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E? f ,; Sv ANTONIO HOUAISS R O B E R. T O A M A R A L VUIAÇÕES EM TORNO DO CONCEft'O DE DEMOCRACIA -1992·

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E? f ,; Sv

ANTONIO HOUAISS R O B E R. T O A M A R A L

VUIAÇÕES EM TORNO DO CONCEft'O DE DEMOCRACIA

~RASÍUA -1992·

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ANTÔNIO HOUAISS ROBERTO AMARAL

VARIAÇÕES EM TORNO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA

BRASÍLIA- 1992

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Sumário

Pág.

Da Belíndia à africanização . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . 7

Cada povo com sua revolução .. . . ..... .. ..... ..... 17

Cuba e o conceito universal de demo-cracia .. .................................. .. .......... ..... .. ..... 29

Variaçôes em torno de uma esquecida questão de valores .... . . . ........ ... .. .. .. .... . ... .. .. 49

Manifesto dos cem ... ... . ... .. .. .... ..... .... .. . ...... ... . . 57

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Da Belíndia à africanização •

A guerra do Golfo, inconcluída nas próximas décadas, não anula a "Paz" - entendida como a certeza da não-guerra nuclear, conquista do fim da guerra-fria, conquanto desta uma das pii­meiras conseqüências tenha sido a crise do Oriente. Nem o temor do mútuo holocausto, nem a paz do temor recíproco, nem o equilíbrio do terror nuclear, por fim, nem a guerra fria das duas potências, que, ameaçando-se, equilibrada­mente, de guerra, garantiram a paz na terra. Ago­m, a Pax Americana, treinada em Granada e no Panamá e consagrada no Golfo (sem significar o fim do fim da guerra-fria, outras guerras virão, mais ou menos localizadas, a "guerra quente"

• Publicado no Caderno Idéias, jornal do Brasil, cJição tlc S-'5-91 .

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internações, interpovos, coolirmará na Ásia, na África e na América Latina, continuará no Oriente, isto é, no cu do mundo, matando milhares de vidas, vidas baratas, mas sempre vidas, consagran­do também, ao seu turno, o império da força desequilibrada. É este o cenário que o final do século _,;..._ ou o século fmdo, ou o passado século XX- oferece ao pró:xjmo milênio, ou está ofere­cendo a este terceiro milênio, assim recém-inau­gurado, no qual logramos viver. Visto do alto dos anos 70 - como estão distantes! -, era a promessa da utopia de um mundo que já a vivia proximamente em 113 de sua humanidade, quase feliz. Visto do alto do fim dos anos 80, a julgar por esta última década - a qual século pertence não se sabe -, o próximo milênio não será pro­missor para as utopias. E foi assim, com a simbo­logia do fim do muro de Berlim, que o século terminou em 1989, negando as promessas enseja­das por seu ato inaugural, a revolução proletária de 1917).

Mas isso será mesmo o fim das utopias?

Uma das promessas da nossa política neoli­beral, isto é, da internacionalização da economia brasileira, é, realmente, sua internacionalização, difícil de realizar-se, senão com a transformação,

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problemática, convenhamos, deste País, em um imenso entreposto comercial. Seria muito humi­lhante para a história deste povo e é compreen­sível que o Sr. Éris não tenha sensibilidade para compreender certos sentimentos do que se pode­ria chamar alma nacional brasileira.

A internacionalização via cruzamento de inte­resses, pelo alto, é possível, pois para isso funcio­nam as relações entre governos poderosos e go­vernos subservientes. E nunca como tanto neste final de século o capital se mostrou tão internacio­nalizado e tão internacionalizante.

Mas se os neoliberais-conservadores intentam um projeto de internacionalização que vá além da pura e simples desnacionalização da econo­mia, isto que comporta a absorção de capital de risco via investimentos, nessa hipótese os titulares da política brasileira devem rever seus planos.

O complexo fim da guerra frialdesestruturação do bloco soviético/guerra do Golfo e, truistica­mente, a ascensão dos Estados Unidos e da sua Pax, reordenaram a geopolítica. Mais do que o fim da guerra fria, a derrocada da União Soviética como superpotência e, conseqüentemente, odes­mantelamento dos pactos revolveram os concei­tos de segurança e, daí conseqüente, a ordem

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de importância dos países, das regiões, coalizões e blocos. Trocando em miúdos, o chamado Atlân­tico Sul perde de importância, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista da estratégia militar. É desimportante tanto para Wall Street quanto para o Pentágono.

É inegável que os Estados Unidos, dívidas à parte, é a mais poderosa potência do mundo, podendo dispor de um poder de hegemonia, reforçado pela vitória militar e diplomática do Golfo (vitória e vitória que têm também um sabor psicanalítico, de catarse em face do Vietnã), que irá ainda muito além de suas limitações econô­micas.

À antiga bipolaridade, segue-se a política dos blocos, formais ou não, como a Comunidade Eco­nômica Européia, o chamado bloco do Pacífico, os Estados Unidos em si , e o bloco da América do Norte, por eles mesmos liderado, liderando-o em todos os interesses militares. Considerem-se ainda, fora desse mosaico, a União Soviética e a China. Mas o que vale mesmo?

A Comunidade Européia, que já tinha consigo os problemas derivados da absorção de EStados relativamente pobres, como a Espanha e princi­palmente a Grécia e Portugal, seria normalmente

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liderada pela Alemanha Federal. Mas a nova Ale­manha tem problemas concretos, como os custos da absorção de sua parte oriental e os custos com a absorção e integração dos antigos países do antigo Leste Europeu, que pretende liderar. Tudo isso vai requerer muito marco, pois, afinal, não se faz capitalismo sem capitalistas e capitais. Teoricamente, quem, senão os europeus não na­cionais, podem investir nos ex-países socialistas?

