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REVISTA DE EDUCAÇÃO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Edição Especial Mulher - Dez.-N° 14, Vol II, 1998. A SAGA DOS AMONDAVA: A SAGA DOS AMONDAVA: A SAGA DOS AMONDAVA: A SAGA DOS AMONDAVA: Da horda selvagem à desordem pré Da horda selvagem à desordem pré Da horda selvagem à desordem pré Da horda selvagem à desordem pré- - -capitalista capitalista capitalista capitalista Wany Sampaio Wany Sampaio Wany Sampaio Wany Sampaio* RESUMO: Este artigo mostra uma análise de transformações sócio-político-econômicas ocorridas na sociedade indígena Amondava nos últimos anos, consideradas sob o ponto de vista da relação homem-meio; abordam-se aspectos como: a organização social do trabalho; a organização da família as relações com a sociedade não índia; a educação indígena informal versus a educação escolar indígena. Buscamos, analisar as profundas transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas entre o povo indígena Amondava, no período que compreende dos seus primeiros contatos com a sociedade não-índia, na década de 80, até os dias atuais. PALAVRAS – CHAVES: Educação, Sociedade, Família, Indígena e Informal. ABSTRACT: This article shows an analysis of transformations socio-political-economical occurring in indigenous society Amondava in recent years, considered in terms of human- environment relationship; cover aspects such as: the social organization of work; the organisation of family relations with society not India; indigenous informal education versus the indigenous education. We seek to analyse the profound social, political and economic change that occurred between the aborigine Amondava, understands their first contacts with the non- Indian society, in the 1980s, until the present day. KEYWORDS: Education, Society, Family, Informal and Indigenous. "A nova mutação vinha assim se processando já nas entranha das comunidades primitivas com a adoção de relações sociais de produção subordinadas ao comando de chefes autoritários e secundando as relações entre indivíduos ocupados em tarefas diferentes, mas articuladas pela voz do comandante ". (FARIA, Álvaro de. Da Babel à Comunicação, p.143) Este artigo mostra uma análise de transformações sócio-político-econômicas ocorridas na sociedade indígena Amondava nos últimos anos, consideradas sob o ponto de vista da relação homem-meio; abordam-se aspectos como: a organização social do trabalho; a organização da família as relações com a sociedade não índia; a educação indígena informal versus a educação escolar indígena. Buscamos, analisar as profundas transformações sociais, políticas e econômicas ocorridas entre o povo indígena Amondava, no período que

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  • REVISTA DE EDUCAO, CULTURA E MEIO AMBIENTE- Edio Especial Mulher - Dez.-N 14, Vol II, 1998.

    A SAGA DOS AMONDAVA:A SAGA DOS AMONDAVA:A SAGA DOS AMONDAVA:A SAGA DOS AMONDAVA: Da horda selvagem desordem prDa horda selvagem desordem prDa horda selvagem desordem prDa horda selvagem desordem pr----capitalistacapitalistacapitalistacapitalista

    Wany SampaioWany SampaioWany SampaioWany Sampaio****

    RESUMO: Este artigo mostra uma anlise de transformaes scio-poltico-econmicas ocorridas na sociedade indgena Amondava nos ltimos anos, consideradas sob o ponto de vista da relao homem-meio; abordam-se aspectos como: a organizao social do trabalho; a organizao da famlia as relaes com a sociedade no ndia; a educao indgena informal versus a educao escolar indgena. Buscamos, analisar as profundas transformaes sociais, polticas e econmicas ocorridas entre o povo indgena Amondava, no perodo que compreende dos seus primeiros contatos com a sociedade no-ndia, na dcada de 80, at os dias atuais.

    PALAVRAS CHAVES: Educao, Sociedade, Famlia, Indgena e Informal.

    ABSTRACT: This article shows an analysis of transformations socio-political-economical occurring in indigenous society Amondava in recent years, considered in terms of human-environment relationship; cover aspects such as: the social organization of work; the organisation of family relations with society not India; indigenous informal education versus the indigenous education. We seek to analyse the profound social, political and economic change that occurred between the aborigine Amondava, understands their first contacts with the non-Indian society, in the 1980s, until the present day.

    KEYWORDS: Education, Society, Family, Informal and Indigenous.

    "A nova mutao vinha assim se processando j nas entranha das comunidades primitivas com a adoo de relaes sociais de produo subordinadas ao comando de chefes autoritrios e secundando as relaes entre indivduos ocupados em tarefas diferentes, mas articuladas pela voz do comandante ".

    (FARIA, lvaro de. Da Babel Comunicao, p.143)

    Este artigo mostra uma anlise de transformaes scio-poltico-econmicas ocorridas na sociedade indgena Amondava nos ltimos anos, consideradas sob o ponto de vista da relao homem-meio; abordam-se aspectos como: a organizao social do trabalho; a organizao da famlia as relaes com a sociedade no ndia; a educao indgena informal versus a educao escolar indgena. Buscamos, analisar as profundas transformaes sociais, polticas e econmicas ocorridas entre o povo indgena Amondava, no perodo que

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    compreende dos seus primeiros contatos com a sociedade no-ndia, na dcada de 80, at os dias atuais.

