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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 13-29 JUN. 2006

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 13-29, jun. 2006

Loïc Wacquant

SEGUINDO PIERRE BOURDIEU NO CAMPO1

DOSSIÊ PIERRE BOURDIEU NO CAMPO

Prestar atenção aos primeiros estudos de campo de Pierre Bourdieu, conduzidos concomitantemente naArgélia colonial e na sua aldeia natal no Béarn, no sudoeste francês, permite avaliar sua abordagemsociológica e seus resultados científicos numa nova chave interpretativa. Eles revelam as raízes etnográficasgêmeas da sua empresa teórica, dissolvem a figura caricatural do "teórico da reprodução", indiferente àmudança histórica, e afastam a ficção acadêmica do "teórico da prática". Mostram como as inovaçõesconceituais de Bourdieu (como o conceito de habitus) eram guiadas por questões de pesquisa de campocentradas na transformação social, na disjunção cultural e na divisão da consciência. A utilização de cadalocal como um laboratório vivo para analisar de modo cruzado o outro local, permitiu a Bourdieu desco-brir a especificidade da "universalmente pré-lógica lógica da prática" e levou-o a romper com o paradigmaestruturalista. Ligar seus estudos de juventude na Cabília e no Béarn revela ainda que pressagiando o"repatriamento" da Antropologia depois do encerramento da era imperial, Bourdieu revogou a concepçãodominante da Etnografia como uma exploração heróica da alteridade, sendo o pioneiro no desenvolvimen-to da Etnografia multissituada como um meio de controle da construção do objeto de pesquisa. Os estudosde campo sobre a estrutura social e sobre o sentimento na colônia longínqua e na terra natal, não sóapagam na prática a divisão disciplinar entre Sociologia e Antropologia, como também demonstram que sepode conduzir Etnografia “insider” e reconhecer a inserção social e a subjetividade dividida do pesquisa-dor sem, para tal, reduzir a Etnografia ao ato de contar histórias e sem abandonar a teoria à poesia.

PALAVRAS-CHAVE: Pierre Bourdieu; etnografia; Argélia; Béarn; campesinato; habitus.

Recebido em 25 de outubro de 2005Aprovado em 19 de novembro de 2005

O etno-sociólogo é uma espécie de intelectual orgânico da humanidadeque, como agente coletivo, pode contribuir para desnaturalizar edesfatalizar a existência humana, colocando a sua competência aoserviço de um universalismo enraizado no entendimento dosparticularismos.

Pierre Bordieu, Entre-Amis.

I. INTRODUÇÃO2

Provavelmente devido à sua magnitude comoteórico social, Pierre Bourdieu raramente é visto

como um grande praticante da etnografia e alguémque contribuiu para o ofício etnográfico3. Mes-mo assim, um levantamento superficial das suas

1 Produzir este número de Ethnography logo após a mortede Pierre Bourdieu, o qual ele mesmo havia concordado emcontribuir, foi ao mesmo tempo uma provação e uma tarefaredentora. Ele não teria sido feito sem o apoio de Jérôme eMarie-Claire Bourdieu, Marie-Christine Rivière, FrankPoupeau e Megan Comfort. As sugestões e observações deJavier Auyero, Philippe Bourgois, Michael Burawoy,Gretchen Purser, Nancy Scheper-Hughes e Florence Weberforam particularmente úteis, como o foi o estímulo dadopelos acesos debates no Ethnografeast II, realizados naÉcole Normale Supérieure em Paris, entre 14 e 18 de se-tembro de 2004. A assistência polivalente de Nicole dePontes em Nova Iorque foi essencial. Para as referências ao

trabalho de Bourdieu contei com a Bibliographie des travauxde Pierre Bourdieu de Yvette Delsaut e Marie-ChristineRivière (2002). A primeira data refere-se à tradução eminglês. A data entre colchetes é a da edição original. Todasas citações de Bourdieu são traduções minhas do textooriginal francês para o inglês.2 Traduzido para o português, a partir da versão inglesa,por Helena Pinto, José Madureira Pinto e Virgílio BorgesPereira. Revisão e adaptação para o português falado noBrasil: Fábia Berlatto e Bruna Gisi. Revisão técnica da tra-dução: Adriano Codato, Renato Perissinotto e José Szwako.Publicado originalmente como: Following Pierre Bourdieuinto the field. Ethnography, London, v. 5, n. 4, p. 387-414,

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publicações facilmente revelará que o trabalho decampo desempenhou um papel essencial nos seusprimeiros estudos, quer sobre a Argélia colonial,quer sobre a sua terra natal, no Béarn rural, tantoquanto, já na maturidade, na dissecação do gostoe em investigações mais recentes sobre novas for-mas de dominação e desolação sociais causadas,nas sociedades avançadas, pela revoluçãoneoliberal. Revelará ainda que as suas múltiplasinvestigações sobre educação, arte, classe, lingua-gem, gênero, economia e sobre o Estado estãocarregadas de observações minuciosas, em tem-po e espaço reais (sem fazer, ainda, um examesociológico de suas experiências pessoais); e queuma sensibilidade etnográfica anima até mesmoos seus escritos mais abstratos relativos aos inte-lectuais, à razão e à justiça4.

Uma leitura atenta dos escritos de juventudede Bourdieu, tendo em conta os respectivos con-textos sociobiográfico e intelectual, revela muitomais. Demonstra, em primeiro lugar, que foi aexposição direta às horríveis realidades do domí-nio imperial e do estado de guerra que fez comque Bourdieu se convertesse da grandiosa e soci-almente anódina filosofia para uma humilde e po-liticamente arriscada ciência social. Essa transfe-

rência se deu numa altura em que, para um altodiplomado da École Normale Supérieure, optar portornar-se sociólogo era equivalente a um voto deadesão à intelectualidade marginal da França(BOURDIEU, 2004a, p. 27-30, 51-53; 2004b). Foina dura prova da Argélia que a libido philosophicade Bourdieu foi inesperadamente desviada eirreversivelmente transformada na libido socioló-gica que iria alimentar sua permanente busca deuma ciência da prática e do poder simbólico. Avocação antropológica de Bourdieu cristalizou-se,e a sua aprendizagem sobre pesquisa empírica foiliteralmente gerada “no campo”, como a própriaexpressão indica. Ou seja, através da imersão con-tinuada nas realidades diárias de uma sociedadeaflita, apanhada nas convulsões do colonialismodecadente, das vagas do nacionalismo e do caosnascido da sua inevitável conflagração.

O retorno às primeiras incursões etnológicasde Bourdieu também sugere que a estranha “ex-periência epistemológica” que ele levou a cabo em1959-1961 (BOURDIEU, 1972, p. 222), a qualconsistiu em conduzir um trabalho de campo con-corrente e paralelo num mundo exótico e distante– a Cabília da Argélia colonial – e num outro maispróximo e mais familiar – a sua própria aldeia deinfância, no sudoeste da França –, foi crucial paraos dois movimentos que, subseqüentemente, aca-baram por definir todo o seu projeto científico.Primeiro, a utilização de cada situação como umlaboratório vivo para a análise cruzada lhe permi-tiu descobrir a especificidade da “lógica univer-salmente pré-lógica da prática”, além de ter per-mitido iniciar o corte decisivo com o paradigmaestruturalista, deslocando o seu foco analítico “daestrutura para a estratégia”, da álgebra mental me-cânica das regras culturais para a fluida ginásticasimbólica dos corpos socializados (BOURDIEU,1990 [1980], p. 37; 1990 [1985]). Segundo, oredirecionamento do olhar etnológico de volta aoseu mundo nativo estimulou Bourdieu a traduzirsua inquietação existencial em relação à “posturaescolástica”, – inquietação enraizada em suas dis-posições anti-intelectualistas herdadas de sua cri-ação numa classe e numa posição etno-regionalsubordinadas5 –, numa reflexão metódica sobre o

Dec. 2004. A versão brasileira difere bastante da versãoportuguesa.3 Um indicador entre muitos: Bourdieu não obtém umaúnica referência em Van Maaen (1988) e Emerson (2001),dois volumes amplamente usados para iniciar os sociólo-gos no trabalho de campo nos Estados Unidos, ou emHammersley e Atkinson (1995), um livro muito difundidono Reino Unido. No que diz respeito à Antropologiaestadunidense, Goodman (2003, p. 782) lamentou: “É decerta forma surpreendente que o seu trabalho [de PierreBourdieu] tenha permanecido muito longe do alcance daliteratura atenta às responsabilidades políticas e éticas darepresentação etnográfica.” Uma notável exceção a essasomissões sistemáticas é Beaud e Weber (2003). Deve-selembrar que os primeiros trabalhos de Bourdieu há muitosão conhecidos e influentes em países como o Brasil ePortugal, onde a “questão rural” foi central no estabeleci-mento das Ciências Sociais contemporâneas (por exemplo,cf. LOPES, 2003).4 Ver, em particular, Bourdieu, 1979 [1977]; Bourdieu2002 sobre a transformação das sociedades camponesas daArgélia e do Béarn; Bourdieu, 1984 [1979] sobre classe egosto; Bourdieu et al., 1998 [1993], sobre as bases e for-mas de sofrimento social na sociedade contemporânea;Bourdieu et al., 1990 [1965]; 1996 [1992], sobre os usosda fotografia e a invenção da contemplação artística; eBourdieu, 1988 [1984]; 2000 [1997], especialmente p. 33-48, “Confissões impessoais”, sobre os intelectuais.

