, brancos e

espíritos, acrescentando que são temidos já que são “seres definidos por sua

radical alteridade. E eles têm medo porque a alteridade é um objeto de desejo

igualmente radical por parte do Eu” (2011, p. 889). Contudo, esse medo não

implica na exclusão ou desaparição do outro, mas justamente no seu contrário

na:

inclusão ou a incorporação, do outro ou pelo outro (pelo também no sentido de “por intermédio do”), como forma de perpetuação do devir-outro que é o processo do desejo nas socialidades amazônicas. Sem o influxo perigoso das forças e das formas que povoam o exterior do socius, este fatalmente falece, por carência de diferença. (2011, p. 889)

Conforme Viveiros de Castro, ainda que com as transformações sofridas ao

longo do tempo, a pessoalidade ou personitude do perspectivismo não se

extinguiram, mas foram colocadas em estado de não-aparência, isto é, de

latência ou potencialidade” (2011, p. 894).

Num encontro como o do Jabuti e da Onça, nas narrativas de Caetano

Raposo, temos o encontro entre predador e presa, cada um se julgando gente.

Entretanto para o Jabuti ver a Onça e ser visto por ela, indica uma coisa: ser

comido por ela. De alguém antes do encontro, voltaria a ser ninguém depois do

encontro, retornaria ao nada, à inexistência. Tomando emprestado o

pensamento de Viveiros de Castro, de um “eu” sujeito, o Jabuti passaria a um

objeto na perspectiva da Onça. Isso revela o que Viveiros de Castro define

como a “‘guerra dos mundos’ que constitui o pano de fundo agonístico da

cosmopraxis indígena” (2011, p. 903). Adiante, Viveiros de Castro vai

relacionar a figura da Onça ao Estado, levando em consideração o fato de que

ela é a antítese letal do parentesco, escolhida pela América Indígena como

símbolo imperial. Voltando a guerra de mundos, o grande desafio é transformar

o Outro em parente sem deixar que esse Outro elimine sua subjetividade, nas

palavras do autor:

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Para não ser comido pelo jaguar, é preciso saber como assumir o ponto de vista dele enquanto ponto de vista de Si. Este é o cerne do problema: como se deixar investir de alteridade sem que isto se torne um germe de transcendência, uma base de poder, um símbolo do Estado, ou seja, o símbolo de um símbolo. (2011, p. 907)

Assim sempre que o Jabuti de Caetano Raposo derrota a Onça é pela

apropriação do ponto de vista da Onça e de sua intencionalidade; e através

disso consegue salvar a si e transformar-se mais poderoso que a Onça, não

somente ainda como aquele que a venceu, mas o fez sem recorrer aos

mesmos recursos sanguinários que ela. Houve a incorporação do ponto de

vista inimigo não pela objetificação do outro, nos termos do antropólogo, mas

pela hiperssubjetificação do outro, numa completa identificação com o outro.

Portanto, a relação entre Jabuti e Onça revela que o Eu e o Outro são

realidades particulares entre si, em que o Outro assim como eu também pensa

e por isso não deve ser subestimado.

O riso do Jabuti nas narrativas seria a culminância da destituição do

poder da Onça, seja ela a predadora e seu poder advindo da força física, seja o

pajé transmutado e seu poder de comunicação entre as diversas formas de

existência na terra, incluindo os espíritos e seu potencial malfazejo. Destituição

essa conseguida pela astúcia. O Jabuti, enquanto sujeito, avalia o outro, a

Onça, em equivalência não de forças, mas de sujeitos pensantes. O riso nesse

processo é uma instância intelectual instaurada a partir da estrutura

perspectivista comum aos povos ameríndios. Caetano Raposo pertence a essa

estrutura. A Onça e o Jabuti também.