    Concebendo tais transformaes como produto das relaes dos homens entre si e dos homens com o meio, consideraremos quais instrumentos de defesa foram/so utilizados pelos membros da sociedade Amondava, tanto no plano externo - o de seu mundo nativo - como no plano interno, o scio-cultural.

    Abordaremos, assim, questes pertinentes s relaes de produo, organizao do trabalho, da famlia e do sistema de parentesco, bem como valores da cultura em geral tais como a lngua, os costumes e os mitos.

    Para tanto organizamos a exposio destas reflexes em duas partes. Na p r ime i ra , forneceremos algumas in formaes e tno lg icas sobre o povo Amondava, tecendo consideraes sobre sua histria a partir dos primeiros contatos, baseando-nos em relatrios de antigos sertanistas, missionrios e funcionrios da FUNAI (Fundao Nacional do ndio), bem como em relatos dos prprios ndios a ns feitos durante os anos em que temos trabalhado juntos. Na segunda parte, teceremos uma breve anlise das transformaes ocorridas na sociedade Amondava, fundamentando-nos em documentos escritos no perodo de 1980 a 1997 e, principalmente, em nossas experincias de campo, a partir de 1993, quando comeamos a desenvolver pesquisa lingstica junto comunidade.

    Nosso maior objetivo repousa em analisar e compreender o que faz do homem um ser to estupendamente fantstico, que consegue sobreviver a um processo histrico - que pela ordem natural levaria milnios - reduzido a uma turbulenta dcada e meia; que faz do homem um ser que se supera a si mesmo, s suas prprias foras, que teima bravamente em sobreviver, adaptando-se ao mundo circundante, mesmo face s mais tremendas adversidades.

    Quem so os Amondava Os Amondava so ndios Tupis, subgrupo dos povos Uru-eu-uau-uau. Vivem

    no Posto Indgena Trincheira, na zona leste da rea indgena Uru-eu-uau-uau, na regio central de Rondnia. Atualmente constituem um grupo de 65 pessoas, distribudas em dezessete famlias. A lngua por eles falada, est geneticamente classificada no grupo Tupi-Kawahib, Famlia Tupi-Guarani, Tronco Tupi.

    Os primeiros contatos destes indgenas com a sociedade no-ndia deram-

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    se na dcada de 80, quando da implementao dos projetos de colonizao do estado de Rondnia, iniciados pelo INCRA (Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria) na dcada de 70. Naquela poca, j muitos povos indgenas haviam sido contatados - e praticamente dizimados - pela sociedade majoritria. Colonos, mateiros, garimpeiros e seringueiros viviam em constantes conflitos com ndios de diversas etnias que lutavam em defesa de suas terras. Suas armas de ento, o arco e a flecha, eram de pouca eficincia contra as espingardas e doenas empunhadas pelo "branco".

    Este aparente devaneio se faz necessrio, para que possa o leitor se situar no momento histrico e econmico em que foram contatados os povos Uru-eu-uau-uau e, com eles, os Amondava.

    At hoje a rea Indgena Uru-eu-uau-uau, com seus quase dois milhes de hectares, rodeando o Parque Nacional dos Pakas-Novos, tem sido alvo da cobia dos no-ndios: nela encontram-se as nascentes das trs bacias hidrogrficas que banham todo o estado de Rondnia, sabe-se da existncia de jazidas de minrios nobres, como o ouro, alm da grande quantidade de madeiras de lei. Permeia a sociedade envolvente a concepo de que " muita terra pra pouco ndio"!

    A estratgia dos projetos de colonizao foi um engodo para muitos colonos assentados: foram-lhes dados ttulos de proprietrios de uma terra que pertencia aos indgenas. E nenhuma orientao. Nenhum apoio tecnolgico. Nem a menor infra-estrutura. Atacados pelos ndios, sem maquinarias, consumidos pelas malrias, muitos se viram obrigados a "dar" suas terras a terceiros, hoje grandes latifundirios no estado.

    Foi neste clima que os Uru-eu-uau-uau foram contatados. Eram bravos guerreiros, fortes e destemidos. Defendiam-se e si e ao seu espao com todas as suas foras. Os conflitos com os colonos tornaram-se to violentos, que a FUNAI se viu pressionada pela populao a fazer uma frente de atrao liderada pelo indigenista Apoena Meirelles.

    Em 1981, deram-se os primeiros contatos amistosos. Assim Mrio Arruda descreve sua primeira viso dos Uru-eu-uau-uau, em 13 de maro de 1981:

    "Bati o olhar pela janela e vi o campo verde se avermelhando e escurecendo de figuras humanas, muito humanas, despidas de todo preconceito, de toda falsidade, nuas como a pureza, a divindade e o amor.' [...J Eu, porm fiquei muito triste e preocupado pois, em cada brinde que levavam, carregavam, certamente, alguns quilos de dependncia e dominao ".

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    Os Amondava, porm, embora andassem com os Uru-eu-uau-uau, continuaram resistentes s frentes de atrao e internalizaram-se na selva mais e mais.