O Japão tem prioridades muito claras, as quais, para quem dúvidas tivesse, ficaram bem expostas com sua posição entre prudente e pouco afirma­tiva na crise do Golfo. Suas prioridades são o mercado norte-americano e, econômica, política e estrategicamente, o Pacífico, o Pacífico como tal e particularmente os chamados três tigres asiá­ticos. O Japão investe pesadamente nos Estados Unidos, seja valendo-se da crise americana, com suas empresas à mercê da crise, seja para livrar-se do auto e alto protecionismo americano (que, entre nós, quando praticado, é criminoso), e ain­da para garantir seus interesses e investimentos. Essa a mesma razão para suas inversões na Europa ocidental. Alemanha e Japão continuarão preocu­pados com o . deficit" público norte-americano, o que é tranqüilizador para os aplicadores de

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Wall Street. Mas que custa qtuitos e muitos marcos e muitos e muitos ienes. Na Europa ocidental, França e Itália, principalmente, e o que tiver so­brado, cuidarão de evitar que cresça ainda mais a distância econômica delas, e, por via de conse­qüência, a detestável hegemonia alemã.

Nesse plano·, com as sempre mencionadas ex­ceções da Austrália e da Nova Zelândia, o hemis­fério sul passa a ser uma gigantesca Cúba dos anos Batista. Um paraíso exótico que deve ser preservado como reserva, reserva até de espaço.

Se não temos importância estratégic<rmilitar - o mínimo de importância esfarelou-se com o fim da guerra-fria- não somos, sequer, merca­do. Mesmo fornecedores significativos deixamos de ser, mercê da revolução tecnológica. Como informa Peter Drucker, citado por José Eustáqui Diniz Alves 1

, "cerca de 60% dos custos do pr<r duto industrial representativo da década de 20 - o automóvel - correspondiam a matéria-pri­ma e a energia. Os custos da matéria-prima e energia do produto industrial representativo dos

1 '"A Guerra do Golfo: Alguma~ Quest9t=s sobre a Economia Mun­dial e a América Latina··, apud Cadernos de Conjuntura. 37-Fevereiro

de 1991 - Instituto Universitário de Pesquisa~ do Rio de Janeiro -IUPEJlJ.

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anos 80 - o microchip- são inferiores a 2%. Os fios de cobre, cujo conteúdo da matéria-prima e energia aproximava-se de 80%, estão sendo rapidamente substituídos nos cabos telefônicos por fibras óticas, cuja matéria-prima e energia chegam a 10%. O Japão aumentou sua produção industrial duas vezes e meia entre 1965 e 1985, embora os aumentos de matéria-prima e de con­sumo de energia tenham sido insignificantes". Diante desses números, comenta o professor da Universidade Federal de Ouro Preto, "os avanços na informática e na robotização estão transfor­mando as linhas de produção nos países desen­volvidos, o que toma viável manter determinadas linhas de produção mesmo onde se pagam eleva­dos salários. Além disso as necessidades de inte­gração industrial e de concemração/desconcen­tração espacial fazem com que as economias li­vres dêem prioridade ao seu bloco econômico. Isto quer dizer que a América Latina e demais países do Terceiro Mundo estão perdendo as van­tagens comparativas da oferta abundante de maté­rias-primas e mão-de-ohra harata" Pari passu, a diminuição da classe trabalhadora industrial.

2 Idem

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Em outras palavras, da Belíndia à africanização.

Continuemos tentando entender os dados dis­poníveis.

Depois de um crescimento médio de 7,1% ao ano, no período je 1950 a 1980, no Brasil, na década seguinte, a chamada década perdida, nos­so crescimento foi negativo: se o PIB nesse perío­do foi de 1,6% ao ano, foi, portanto, inferior ao crescimento da população no mesmo período estimado em 2% ao ano.

Se nossa importância como fornecedores de matéria-prima tende a decair, não é estimulante ·nossa expectativa como mercado consumidor. O hemisfério sul menos a Austrália e Nova Zelândia, incluindo o México e o Caribe, importou algo equivalente como 3,4% das importações totais mundiais, em 1987, tanto quanto Hong Kong e Cingapura. Pois em 1989, as importações desses dois pequenos países já foram 50% superiores às importações de toda a América Latina 3.

Nessas análises não consideramos nem a China nem a União Soviética, nem a Coréia do Norte, nem seus potenciais como mercados consumidor

Ih idem

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e industrial, nem os gastos que com a União So­viética terão, ou já estão tendo, a Alemanha e o Japão.

Nesse quadro, qual será a prioridade da Amé­rica Latina e nela a do Brasil? Que esperar senão negociações difíceis e recursos mínimos? Ao in­vés de novos investimentos, virão mais pressões visando ao pagamento da dívida.

Pois é nesse cenário que a política governa­mental brasileira assenta todas as nossas possibi­lidades· de recuperação do desenvolvimento na atração de capitais internacionais; e, simultanea­mente, desorganiza o mercado interno.

Retomamos, em termos de geopolítica, ao con­flito norte-sul, riqueza-pobreza, atualizando mais do que nunca o terceiro-mundismo. Os conflitos se aguçarão independentemente das políticas na­cionais - já se instalam tão claramente num go­verno tão claramente primeiro-mundista como o atual - e podem ensejar a criação de uma outra resistência heterodoxa. Mas os Estados Uni­dos, isto é, o Primeiro Mundo, já disseram clara­mente qual a sua política, mais clara a partir do Golfo (e de Granada e do Panamá) do que ao tempo das Malvinas/Falkland.

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É evidente que nem tudo são flores acima do rio Grande. A Inglaterra tem seu futuro decadente apressado pela integração econômica européia, e os Estados Unidos não têm como resolver sua crise senão optando entre manter os altos níveis de investimento militar ou se socorrendo de drás­tico reajuste fiscal, com graves conseqüências so­ciais. Não obstante o recuo militar da União Sovié­tica, necessitada de transferir para a moderni­zação interna as verbas antes consumidas na corri­da armamentista, parece que o novo papel de­sempenhado pelos Estados Unidos, após a guerra do Golfo, não lhe reservará grandes alternativas, fora da gendarmeria mundial, que muito poderá ser a sua grande tarefa no papel de pôr ordem no mundo: a Pax Americana, com tudo o que a ela diz respeito, o controle do petróleo do Oriente, mas também as legiões espalhadas por todo o mundo.

Isso tem seu preço, como a história ensinou à Assíria, à Babilônia, a Açoca, a Alexandre, a Roma, a Carlos Magno, a Carlos V. ..