A performance

Em A Necessidade da Arte (1971), Ernst Fischer vai discorrendo ao

longo do segundo capítulo de sua obra sobre as origens da arte e define a

mão, como o instrumento que transformou o homem propriamente em homem,

como ser distinto da natureza. Segundo o autor, a mão é uma das principais

ferramentas encontradas pelo homem na transformação da natureza, na

captura da realidade biossocial para o mundo da cultura:

O ser pré-humano que se desenvolveu e se tornou humano só foi capaz de tal desenvolvimento porque possuía um órgão especial, a mão, com a qual podia apanhar e segurar objetos. A mão é o órgão essencial da cultura, o iniciador da humanização. (FISCHER, 1971,

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p.22).

É a mão que inicia toda uma transformação na natureza do trabalho

catapultando a condição humana a estágios de desenvolvimento intelectual

mais profundo, já que “Somente no trabalho e através do trabalho é que seres

vivos passam a ter muito que dizer uns aos outros. A linguagem surgiu

juntamente com os instrumentos.” (FISCHER, 1971, p. 30). Assim, a linguagem

surge para retirar o homem do mundo natural e inscrevê-lo no mundo da

cultura: “O homem tornando-se homem juntamente com o trabalho e a

linguagem, de modo que nem o homem, por seu lado, nem o trabalho ou a

linguagem, por sua vez vieram primeiro”. (FISCHER, 1971, P. 34). Desta

imbricada tessitura em que trabalho, gesto e linguagem se entrelaçam, nasce a

capacidade de narrar.

Lévi-Strauss será mais incisivo e específico. Dirá que é a partir do

estabelecimento da linguagem articulada que surgeria a cultura. A partir da

pergunta de Charbonnier, sobre qual seria o signo representativo da cultura,

Strauss diz:

Durante muito tempo, pensou-se, e muitos etnólogos talvez ainda pensem, que é a presença de objetos manufaturados. Definimos o homem como homo faber, fabricador de utensílios, vendo nesse caráter a marca da cultura. Eu admito que não concordo, e que um de meus objetivos essenciais sempre foi colocar a linha de demarcação entre cultura e natureza, não nos utensílios, equipamentos, mas na linguagem articulada. É aqui verdadeiramente que se dá o salto. Suponha que estejamos em um planeta desconhecido, de seres vivos que fabricam utensílios. Nós não teríamos certeza sobre o nível em que estariam na ordem da humanidade. Na verdade, já encontramos no nosso planeta alguns animais capazes, até certo ponto, de fabricar utensílios ou esboçar utensílios. Contudo, nós não acreditamos que eles tenham completado a passagem da natureza à cultura. Mas imagine que nós ataquemos esses seres vivos que possuem uma linguagem diferente da nossa, mas que seria traduzível para outra linguagem, portanto, seres com os quais nós poderíamos nos comunicar. (1989, p. 137)

Até o momento a linguagem articulada é uma capacidade estritamente

humana. E por meio dessa capacidade, tudo indica, o homem vem criando

narrativas a milhares de anos. Por trás de uma narrativa oral, obrigatoriamente

há alguém que conta, que narra. Há o corpo de quem narra. Uma narrativa só é

capaz de ser transmitida de forma eficiente quando o narrador, que num

primeiro momento também foi ouvinte, for capaz de internalizar, vivenciar

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internamente e fazer eco dessa narrativa a partir de seus sentimentos. É

quando a voz encontra ressonância não apenas em outra voz, mas no peito e

mente dos sujeitos envolvidos no momento da enunciação e audição narrativa,

como aponta Benjamin

A alma, o olho e a mão estão assim inscritos num mesmo contexto. Interagindo, eles definem uma prática. Essa prática deixou de nos ser familiar. O papel da mão no trabalho produtivo tornou-se mais modesto, e o lugar que ela ocupava durante a narração está agora vazio. (Pois a narração, em seu aspecto sensível, não é de modo algum o produto exclusivo da voz. Na verdadeira narração, a mão intervém decisivamente, com seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras o fluxo do que é dito.) (BENJAMIN, 1987, p. 220-221)