    Porm, havia uma ndia Amondava casado-se com um Uru-eu-uau-uau e, em seguida ao contato, esta contrara gripe, morrendo. Ao saberem deste fato, os Amondava revoltaram-se e quiseram guerrear com os Uru-eu-uau-uau. Como resultados da luta levaram o vrus da gripe para a aldeia e muitos Amondava morreram no meio da mata, sem entenderem o porqu. Segundo o cacique Tari (que era ento criana) a mortandade foi to catastrfica que, sentindo-se impotentes e enfraquecidos, resolveram ouvir os conselhos de um Uru-eu-uau-uau que dizia ser a FUNAI amiga, que Apoena era muito amigo, dava rede, panela, roupa, tinha remdio e avio para levar os doentes para o hospital. A, ento, os Amondava se aproximaram do posto de contato onde estavam os funcionrios da FUNAI. Isto se deu por volta de 1986. A partir de ento comea a grande saga dos Amondava.

    Os escassos documentos que se referem aos Amondava (bem como aos Uru-eu-uau-uau) descrevem-nos como um povo guerreiro, andarilho, nu, homens apenas cobertos pela pintura corporal vermelha e preta, sem estojo peniano, armados de arco e flecha; as mulheres pequenas e delicadas, ajudavam os homens na guerra carregando-lhes os suprimentos de flechas... Homens e mulheres adultas ostentavam nos rostos uma extica tatuagem feita com resinas silvestres de cor azul-negra. As aldeias encontradas no passavam de tapiris disfarados sobre as rvores ou, quando muito, malocas cercadas por pequenas roas. Alimentavam-se basicamente da caa, da pesca e da coleta de frutos silvestres. E este um retrato comum nas descries das sociedades ditas primitivas.

    Em dezembro de 1996, o jovem Tangip Amondava narrou-nos que, antes do contato, "ficava todo mundo junto, Amondava e Uru-eu, porque se entende, fala a mesma lngua". Antes, porm, de descobrirem que falavam a mesma lngua, havia muita guerra entre eles, principalmente por causa das mulheres, raras entre os Uru-eu-uau-uau. Prova-se que a lngua, como fator de intercompreenso, tornou possvel a comunicao e a convivncia destes povos, que se reconheceram como parentes.

    O contato com o no-ndio foi marcado pela violncia das lutas e doenas que dizimaram os indgenas. poca das primeiras frentes de atrao os Amondava contavam cerca de 160 indivduos. Suas malocas principais situavam-

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    se s margens do Igarap Cojubim, onde habitaram at 1986, tendo sido da levados para o posto de contato Comandante Ari, com a finalidade de receberem tratamento de sade. Em 1991, estavam reduzidos a 45 pessoas, fixado no Posto Indgena Trincheira, a cem metros dos colonos, submetidos, alm do genocdio, tambm ao etnocdio: ali alguns ndios consumiam bebidas alcolicas, contraram tuberculose, sofreram aliciamento por parte de madeireiros, alm de discriminarem sua prpria etnia. O processo de consumo de produtos industrializados e de desestruturao social avanando numa velocidade jamais vista. Diante deste quadro, a FUNAI resolveu transferi-los daquele local para um outro mais interiorizado na rea indgena, com o objetivo de afast-los das relaes atropeladoras com os colonos e moradores vizinhos.

    Conhecemos os Uru-eu-uau-uau em 1993. Em 1994 fizemos a primeira visita aldeia Amondava. Eram ento 42 ndios, vivendo em duas grandes malocas de palha, ainda de arquitetura tradicional, localizadas no centro de um amplo terreiro. Cada urna destas malocas abrigava o chefe de uma metade clnica exogmica e todos os de sua descendncia. As metades se denominam por aves: mutum e arara. Pequenas roas, que misturavam espcies arbreas e rasteiras, de forma aparentemente desorganizada, estavam espalhadas pelas cercanias da aldeia. Os homens saam para a caa, as mulheres trabalhavam em algum artesanato, lidavam na roa acompanhadas pelas crianas... O povo, acolhedor, gentil e sorridente, aparentava uma situao de miserabilidade e penria total: crianas desnutridas, dentes cariados, muita gripe na aldeia, pouca comida... s vezes, apenas uma mandioca cozida em "gua grande"... Mesmo assim, sorriam sempre. Nunca avanavam em nada e, quando queriam algo, sempre pediam com muita humildade. Era-nos difcil reconhecer naquelas pessoas os bravos guerreiros de poucos anos atrs. Apenas dois ancios... Muitas crianas... Alguns adolescentes que se maravilhavam diante de um carrinho eletrnico deixado sabem-se l por quem naquela aldeia... A viso desta cena dantesca comoveu-nos at s lgrimas. O que fizemos a eles? Como conseguem, ainda, sorrir?

    Foram-lhes introduzidas as culturas do arroz e do feijo e o estmulo produo excedente a fim de estabelecerem trocas por bens de consumo da sociedade no-ndia: macarro, caf, leite e chocolate em p, bolachas, laranjas, po, etc. E tudo era consumido no momento em que chegava. Tudo era distribudo imediatamente a todos. No se pensava em guardar, em estocar, economizar. As crianas comiam pacotes inteiros de bolachas... No dia seguinte, voltava-se triste

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    mandioca. Alguns possuam rdios pilha, lanternas, espingardas. As roupas no passavam de molambos sujos. Sua vida, sua sade, enfim, toda a sociedade encontrava-se fragilizada, merc da benevolente autoridade de um funcionrio da FUNAI, chamado Chefe de Posto que, embora provido de poucos recursos, buscava ajud-los a sobreviver. Este Chefe quem determinava o que plantar, como e em que quantidade; e tambm o que fazer com a produo. Muitas vezes sentia-se deprimido e impotente diante da demora dos indgenas em entenderem este novo sistema de relaes de produo, que afetava toda a sua estrutura social e organizao do trabalho.