5 Em 1990, em uma entrevista a Antoine Spire para aFrance Culture, Bourdieu observou: “Nas minhas pulsõesoriginais, existe uma forma de anti-intelectualismo, deirritação face ao exibicionismo, ao narcisismo e àirresponsabilidade intelectuais. Eu disse freqüentemente

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próprio ato de objetivação, sobre suas técnicas esuas condições sociais, que preparou o caminhopara elaborar e concretizar a atitude dereflexividade epistêmica que é a marca de seu tra-balho e de seu ensino (BOURDIEU, 2003a;BOURDIEU & WACQUANT, 1992, p. 36-47; p.202-215).

II. RUPTURA SOCIAL E DISJUNÇÃO CULTU-RAL NA CABÍLIA E NO BÉARN

Além disso, prestar atenção aos trabalhos decampo feitos na juventude permite colocar toda aabordagem intelectual de Bourdieu numa novaperspectiva. Dissolve definitivamente a imagemcaricatural do “teórico da reprodução” (aindacorrente em alguns setores da Sociologia, e daSociologia da Educação, em particular, por exem-plo, ARCHER, 1993; SAYER, 1999; KINGSTON,2001), alguém indiferente à mudança histórica eincapaz de dar conta na sua grade conceitual dacontradição social. De fato, o autor de Algérie 60desenvolveu suas preocupações e noções centraisnum esforço para descrever as forças dinâmicasque dilaceravam a estrutura social e mental da al-deia comunitária na qual cresceu, e que confluí-am na violenta transformação da sociedade decastas da Argélia colonial6.

As investigações de Bourdieu como aprendizde etnólogo/sociólogo tratam claramente dedisjunção cultural, disrupção social e ruptura es-

trutural em níveis que vão do individual ao social,e em temporalidades que abarcam desde o bio-gráfico até o histórico. Os seus primeiros ensaiosempiricamente orientados abordam “O choque dascivilizações” e a “Guerra e mudança social na Ar-gélia” na longue durée da colonização, assim comoa transição “Da guerra revolucionária à Revolu-ção” (BOURDIEU, 1959; 1960; 1962a)desencadeada na Argélia no curto espaço de umadécada dramática. Os seus dois primeiros gran-des livros, escritos quase simultaneamente depoisde um intenso período de pesquisa, conjugandoanálise estatística e Etnografia, Le déracinement eTravail et travailleurs en Algérie (BOURDIEU &SAYAD, 1964; BOURDIEU; DARBEL; RIVET &SEIBEL, 1963), tratam dos dois lados da mesmatransformação cataclísmica. O primeiro – Ledéracinement – descreve a destruição aceleradado campesinato argelino sob a pressão da espoli-ação da terra, da mercantilização das relações so-ciais e do assentamento forçado de milhões depessoas imposto pelo exército francês no seu es-forço estéril para conter a insurgência nacionalis-ta. O segundo – Travail et travailleurs en Algérie– faz o levantamento da formação e do crescenteabismo entre o proletariado industrial estável e osubproletariado sem iniciativa condenado à eco-nomia de miséria das ruas e ao “tradicionalismodo desespero”, que o torna suscetível a todas asformas de manipulação política. Essas duas trans-formações convergem para a emergência de uma“agricultura sem agricultores” e de “cidades semhabitantes”, deixando uma população inteirasuspensa, como estava, nas fraturas da história,“flutuando entre duas culturas” (BOURDIEU,1962a, p. 6; 2000b), numa sociedade mergulhadaem contradições e marcada pela ambigüidade, ins-tabilidade e angústia7.

De fato, as três perguntas teóricas que preo-cupavam Bourdieu nas suas primeiras investiga-

7 Ver também Bourdieu, 1961, especialmente p. 34-39.Este ponto é devidamente acentuado por Hammoudi, 2000,p. 15, que sugere que o modelo de Bourdieu sobre as con-tradições da fase final do colonialismo permanece apropri-ado: “Os Magrebinos de hoje fariam bem em meditar sobreesta reflexão que Bourdieu, já nos anos sessenta, lhes ofe-receu. Pois ela pôde chamar a atenção, de uma forma semprecedentes, para as novas correntes críticas batizadas de‘Islã radical’ […]. De fato, a ambivalência e ambigüidadenotadas e analisadas [por Bourdieu, quatro décadas atrás]caracterizam também adequadamente estes novos movi-mentos”.

dos intelectuais que eles superestimavam-se individualmen-te e subestimavam-se coletivamente. E o meu ‘trabalho’ –entendida a palavra aqui no sentido que lhe dá a psicanálise– consistiu, e isso nem sempre foi fácil para mim, emreconverter essa pulsão anti-intelectualista”.6 A idéia de produzir uma “Antropologia histórica dopresente” (para reformular a expressão de Foucault) visan-do lançar luz sobre as dificuldades políticas dadescolonização da Argélia é clara desde Le déracinement:“A observação estatística e etnográfica de um dos maisbrutais reassentamentos de população rural conhecidos dahistória permite-nos captar, no momento preciso em quesão abaladas, as estruturas fundamentais da economia e dopensamento dos camponeses. Destruindo as organizaçõesespaço-temporais [dos camponeses Argelinos], odesenraizamento completa aquilo que a generalização dastrocas monetárias já havia começado. [...] Esta análise doprocesso social produzido pela pretensão de acelerar aHistória através da violência e ignorando os mecanismosdesencadeados não seria totalmente inútil se pudesse con-tribuir para assegurar que a História não se repete”(BOURDIEU & SAYAD, 1964, texto da quarta capa dolivro).

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ções sobre a Argélia eram: 1) quais são os meios,mecanismos e efeitos da passagem de uma eco-nomia pré-capitalista para uma economia capita-lista; 2) como essa passagem se manifesta na cons-ciência e nas categorias mentais dos que foramarrastados para esta situação e, em particular, nasua concepção de tempo e na sua conduta emoci-onal; e 3) qual das duas classes populares, prole-tariado industrial e campesinato, está preparadapara atuar como uma força revolucionária no ce-nário (pós-)colonial; e será válida ali a clássicadiferenciação entre proletariado e subproletariado?

As duas primeiras questões derivam do seupermanente interesse pelo debate entre Weber eSombart sobre a emergência do capitalismo e aracionalização do comportamento a ele associa-do, e sobre a transposição desta problemática parao contexto imperial, assim como do seu entusias-mo filosófico pela fenomenologia do tempo (an-tes de atravessar o Mediterrâneo, Bourdieu tinhaplanejado fazer sua tese em história da ciência,sob orientação de Georges Canguilhem, sobre “asestruturas temporais da vida afetiva”)8. A últimainterrogação visava responder com as frias ferra-mentas da ciência à escaldante questão que ani-mava a intelligentsia revolucionária durante osanos sessenta. De Jean-Paul Sartre a Franz Fanon,a questão era a da escolha entre a via soviética ouchinesa para a revolução no Terceiro Mundo(BOURDIEU, 1979 [1977], p. 1-7, 92-94; 2000a,p. 7). Não estamos propriamente perante temastípicos nem esquemas explicativos essenciais deuma “teoria da reprodução”!

De modo semelhante, os estudos etnográficosde Bourdieu dos inícios de 1960 afastam a ficçãoacadêmica do “teórico da prática” – muitas ve-zes visto à cavalo, como D. Quixote, com os com-panheiros Anthony Giddens, Marshall Sahlins eMichel de Certeau, em luta contra os moinhos devento do estruturalismo, da fenomenologia e domarxismo (por exemplo, KNAUFT, 1996, p. 110-115; ORTNER, 1996, p. 2-12) – ao revelarem aforma como as inovações conceituais de Bourdieu

foram guiadas pelas questões práticas da pesqui-sa de campo e não pelo desejo de resolver puzzlesescolásticos, tais como a consagrada antinomiada “estrutura e ação” ou a oposição análoga entre“estrutura e acontecimento”. E isto porque ne-nhuma destas dualidades estava constituída comotal no campo intelectual dos anos sessenta, quan-do Bourdieu andava a procura das, e depois esta-beleceu as grandes linhas da sua abordagem daprática9. O seu modo específico de argumenta-ção sociológica se cristalizou através da constru-ção de objetos empíricos concretos. E não foi atra-vés de uma espécie de partenogênese teórica ba-seada em balanços retrospectivos, “inspirados porobjetivos mais pedagógicos do que científicos”,em que se confundem as reais articulações do tra-balho de pesquisa com a “reelaboração indefinidade elementos teóricos extraídos artificialmente deum corpo seleto de autoridades”, assimilando ateoria social a uma descendência moderna das“compilações medievais” (BOURDIEU,CHAMBOREDON & PASSERON, 1991 [1968],p. 28). Além disso, quando se servia da sua baga-gem de ferramentas filosóficas ou reconvertiaquestões filosóficas em experiênciasobservacionais, Bourdieu pensava tanto com asprincipais correntes teóricas da sua juventudecomo contra elas, como é revelado, por exemplo,pela sua dupla relação com a fenomenologia e seususos10.

8 “Durante o tempo todo em que escrevia Sociologie del’Algérie, quando realizei meu primeiro trabalho de campoetnológico [na Argélia entre 1957 e 1960], continuei, todasas noites, a escrever sobre a estrutura da experiência tem-poral segundo Husserl, com a esperança de regressar rapi-damente a projetos filosóficos anteriores (BOURDIEU,2004b, p. 419).