O estudioso suíço Paul Zumhtor nos fala que “performance é uma

realização poética plena: as palavras nela são tomadas num conjunto gestual,

sonoro, circunstancial tão corrente (em princípio) que, mesmo se distinguem

mal palavras e frases, esse conjunto como tal faz sentido”. (ZUMTHOR, 2005,

p. 87). A palavra performance, ainda segundo Zumthor (2007, p. 29-30), tem

sido empregada mais ostensivamente há muito pouco tempo, a partir dos anos

30 e 40 do século XX, emprestada do vocabulário da dramaturgia. Se

livremente decompormos a palavra, se nos aparece bem diante dos olhos a

que se destina. Per-formance. Pela forma, pela formação. É justamente pela

formação do gesto, verbal ou físico, que também forma-se o significado, pela

forma humana do performer que os significados vão se construindo e

atualizando. Na performance palavra e gesto podem se aliar ou se contradizer,

mas qualquer uma das possibilidades irão criar na percepção do ouvinte-

espectador uma excitação sensorial que dificilmente serão esquecidas, o que

reafirma o papel artístico do narrador, já que através da transgressão aos

limites físicos entre os sujeitos alcançada no momento da enunciação-audição

performática ocorre um processo de sensibilização do outro e, nesse aspecto,

como veremos mais adiante, Caetano Raposo é mestre.

Nesta tessitura da qual voz e gesto se emaranham, também se fiam as

discussões entre texto oral e texto escrito. Zumthor (1983) perscrutando as

origens do privilegiamento das textualidades escritas face às orais identifica na

Idade Média, entre os séculos XIII e XV, a emergência da transição da arte

vocal para a literária. Alcoforado dirá que “No processo de criação desse novo

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universo literário [o escrito canônico], apresentado como único e superior, os

intelectuais associaram a idéia de poesia com modalidade escrita, resultando

disso a exclusão da expressão oral” (2008, p. 111). Em seguida, o surgimento

da burguesia consagrou a forma escrita enquanto expressão erudita e

principalmente o romance. O romance trouxe consigo uma espécie de acordo

tácito entre autor e leitor. Ele passa a ser uma espécie de espelho em tintas no

qual o burguês vê-se refletido e do qual o romancista pode viver à sombra do

poder.

A partir do século XVIII e, sobretudo, do século XIX, a leitura ganhou lugar representativo. Com a Revolução Francesa, uma nova concepção de cultura se expande na sociedade e há a rejeição do que é popular e a supervalorização do erudito e do escrito. O Romantismo, naquele período, ofereceu à sociedade o que ela desejava ler e o espaço do que se considerava popular tornou-se cada vez menor. (BERGAMINI, 2011, p. 29).

Cria-se um desvão entre erudito e popular e desta forma, a arte da

palavra falada descai para um vestígio rudimentar da forma mais elevada de

expressão humana, para o que se considera popular. Em Culturas híbridas:

estratégias para entrar e sair da modernidade (2003), Néstor García

Canclíni dedica o quinto capítulo de sua obra ao que descreve como "A

encenação do popular" e denuncia: “O popular costuma a ser associado ao

pré-moderno e ao subsidiário” (2003, p. 205), resultante de um encandeamento

de dicotomias maniqueístas expressas de forma em que

moderno = culto = hegemônico

tradicional = popular = subalterno

Desta forma, as culturas cultivadas pela tradição oral, como as

indígenas, estariam pelas oposições, relegadas aos elementos mais

desprestigiados. Seguindo a problematização entre erudito e popular, Canclíni

analisa a secção entre arte e artesanato. Como já havia indicado Walter

Benjamin

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio artesão – no

campo, no mar e na cidade – , é ela própria, num certo sentido, uma

forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada, como uma informação ou

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um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (1987, pp.205)

Sendo comunicação artesanal as narrativas estariam em vias de

extinção, já que o próprio meio artesão estariam em vias de extinção, dando

lugar cada vez mais às atividades de caráter especializado e relacionadas às

modernas tecnologias. Entretanto, contrariando o prognóstico de Walter

Benjamin, apesar do correr do tempo ainda há narradores, como Caetano

Raposo embora a capacidade de ouvir, muito mais do que a de narrar corra tão

velozmente para a extinção.