    Este o quadro em que situamos o povo Amondava para da analisar as transformaes ocorridas no seio desta sociedade, com base nas alteraes do sistema produtivo. o que veremos a seguir.

    As transformaes ira sociedade Amondava Analisaremos, nesta seo, as transformaes ocorridas na sociedade

    Amondava com base, principalmente, em nosso trabalho de campo ao longo destes anos, considerando observaes acerca de:

    a) a organizao social do trabalho; b) a organizao da famlia; c) as relaes com a sociedade no ndia; d) a educao indgena informal versus a educao escolar indgena. Para

    tanto, deixar-nos-emos conduzir pela concepo evolucionria presente em FARIA (1971) de que as reaes recprocas entre os setores orgnicos esto condicionadas s relaes das unidades orgnicas com o meio externo; este ponto de vista ser permeado pelos pressupostos da Teoria da Organizao preconizado por MORAIS (1977).

    Como prembulo a esta reflexo, interessante que nos voltemos um pouco para a Histria Universal. Estima-se que as primeiras formas de vida surgiram na terra h cerca de dois bilhes de anos. Durante um processo lento e tortuoso de transformaes e mutaes genticas, tais formas, unicelulares, alteraram-se tornando-se progressivamente complexas, at o aparecimento do homem. Os tipos humanos foram, ento, distinguindo-se pouco a pouco dos primatas que os rodeavam, assumiram a postura ereta e passaram a locomover-se apoiados nos membros posteriores; assim, os membros anteriores desenvolveram-se, aprimorando o sentido do tato e o manuseio dos elementos naturais. Esta transformao permitiu ao homem criar

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    instrumentos e utenslios fisicamente independentes de seu corpo, como um prolongamento de suas possibilidades anatmicas. Atualmente, acredita-se que as primeiras sociedades humanas se desenvolveram em um nvel cultural chamado Pr-Histria, e que se pode resumir no seguinte quadro:

    PALEOLTICO INFERIOR

    De 500mil a .C A 30 mil a.C

    -Coup de poing (machado manual sem cabo) -Coup de poing aperfeioado e lascas de Pedra. -Inicio do emprego de ossos na confeco de objetos

    - Sociedade comunal -Esboo de Organizao Social -Instituio da famlia -Nomadismo -Domnio do fogo -Rudimentos de linguagem -Indcios de rituais funerrios -Primeiras prticas da magia

    PALEOLTICO SUPERIOR

    De 30 mil a.C A 18 mil a.C

    -Nascimento da arte atravs da magia; -Utilizao de osso e chifres; -Pedras lascadas; -Instrumentos especiais para gravar e esculpir; -Pequenas esculturas; -Bastes de comando; -Auge do trabalho com o slex; -Lminas e postas de arpo dentadas; -Atiradores de dardos; -Apogeu da arte das cavernas; -No final,declnio da produo artstica.

    -Organizao social mais complexa; -Agrupamentos baseados em famlias e cls; -Crescimento do sedentarismo; -Desenvolvimento da linguagem; -Maior diversidade dos ritos funerrios; -Uso mais freqente da magia.

    NEOLTICO A partir de 8 MIL a.C

    -Agricultura; -Domesticao de animais; -Teres simples,cermicas e barcos;

    -Formao de uma conscincia de ser social; -Incio de uma vida urbana, organizada em aldeias; -Sedentarismo mais freqente; -No final, esboo de concepes religiosas

    -Emprego do cobre, bronze, -Vida urbana,agrcola e pastoril

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    IDADE DOS METAIS

    A partir de 5 mil a.C

    ferro e outros metais -Avano tcnico da agricultura, transporte e industria -Escrita.

    -Sociedade estratificada; -Surgimento do Estado e da religio, agora como instituies definidas.

    Com esta explanao, queremos tentar estabelecer o momento cultural em que foram contatados os Amondava, h apenas cerca de 12 anos. Se observarmos o quadro anterior, poderemos ousar comparar tal estgio cultural a um perodo que corresponderia a uma transio do Paleoltico Superior (em termos de organizao social) para o Neoltico (em termos de produo) visto que apresentavam estes indgenas organizao social em aldeias, agrupamentos baseados em famlias e cls, ritos funerrios, uso freqente de magia, agricultura rudimentar, fiavam o algodo, teciam redes e fabricavam cermica; apresentavam tambm o domnio de armas como o arco e a flecha, feitos da pupunheira silvestre; os ossos de animais eram utilizados apenas como adornos e o nomadismo era parte de seu ethos. No tinham o conhecimento da escrita nem do uso de metais. Observemos, tambm, que estas fases culturais na (pr)-histria da humanidade levaram quase 500 mil anos em seus processos de transformao, at o surgimento da escrita e da definio de instituies como o Estado e a religio.