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Cada povo com sua revolução •

A Ilha era uma cloaca, quintal para os prati­cantes dos jogos proibidos na sede da hipócrita pudicída vitoriana-protestante-norte-americana, para a lavagem e trânsito de dólares de origens inconfessáveis, confessadamente destinados ao fi­nanciamento de regimes abjetos. A Ilha era entre­posto da máfia, balneário para príncipes, emires e sultões de segunda classe, repouso de ditadores e facínof<I.S aposentados, exílio de sargentos, co­ronéis e generais latino-americanos apeados do poder. Er~ a zona-livre onde a CIA e .os serviços de inteligência de inumeráveis impérios concer­tavam seus golpes contra a democracia e os movi­mentos de libertação nacional.

• Publicado no Caderno Idéias, Jornal do Brasil, edição de 11-8-91.

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Naquela belíssima llha de sol quase perdida no mar do Caribe - premonição de isolamento? -, a prostituição era o máximo a que poderiam aspirar as filhas dos camponeses e dos trabalha­dores (analfabetos), as filhas dos pequenos fun­cionários públicos; era a prostituição que alimen­tava o turismo e completava os ialários das famí­lias de classe média atraídas e perdidas pelas luzes da capital deitada à beira-mar; o cassino e o contrabando, a grande fonte de receita, receita pobre de uma terra condenada à monocultura canavieira, que mantinha povo e país pobres e quanto mais pobres mais submetidos à ditadura luciferina. Exemplar ditadura latino-americana: tão cruel internamente quanto subserviente à vontade, gosto e prazeres da pequeníssima passe dominante local, cujos interesses, sonhos, gostos e prazeres de há muito se haviam deslocado para Miami; marionete, os cordéis de suas mãos e pés estavam em Washington.

A ditadura foi derrubada e , onde fora seu reino, ergue-se - a que custo! - uma nova nação habi­tada por um novo povo, um povo orgulhoso de sua história, de sua língua, de sua cor:, de sua terra. Uma gente, mestiços!, que anda de cabeça erguida.

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Mas nada disso tem importância, porque Fidel castro está no poder há 32 anos. É o que nos diz e diz ao mundo o Sr. Bush. Que quer salvar Cuba E se ele quer isso, ele deve ter razão, por­que ele é o Presidente dos Estados Unidos da América.

Não vem ao caso perguntar há quantos anos estão no poder os emires e os sultões, os Sabagh do Kuwait e os Saudi da Arábia; não há por que indagar a respeito das democracias representa­tivas de seus aliados jordanianos e sírios; nem · mesmo vem ao caso perguntar por quantos anos o PRI- efetiva experiência de ditadura do parti­do único - governa o México domado. Esses senhores e esses regimes devem ser dignos do nosso respeito e da gratidão da humanidade; são amigos dos Estados Unidos e, portanto, são demo­cratas.

Naquela Ilha matou-se a fome; as crianças co· nhecem a escola, os pais o trabalho, a família a saúde; naquela Ilha paupérrima o .ensino é pú­blico, universal e gratuito; doenças endêmicas - como a malária, febre-amarela e tantas mais que ainda matam, e como matam (os pobres), em prósperas democracias liberais e represen­tativas, como o Brasil - lá estão erradicadas, e é lá que colossos econômicos (em crise ou

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não), como o nosso País, vão comprar vacinas · e remédios.

Mas nada disso tem imponância, porque Fidel está há 32 anos no poder, e se isso é verdade, e é, aquela Ilha é Lima ditadura.

É o que nos dizem pessoas titularmente honra­das como o Deputado Robeno Campos, com a autoridade de quem foi Ministro de Castello Bran­co e Embaixador de Costa e Silva e Médici, e o professor e ensaísta Vamireh Chacon, rumo aos Estados Unidos.

Aquela Ilha está também há 32 anos sob o mais brutal bloqueio econômico e político-mi­litar de que se tem história. Bloqueio do qual o Brasil e outras ditas democracias até bem pouco panicipavam, com sua quota de subserviência (mesmo agora somos proibidos de trocar aviões por vacinas, porque os aviões de nossa saudável Embraer são equipados com turbinas nane-ame­ricanas .. . ). Bloqueio tão férreo, se tanto, só aquele que em poucos meses paralisou o Iraque.

Mas nada disso entra em cogitação. A Ilha não é uma democracia, e ponto final.

O imperialismo (desculpem os corifeus da mo­dernidade, mas esta é a palavra) cerca a Ilha de todos os lados, com o isolamento político, com

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o bloqueio econômico, com a agressão militar - quantas vezes promoveu invasões? -, com pressões diplomático-comerciais-financeiras so­bre seus aliados (que fale a aflita União Soviética), com a invasão de seu espaço aéreo, com a guerra ideológica permanente e diária.

Mas nada disso é relevante para democratas à esquerda e à direita: Fidel se recusa a fazer um plebiscito sobre si mesmo; não há pluralidade sindical nem partidária, portando Fidel é um dita­dor. E se é ditador tem que fazer um plebiscito para deixar de ser. É o que se ouve mesmo na esquerda brasileira, tanto daqueles segmentos cu­ja destinação política é pegar sempre o bonde andando (e é sempre a condenação do cristão­novo tentar ser mais real do que o rei...), quanto de lutadores sinceros da democracia e do socia­lismo (é o caso de Lula em sua equivocada entre­vista à Folha de S. Paulo).

Mesmo para esses setores, é rigorosamente ir­relevante o fato mesmo de Cuba ser, já, um país invadido, pois lá tem base militar o seu inimigo mortal!

E exige-se desse País, em coro com Bush, que ele faça o que, depois de tanta dor, fizemos nós (fizemos?) nesta autonomeada 8! ou 9l potência

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industrial, candidata ao Primeiro Mundo. E faça-o não porque é preciso fazer - isto é, em atenção a valores morais, éticos, políticos e humanitários -, mas faça, porque é oportuno fazê-lo, pois fazendo-o aplacar{. (aplacará?) o ódio de seu ar­quiinimigo; ou, de outra, dará a países e partidos e políticos acovardados diante de surpresas histó­ricas o salvo-conduto para uma envergonhada aproximação e, de lambuja, ainda mostramos que agora somos bonzinhos, isto é, modernos. Cobra­se tudo de Cuba - que simplesmente quer ape­nas viver a sua vida, cuidando de seu nariz, deci­dindo sozinha a hora de assoar-se -; de Fidel exige-se o próprio pescoço em nome de nossa democracia; mas nada sequer se pede ao glorioso e insaciável gigante do None. .. Democratas de sempre e novos democratas, que dareis ao povo cubano depois da invasão?