9 Isso é muito claro em Bourdieu, 1990 [1965], p. 1-5,Bourdieu e Passeron (1967) e Bourdieu, 2000 [1997], p.33-48 ; 2004a, p. 21-30, 36-45, 94-108. Para o jovem filó-sofo virar antropólogo e daí sociólogo, as dualidades pri-mordiais àquela altura eram as que se verificavam, por umlado, entre a filosofia e a ciência social e, por outro, entre afilosofia do sujeito (encarnada no existencialismo de Sartre)e a filosofia do conceito (personificada pelos seus profes-sores Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e JulesVuillemin). Sobre o trabalho de Bourdieu como uma adap-tação sociológica da “epistemologia histórica” de Bachelard,ler Broady (1990).10 Desde os seus primeiros trabalhos, Bourdieu opôs-se à“Antropologia imaginária” de Sartre, que secularizou a vi-são cartesiana de uma consciência auto-constituída e cria-dora do mundo, recorrendo à concepção de Merleau-Pontyde um corpo vivo como produto-produtor sintético da re-alidade social e receptáculo ativo de forças passadas. Mas,para isso, apoiou-se no Merleau-Ponty das Structures ducomportement contra o Merleau-Ponty de LaPhénoménologie de la perception, tentando sempredecodificar questões empíricas, tais como a razão pela qualos camponeses argelinos que podiam antecipar as suas

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Deste modo, Bourdieu (re)introduziu a antiganoção aristotélico-tomista de habitus num artigode 1962, em que investiga “As relações entre se-xos na sociedade camponesa” do Béarn(BOURDIEU, 1962c), não para apresentar umapeça-chave no processo de reprodução social, oupara se libertar do jugo do estruturalismo (que eleainda iria utilizar abundantemente, cf. BOURDIEU,1968), mas para descrever a disjunção traumáticaentre as competências e expectativas incorpora-das do homem rural e das mulheres locais, que,estando mais abertas à influência cultural da cida-de, tinham passado a perceber e avaliar esses ho-mens através de lentes urbanas que desvaloriza-vam radicalmente os seus modos, tornando-os,desse modo, “incasáveis”. Usou-o mais ou me-nos ao mesmo tempo em Le déracinement, parase referir à “disposição geral e permanente emrelação ao mundo e em relação aos outros”(BOURDIEU & SAYAD, 2004 [1964], p. 102) quelevava os fellahin’ deslocados a manterem-se fi-éis aos seus valores em assentamentos onde oscamponeses argelinos “já não tinham possibilida-de de se comportarem como camponeses”, e paratranscrever a “linguagem do corpo”, na qual “osentido de perda e de apagamento” de uma popu-lação brutalmente arrancada dos seus “ritmos tem-porais e espaciais” encontrava a sua expressãomais intensa (idem, p. 154-159). O habitus é acategoria mediadora, transcendendo a fronteiraentre o objetivo e o subjetivo, que permitiu aBourdieu captar e descrever o agitado mundo du-plo da Argélia colonial em desagregação. Nessemundo conturbado, as estruturas sociais e men-tais não só estavam funcionando mal umas emrelação às outras, como formavam, elas próprias,uma mistura variada de tradição enraizada e deimposição colonial, com as estratégias dos autóc-tones predispostos a oscilar entre dois princípiosantinômicos, a saber, por um lado a lógica da hon-ra, parentesco e solidariedade de grupo e, poroutro, a pressão dos interesses individuais, rela-ções de mercado e ganhos materiais. Os campo-neses desenraizados e os subproletários urbanoseram, assim, encarados como seres bifurcados,desorientados e aculturados pela experiência com-

binada da guerra e do naufrágio das relações soci-ais estabelecidas.

Em todos os domínios da existência, em todos osníveis da experiência encontram-se as mesmascontradições sucessivas ou simultâneas, as mes-mas ambigüidades. Os padrões de comportamen-to e o ethos econômico importados pela coloniza-ção coexistem, em cada sujeito, com os padrões eethos herdados da tradição ancestral. Daqui de-corre que esses comportamentos, atitudes ou opi-niões aparecem como fragmentos de uma lingua-gem desconhecida, incompreensível tanto àque-le que não conhece a linguagem cultural da tradi-ção, quanto àquele que se refere unicamente àlinguagem cultural da colonização. Às vezes sãoas palavras da linguagem tradicional que são com-binadas de acordo com a sintaxe moderna; outrasvezes, o oposto, e por vezes é a própria sintaxeque aparece como o produto de uma combinação(idem, p. 464).

O conceito de habitus, integrando a noção dehisterese (i.e., o intervalo temporal entre a incidên-cia de uma força social e o desenvolvimento dosseus efeitos através da mediação retardadora daincorporação) e a de sedimentação seqüencial decapacidades e de disposições temporais, tambémpermitiu a Bourdieu realçar como o sistema coloni-al vive nas e pelas disposições discordantes e ex-pectativas confusas que introduz nos sujeitos. E,além disso, como o sistema colonial sobreviveriacom o fim do domínio francês e com o estabeleci-mento de um estado argelino independente11.

Se a Etno-Sociologia de Bourdieu sobre a “ci-rurgia social”, experimentada pela França na suacolônia além-Mediterrâneo, destaca fundamental-mente lógicas incongruentes de ação, isto é, osmúltiplos padrões e temporalidades através dasquais diversas comunidades e agentes responde-ram à incursão colonial e à guerra12, sua

11 “Os diferentes níveis de realidade social não se trans-formam, necessariamente, no mesmo ritmo”, e “as formasde agir e de pensar podem sobreviver a uma mudança nascondições de existência. O camponês pode ser libertado docolono, sem se libertar das contradições que a colonizaçãoincutiu nele” (BOURDIEU & SAYAD, 2004 [1964], p.471-472).12 Os autores de Le déracinement dedicam um capítulointeiro à exposição dos modos divergentes segundo os quaisduas regiões diferentes da Argélia responderam à penetra-ção colonial e à mobilização nacionalista: “Assim, gruposque diferem na sua história podem reagir de forma muito

necessidades de plantio em mais de uma década, recusan-do-se a planejar novas colheitas com mais de dois anos deantecedência, como lhes era ensinado pelos agrônomos fran-ceses (BOURDIEU & SAPIRO, 2004).

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monografia sobre a “mutilação social” do celibatoforçado na sua terra natal, no sudoeste francês,tem analogamente como centro de interesse a crisehistórica, a mudança estrutural e as discrepânciasentre possibilidades objetivas e esperanças subjeti-vas que derivam e conduzem à dissolução do siste-ma de trocas matrimoniais estabelecido. Enquantonas montanhas do Atlas é o imperialismo francêsque põe fim à perpetuação relativamente autotélicadas resistentes comunidades da Cabília, no maciçodos Pirineus é a generalização da escolarização, oêxodo desproporcional das mulheres e a aberturado campo à influência das cidades (impulsionadapelo centro econômico-cultural, e mediada pelo mer-cado local) que subverteu os padrões de honra nasrelações entre sexos tornando assim a “reproduçãoimpossível” – para invocar o incisivo título darevisitação analítica das pesquisas de juventude feitapor Bourdieu em 1989.

Surpreendentemente, tanto no Béarn como naArgélia, Bourdieu (1962b; 2002, p. 113) articula amesma problemática do “choque de civilizações”e dos seus multifacetados impactos na estruturasocial e na subjetividade, incluindo o “des-do-bramento da consciência e do comportamento”de acordo com os princípios conflitantes do sen-timento e do interesse, a erosão das hierarquias eautoridades tradicionais (baseadas na linhagem,idade e gênero), e a relação recursiva entre adegenerescência de unidades sociais tradicionais,a deflagração da competição individual e a distorçãodas estratégias sociais13. Na acepção primeira deBourdieu, “choque de civilizações” significava aconfrontação entre dois sistemas sociais fecha-

dos em relações assimétricas de poder material esimbólico. A intenção era contradizer a visãohegemônica de desenvolvimento socioeconômicono emergente Terceiro Mundo como um proces-so teleológico gradual, quase orgânico, impulsio-nado principalmente pela difusão cultural – comona “teoria da modernização” de Daniel Lerner, se-veramente criticada em Algérie 60 (BOURDIEU,1979 [1977], p. 30-32; ver também BOURDIEU,1975 para uma crítica ampla). Desde os seus pri-meiros escritos, Bourdieu opôs-se a uma noçãode “aculturação” tão benigna e enfatizou que osistema colonial é fundado na “relação de forçapela qual a casta dominante mantém a casta do-minada sob o seu controle”, enclausurando-a numasituação de “humilhação” coletiva (BOURDIEU,1962 [1958]; 1961, p. 28-29)14. Como os seustrabalhos posteriores sobre linguagem e identida-de regional iriam esclarecer, na visão de Bourdieu(1977a; 1991 [1982], p. 43-89, p. 220-228) umarelação similar de ação [penetration] econômica esubordinação cultural entre o centro de Paris e aperiferia da cidade foi conseguida na França atra-vés da intervenção do Estado. Ou seja, o desen-volvimento multissecular do estado burocráticoefetivou a unificação forçada dos usos lingüísticose criou uma língua oficial utilizada como padrãopara expurgar não só os idiomas locais, mas to-dos os particularismos culturais. Isto resultou nadesvalorização das “formas populares de falar”,influenciadas pela classe e pela etnicidade, e dosestilos de vida a elas associados, através das san-ções negativas do sistema de educação e do mer-cado de trabalho nacionalizados, ampliadas por umsentimento generalizado de indignidade cultural naprovíncia (que Bourdieu sentiu intensamente en-quanto bearnês transplantado em Paris durante osseus tempos de estudante)15.

diferente perante situações muito similares, conferindo umsentido vivido muito diverso a comportamentos idênticosidenticamente impostos pela situação objetiva”(BOURDIEU & SAYAD, 1964, p. 110). Mas, nos doiscasos, é o Estado francês que determina “uma aceleraçãopatológica da mudança cultural” através do seu“intervencionismo colonial”. Travail et travailleurs enAlgérie termina igualmente com um “quadro de classes so-ciais” que realça a diferenciação do “sistema de modelos deconduta” (BOURDIEU et alii, 1963, p. 382-389) própriodas quatro principais classes da sociedade argelina no limi-ar da independência.13 A segunda seção do artigo de 1962, Célibat et conditionpaysanne, intitula-se “Contradictions internes et anomie”(BOURDIEU, 2002, p. 55-85). É evocativo, no tom e nacomposição, do segundo capítulo de Le déracinement, quecompara o impacto diferencial da penetração colonial em“duas histórias, duas sociedades”, as das tribos das monta-nhas do Collo e do vale Chélif na Cabília.