    Saltemos, agora, alguns milnios e veremos que os quinhentos anos da histria do Brasil j so uma violncia ao processo evolucionrio dos habitantes primitivos. Imagine-se, ento, o que dizer dos parcos 54 anos de histria de Rondnia! E dos 12 anos de histria (conhecida) dos Amondava?

    Voltemos, ento, nossa anlise, sem perder de vista as transformaes da sociedade Amondava provocadas pelas relaes do homem com o meio, refletindo sobre os pontos propostos no incio desta seo.

    a) A organizao social do trabalho Como qualquer outro grupo primitivo, os Amondava eram um povo nmade, que praticava a caa, a pesca e uma pequena agricultura de subsistncia. Observava - se, entretanto, uma certa diviso social do trabalho, marcada sobretudo pelo gnero, em que algumas atividades eram desenvolvidas pelas mulheres: cuidar das crianas, limpar as malocas, ajudar os homens no plantio e na colheita, manter as fogueiras constantemente acesas, preparar a comida, a chicha, tecer redes e

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    fabricar artesanatos com ossos e dentes de animais e sementes diversas. Aos homens competia fabricar as armas, caar, pescar. confeccionar os adornos de penas (cocares), fazer a derrubada e preparar o solo para o plantio das roas, entre outras.

    Toda esta organizao no pode ser considerada como destinada apenas a satisfazer as necessidades primrias de alimentao, vesturio e abrigo. Segundo Keesing (1958) devemos considerar os principais interesses que as pessoas tm pelo trabalho e pela riqueza. Podemos dizer que os interesses de ento se pautavam principalmente na tradio e em finalidades sociais, com base em relatos dos prprios indgenas.

    Num destes relatos, um informante nos contou sobre a criao da mulher: antes existiam s homens, e a eles cabia todo o trabalho um deles, o mais velho, que era muito inteligente, decidiu ir mata e fabricou a mulher da casca de rvore, escondendo-a em sua casa para fazer a chicha. Os outros, por terem provado a bebida to saborosa, desconfiaram que aquele no era uni trabalho do homem. Pressionaram-no at que o sbio contou-lhes como fizera a mulher. E assim cresceu o nmero de mulheres, destinadas a executar determinado tipo de trabalho para os quais os homens no tinham habilidade.

    Um outra narrativa mostra um cunho religioso instituio do trabalho: o cu, onde mora Tupanang deus indgena, ficava bem perto da terra. E l existia todo tipo de plantao. Os parentes que moravam na terra nada plantavam e tudo o que queriam pegavam no cu. Tupanang ficou furioso, diante da improdutividade de seus parentes e elevou o cu para bem longe, jogando na terra as coisas que no prestavam, animais peonhentos... Mas deixou tambm um pouco de terra boa, prados e campos.

    Numa das narrativas detectamos com maior clareza a diviso do trabalho por gnero: um jovem costumava levar sua esposa, s escondidas, para a caa com medo que ela mantivesse relaes sexuais com os outros ndios. Os homens resolveram segui-los um dia e verificaram que eles copulavam seguidamente, o que prejudicava a caada. Certo dia, quando o jovem saa a caar, os outros homens foram junto, impedindo que, assim, a mulher o acompanhasse. L na selva, mataram o jovem, cortaram-lhe o pnis, o qual trouxe discretamente para a aldeia, junto com uma anta que haviam caado. Prepararam o pnis do jovem e levaram para a esposa como se fosse carne de anta. Enquanto ela saboreava os homens diziam: sabe o que voc est comendo? o pau da anta. E ela respondia:

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    Ah! Este pau de anta muito gostoso! Os homens, ento, disseram: que bom que voc gosta disso! Voc no ia sempre para o mato dormir com ele? A mulher entendeu o que havia acontecido. Ficou to brava, que morreu. Nunca mais isto aconteceu no meio do povo. Diante destas e de muitas outras narrativas de cunho mitolgico, percebe-se que, tradicionalmente, a violao das regras de diviso do trabalho poderia ser castigada at com a morte. Ainda hoje esta uma questo muito forte entre os indgenas. No mais uma morte fsica, com certeza, mas a perda do prestgio social advinda da discriminao feita aos indivduos que permitem suas esposas executarem trabalhos prprios do gnero masculino. Muitas vezes ficamos espantados ao ver uma ndia carregando pesos enormes cabea e o filho agarrado ao seio, em longas caminhadas pela selva, enquanto o ndio vai frente levando as armas, sem nenhum peso! Nada mais lgico para esta cultura: o homem responsvel pela vida de sua mulher e de seu filho, ele quem tem o domnio do uso das armas e, portanto, cabe-lhe a defesa, a proteo e o sustento da famlia.

    At 1994 encontramos esta diviso do trabalho na sociedade Amondava. Entre os anos de 1994 e 1995, o grupo deslocou-se para outras localidades rio interior da rea, sofrendo novamente as agruras de novas instalaes e adaptaes ao meio. Foram atacados pelas malrias e algumas vidas foram ceifadas. Em meados 1996, voltaram para uma aldeia mais prxima aldeia antiga, que haviam reconstrudo e depois abandonado. Um novo Chefe de Posto chegou para ajudar o grupo a se reestruturar.