Isso não interessa. Interessa o que os cubanos nos darão: a oportunidade de, fmalmente, sermos vistos, aqui, como bonzinhos.

A posição da direita brasileira, de particular da direita senecta, retardatariameme fóbica, é ir­repreensível, e lógica, e, nos casos dos Campos da vida, admiravelmente coerente com suas pró­prias histórias pessoais. Não há porque discuti-la.

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Muito menos discutível é a posição dos Estados Unidos. O Sr. Bush, valendo-se de sua atual posi­ção de força, inédita na História moderna, intenta realizar o que todos os presidentes seus anteces­sores, desde Kennedy, intentaram, sem lograr.

O estranhável em tudo isso é a incapacidade de a nossa nova esquerda, recentemente demo­cratizada, raciocinar com os termos da História.

Não se trata tão simplesmente de ser a favor ou contra o pluripartidarismo, o plurissindica­üsmo e a democracia, de estilo representativo­liberal, econômico e classista, assim à la Brasil. Trata-se de, continuando como sempre demo­cratas, raciocinar de forma minimamente contex­tualizada.

Por que esse nivelamento por baixo, da ação e do discurso político, o divórcio da palavra de ordem "para inglês ver" (de que decorrem, po­rém, dividendos internos como os espaços aber­tos pela imprensa ... ) com a vida? Como explicar o esquecimento de princípios que fizeram a hon­ra e a identidade da esquerda no Brasil e no mundo? Que estamos fazendo de nossa luta em defesa da autodeterminação dos povos? Era ape­nas tática? Jogo de cena?

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Uma vez mais, e agora por puro mimetismo cultural, nos fazemos up-to-date com a Europa; lá, observa-se a direitização da política: a extrema­direita não se envergonha de suas posições para­fascistas, a direita assume o discurso da extrema­direita, a esquerda assume o discurso da direita; não se trata, tão-só, da era Kohl na Alemanha, ou do exemplaríssimo PS de Mitterrand; na Fran­ça, o antes glorioso PCF da resistência faz coro a... Le Pen, na campanha contra os imigrantes, os deserdados que secularmente tiveram naquele país uma pátria universal, e nos liberais e progres­sistas, comunistas ou não, mas principalmente comunistas, seus defensores. Lá, fatos objetivos, históricos, muito europeus, podem explicar uma crise de valores na esquerda e a ascensão ideoló­gica da direita. Aqui, porém, o discurso é da pró­pria esquerda, de setores da esquerda que, não desejando discutir a questão de fundo, que é uma questão de valores, apela para a escapatória de um modernismo que, contrariando toda a tra­dição do pensamento de esquerda (inclusive da esquerda brasileira quando pensa), passa a adotar receitas panacéicas, universais, intemporais e imutáveis. E assim, quanto mais pretende avançar, essa esquerda simplesmente reelabora, formal-

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mente, o discurso conservador. Fizemos uma re­flexão a propósito de nossos valores? Não. Uma vez mais trata-se de procurar o atalho, a busca do caminho mais curto, mais rápido e mais barato para a conquista do poder que teria ficado mais distante de nossas mãos quando mais sincera­mente falamos ao povo .. . (a síndrome da "quase" eleição de 1989 ainda fará muitos estragos). Acu­sada de autoritária (antes, de antropófaga), de antidemocrática, até porque defendia a ditadura do proletariado, essa esquerda apressada acha que a única forma de refazer -se (para ganhar eleições), é virar-se pelo avesso diante do eleito­rado. Ora, não se trata disso, pois não será sim­plesmente negando a revolução cubana que afir­maremos nossa independência ideológica e nos­sa adesão ao catecismo democrático-burguês.

O socialismo democrático brasileiro tem com o PCC e o povo cubano divergências, decorrentes de visões distintas de um mesmo mundo. Diver­gências que não impedem nem o diálogo nem a defesa da revolução e de sua liderança, a quem o Continente deve algumas das melhores páginas de sua história. Não coincidem nossas visões de Estado e de sistema partidário, como de organi­zação sindical - para citar as questões mais pos-

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tas em destaque; defendemos, para nosso País, o pluripartidarismo, a manifestação eleitoral atra­vés de um sistema eleitoral realmente democrá­tico (pelo que o nosso não é paradigma), a liber­dade sindical, compreendendo sindicatos livres e centrais independentes tanto dos interesses do Estado quanto dos interesses de organismos in­ternacionais (e de novo o modelo brasileiro não é paradigmático ).

Essa posição que é de desde sempre (nunca esquecer que o PSB, contra a maré da esquerda de então, tinha, já em 1947, o lema Socialismo e Liberdade como plataforma e princípio), posi­ção que é hoje, mas só recentemente, e ainda de forma claudicante em algumas áreas, a do conjunto da esquerda brasileira, não nos trans­forma em donos da verdade.

Porque nós defendemos o direito de cada parti­do ter seu programa, e cada povo a sua revolução, uns e outros construindo à sua maneira, isto é, livre de matrizes, o socialismo. Porque nós afir­mamos, até estimulados pelo fracasso do leste-eu­ropeu, a via independente de cada partido e de cada povo, negando a revolução internacional e afirmando as vias nacionais de cada socialismo. Assim, perguntamos, por que nós, para atender

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aos nossos interesses táticos nacionais, teremos de negar tudo isso e exigir de Cuba, ou de quem quer que seja, a adoção de nosso modelo em condições históricas adversas? Por que, assim de repente, passamos a concordar com o imperia­lismo (vai de novo a palavra insubstituível) e san­cionar-lhe o direito de ingerência nos negócios internos de Cuba, ingerência que sempre comba­temos?