14 “O sistema colonial é um sistema cujas lógica e neces-sidade interna têm de ser imperativamente captadas. Àstransformações inevitavelmente resultantes do contato en-tre duas civilizações, a colonização acrescenta as convul-sões provocadas deliberada e metodicamente, de forma aassegurar a autoridade do poder dominante e os interesseseconômicos dos seus compatriotas” (BOURDIEU, 1962[1958], p. 106).15 “Visível em todas as áreas da prática (esporte, canto,vestuário, moradia etc.), o processo de unificação da pro-dução e circulação de bens econômicos e culturais veicula aobsolescência gradual do modo inicial de produção dohabitus e dos seus produtos”. Bourdieu (1991 [1982], p.50) menciona aqui, especificamente, “o descrédito dos ‘va-

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As análises de “O camponês e seu corpo”(BOURDIEU, 2004c) e “O camponês e a foto-grafia” (BOURDIEU & BOURDIEU, 2004[1965]), no Béarn, podem ser lidas como varia-ções empíricas transmediterrâneas sobre os (evariantes estruturais dos) temas da honra, morale solidariedade que atravessam os clássicos en-saios de Bourdieu sobre a cultura cabila (1964;1965; 1970). Ambos sublinham o enraizamentosocial e os efeitos das categorias de julgamento,assim como a imbricação da ética e da estética navida quotidiana. Ambos realçam o papel da vergo-nha, essa emoção auto-destrutiva que surge quan-do os dominados começam a observar a si pró-prios através dos olhos dos dominantes, ou seja,quando são forçados a vivenciar os seus própriosmodos de pensar, de sentir e de se comportar comodegradados e degradantes.

O juízo que o camponês faz sobre si próprio não émenos ambivalente do que o que ele reserva parao morador da cidade e para o funcionário público.O orgulho de si, ligado ao desprezo pelo moradorda cidade, coexiste dentro dele, senão com a ver-gonha de si, pelo menos com uma aguda consci-ência das suas deficiências e de seus limites. Setomam o morador da cidade como alvo de ironiasempre que podem, isto é, quando estão num gran-de grupo, ficam embaraçados, incomodados e res-peitosos quando se encontram com eles face aface. Não será significativo que as piadas maisapreciadas tenham como tema a falta de jeito e ascoisas ridículas do camponês e, sobretudo, docamponês entre os moradores da cidade?(BOURDIEU, 1962b; 2002, p. 105-106).

A decrescente coesão da sociedade local de-termina e ao mesmo tempo exprime, no nível co-letivo, a cisão da subjetividade camponesa. Essaúltima explica, por exemplo, que embora sejamlargamente predominantes em termosdemográficos, os agricultores e trabalhadores agrí-colas do Béarn elejam sempre para posições lo-cais de autoridade médicos, professores, funcio-nários da cidade e grandes proprietários que pos-suem exatamente as espécies de capital que lhesfalta. A consciência encoberta sobre essa falta du-plica-a e aumenta o seu impacto16. Juntamente

com a ecologia e morfologia sociais das suas co-munidades, a expropriação radical dos campone-ses das suas formas de produção simbólica osprende a uma “identidade fundamentalmenteheterônoma” que os transforma em “classe obje-to” prototípica. Ou seja, uma ‘classe-para-outros’,obrigada “a formar a sua própria subjetividade”através “do olhar e do julgamento de estranhos”(BOURDIEU, 1977b, p. 4-5; 2002, p. 249-259),em vez de um mero agregado de famílias materi-almente isoladas tal como aparecem no proverbial“saco de batatas” de Marx.

A sociedade rural do sudoeste francês ondenasceu Bourdieu revela-se não menos atingida pelaambivalência e oscilação entre sistemas antagôni-cos de valores do que as aldeias desertas e osbairros de lata superlotados de uma Argélia de-vastada pela guerra. Bourdieu chega a usar o mes-mo neologismo conceitual de “camponesesdescamponeisados” e de “camponesesencamponeisados” [“dispeasanted peasants” and“empeasanted peasants”] – uma construção ana-lítica derivada da noção popular do Béarn de“paysanas empaysannit” (BOURDIEU, 1962b;2002, p. 53) – para caracterizar duas categoriasdivergentes de agentes privados de ou patologica-mente entrincheirados em formas culturais tradi-cionais, tanto na distante colônia como na sua terranatal17. E atribui à ciência social a mesma missãoem ambos os projetos de investigação e nos doislugares. Na introdução da Parte 2 de Travail ettravailleurs en Algérie, Bourdieu faz uma defesaenérgica do trabalho de campo no contexto colo-nial: “O que podemos exigir com rigor do antro-pólogo é que ele se esforce ao máximo para resti-tuir às outras pessoas o sentido dos seus com-

lores camponeses’, levando ao colapso do valor do campo-nês” no espaço local da aldeia e, por isso, ao celibato força-do.16 O mesmo mecanismo de separação entre estruturassociais e mentais está em ação na Argélia com a “destruição

de realidades sociais” pelo trator da guerra colonial: “Nãoexiste ninguém que não esteja consciente de que um verda-deiro abismo separa a sociedade argelina do seu passado eque um movimento irreversível foi feito. O que interessanão é tanto a ruptura, mas o sentido de ruptura. Este deter-mina uma suspensão e um questionar dos valores que cos-tumavam dar à existência um significado. A experiência deuma vida em suspensão, sempre ameaçada, faz com que[os camponeses] se agarrem em vão às tradições e crençasaté então tidas como sagradas” (BOURDIEU, 1961, p. 38-39).17 Sobre a revelação paradoxal da “camponesidade” atra-vés da “descamponeização” [“peasantness” by“dispeasantization”] nesses dois locais, comparar Bourdieu,1962b; 2002, p. 53-54, 65-66, 78, 100-102, 107-108 comBourdieu & Sayad, 1964, p. 85-93, p. 165-168.

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portamentos, do qual o sistema colonial, entreoutras coisas, os privou” (BOURDIEU; DARBELet alii, 1963, p. 259). A frase final de Bourdieu naEtnografia da sua aldeia de infância no Béarn atri-bui à Sociologia “a tarefa de restituir a essas pes-soas o sentido das suas ações” (BOURDIEU,1962b; 2002, p. 128).

III. DA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE ÀOBJETIVAÇÃO PARTICIPANTE

Como este número da Revista de Sociologia ePolítica demonstra, os dois estudos de Bourdieusobre a Cabília e o Béarn ganham muito se foremlidos conjuntamente, ou melhor, de forma cruza-da. A sua (re)união realça o fato de que foramconcebidos e levados a cabo como dois momen-tos de uma única experiência arrojada dereflexividade científico-social e, desse modo, aju-da-nos a localizar o enraizamento etnográfico co-mum do empreendimento teórico de Bourdieu nosdois lados do Mediterrâneo. Também põe em re-levo três inovações que constituem notáveis ante-cipações práticas de questões metodológicas eorientações que se tornaram centrais para a pes-quisa de campo aproximadamente três décadasdepois.

Em primeiro lugar, ao “fazer um Tristestropiques ao contrário”, como ele gostava de di-zer, Bourdieu derruba a presunção indiscutida,congênita ao ofício, de que seria necessário sersocialmente distante e culturalmente diferente da-queles que se estuda para se chegar a uma obser-vação participante válida. Ao perseguir as própri-as interrogações sobre a Cabília no Béarn rural dasua juventude, ele recusa a concepção dominantede Etnografia como uma “viagem heróica naAlteridade” e, com ela, “a hierarquia de situaçõesno campo que privilegiam os lugares mais Outrosem relação aos Euro-Americanos” (GUPTA &FERGUSON, 1997, p. 16 e 17), muito antes des-ta concepção tornar-se suspeita e antiquada entreos profissionais da pesquisa de campo – mesmose ela continua a comandar a sua prática. Que istonão foi um delize acidental se confirma pelo fatodesta presunção ser de novo metodicamente pos-ta em causa vinte anos mais tarde, em Homoacademicus (BOURDIEU, 1988 [1984], especial-mente p. xi-xvi, 1-11), e transgredida outra déca-da depois pelo projeto de análise etnográfica dosofrimento social na França pós-industrial – umestudo, liderado por Bourdieu, cujas temáticas eobjetivo evocam de diversas formas Travail et

travailleurs en Algérie18. Em La misère du mon-de, os investigadores de campo envolvidos [napesquisa] foram expressamente instruídos no sen-tido de diagnosticarem de perto a situação críticade pessoas e posições com as quais fossem inti-mamente familiares para, dessa forma, minimizara violência simbólica inerente à relação de comu-nicação etnográfica e para favorecer a “compre-ensão genérica e genética” de cada informante “ba-seada num conhecimento (prático e teórico) so-bre as condições sociais de que ele é o produto”(BOURDIEU, 1998 [1993], p. 609-613)19.