Ao iniciar o ciclo de oito pandoni referentes ao Jabuti, podemos perceber

o dinamismo da palavra falada logo nas primeiras palavras da primeira

narrativa, através da aliteração da consoante “n” e do fonema [k], da

assonância da vogal “o” e mesmo a paranomásia das terminações “ou” (andou,

encontrou) e “co” (macaco, comendo). Outros usos denotam a oralidade

quando elementos das orações exercem funções sintáticas diferentes das que

normativamente exercem como o advérbio “aí”, a conjunção adversativa “mas”,

além da repetição da conjunção “que” e da redução das palavras “está” para

“tá” e “para” para "pra" e, nas pandoni seguintes, na utilização do pronome “tu”

com a concordância realizada enquanto “você”.

Em outras narrativas, seu Raposo emprega recursos estilísticos que

particularizam suas performances. Uma delas é o da supressão de letras do

meio de palavras como da palavra sonolento – sonento, ou mesmo a ênfase

pelo aumentativo de Açu-Açuzão, na segunda narrativa fabular:

CR: [...] Isso aí, foi embora, andou, andou. Deu sede e aí encontrou poço grande, encostou lá pra beber água. Quando tava bebendo água, lá vem açu. Açu pegou ele. Disse pro Açu: “Não, não vai me comer agora, não. Estou molhado, estou venenoso, quando eu fico molhado eu sou venenoso. Cuidado!” Devair Fiorotti (DF): O Jabuti falou? CR: Éh, o Jabuti falando aí pro... DF: Pra quem? CR: Pro Jacaré-açu. DF: Ah, o Jacaré açu. CR: Então vamos esperar se enxugar. Aí saíram pro seco, embaixo de uma árvore aí. Aí açuzão sonento, também. Dormiu. Acordava, perguntava: “E aí? Tá enxuto?” “Não, vou começar a me enxugar agora. Mas eu tô perigoso, se você me comer, tu morre.” Aí ficou aí. Tinha um pedaço de pau assim, jabuti pegou, levantou, tá! em cima do Jacaré e caiu logo. Aí Jacaré acordou logo. “Rapaz cê queria me matar, é?” “Não, isso caiu lá de cima, também quase que me matava,

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acertando minha mão.” Ele contou: “Se me acertasse aqui, eu ia morrer.” Jabuti olhando aí. Jabuti também disse: “Se me acertasse aqui também ia me matar, mas me errou.” Tá bom. Sono de novo, jacarezão. “Agora eu sei onde é que é a morte dele.” Pegou o pau e em cima do coisa. “Ele falou que era aqui...” Tá! Tá! Jabuti matou ele. Matou Jacaré.

Desta forma, além de enriquecer e dinamizar a performance, deixa

transparecer a indolência do jacaré-açu. Sofistica os recursos vocais do qual

abre mão ao longo das narrativas, principalmente quanto à mudança dos

turnos de voz. Para que a empatia do público seja ainda maior, utiliza do

expediente das alternâncias entre os tons de voz:

Essa voz não é mais a mera voz que pronuncia: ela configura o inacessível; e cada uma de suas inflexões, de suas variações de tonalidade, de timbre, de altura – seria preciso forjar a palavra pedante vocema? – combina-se e encadeia-se como uma prosopopeia do vivido. Através dessa presença, o ouvinte descobre-se: age e reage no âmago de um mundo de imagens, subitamente autônomas, que se dirigem todas a ele. (ZUMTHOR, 1993, p. 229)

Na panton em que se depara com o Jacaré-açu, atribui um tom

anasalado quando o turno de fala é tomado pelo Jabuti e um grave quando a

tomada de turno é da Onça, essas mudanças podem ser ouvidas no CD

anexo. Os tons de voz também se alternam quando a intenção empregada na

fala é, por exemplo, de uma dissimulada advertência quanto ao seu suposto

veneno: “Não, não vai me comer agora, não. Estou molhado, estou

venenoooso, quando eu fico molhado eu sou venenoooso. Cuidado!” A tônica

da palavra “venenoso” é ressaltada e reiterada nas duas vezes em que é dita,

além de arrematada pela interjeição de “cuidado”, o que dissuade o Jacaré de

seu propósito fatal e demonstra o poder de persuasão do malandro quelônio

que ganha tempo com o estratagema. Aliada aos recursos das alternâncias de

tons de voz, a utilização de recursos estilísticos dão o tom bem-humorado às

narrativas.