Quanto mais bloqueada, mais resistente e fe­chada, Cuba será, ·como foi a União Soviética. Senão será penetrada por milhões de dólares que comprarão consciências e criarão partidos e "opinião pública" que "redemocratizarão" a prostituição, a jogatina, o analfabetismo, as epide­mias, a fome, a criminalidade.

Queremos negociar um prato de lentilhas, es­quecendo-nos de que, livre do bloqueio, das ameaças, dos condicionalismos, o povo cubano saberá autodeterminar-se, organizando-se na li­berdade, na igualdade e na fraternidade socia­listas, que saberá atingir sem ingerências externas que o ultrajam e lhe ameaçam com os horizontes torpes de uma selvagem restauração burguesa.

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Cuba e o conceito universal

de democracia

''Uma vez um macaco e um peixe foram pegados por uma enchente. O macaco subiu .numa árvore e se salvou. Olhou para as águas abaixo e lá viu o peixe lutando contra a correnteza. Sentindo um desejo de ajudar seu amigo menos favorecido, ele meteu a mão na água e tirou o peixe. Com surpresa viu que o peixe não era grato pela assis­tência."

(Fábula oriental.)

Nosso artigo "Cada povo com sua revolução" (Idéias, li-8-91), provocou estimulante reação, favorável, nos diferentes naipes do pensamento brasileiro. Algumas poucas restriÇões, porém, ar-

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güiram, contra a defesa ali sustentada do direito do povo cubano à sua revolução, os valores uni­versais da democracia, que na Ilha não estariam sendo respeitados, o que, sob esses olhares, justi­ficaria uma inter,.enção exógena, vale dizer, a derrogação de outro valor político, a autodeter­minação dos povos. Essas e outras reações nos cobram este segundo artigo, o qual, por razões que o leitor logo compreenderá, haveria de ser, comparativamente ao anterior, um pouco mais teórico, ou teoricizante, e basicamente histórico, historicizante, abordando uma questão que estava envolta, embora não explícita naquelas reações, a saber, uma discussão em torno de conceitos e juízos de valor. Como o conceito de demo­cracia.

O pano-de-fundo de toda a discussão e, cons­ciente ou reflexivamente, ideológico, e ideoló­gicas são as concepções de bem e de mal, que se dizem sempre conceitos universais e intem­porais, embora mudem de matizes e substância, freqüentemente, em benefício de uma concepção momentânea que é preciso defender como uni­versal e intemporal. E todo aquele que supõe haver encontrado, ou concebido, ou descoberto, o conceito universal e intemporal de um valor

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qualquer (como o conceito de democracta), não se dá conta de que, para isso, antes, se auto-a­tribuiu o poder de julgar e valorar (isto é, a partir de seus juízos, isto é, de seu mundo ideológico) os valores e os conceitos de outrem.

1\SSim e que, numa determinada quadra histó­rica, um determinado quadro axiológico, ou seja, um conjunto de valores ideológicos, conjuntu­ralmente vencedor, faz-se conjunturalmente do­minante, e, para que exerça essa sua dominação, vigendo sobre todos os homens e todas as nações, reivindica a superação de sua conjunturabilidade e de sua limitação geográfica, para alçar-se à con­dição de intemporal e universal. Essa é a condição de reino desses valores que, geralmente, se espa­lham na ponta de baionetas, ou mísseis, ou mari­nes, ou patriots ... Ou entram casa a dentro com as programações e os noticiários homogeneiza­dos, nacional e internacionalmente, segundo, evi­dentemente, não os interesses nacionais-popu­lares, mas de acordo com os interesses das matri­zes econômicas e militares, que são também as fornecedoras das matrizes da informação. É que, nos tempos modernos, essa potência física é au­reolada pela potência psíquica (psicopática) dos meios de comunicação de massa eletrônicos, cujo

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requinte- por ora- nos foi dado durante vinte quatro horas de alguns dias seguidos numa ope­ração dita cirúrgica em que morreram 200 mil seres humanos (homens, mulheres e crianças) e as televisões do mundo inteiro não viram uma só baixa - senão luzeiros e fogos pirotécnicos ou de artifício. Isso dá uma medida do que vem sendo essa potência psíquica (psicopatológica), que impinge universalmente, noite e dia, a ideo­logia das liberdades sem contrapartida, a ideolo­gia de uma democracia sem igualitarismo, como valores absolutos que coonestam todas as formas de intervenção e exploração - dos homens, das coisas, da Terra, da Humanidade, Os povos, dessa forma, continuam senhores de seus destinos en­quanto esses seus destinos estiverem conformes com os valores universais e intemporais daquele momento; assim é que os povos e os países po­dem alegar o seu direito universal à autodeter­minação, mas enquanto aspirarem à uma autode­terminação consentânea com esses valores.

Daí concluir-se que o povo cubano, enfren­temos a questão concreta, carece hoje do direito de alegar o princípio universal à (sua) autodeter­minação, porque esse direito à autodeterminação está sendo ou seria argüido para a defesa de

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· um modelo de vida que não é o modelo que dizemos, dizem outros, serem os modelos que consideramos, no momento, universais e intem­porais. De outra parte, porém, e pelas mesmas razões, dizemos que os povos do leste-europeu têm o direito de verem afirmados os seus valores de hoje, fazendo-os prevalecer sobre os valores de ontem sem qualquer restrição de força que os possa conter, por que eles estão de acordo com os valores que hoje se dizem valores domi­nantes.

Essa mesma ordem de raciocínio nos levaria a afirmar, e levaram alguns leitores a implicita­mente o afirmarem, que o Sr. Bush tem todo o direito de exigir do mundo que mate de fome o povo cubano, porque o povo cubano teima em achar que deve preservar os valores que su­põe sejam os seus (dele povo cubano) valores. Porque o povo cubano é esse teimoso, o Sr. Bush não estaria intervindo (como efetivamente está) nos negócios internos de uma outra nação quan­do diz aos povos dessa nação (infinitamente mais pobre) que eles devem derrubar o seu gover­nante; ou quando diz aos seus países súditos que devem acompanhá-lo num bloqueio comercial e político de 32 anos; ou ainda quando diz (como

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disse ao indefeso Gorbachev) que a ajuda econô­mica do Ocidente aos antigos parceiros e aliados de Cuba será medida na razão direta dos prejuí­zos que a nova ordem política, militar e econô­mica desses novos Estados possa infligir à debili­tada economia da Ilha bloqueada.