Em segundo lugar, ao aplicar as ferramentasda objetivação etnográfica ao seu mundo natal,Bourdieu antecipa o “repatriamento” da Antropo-logia, promovido pelo fim da era imperial e pelaacelerada circulação transnacional de pessoas,mercadorias e signos que corroeram a fronteiraentre o Ocidente e o Resto [the West and the Rest]no último quarto de século (PEIRANO, 1998).

18 Travail et travailleurs (BOURDIEU; DARBEL et al.,1963, p. 451-564) contém algumas centenas de páginas depreciosos anexos do trabalho de campo (trechos de entre-vistas organizados por tópicos, o mundo visto por umcozinheiro e uma mini-monografia sobre artesãos) queprefiguram na sua construção a hermenêutica topológicadesenvolvida em La Misère du monde. O par conceitual“pobreza de condição” e “pobreza de posição” está pre-sente nos dois estudos, ainda que implicitamente no estu-do sobre a Argélia. A vontade de servir como testemunha e“escriba público” – distinto de porta-voz –, daqueles queestão socialmente privados do acesso ao discurso reconhe-cido e à representação cívica, é explicitamente afirmado emambos os estudos (BOURDIEU et al., 1963, p. 260; eBOURDIEU, 1991, p. 4, que explica a fundamentação po-lítico-científica para uma “sócio-análise” do sofrimento so-cial). A semelhança na concepção, conteúdos e objetivoentre Travail e Misère é espontaneamente sublinhada porSayad (1998, p. 71) na recordação do seu trabalho de cola-boração com Bourdieu durante o período argelino (Sayaddeu uma importante contribuição aos dois estudos).19 La misère du monde também dá a Bourdieu uma opor-tunidade para regressar aos amigos de infância da aldeia doBéarn (v. BOURDIEU, 1998 [1993], p. 381-391, e tam-bém o capítulo intitulado “Vu d’en bas”, não incluído naresumida tradução inglesa). Trinta anos após ter escritosobre a consciência dividida e o sabir cultural dos campo-neses argelinos, enraizados na conflituosa engrenagem dasrelações sociais da comunidade e da colônia, ele descobreque a “dupla ligação [double-bind] inscrita na estrutura dasua empresa econômica e doméstica” dota os agricultoresda sua terra natal de um “sistema de disposições ele pró-prio contraditório e, tal como era, dividido contra si pró-prio” (idem, p. 382).

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No entanto, o seu regresso ao mundo de origemnão se baseia na mera justaposição transculturalde realidades estrangeiras e domésticas, como nostrabalhos clássicos da escola do culturalismo demeados do século20, ou na tranqüilizante separa-ção das problemáticas (pós-)coloniais e metropo-litanas que têm caracterizado recentemente os “se-gundos projetos” dos acadêmicos que regressa-ram às suas sociedades nacionais por “indisfarçadapaixão, identificação ou alguma clara ligação pes-soal” (MARCUS, 1998, p. 239). Em vez disso,ele se assenta na forte ligação e questionamentomútuo feito no momento mesmo da produção einterpretação dos dados do campo: Bourdieu le-vou a cabo, conjuntamente, a sua observação ini-cial da Argélia e do Béarn durante 1959-1961; tra-balhou sobre os materiais daí resultantes simulta-neamente ao longo da década de sessenta; e rees-creveu-os conjuntamente, de forma a chegar àprimeira apresentação madura do seu trabalho te-órico, Le sens pratique (BOURDIEU, 1990[1980], p. 145-199).

Utilizando, assim, os mesmos instrumentos deobservação e perseguindo questões da mesmanatureza em duas comunidades separadas por gran-des diferenças culturais e de poder, Bourdieu podeser encarado como um precursor ímpar daetnografia “multi-situada” [“multi-sited”ethnography], décadas antes desta ser identificadacomo um gênero metodológico distinto. Mas asua concepção e prática da “multi-sidedness” di-fere decididamente da orientação profissional con-temporânea que conduz um trabalho de campoque tem em conta pessoas e símbolos ultrapas-sando lugares e fronteiras, que estabelece cone-xões ao longo de vastas escalas geográficas einstitucionais e que descreve fenômenostransnacionais ou supostamente globais (para umavisão mais ampla da questão, v. HANNERZ, 1998;FISHER, 1999; GILLE & Ó RIAIN, 2002). Paracomeçar, Bourdieu pratica uma etnografia multi-situada, solidamente fundamentada no trabalho decampo nos dois locais, e alimentada pela transfe-rência metódica de esquemas conceituais e resul-tados empíricos de um para o outro (v., especial-mente, BOURDIEU, 1966; 2002, p. 9-14, p. 257-

259), bem distintos das celebrações programáticasdo “grande potencial do imaginário da pesquisamulti-situada” (MARCUS, 1998, p. 20; sem grifosno original), que podem apelar a uma colagem pre-cipitada de esboços baseados em diários de via-gens mais do que em diários de campo, em apon-tamentos feitos às pressas, em vez de observa-ções sistemáticas em primeira mão.

Quando estava na Cabília, desconfiava dos ve-lhos cabilas, ao mesmo tempo que os admiravamuito [risos], e pensava comigo mesmo: ‘Mas,o que ele está dizendo, este homem de idade,com o seu bigode, sobre honra?’ quando osoutros me diziam: ‘Sabe, ele está te contandoesta história, mas quando conseguimos dar umjeito nas coisas, damos mesmo. Qualquer regratem a sua saída (tabburt)’. E eu pensava comi-go mesmo: se fosse um velho camponês doBéarn que estivesse contando esta história, quefaria eu dela? Levaria uma parte e deixaria ou-tra. Depois pensei comigo: estou usando estescamponeses do Béarn como um instrumentode controle dos Cabilas, mas preciso controlaro meu instrumento de controle. Assim, realizeium estudo sobre o Béarn durante o mesmo pe-ríodo. Sayad estava lá. À noite trabalhávamosem Le déracinement e, durante o dia, saíamos efazíamos entrevistas nas aldeias do Béarn. Aidéia era estudar o Béarn, mas também ser ca-paz de fazer uma comparação entre o Béarn e aArgélia e, especialmente, estudar-me a mimmesmo, os meus preconceitos e os meus pres-supostos [...]. Foi a mesma coisa com o Homoacademicus, no qual estudei a Universidade,mas também estudei a mim próprio, já que souproduto da Universidade (BOURDIEU inADNANI & YACINE, 2002, p. 240).

Em seguida, Bourdieu regressa à sua comuni-dade de infância nos Pirineus como “segundo lo-cal” da sua etnografia sobre a estrutura e o senti-mento sociais, para elucidar o conhecimento táci-to (folk) da vida rural que ele percebeu estar in-troduzindo na sua análise da Cabília. (BOURDIEU,2000b). A viagem para casa procura tornar explí-citas as comparações implícitas que o etno-soci-ólogo, em formação, estabelecia entre o seu meiooriginário e o campesinato argelino ao tentar darsentido aos problemas deste último. O princípiode seleção aqui não é o da ligação entre os locais,inscrita no objeto em si mesmo, mas sim o daligação de cada local com o investigador: o Béarné o local em que Bourdieu melhor pode submeterao escrutínio etnográfico e, desse modo, trazer à

20 As afirmações e a carreira de Hortense Powdermaker(1966), levando-a da Nova Guiné ao Mississipi, e deHollywood à Rodésia, proporcionam uma imagemparadigmática dessa abordagem.

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consciência reflexiva e ao controle metodológico(1) o inconsciente social que nolens volens [querqueira, quer não] ele investe na elaboração da suaetnografia da Cabília e (2) os efeitos invisíveis daspróprias operações de objetivação etnográfica,como por exemplo os efeitos artificiais dedestemporalização e totalização dos mapasgenealógicos construídos para dar conta de rela-ções de parentesco, que nunca são captadas pe-los agentes na perspectiva da totalidade e simulta-neidade (BOURDIEU, 1990 [1980], p. 16-17, 162-199).

Para muitos dos seus praticantes e defensorescontemporâneos, o trabalho de campo multi-situ-ado é um meio de colocar o etnógrafo em sintoniacom o espírito do tempo, e em melhor posiçãopara registrar (e, freqüentemente, celebrar) a flui-dez, o hibridismo e a multiplicidade – de lugar,escala, cultura e pontos de vista21. Para Bourdieu,é um dispositivo experimental para implementar

em termos práticos os princípios do racionalismoaplicado: um instrumento de “vigilânciaepistemológica”, ou aquilo a que Bachelard (1949,p. 77-78) chama de “vigilância de terceiro grau”,que examina “não apenas a aplicação do método,mas o próprio método”. Na perspectiva anterior,a submissão ao fenômeno, ou à imagem que ofenômeno impôs de si mesmo (incluindo junto oantropólogo) como translocal, dita a seleção e aconexão dos locais; na última perspectiva, é oetnógrafo que seleciona um segundo local comouma exigência metodológica e um recurso paraautocontrole e salvaguarda epistemológica.