    Quando os reencontramos, ao final daquele ano, as formas de produo, visivelmente, apresentavam sensveis mudanas: as mulheres j no mais participam do plantio e da colheita, restringindo-se a afazeres domsticos; seu mundo fechou-se na aldeia, na casa, nos filhos. As roas tomaram corpo, ao modelo de uma agricultura mais sedentria, visando produo excedente para a comercializao. Os produtos so vendidos e comprados, e no simplesmente trocados. As panelas de presso e os foges a gs so privilgios de alguns, no de todos. Conheceram a energia eltrica, a TV, a antena parablica, que constituem um bem comum por ter sido adquirido com o dinheiro de todos e fica disponvel na escola. No h mais roas comunitrias e sim roas para cada famlia nuclear, indicando o estabelecimento da propriedade privada, da mercadoria, e de uma incipiente

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    economia mercantil simples, pautada em meios de produo muito primrios. De qualquer modo, em to curto espao de tempo, -nos possvel

    verificar a velocidade incrvel do processo transformacional da sociedade Amondava, em decorrncia das necessidades de desenvolvimento de suas foras produtivas diante das relaes com o meio. A imposio do sedentarismo obrigou-os a buscar novas formas de sobreviver, de preservar a espcie; a modificar hbitos de higiene, vesturio, moradia e alimentao. O lidar com o meio atravs da ativ idade objetivada, principalmente no que tange a sua prpria capacitao para compreender o objeto novo, proporcionou-lhes melhor qualidade de vida, a reduo da mortalidade e o aumento populacional (de 45 em 1994, para 65 em 1997) e a busca da melhoria dos meios de produo. muito difcil, porm, conceber como benficas ao esprito deste povo estas transformaes, se considerado que o espao de tempo nfimo para se afirmar que elas advm do respeito s capacidades materiais e das condies de adaptaes ao meio que podem ter sido usadas como defesa pelos membros desta sociedade.

    b) A organizao da famlia

    A organizao familiar Amondava estabelece-se em metades clnicas exogmicas denominadas por aves: mutum e arara. O casamento se d entre membros de metades diferentes. Isto se podia observar claramente na organizao das malocas, em 1994. Eram duas grandes malocas ovaladas, totalmente construdas em palha. Dentro de cada uma delas habitavam os chefes das metades, mais os de sua descendncia: suas filhas e filhos solteiros, suas filhas casadas e seus esposos e filhos. Cada famlia nuclear alojava-se ao redor de um esteio lateral e de sua prpria fogueira. Hbitos de poligamia e poliandria fraterna eram mais visveis, bem como o do levirato. Quando havia um casamento, o novo esposo passava a morar na casa de seu sogro e a participar do cultivo comum do solo que pertencia metade social de sua esposa, a ele antecipadamente prometida.

    Hoje, a disposio espacial da aldeia revela claramente o esfacelamento do sistema social, da organizao familiar : h casas de paxiba para cada famlia e cada famlia possui o seu prprio roado. A autoridade dos lderes de cada metade, mutum e arara, esvaram-se ante a autoridade do Chefe de Posto.

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    Detectamos um matrimnio entre membros da mesma metade (arara), o que indica violao na regra de casamentos da organizao social tradicional. Esta quebra de regra pode ter sido gerada pelo menor nmero de mulheres disponveis para o casamento, na metade oposta. H apenas um caso em que um homem possui mais de uma esposa; e ele o mais idoso. Alguns jovens indgenas j no querem desposar mulheres ndias; preferem as "brancas".

    Apesar de iniciada a transformao da constituio familiar, o sistema de parentesco ainda no apresenta modificaes radicais: uma criana chama de me tambm irm de sua me e o irmo de sua me seu sogro potencial. A nomenclatura relativa ao parentesco reflete possibilidades de cruzamentos consangneos entre os indivduos da sociedade Amondava. E se no so encontradas pessoas com deficincias fsicas e/ou mentais entre o grupo, isto se deve prtica do infanticdio, existente at hoje.

    A pintura facial, de cunho mitolgico, faz parte de um ritual de iniciao para homens e mulheres. Nos homens, ela serve de proteo na floresta, para que no se percam ou sejam agarrados por animais ferozes. Eles precisam voltar sempre porque a sobrevivncia de sua famlia, em termos de alimentao, depende de seu trabalho. Nas mulheres, significa, alm da proteo prpria, tambm a proteo de seus filhos contra a cobra grande e de seus esposos nas caadas e andanas. Percebemos, no entanto, que alguns jovens j no mais permitiram a pintura facial, porque di e feio, segundo eles. Algumas mulheres mais jovens tambm no desejariam terem sido tatuadas, pelos mesmos motivos, no entanto, a elas no dado, ainda, o direito de decidir sobre isto. O que vemos? Uma nova concepo de beleza, que derruba o mito e, com isso, a preocupao com a segurana da famlia e de si prprios. Toda esta reorganizao familiar - comprovada atravs da distribuio espacial das casas na aldeia, da primeira violao s regras de casamento e do descrdito ao mito - demonstra que se iniciam transformaes em uma estrutura familiar com caractersticas altamente punaluanas, para outra estrutura, arraigada na monogamia, trazendo consigo, consequentemente, o adultrio e a prostituio, tpicos de uma sociedade dita civilizada.