Por isso, passa a ser inaceitável a presença de militares e assessores soviéticos em Cuba, ali a pedido do governo cubano e nos termos de trata­dos diplomáticos; mas continua indiscutível a pre· sença militar norte-americana, na Ilha, contra a vontade do governo e povo cubanos.

Por isso, democratas de sempre e novos demo­cratas brasileiros, e mesmo socialistas recém-con­vertidos à liberdade, defendem para Cuba certas reformas liberais e liberalizantes, as que sempre defendemos para nosso País - como liberdade sindical, pluripartidarismo, liberdade de impren­sa (e não apenas liberdade dos donos das empre­sas, ou dos partidos donos das empresas) - sem que, no entanto, se sintam os novos paladinos da democracia no dever de exigir do Sr. Bush um mínimo de compromisso de não-ingerência e não-intervenção nos negócios internos de Cuba, vale mesmo dizer, sem muito exagero, o direito de esse povo sobreviver fisieamente, pois o obje-

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tivo do bloqueio, contra o qual não se levantam nossas vozes democratas, é mesmo o genocídio, a liquidação pela inanição de toda a população cubana.

E quetn há-de supor que somente nós, os de­mocratas, temos mandato para escolher o nosso, e portanto (porque nosso), o melhor modelo para a humanidade? Por que, seguindo essa mes­ma ótica, não teria idêntica faculdade (ou poder), por exemplo, a Coréia do Norte, de "libertar" os povos sul-coreanos da ditadura Kim Il Sung, impondo-lhes o seu próprio (dela) caminho? Ora, sabemos, uma tentativa assim já nos deu uma guerra de proporções internacionais ... Por que não teria a China esse mesmo direito sobre o regime de Formosa, ilha, aliás, desmembrada de seu território pela secessão de Chian-Kai­Chec? E por que o furor democratizante norte-a­mericano não se volta também para a China? Por que tanto silêncio em face das ditaduras pré-capi­talistas dos Emires? Por que a especiosidade dessa campanha e dessa fúria norte-americana (com ressonâncias entre nós) contra o regime de Fidel?

E por que estaria o Brasil hoje, ou amanhã, ou depois de amanhã livre da mesma intervenção que hoje defendemos para a Ilha?

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É a isso que chamamos de "contextualização -histórica". Ou seja, qualquer tentativa de abordar a questão cubana sem considerar o quadro inter­nacional e o papel que nele, e em particular em nosso continente, desempenham os Estados Uni­dos, é, pelo menos, capciosa. Ignorar, na questão, a prevalência, sobre supostos princípios humani­tários, dos efetivos e claros interesses estratégico­geopolíticos dos Estados Unidos, é mesmo igno­rância.

E já se pensou que jamais houve a experiência de um pequeno Estado ensinando bons modos a grandes potências, ou será um real determi­nismo que só as grandes potências, isto é, as potências militares, sejam senhoras da verdade, isto é, da verdadeira liberdade, da verdadeira de­mocracia, da verdadeira humanidade, e, para falar em conceito desusado recentemente posto na moda, do verdadeiro liberalismo, que é também, a única verdade sobrante, como o mercado, e nele a lei da selva?

Tomem-se uns poucos desafios humanos, isto é, da humanidade, ao atual senhor absoluto dela, o capitalismo, esse que aí está (o de ponta, dos norte-americanos e .seus associados e dependen­tes, o japonês emergente e seus solidários, o euro-

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peu social-democrata, o capitalismo selvagem ou apenas bárbaro do Terceiro Mundo - que sub­siste como Terceiro Mundo graças ao seu capita­lismo, que é selvagem porque é dono da selva em que prospera, graças às parcas graças do capi­talismo de cima). Ora, os capitalismos, esses que aí estão, estão em crise igual aos socialismos, reais ou imaginários, serviçais dos capitalismos

, ou tentativamente autônomos, chinesmente inde­pendentes ou não, esses capitalismos - com a vitória, esterilizante, sobre os socialismos reais -assume (e queira ou não isso lhe será cobrado) o encargo de pilotar o desenlace das contradições seguintes, na ordem de prioridade, se possível, dele mesmo (e sabemos que não o fará, daí os horizontes de desastres e frustrações para todos os lados):

i 9) A Terra já foi suficientemente maltratada, arrebentada, violentada: é preciso respeitá-la, protegê-la, dignificá-la (como o faziam os povos primevos ou primitivos), reciclando-a (este é o termo), de tal modo que o que dela retiremos a ela devolvamos para que continue a ser a fonte da vida (haverá outra?) em que a nossa vida sub­sista. Se nós, os desenvolvidos, a achincalhamos, a poluímos, a esterelizamos, no nosso passado

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para sermos o que somos, aos subdesenvolvidos lhes cabe (com a nossa assistenciazinha) não re­petir nossos erros: ensinemos-lhes a fazer o que não fizemos ...

2'1) Somos todos como ratos, iguais na biologia terrestre: nada obstante nossos poemas, nossos sonhos, nossos ideais, nossas ideologias, nossos juízos, nossas arrogâncias (sobretudo estatais e transnacionais e das suas autoridadíssimas), fo­mos vítimas de nós mesmos: cada um de nós (se não é suicida impotente, suicida vocativo) sabe que viver (nem especulemos) é (ou pode, ou deve ser) bom. Num dado momento, a ciência desenvolvida (Europa, século XIX) descobriu o jeito de enfrentar a alta mortalidade infantil, a baixa média de vida, a forte letalidade infecciosa. Desenvolvendo a fundo a medicina preventiva, a medicina curativa, a medicina antiepidêmica, a medicina antiendêmica, que a ameaçavam (a ela, humanidade desenvolvida, porque tinha de ter seus prepostos nas sete partes do mundo, os quais, retomados, poderiam trazer-lhes as ma­zelas do mundo colonial), resolveu, generosa­mente, sanear o mundo e descobriu nisso uma nova fonte de renda com suas indústrias farmaco­paicas monopolizadas. Num desgraçado mundo