Os estudos gêmeos de Bourdieu sobre a Cabíliae o Béarn assumem um significado especial quan-do se sabe que a tendência para a etnografia multi-situada e a preocupação com a subjetividade doetnógrafo (e, portanto, com o valor da “insiderethnography”) têm sido virtualmente identificadascom as correntes pós-modernistas e feministasque vêem e brandem a “posicionalidade” como opunhal mortífero enterrado no coração da idéiamesma de ciência social. Em conjunto, aquelesestudos demonstraram que se pode conduzir otrabalho de campo na qualidade de antropólogoauto-conscientemente halfie – um investigador“apanhado na interseção de sistemas de diferen-ça” e possuidor de uma “capacidade acabada paraassumir confortavelmente o Eu [self] da Antro-pologia” (ABU-LUGHOD, 1991, p. 140; e 1993,p. 39-40) – como Bourdieu fez nos dois lugares,sem prescindir da análise social para contar histó-rias, nem sucumbir às seduções narcisistas do en-tretenimento literário22. Pode-se admitir oenraizamento social e a subjetividade dividida do

21 As “grandes narrativas” sobre classe, progresso e sobreuma modernidade unificada, características da geração pre-cedente, foram substituídas, pelos defensores da etnografiapós-moderna e/ou global, pela igualmente grande narrativadas identidades múltiplas, da dispersão contínua e dohibridismo universal. A aceitação confiante da existência dacomunidade fechada, da homogeneidade cultural e da esta-bilidade temporal como parâmetros de produção etnográficatem, desse modo, dado lugar a uma igualmente acrítica acei-tação da fluidez, heterogeneidade, porosidade e contesta-ção como metáforas fundamentais da vida social e do traba-lho de campo, com redes, fluxos e “periferias” que deslo-cam abruptamente comunidades, instituições e territórios.Isso obscurece o fato de que o grau de fechamento e deconexão de um dado local são altamente variáveis, depen-dendo do fenômeno examinado e da problemática em queele está inserido. É irônico, por exemplo, que aqueles queestudaram as fronteiras nacionais no seu funcionamentoconcreto [at ground level] descubram que elas revelampouco da volatilidade, hibridismo, permeabilidade,liminaridade que os etnógrafos multi-situados reclamaramcomo propriedades gerais do social de hoje (cf. BERDHAL,1999; ANDREAS, 2001; BERNSTEIN, 2001). Aquelesque acreditam que “os processos difundidos globalmente”são fenômenos novos das últimas três décadas, aproveita-riam uma releitura de Note sur la notion de civilisation deDurkheim e Mauss (1913), onde os últimos argumentamque a circulação transnacional de “mitos, lendas, moedas,comércio, artes, técnicas, ferramentas, linguagens, palavras,conhecimento científico, formas e ideais literários” condu-ziram desde há muito à cristalização de “uma vida social deum tipo especial, que tem como substrato uma pluralidadede corpos políticos, em relação uns com os outros, e atuan-do uns sobre os outros” que “a Sociologia tem que conse-guir conhecer” (p. 49-50).

22 É surpreendente que Lila Abu-Lughod (1991, p. 141)ponha em causa a crítica teórica do objetivismo de Bourdieuacusando-o de desconhecer “a questão óbvia” que “o selfdo outsider nunca fica simplesmente fora” do mundo quese estuda, quando na verdade a etnografia de Bourdieu so-bre sua aldeia de infância o faria parecer um representanteprototípico da “Antropologia halfie” que ela defende (em-bora numa variante que recusa conceder um privilégioepistemológico absoluto aos nativos e desafia oirracionalismo de princípio da crença pós-moderna). QueBourdieu estava longe de “desconhecer a sua situação en-quanto francês que trabalha numa colônia” é claramenteindicado pelos múltiplos, prementes e até apaixonadosavisos que percorrem os seus textos iniciais sobre a Argé-lia, como este: “O sistema colonial é um dado com o qualo etnólogo tem de contar, porque se encontra situado, pelaforça e pela lógica das coisas, na presença de uma forma

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etnógrafo sem, para isso, reduzir a etnografia àevocação entusiástica da subjetividade e, a partirdaí, trocar teoria social por poesia (BEHAR, 2003).De fato, a “objetivação participante” que Bourdieuprocurou alcançar e exemplificar na sua etnografiatrans-mediterrânea, que liga a longínqua colônia àterra natal, procura não enfraquecer, mas sim for-talecer os fundamentos científicos do trabalho decampo:

Não se tem de escolher entre observação partici-pante, uma imersão necessariamente ficcional nummeio estranho, e o objetivismo da “contemplaçãoà distância” de um observador que permanecetão distante de si próprio como do seu objeto. Aobjetivação participante encarrega-se de explo-rar não a “experiência vivida” do sujeito do co-nhecimento, mas sim as condições sociais de pos-sibilidade – e, dessa forma, os efeitos e limites –dessa experiência e, mais precisamente, do pró-prio ato de objetivação. Visa objetivar a relaçãosubjetiva com o próprio objeto, o que, longe delevar a um subjetivismo relativista e mais ou me-nos anticientífico, é uma das condições da objeti-vidade científica genuína (BOURDIEU, 2003a, p.282).

Antropologizar nosso próprio mundo, ou seja,a sucessão de matrizes sociais de que provimos,como Bourdieu procurou fazer através dos estu-dos da aldeia da sua infância, o sistema de ensinosuperior que o moldou e o próprio cosmos inte-lectual do qual se tornou protagonista central,embora relutante, é a aplicação concreta da defi-

nição de objetivação do seu professor GeorgesCanguilhem como “um trabalho incessante de des-subjetivação”23. E isso oferece uma justificaçãoexperimental da visão de Bourdieu segundo a qual

conhece-se melhor o mundo à medida que melhorconhecemos a nós mesmos, que o conhecimentocientífico e o conhecimento de nós mesmos e danossa própria inconsciência social avançam demãos dadas, e que a experiência primária trans-formada em e através da prática científica modifi-ca a prática científica e reciprocamente(BOURDIEU, 2003a, p. 289).

Em terceiro lugar, ao reexaminar a relação deconsangüinidade, gênero e classe, não apenas nooutro lado do Mediterrâneo, mas na mesma co-munidade aldeã, com intervalos de dez e trintaanos, Bourdieu (2002) concretiza uma “revisitaçãoreconstrutiva” rara, enriquecida por uma “atuali-zação etnográfica”, na qual o pesquisador de cam-po regressa a um local já estudado para rever umateoria que inicialmente lá desenvolvida(BURAWOY, 2003, p. 653, 646). Essa revisitaçãoé duplamente rara, já que, diferentemente da re-construção histórica feita por Oscar Lewis, daTepoztlán de Redfield, da reavaliação feminista deAnnette Weiner sobre os Argonautas do PacíficoOcidental de Malinowski, ou da reproblematizaçãomarxista de Michael Burawoy sobre a abordagemfeita por Donald Roy da exploração fabril na pers-pectiva das relações humanas, Bourdieu recons-trói, na sua aldeia de Lasseube, não as visões deum ilustre predecessor ou de um rival intelectual,mas sim a sua própria teoria da prática. Ao(re)produzir duas vezes o mesmo objeto segundoum conjunto de princípios mais condensados egerais de cada vez, ele proporciona ao leitor umajanela excepcional para a fruição do seu modo depensar: uma oportunidade para registrar a emer-gência e os efeitos da utilização de seu aparelhoconceitual específico; um pano de fundo concre-to contra o qual diferenciar o “núcleo duro” doseu programa de investigação do respectivo“cinturão protetor”; e um referencial empírico para

social que existe antes dele, que ele não criou, que ele temde aceitar mesmo que a desaprove ou se esforce para delase libertar, e da qual se beneficia, mesmo no seu ofíciocomo antropólogo, já que a relação entre o etnógrafo e oinformante, como qualquer relação interpessoal, éestabelecida sobre o pano de fundo da relação de domina-ção objetiva estabelecida entre a sociedade colonizadora e asociedade colonizada.” Ou ainda: “A experiência de umestudo no campo conduzido no auge da crise da sociedadecolonial põe em causa os discursos normativos e umacasuística abstrata. Porque o sistema colonial é o contextode todas as ações, as relações entre as pessoas têm semprecomo pano de fundo a hostilidade que separa os grupos eque constantemente ameaça ressurgir e alterar o sentido e aprópria experiência de comunicação” (BOURDIEU et alii,1963, p. 258, 264; sem grifos no original). Esta é umaameaça que Bourdieu procurou conter, ao planejar cautelo-samente [a composição das] equipes de campo (que mistu-ravam entrevistadores europeus e argelinos bem como ho-mens e mulheres), a redação dos questionários, a seleçãodos locais e situações de observação etc. Ver tambémBourdieu, 2004b, p. 424.

23 A possibilidade e os proveitos de uma etnografia doendótico [“endotic” – por oposição a “exótico” – N. T.]como um recurso para o auto-controle científico é demons-trado em e por Homo academicus (BOURDIEU, 1988[1984]) e o seu preâmbulo prático, Leçon sur la leçon,concebido e levado a cabo como uma “experiência crítica”[breaching experiment] à la Garfinkel (BOURDIEU, 1994[1982]).

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avaliar o “caráter progressivo” do mesmo pro-grama. Em suma, Le bal des célibataires surgecomo a primeira etnografia lakatossiana reivindi-cando plenamente tanto o papel constitutivo dateoria na etnografia, como as virtudes especiaisdas revisitações no campo24 .