O riso é o ponto máximo da performance de seu Caetano. Emitido num

tom gutural, o riso atribuído ao Jabuti, contagia o público que o faz seu próprio

riso. O som do riso do Jabuti não possui, pelos menos não se foi possível fazê-

lo, equivalente na linguagem escrita que o permita descrever, como aludido

anteriormente, aproximando-se mais de um som produzido por raspagem,

como no reco-reco, casaca, ou fricção, que de fato pela voz humana. Esse riso

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aproxima-se do som emitido pelo macho do jabuti durante a cópula. Essa que

pode ser chamada de uma desumanização vocal é também o que gera uma

inusitada sensação de curiosidade por parte do ouvinte, uma espécie de

embaralhamento sensorial que fustiga ainda mais o riso do público. Esse riso,

ou parecido a ele, nenhuma das narrativas em que figuram quelônios como

protagonistas traz. Pelo singular riso do Jabuti, Caetano Raposo torna sua

performance única.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escrever, pelo menos aos desavisados, parece ser entrar numa guerra

de trincheiras na qual se está sempre em desvantagem com relação ao arsenal

com que se está munido. Esse trabalho poderia ser uma evidência disso e da

paradoxal situação a que se propôs vir à luz: como não transformar em ataúde

de tintas negras cujo sepultamento é o branco do papel, aquilo que nasce,

cresce e se perpetua pela voz? Aquilo que se torna timbre, intensidade, gesto?

Aquilo que é história, cultura? Como tentar capturar aquilo que a princípio

parecia evanescente, sempremovente, antigo e novo ao mesmo tempo como

são as narrativas surgidas da tradição oral dos povos indígenas, do Macuxi, do

qual seu Caetano faz parte? Pronto, aí estaria o campo minado bem à nossa

frente. Mas nem todos são assim tão desavisados e são justamente esses que

muito mais experientes na lida com o ofício da palavra nos apontam que talvez

escrever não seja a beligerância toda que havíamos imaginado, mas

justamente seu oposto: seja instrumento de conciliação.

Embora reconheçamos que esse trabalho em seu curto espaço de

leitura nada mais seja que uma introdução ao mundo de narrativas como as de

seu Caetano Raposo, dá indícios da complexidade que possuem porque, antes

de tudo e depois de mais nada, possuem um narrador vivo, ativo e criativo que

através de seu talento pessoal (re)cria não apenas o Jabuti, mas as próprias

narrativas em dimensões estéticas, performáticas e literárias.

No primeiro capítulo palmilhando o rastro dos quelônios pelas mais

distantes geografias e culturas percebemos que eles estabeleceram um diálogo

entre si, enfileirando-se e apontando para o fato de que a capacidade de narrar

é uma das formas encontradas pelo homem para relacionar-se com outros

homens e mesmo com a natureza, de que sua relação estabelecida com o

mundo antes de qualquer coisa é narrativa.