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desequilibrado totalmente pelas estupidezas do colonialismo, seus remédios desenvolvidos fo­ram aos poucos debelando os desequilíbrios sa­nitários, as epidemias, as endemias, que, nada obstante tudo, eram os calibradores e equilibra­dores demográficos por excelência. Nos centros em que essas ciências se desenvolveram, elas fo­ram recebidas com bênçãos conscientes, já que derivavam de um caldo de cultura coletiva em que parir já era um problema econômico-social e ético - como acrescentar alguém que vinha desequilibrar o grupo familiar, na sua alimen­tação, educação, instrução, recreação, fruição? Mas nos Nordestes do mundo, onde se pariam dez, doze, catorze, vinte, com oito, seis, quatro sobrevivos, começou-se a parir dezoito, dezes­seis, com doze, oito sobrevivos. Eis uma assis­tência tecnológica, ou técnica piedosa que é uma das contradições aparentes universais do mundo moderno. E sem nenhuma impiedade, pois que o primeiro mundo quis mesmo foi defender-se da<> praga<> brotadas na<> imundícies do Terceiro Mundo que pudessem generalizar-se - e afinal a AIDS é do Terceiro Mundo? Hoje o Primeiro Mundo "ajuda" o terceiro a "corrigir" essa disfun­ção. Como? Colaborando na sua dignificação do

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caldo de cultura que possa dignificar a função de ser mulher, de ser homem, de se reprodu­zirem fora do opróbio, dando-lhes consciência dos seus atos? Não! Usando dos subterfúgios dos dius, das castrações, das laqueações - quase sempre sobre mulheres a que escapam as signifi­cações dessas intervenções não desejadas por ela-;, em geral na idade fecunda em torno dos 16 e 40 anos, como já se afirma que ocorre com mais de 40% da feminilidade pobre brasileira. Somos ratos, sim, mas os há premiados por Deus e os há abençoados pelo Diabo - com muito maior militância deste.

39) Somos todos, como ratos, igualmente glu­tôes e, quando aparentemente não o somos, é que uns são tão mais glutões (ou se situaram em avanço na glutonaria) do que os outros, que a comparabilidade passa a ser risória ou irrisória - indiferentemente. É baldado absolutizarmos a democrada, que nunca será efetiva, sem um mínimo de igualitarismo. A esse mínimo, que nas condições relativas concretas pode ser um quase máximo - alcançou o Estado socialista cubano, nada obstante o cerco, nada obstante o bloqueio, nada obstante a permanente ameaça de invasões e de destruição militar, acenados pela

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maior potência militar do mundo. Se é um míni­mo, não é tudo, mas é uma parte sem a qual não se constrói nenhuma liberdade. A selva selva­gem do liberalismo, como sinônimo de demo­cracia, é igualar - legalmente - o Lúmpen, ou o mais despojado ser paleolítico com o plutocrata - o que, literalmente, come (no Brasil, por exemplo) uma refeição que vale quinhentas mil refeições proletárias; é supor que, havendo essa igualação caricaturalmente jurídica ou legal, a de­mocracia é o máximo valor humano - quando todos sabemos que para as imensas massas huma­nas ela nada significa efetivamente, porque não pode fugir do círculo de ferro da iniqüidade, pois todos temos a obrigação - se não manco­munados com a hipocrisia social dos arautos dos desenvolvidos - temos a obrigação de sentir que não é assim, se tal democracia é o despoja­mento do mínimo vital de igualitarismo e, mais, do mínimo vital de respeito e amparo mútuo.

49) Uma das maiores conquistas humanas, bus­cada tão longa e sacrificadamente, vem sendo a igualdade soberana dos Estados (nada obstante a desigualdade econômica e militar, desconsi­derada), com o respeito mútuo entre eles e o princípio de não-intervenção e mesmo de não-in-

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gerência de um Estado nos negócios internos dos outros, mesmo quando haja num deles qua­dros insuportáveis de não-solidariedade, de não­igualdade, de não-liberdade entre os seus habi­tantes - veja-se que invertemos o lema revolu­cionário. A que títulos, assim, os Estados mais fortes (pois nunca ocorreu o inverso, repete-se) se permitem postular- e muito freqüentemente -praticar a intervenção e a "ingerência nos mais fracos - seja sob que pretexto for? Se a pretexto de que o outro pratica as infâmias mais torpes -por que intervir, já que a torpeza acaba vencida pela não torpeza na própria terra em que ambas medraram? E qual é o liberalismo real, o socia­U,Smo real, o capitalismo real, a democracia real que tem o direito de arvorar-se em árbitro de si mesma para assumir esse arbítrio? A sociedade das Nações, as Nações Unidas, as societates dos iguais conspurcadas pelo mais igual - como é o caso do Conselho de Segurança pusilâmine ante o iracundo Pantocrator contemporâneo, cu­ja cirurgicidade mata em horas mil seres huma­nos para cada um dos seus que caem em opera­ções acidentais?

A que título os Estados Unidos da América po­dem querer destruir a ditadura de Fidel. se o

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povo aí medrado vem criando, para a universa­lidade de sua população, condições de saúde, alimentação, educação, alojamento, locomoção, recreação, sanidade mental, sanitaridade social, esponividade - isto é, um todo cuja parte nos é prometida para parte de nossa população quan­do formos a ponta do Primeiro Mundo - sem prostituir-se, acanalhar-se, jogatinar-se, crimina­lizar-se..Jtbandalhar-se? Se o povo cubano, único senhor de seu destino, não deseja essa interven­ção, antes aceita os sacrifícios crescentes para assim conservar sua opção? Detentor do pólo único do poder, es.se Pantocrator não vê que tem racismos, discriminações abjetas, minorias esquálidas em miséria absoluta, desempregos, su­bempregos, mazelas criminais que o fazem o maior depósito absoluto e relativo de condena­dos e a população do mundo com o maior per­centual de doentes mentais? E quer arrogar-se árbitro do mundo, em cuja infelicitação colabora, ao invés de "ajudar" como despudoradamente alega?