Desse modo, na reflexão de 1989 sobre as suasprimeiras análises das relações de gênero nas al-deias do Béarn, Bourdieu (1989; 2002, p. 213-237) corrige e amplia vários pontos empíricos emetodológicos avançados nos trabalhos de 1962e 1972. Reformula e refina, com as idéias que sãoa sua marca registrada (habitus, capital, campo,violência simbólica, doxa, reflexividade), análisesinicialmente assentadas numa linguagem próximaàquela da fenomenologia e do culturalismo. E ex-plica o modelo teórico de “unificação do mercadode bens simbólicos” na cidade e no campo que“conduziram ao declínio da autonomia ética” dasociedade camponesa e, dessa forma, à “unifica-ção do mercado de casamentos” manifestada nocenário do baile da aldeia, onde os solteirões lo-cais permanecem passivamente em lugares secun-dários porque não conseguem nem apreender, nemopor-se à lógica da competição individual pelosparceiros sexuais. Mais provocantemente ainda,Bourdieu (2002, p. 213-219, 225-226, 229-232)sugere que este fenômeno local de gênero podeser entendido sob a rubrica mais ampla de “revo-lução simbólica”, com correspondências estrutu-rais nas grandes conversões sócio-mentais quese multiplicaram no mundo das artes, da políticae da ciência, e conduziram à formação de gru-pos25.

IV. A SABEDORIA DO OLHAR ETNOGRÁFICO

A fotografia teve um importante papel na prá-tica etnográfica inicial de Bourdieu, daí que estenúmero especial dê um lugar de destaque às foto-grafias que ele tirou em 1958-1961, nos meiosrural e urbano da Argélia, durante o trabalho decampo que aí realizou. As imagens que acompa-nham os cinco textos de Bourdieu foramselecionadas entre as cerca de 1 200 fotografiasmantidas praticamente intocadas durante quatrodécadas em livros de notas escolares e caixas desapatos na sua casa nos Pirineus, até serem recu-peradas em 1999 para uma exposição fotográficasobre o período em que esteve na Argélia, organi-zada no Kunsrhaus de Graz pela revista de arteCamera Austria e que depois circulou pela Euro-pa (BOURDIEU, 2003b).

O jovem Bourdieu era um fotógrafo ávido epreparado, com um especial interesse pela técni-ca e pela estética desta forma de arte, como foi,mais tarde, amplamente atestado no trabalho co-letivo sobre os “usos sociais da fotografia”26, parao qual O camponês e a fotografia (BOURDIEU &BOURDIEU, 2004 [1965]), sua investigação so-bre a prática fotográfica na aldeia natal de Lasseube,serviu como trampolim etnográfico. Durante a suaestadia magrebina, Bourdieu tirou milhares de fo-tografias com uma máquina Leica e depois comuma Zeiss Ikoflex (que ele tinha intencionalmenteadquirido na Alemanha, e que mais tarde quebrou,durante a sua única estadia prolongada nos Esta-dos Unidos, no Institut for Advanced Studies dePrinceton, em 1972-1973), com o visor na partede cima, o que tornou possível tirar fotografiaspassando despercebido a uma população que nãoestava familiarizada com semelhante aparelho. Nomeio de pessoas ameaçadas, não apenas na suadignidade, mas também na sua integridade física,tirar fotografias delas, e para elas, era “uma for-ma de lhes dizer”: – “Estou preocupado comvocês, estou com vocês, estou ouvindo suas his-24 Lakatos (1975) dá uma explicação sintética das noções

de “núcleo duro”, “cinturão protetor”, “heurísticas positi-va” e “negativa” e evolução progressiva versus evoluçãodegenerativa dos programas de pesquisa.25 “Revolução simbólica é o produto acumulado de inú-meras conversões individuais que, a partir de um dado limi-ar, se precipitam cada vez mais rapidamente” (BOURDIEU,2002, p. 226). O paralelismo direto com a invenção doolhar e do mundo artísticos pode ser encontrado em TheHistorical Genesis of a Pure Aesthetics (BOURDIEU,1987), escrito mais ou menos ao mesmo tempo de Lareproduction interdite. La dimension économique de ladomination économique (BOURDIEU, 1989).

26 Este é o subtítulo francês original do livro Un art moyen,que se tornou Photography: a Middle-Brow Art na tradu-ção inglesa (BOURDIEU, 1990 [1965]). Em sua abertura,Bourdieu oferece um primeiro esboço da sua teoria da prá-tica. O trabalho de campo sobre fotografia camponesa noBéarn foi levado a cabo por Pierre Bourdieu em 1961-1962, com a colaboração de sua esposa, Marie-ClaireBourdieu. [Ver o artigo O camponês e a fotografia nestenúmero da Revista de Sociologia e Política. Nota dos edito-res].

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tórias, testemunharei sobre tudo o que têm passa-do” (BOURDIEU, 2003b, p. 28). Numa socieda-de marcada por divisões litigiosas de casta, re-gressar a uma aldeia de montanha ou às ruas deuma favela para entregar aos moradores fotogra-fias lá tiradas uns dias antes, era uma forma defirmar contatos, estabelecer relações de confian-ça e, eventualmente, ganhar direito de entrada [nacomunidade].

A fotografia desempenhava uma tripla funçãono trabalho de campo de Bourdieu. Primeiro, ope-rava como uma técnica eficiente de gravação earmazenamento, que lhe permitia captar e guar-dar grandes quantidades de informação em situa-ções de tensão social e de risco temporário, ondeera simplesmente impossível demorar muito tem-po e levar a cabo uma observação minuciosa.Muitas regiões da Argélia eram oficialmentemarcadas como “zonas proibidas”, onde só se en-trava correndo o risco de ser morto pelo exércitofrancês ou pelos rebeldes nacionalistas, e onde apresença física era sempre frágil e problemática.Relações interpessoais nos bairros pobres urba-nos eram igualmente marcadas pela desconfiançae pelo perigo, devido à espionagem feita por in-formantes da polícia e funcionários do governo,às incursões militares periódicas (e à tortura), aosbombardeios intermitentes, de tal modo que atétirar notas era suscetível de levantar suspeitas atéque se fornecesse garantias que se estava ali deboa-fé27.

Em segundo lugar, a fotografia servia para in-tensificar o olhar do sociólogo e para aguçar a suasensibilidade para a dissonância e a discrepânciaque devastavam todos os setores da sociedadeargelina durante esta turbulenta década. Isto é par-ticularmente visível na série de fotografias queBourdieu tirou, em Argel e Blida (uma cidade co-mercial situada a cinqüenta quilômetros para su-deste), da chocante chegada do vestuário Fran-co-Europeu e Argelino-Árabe, dos sinais rodoviá-rios, comércio e objetos do quotidiano, e que eleselecionou pessoalmente da sua coleção(BOURDIEU, 2003b, p. 176-202)28. É o que está

evidenciado na fotografia exposta na capa fran-cesa de Algérie 60 (cujo subtítulo é “Structureséconomiques et structures temporelles”), quemostra um trabalhador anônimo argelino de Blida,sentado na caixa de um velho caminhão com oseu traje e penteado tradicionais, segurando a caracom a mão e olhando para baixo com preocupa-ção. A fotografia concentra, num espaço visualrestrito, o período de tempo da crise colonial, ecria uma sensação persistente de movimento in-terrompido e de desalento ao colocar o corpo ar-queado e parcialmente escondido do trabalhadorentre o veículo, em primeiro plano, e o tranqüilofundo de uma rua bem arranjada onde está estaci-onado um carro moderno (o Dauphine do pró-prio Bourdieu).

Por último mas não menos importante, a foto-grafia ancorava e facilitava o trabalho emocionalnecessário para levar a cabo a observação em pri-meira-mão nas circunstâncias extremas de umconflito militar que contagiava todos os recantosda vida colonial. Ajudou Bourdieu a lidar com “oestado de exaltação afetiva” com que conduziu oseu trabalho de campo adotando uma postura ob-jetiva de distanciamento, não sem expressar o seurespeito pessoal e mantendo uma proximidade comos observados:

Estava verdadeiramente perturbado, muito sen-sibilizado com o sofrimento de todas aquelas pes-soas e, ao mesmo tempo, existia certa distânciado observador, manifestada pelo fato de tirar fo-tografias. Pensei em tudo isso quando li GermaineTillion, a etnóloga que trabalhou em Aurès, outraregião da Argélia, e que conta, no seu livroRavensbruck (TILLION, 1975 [1946]), como viapessoas morrerem no campo de concentração,fazendo ela uma marca sempre que havia umamorte. Ela estava fazendo o seu trabalho comouma etnógrafa profissional e disse que isso a aju-dava a agüentar a situação. E eu pensava nisso,dizia a mim mesmo que era um tipo estranho: aliestava eu, nesta aldeia, debaixo de uma oliveira.[...] As pessoas começavam a falar, ‘Eu tinha isto,tinha aquilo, eu tinha dez cabras, tinha três ove-lhas’, enumeravam todos os bens que tinham

27 Ver Bourdieu; Darbel et al., 1963, p. 261-264 para umacomparação das condições que permitem obter a confiançamínima e aceitação entre informantes urbanos e rurais, eBouhedja (2003) e Bourdieu (2004b) sobre os parâmetrosconstrangedores do trabalho de campo nos assentamentos.28 Bourdieu (1984 [1979]) usou uma técnica semelhante

na construção do texto da Distinction, bem como na Actesde la recherche en sciences sociales, a revista que ele fun-dou e editou durante três décadas no Centre de SociologieEuropéenne, na qual fotografias e fac-similes de documen-tos de campo servem tipicamente a uma função analítica ousintética, e não um objetivo ilustrativo.