O segundo capítulo nos traz a discussão sobre a relação entre essas

narrativas, em especial as de Caetano Raposo, e a literatura, principalmente

através da dificuldade de enquadrá-las em gêneros tanto literários como

discursivos, não apenas do ponto de vista formal e também por ele, mas

principalmente do ponto de vista cultural. A perspectiva de estudiosos como

Dell Hymes, Dennis Tedlock e Barre Toelke nos ajudam a compreender

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possibilidades de produção intelectual indígena que dispensam o livro como

suporte fundamental para difusão e manutenção dessa produção. Isso nos

instiga a pensar para além de uma etnopoesia, a pensar na possibilidade de

uma etnopoiesis. Dela, se pode melhor compreender a concepção de panton

pelos povos pemonguianos, enquanto forma de produção que abrangeria

narrativa, discurso e performance. Já a proximidade com o gênero fábula e sua

retomada enquanto discurso por Alceu Dias Lima e Maria Celeste Consolin

Dezotti e a análise das narrativas por essa perspectiva nos fizeram atentar em

especial à presença do vocábulo “compadre” nas pantoni de seu Caetano. Isso

nos indica que o contato entre indígenas e não-indígenas já se dá há séculos e

que, principalmente, os primeiros não saíram incólumes desse contato.

Já no terceiro capítulo, embora a sensação de missão cumprida esteja

longe de passar ao final dessa empreitada, a sensação é de que este trabalho

não se traiu ao longo do percurso, já que foi assumindo as narrativas enquanto

Literatura e nada menos que isso é que se desenvolve. Há uma grata

convicção de que enquanto resultado do espírito e da capacidade humanos

ela, a Literatura ou Panton, sob o nome a qual as mais diversas línguas e

culturas a batizam, não se nega àqueles que por ela são animados.

Debruçando-se sobre o riso, vimos que ele é marca distintiva e peculiariza a

ação de Caetano Raposo perante outras narrativas. O riso do Jabuti de

Caetano nos aproxima não apenas do ente literário, mas da construção social,

histórica e cultural tornada à luz através das narrativas do Jabuti.

Esta aproximação só é possível pela (re)criação e mediação de Caetano

Raposo realizada através da voz. Em suma a voz, no âmbito da oralidade, é o

que proporciona que pessoas se aproximem. Como bem afirma Paul Zumthor

(1997), a voz ultrapassaria a palavra, entendida pelo estudioso como

linguagem vocalizada, realização fônica na emissão da voz, coisa que se diz

per si enquanto se diz e através dela : “o som vocalizado vai de interior a

interior e liga, sem outra mediação, duas existências” (ZUMTHOR, 1997, p. 15).

Embora tragam as narrativas a figura de um animal, e talvez por isso mesmo,

sua risada aproxima humanidades. Humanidades essas aparentemente cada

vez mais fragmentárias e solúveis naquilo que tanto se tem discutido enquanto

Pós-Modernidade, já que os contatos entre os sujeitos seriam tão breves

quanto incapazes de criar laços afetivos ou sociais mais profundos e densos.

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Brevidade acaba pondo em questão até mesmo o que é propriamente o

humano, já que todas as paisagens culturais (HALL, 2000) lá fora mudaram,

desestabilizando as identidades.

Nisso que se denomina Pós-modernidade, a percepção, o empenho

delongado entre dois seres através da troca corpórea operacionalizada pela

voz, pelos gestos, pela sensibilidade não estaria no estatuto da pós-

modernidade, o que acaba por constrangê-la, sobremaneira. Vive-se na Pós-

Modernidade o paradoxo do corpo. Tem-se sua fetichização, sua

hiperexposição, a erotização, pode-se tocar o corpo mas, no geral, ele todo é

esvaziado da capacidade do sentir, de sensibilização. Em suma, pode-se tocar

os corpos sem chegar a seus corações. Os sentidos são bombardeados,

levados ao transbordamento. Pode-se tocar o corpo e ignorar solenemente

suas percepções e sensibilidades.

Neste cenário, a grande transgressão realizada pelas artes como a

performance e a literatura é a de reabilitar a capacidade humana de sensibilizar

o outro e reumanizá-lo, recorporificá-lo, tornar o corpo o meio através do qual a

sensorialidade é o vetor para a afetividade e para o encantamento. Lidar com a

performance é sempre deparar-se com aquilo que evanesce e nos foge, uma

vez que cada encenação é única e irrepetível, embora o repertório narrativo

seja o mesmo.

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