    c) As relaes com a sociedade no-ndia A partir dos contatos iniciais as relaes dos Amondava com a sociedade

    no-ndia foram decisivas nos processo das transformaes. O genocdio e o

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    etnocdio rasgaram abruptamente o seio daquela comunidade. A luta pela sobrevivncia obrigou-a a modificar celeremente seu sistema produtivo, o que descambou para transformaes radicais do processo de produo. A medicina tradicional foi quase que totalmente esquecida com a morte dos ancios. J no h mais pajelana e as festas so raras. As belas cantigas noturnas das mulheres ao luar foram substitudas por pagodes ou toada dos rdios de pilha. As conversas coletivas e histrias contadas pelo cacique perderam-se diante da magia da imagem televisiva. A tatuagem facial j no mais tida como bela. A classificao onomstica das pessoas, que caracteriza o papel que cada elemento desempenha na sociedade em determinada fase de sua vida, comea a cair em abandono: detectamos um nome bblico (Davi) em um beb que, pela sua descendncia, sexo e fase de vida, deveriam chamar-se Tevu.

    Todas estas mutaes nas clulas que constituem a sociedade Amondava se devem s suas relaes com a sociedade no-ndia. As constantes sadas da aldeia, principalmente dos homens, para comercializar produtos do uma nova direo quele grupo: medida que novos conhecimentos vo sendo acumuladas, novas necessidades vo surgindo. Necessidades de TER e de SER. Ter o que sociedade no-ndia tem, em termos de bens de consumo. Ser ndio. Estas necessidades, porm, so antagnicas pela sua natureza e, diante da incompreenso que os prprios ndios demonstram acerca deste processo transformacional avassalador, o SER torna-se infinitamente menos importante do que o TER. Porque TER infinitamente mais importante para se ESTAR VIVO e no serem os ndios discriminados como de fossem "bichos do mato".

    Assim, o consumismo se ins tala, gerando uma espcie de desordem capitalista numa sociedade em que apenas aflora uma incipiente economia mercantil simples. At mesmo para ns, analistas e observadores, no muito simples compreender um processo que, primeira vista, parece-nos ter resultado num verdadeiro caos scio-econmico, polt ico e religioso. Sob o ponto de vista humanstico, seramos tentados a dizer que tudo isto representa o rpido desaparecimento de uma sociedade. Sob o ponto de vista evolucionrio, somos levados a concluir que as transformaes - muitas vezes por ns consideradas radicais - so "males" necessrios preservao das espcies

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    e, consequentemente, das sociedades.

    d) A educao indgena informal versus a educao escolar indgena O que consideramos educao so os processos de transmisso

    dos conhecimentos. Podemos, ento, afirmar que tais processos so seguramente informais nas sociedades tribais? No h formalidade quando o pai leva o filho caa, pesca, para ensinar-lhe o trabalho? Quando lhes ensina a fazer arcos e flechas e a dominar o uso das armas? No h formalidade quando os mais velhos contam os mitos e tradies ante os olhos perscrutadores e os ouvidos atentos dos mais jovens? Nem quando as meninas aprendem com suas mes a fiarem o algodo, tecerem as redes, colherem o milho e fizer a chicha? Talvez, estas formalidades sejam por ns classificadas como informais porque suas formas so diferentes das de nossa sociedade, que nos orienta a enquadrarmos nossos filhos entre as paredes de uma escola incompetente para mascarar nossa incompetncia em educ-los para a vida.

    O povo Amondava h apenas cerca de quatro anos teve a viso de coisas esc r i t as e en tend eu s er es ta u ma a r ma v a l iosa p ara s ua so brev iv nc ia . Qu is era m, ento, os indgenas, ter acesso a esse bem cultural que permite ao homem a comunicao distncia. Tiveram o esforo de uma jovem professora no-ndia que, debalde, tentava alfabetiz-los em lngua portuguesa, visto que a lngua falada pelos ndios ainda era grafa. Ora, a aquisio da leitura e da escrita no uma das coisas mais simples, mesmo na lngua materna, imagine-se, ento, ser-se alfabetizado em uma segunda lngua mal dominada pelo aprendiz!

    A pedido dos ndios desenvolvemos pesquisa lingstica, propusemos um alfabeto e elaboramos uma cartilha experimental na lngua materna com a ajuda de dois falantes nativos. Treinamos unia professora no-ndia que, com o auxlio dos seus alunos, busca desenvolver um ensino bilnge. Assim a escola foi reativada na aldeia. A nova metodologia surtiu melhores resultados, pois facil itou aos aprendizes a compreenso de como se d este processo de representao simbl ica e a possibilidade de representar os sons de sua lngua atravs da escrita. A partir da, mais fcil aplicar este conhecimento a uma segunda lngua.

    A aquisio da leitura e da escrita se instituiu, ento, como uma meta a ser alcanada por todos: homens, mulheres e crianas, como uma espcie de

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    salva-vidas. Ante a ansiedade dos indgenas, muitas vezes, temos enfrentado suas frustraes e as nossas prprias. Mas h momentos de sucessos. A necessidade que sentem em aprender ler e escrever imensa. espantosa a velocidade com que alguns o conseguem.