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perdido e ali estava eu com mais três, tirava notassobre tudo o que podia. Registrava o desastre e,ao mesmo tempo, com uma espécie deirresponsabilidade – que é realmenteirresponsabilidade escolástica, percebi isto retros-pectivamente – tinha em mente estudar tudo isso,com as técnicas ao meu dispor. Estava constan-temente dizendo a mim mesmo: ‘Meu pobreBourdieu, com as tristes ferramentas que vocêtem, não estará à altura da tarefa, precisaria co-nhecer tudo, entender de tudo, psicanálise, eco-nomia’ [...]. Era dramático, mas não da forma comoas pessoas diziam que era. E eu observei issotudo, que era tão complicado, tão acima dos meusmeios! Quando estavam me contando suas his-tórias, por vezes demorava dois ou três dias atéentendê-las, para desvendar os nomes complica-dos de locais ou tribos, imaginar as perdas degado e de bens. Estava submerso e, por isso, tudoservia para sentir, e a fotografia era isso: uma for-ma de tentar absorver o choque de uma realidadeesmagadora (BOURDIEU, 2003b, p. 29-31)

Quer fosse fotográfico ou manuscrito, apoia-do em notas rabiscadas, instantâneos ou textoimpresso, o frenético registro etnográfico era parao jovem Bourdieu um componente essencial deum mecanismo cognitivo-emocional de adapta-ção [coping]: uma forma de absorver a “realidadetão urgente, tão opressiva” que constantementeameaçava esmagar o etno-sociólogo iniciante (idem,p. 32)29. Pelo prisma fotográfico, percebe-semelhor como o projeto de uma ciência total dasociedade, capaz de abranger todos os aspectosda realidade, visíveis e invisíveis, incorporada eobjetivada, e de expor as causas e as razões soci-ais para o seu curso desregulado, não tinha ape-nas sentido intelectual. Cruzou-se com uma ne-cessidade existencial vital e canalizou os impetuo-sos anseios cívicos de Bourdieu, dando-lhe umatarefa concreta e uma missão premente em quese pudesse envolver.

Ser ao mesmo tempo capaz e compelido a trei-nar o “olhar que se obriga a compreender” (idem,p. 42), que é o distintivo olhar da etnografia, nãoapenas na colônia distante, mas também no seu

universo familiar e até familial, aponta para a úni-ca propriedade que explica a posição especial queo trabalho de campo ocupa na prática científicade Bourdieu: é um potente instrumento de auto-conhecimento através do conhecimento íntimo dooutro e, por isso, um meio para a auto-aceitação.Ao revelar a necessidade social instalada no cora-ção das mais inefáveis maneiras de ser e de secomportar, a ciência social em geral, e a etnografiaem particular, podem ajudar a adquirir esta cons-ciência do mundo e de si em sua rede completa dedeterminações, que abre em direção a uma espé-cie de sabedoria espinozista (acquiesentia)30 . Estavirtude irradia no melancólico elogio de Bourdieua Mouloud Mammeri, o poeta e “antropólogoinsider” que era seu amigo, informante e colegado outro lado do Mediterrâneo (sob muitos as-pectos, o seu alter-ego cabila):

Não queria reduzir a um dos seus aspectos ape-nas uma oeuvre que é fundamentalmente plural,multifacetada, e ninguém está mais preocupadodo que eu em protegê-la de todas as tentativas deapropriação de que vai ser alvo. Contudo, acredi-to que a conversão pessoal que MouloudMammeri teve que fazer para voltar a encontrar a“colina esquecida”, para regressar ao mundo na-tivo, é sem dúvida aquilo que ele queria acima detudo, para partilhar com todos, não apenas comos seus concidadãos, os seus irmãos e irmãs narepressão, na alienação cultural, mas também comaqueles que, sujeitos a toda e qualquer forma dedominação simbólica, estão condenados a estasuprema forma de usurpação, que é a vergonhade si (BOURDIEU, 2004 [1998]).

É impressionante que baste substituir Bourdieupor Mammeri e não alterar qualquer outra palavranesta meditação sobre “A odisséia dareapropriação” para fazer que ela encerre a pró-pria viagem sociológica de Bourdieu de ida e voltaà cultura e à sociedade do seu Béarn natal.

29 A melhor indicação disso é a quase total ausência deimagens de guerra e de destruição militar na sua colecçãofotográfica da Argélia, não explicáveis apenas pela censurae pelo risco: parece ser o resultado de uma omissão siste-mática, ou até mesmo propositada (discussões com TassaditYacine ajudaram-me a destacar este ponto).

30 Sobre a variante de entrevista etnográfica empregadaem La misère du monde, escreve Bourdieu: “A disposiçãoacolhedora, que nos leva a fazer nossos os problemas doinformante, a aptidão para adotá-lo e compreender comoele é, na sua necessidade singular, é uma espécie de amorintelectual: um olhar que se abre à necessidade, à maneirado ‘amor intelectual de Deus’, isto é, da ordem da natureza,que Spinoza considerava ser a suprema forma de conheci-mento” (BOURDIEU et al.,1998 [1993], p. 614).

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Loïc Wacquant ([email protected]) é Professor de Sociologia na University of California-Berkeley,Distinguished Professor de Sociologia e Antropologia na New School for Social Research e pesquisadordo Centre de Sociologie Européenne em Paris.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 133-135 JUN. 2006ABSTRACTS

FOLLOWING PIERRE BOURDIEU INTO THE FIELD

Loïc Wacquant (University of California, Berkeley, USA; New School for Social Research, NewYork, USA; Centre de sociologie européenne, Paris, France)

Attending to Bourdieu’s early field studies conducted concurrently in colonial Algeria and in hischildhood village of Béarn in southwestern France sets his scientific approach and output into a newlight: it reveals the twinned ethnographic roots of his theoretical enterprise; it dissolves the caricaturalfigure of the ‘reproduction theorist’ oblivious to historical change; and it dispels the academic fictionof the ‘practice theorist’ by displaying how Bourdieu’s conceptual innovations (such as thereintroduction of habitus) were driven by questions of field research centered on social transformation,cultural disjuncture, and the fissuring of consciousness. Using each site as a living laboratory tocross-analyze the other enabled Bourdieu to discover the specificity of the ‘universally prelogicallogic of practice’ and led him to break out of the structuralist paradigm. Recoupling his youthfulinquiries in Kabylia and Béarn further reveals how, foreshadowing the ‘repatriation’ of anthropologyafter the close of the imperial age, Bourdieu revoked the dominant conception of ethnography as aheroic exploration of otherness and pioneered multi-sited ethnography as a means for controlling theconstruction of the object. Bourdieu’s paired field studies of social structure and sentiment in the far-away colony and the mother-country not only efface in practice the disciplinary division betweensociology and anthropology. They demonstrate that one can conduct ‘insider ethnography’ andacknowledge the social embeddedness and split subjectivity of the inquirer without reducingethnography to story-telling and forsaking social theory for poetry.

KEYWORDS: Pierre Bourdieu; ethnography; Algeria; Béarn; peasantry ; habitus.

* * *

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 139-141 JUN. 2006RÉSUMÉS

POUR SUIVRE PIERRE BOURDIEU DANS LE CHAMP

Loïc Wacquant (University of California, Berkeley, USA; New School for Social Research, NewYork, USA; Centre de sociologie européenne, Paris, France)

Examiner les premières études de champ de Pierre Bourdieu, menées à la fois dans l’Algérie colonialeet dans son village natal en Béarn, sud-ouest de la France, nous permet d’évaluer son approchesociologique et ses résultats scientifiques sous une nouvelle clef interprétative. Elles révèlent lesracines etnographiques jumelles de son univers théorique, dissolvent la figure caricaturale du «théoricien de la réproduction » indifférente au changement historique, et distinguent la fictionacadémique du « théoricien de la pratique ». Elles montrent comment les innovations conceptuelleschez Bourdieu (comme celle du concept d’habitus) s’appuyaient sur des questions de recherche dechamp centrées sur la transformation sociale, la disjonction culturelle et la division de la conscience.L’utilisation de chaque espace comme un laboratoire réel pour analyser, à travers les regards croisés,l’autre espace, a permis à Bourdieu de découvrir la spécificité de « l’universellement pré-logiquelogique de la pratique » et l’a fait rompre avec le paradigme structuraliste. Mettre en rapport sesétudes de jeunesse en Kabylie et en Béarn révèle aussi que, prévoyant la « rentrée » de l’Anthropologieaprès la clôture de la période impériale, Bourdieu a révoqué la conception dominante de l’ethnographiecomme une exploitation héroïque de l’altérité, devenant pionnier dans le développement del’ethnographie multi-située comme un moyen de contrôle de la construction de l’objet de recherche.Les études de champ appliquées sur la structure sociale et sur le sentiment dans la lointaine colonieet dans la terre maternelle, non seulement effacent dans la pratique la division disciplinaire entreSociologie et Anthropologie, mais encore montrent qu’il est possible de mener ethnographie « insider» et de reconnaitre l’insertion sociale et la subjectivité partagée du chercheur sans, à cette effet,réduire l’ethnographie à l’acte de raconter des histoires et sans abandonner la théorie à la poésie.

MOTS-CLÉS : Pierre Bourdieu; ethnographie; Algérie; Béarn; paysannat; habitus.

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