    Projetos governamentais (como os Projetos de Apoio Inic iat iva Comunitria - PAICs, que se originaram dentro do Plano de Desenvolvimento Agro florestal de Rondnia - PLANAFLORO) obrigam comunidades indgenas, ribeirinhas e extrativistas a se organizarem em associaes, cooperativas e outras do gnero, a f im de buscarem recursos f inanceiros para a sade, a educao, as alternativas econmicas e questes ambientais. Estas comunidades, em detrimento do parco domnio da leitura e da escrita, no compreendem, de fato, o sistema em que se sentem obrigadas a ingressar e, atabalhoadamente, "organizam-se" em instituies que no sabem como lidar com a burocracia, com os papis, enfim. Muitos povos indgenas de Rondnia, a exemplo de outros povos indgenas do Brasil, j se organizaram em associaes e cooperativas. Assim tambm o fizeram os Amondava. Como os outros, sentem que as relaes polticas e econmicas com a sociedade no-ndia so necessrias sobrevivncia de sua prpria sociedade. Mesmo sem compreenderem a essncia de tais relaes, sabem que precisam dominar a lngua portuguesa, a leitura de documentos, os sistemas de contagem, pesos e medidas de um mundo externo completamente diferente do seu. Pensam poder conseguir tudo isto atravs da escola.

    O advento da educao escolarizada, seguramente, trar profundas transformaes sociedade Amondava. A palavra escrita torna-se, agora, nos dizeres de Faria, a matria bsica sobre a qual se exercem as atividades econmicas destinadas produo de consumidores sem necessidades naturais.

    Consideraes finais As reflexes desenvolvidas no corpo deste trabalho permitem-nos

    concluir que o quase incontrolvel surgimento de novas necessidades, em to curto espao de tempo, foi a causa das novas e cleres transformaes na biologia social do povo Amondava.

    Novas divises do trabalho, novos sistemas produtivos, mudanas na estrutura familiar e prenncios de mutaes no sistema de parentesco se refletem na ocupao espacial das malocas, bem como em sua atual

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    distribuio geogrfica na aldeia. Aliada a tudo isso, a televiso - comprada pelos ndios e ligada noite na maloca escolar - desperta e estimula necessidades no-autnticas em um povo que ainda nem conseguiu suprir suas necessidades autnticas.

    No curto espao de 12 anos assistimos a uni processo de transformaes sociais em uma velocidade jamais vista. Aps o contato com a sociedade majoritria, este povo passou por uma fase de declnio e, agora, reinicia uma desenfreada corrida para um suposto aclive (verif icvel no crescimento populacional). Ns, que participamos desta histria, ficamos embasbacados e estarrecidos sem compreender o que est realmente acontecendo e como est acontecendo. Por isso buscamos refletir sobre o porqu de estar acontecendo.

    Como compreender que o desenrolar de um caminho evolutivo que o homem, hoje di to civ il izado, levou mais de 500 mil anos para tri lhar possa ser to violentamente reduzido? A anlise da celeridade com que ocorrem estas complexas transformaes sociais permite-nos refletir sobre quo tortuosos so, para a sociedade, os seus resultados.

    No queremos, aqui, porm, deixar-nos envolver pela romntica concepo que permeia o pensamento de muitos antroplogos e pesquisadores da atualidade, de que as sociedades primitivas devem permanecer isoladas, fechadas em uma redoma de vidro, para salvar, preservar a cultura tradicional. Cremos que esta postura fragiliza mais ainda estas sociedades, pois a partir do momento em que se estabelece o contato, o processo de aculturao irreversvel e o mais fraco sempre dominado; sua sobrevivncia depender unicamente de sua capacidade de adaptao ao novo meio, de suas relaes com o mundo externo. E isto que proporciona a segurana do grupo, do meio interno.

    Toda e qualquer sociedade, at as mais primitivas, organizam-se em torno das relaes de trabalho. exatamente este o ponto em que se radicam as transformaes e de onde partem todas as outras. O homem , como os outros seres biolgicos, um mutante. A sociedade no esttica. Sua firmeza e estabilidade pautam-se sobre o movimento resultante da fora gerada pela energia que o homem busca na natureza para reproduzir-se e manter-se vivo. Desta busca resulta o trabalho.

    A viso que hoje temos da sociedade Amondava, embora parea-nos catica,

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    pode ser, com certeza, descrita como uma "desorganizao organizada". Os indgenas buscam meios para melhorar sua qualidade de vida; buscam aliados que possam ajud-los a compreender e participar de um mundo novo, diferente, histrica e contextualmente cruel para com as sociedades tribais.

    Com a instituio da educao escolar vislumbra-se uma nova fase transformacional: um rapaz que quer ser professor, uma mulher que quer aprender a costurar mquina.., dentro em pouco surgiro especialidades em diferentes reas do trabalho e uma nova economia se instalar, atravs de novas divises no processo produtivo.

    Assim, consideradas as relaes dos homens entre si e com o meio envolvente, constatamos que as necessidades de adaptao para garantir a sobrevivncia da espcie geram transformaes. Desta maneira podemos compreender, com maior clareza, a necessria (r)evoluo ocorrente na sociedade Amondava.

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    *Wany Sampaio. Mestre em Lingustica. Lotada no Departamento de Letras da UNIR