Nem a liberdade, nem a democracia, nem a igualdade, nem a fraternidade, nem o império da lei - se respeitado - podem coonestar os crimes políticos, sociais, éticos, os infanticídios,

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os genocídios - que pervadem o mundo inteiro e que os meios de vigilância das forças autentica­mente democráticas do mundo vêm cada vez mais denunciando. Cuba vem sendo muito bem vigiada a tal respeito e soube desvencilhar-se até com sagacidade, exportando as mazelas que nela perduraram da podridão social em que vivia antes da sua revolução. Agora, alega-se C e um leitor do JB o fez por duas vezes) que Cuba é um perigo, como o foi o Brasil sob o militarismo recente: ao levantar-se a censura e o arrocho, descobriram-se aqui milhares de corpos de cida­dãos trucidados. É um argumento aparentemente válido. Mas se os meios de detecção dos crimes que os Estados Unidos da América têm sobre o mundo inteiro, e só não denuncia quando não lhes convêm - não denunciaram C como lhes conviria tanto) esses crimes em Cuba, será válida a hipótese ou será uma coonestação gratuita de apoio ao ódio contra Cuba?

Cuba realiza em nosso continente uma expe­riência inédita de socialismo, que desejamos ver preservada, isto é, à mercê tão-somente de suas forças endógenas. Mas não é por isso que defen­demos sua integridade. Cuba representa uma ex­periência vitoriosa de revolução nacional condu-

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zindo o país a níveis superiores de desenvol­vimento, e seu povo à fruição de um modelo de igualitarismo que precisa ser testado em todas as suas conseqüências. Mas não é por isso que defendemos sua integridade. Defendemos Cuba porque, simplesmente, e fundamentalmente, de­fendemos o direito de seu povo à autodetermi­nação, o direito de escolher o seu destino. Ou, aquele direito do peixe da fábula... O mesmo direito que todos nos atribuímos, de nós mesmos, brasileiros, construirmos o nosso destino, apesar dos regimes militares, de nossas ditaduras, de nossos golpes-de-estado, de nossa monstruosa iniqüidade social, o mesmo direito que todos defendemos para todos os povos da União Sovié­tica. O Iraque- como o Kuwait, a Arábia Saudita, os Emirados e etc. e etc. - é governado por uma ditadura sanguinária que tem levado o seu povo a uma pobreza crescente. Nem por isso reconhecemos o direito que o maior exército do mundo se quer auto-atribuir, de riscá-lo do mapa e dizimar sua população. Direito que não é dado nem pode ser dado a quem quer que seja para invadir seja a Arábia, seja o Kuwait. Seja a Iugoslávia convulcionad:a, seja a África do Sul racista, sejam os países bálticos, em sua secessão unilateral.

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Existe a voz do futuro - se o futuro houver e mesmo se não houver o futuro, e dirá que uma clique dirigente houve que não vacilou ein jogar sobre um povo (estranho povo, pois que amarelo e de olhos oblíquos) uma bomba que, desnecessariamente (pois era um povo já venci­do), matou 120 mil pessoas (é verdade que ama­relas e olhioblíquas) em alguns segundos; e o fez uma outra vez, mais desnecessariamente ain­da (e assim se tomando na única sociedade huma­na que utilizou a bomba atômica contra seres humanos, nos dois casos únicos populações civis de duas cidades desarmadas); e o fez mais torpe­mente ainda - sob forma de guerra conven­cional - , numa hecatombe de 200 mil pessoas ou seres humanos ou mais propriamente ratos, com a seqüela de meio milhão de morituros; ou melhor, de subseres hu~anos, ou melhor, de ratos, de ratos, de ratos. Entre uma e outra grandes hecatombes e outras hecatombes meno­res, o genocídio em que se converteu sua tenta­tiva de fazer dobrar o povo vietnamita, porque, ele então, como os cubanos ainda agora, teimava em resistir à imposição militar-colonialista dos valores mercadológicos de Wall Street.

Que essa clique tire as mãos de sobre Cuba, que o seu povo - o bom homem comum da

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América - torne a si livrar-se da torpe curriola que o liberalismo e o dernocratisrno plutocrático vem continuamente pondo à sua frente para a infelicidade geral dos povos do mundo inteiro. Pantocrator iracundo e insano ...

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Variações em torno de uma esquecida

questão de valores

A festa - comunicacional - com que se está celebrando a arrasadora vitória do capitalismo sobre o socialismo vai virar - muito em breve -fonte de grandes frustrações, decepções e arre­pendimentos (Ainda não estamos falando na ex­plosão dos nacionalismos, dos racismos, das exa­cerbações étnicas refazendo, ou fazendo em pe­daços, o mapa da harmonia européia). E isso ocorrerá simplesmente porque- apesar de pon­derações e interpretações sérias desta grave con­juntura histórica - não se conceitua que capita­lismo e que socialismo estão em causa. Tal como se apresentavam no momento em que se inicia­ram a perestroika e a glasnost, o capitalismo de ponta- o vencedor -era literalmente belicista,

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concentrador da riqueza social em mãos de seus magnatas e suas multinacionais, vocativamente intervencionista, protecionista (internamente), antiprotecionista (externamente), "ajudantista" (com dividendos e lucros e juros extorsivos práti­ca e teoricamente impagáveis) e condicionaliza­dor ("a boa regra é a minha, para mim e para os outros"). O socialismo, por sua parte, não era bem socialismo, era o socialismo real, ou era o socialismo de Estado, ou era o capitalismo de Estado, era o neoestalinismo, era o autoritarismo, era o totalitarismo.

Omite-se que a gravidade da conjuntura deriva do fato de que os diversos modelos sociais em confronto estão em crise - e crise grave. Num espectro que vai de sociedades altamente capaci­tadas para produzirem certas coisas (mas não outras), passando por certas sociedades incapazes de produzir muitas coisas, indo a certas socie­dades que podiam produzir o bastante para uma sobrevivência decorosa mas impotentes para se defenderem das intromissões perturbadoras ditas civilizatórias, e chegando a sociedades em franca via de degradação cultural ou de sobrevivência, a humanidade acusa um quadro que vai do capita­lismo avançado, mas perdurantemente selvagem,

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a formas residuais neolíticas ou mesmo paleolí­ticas, violentamente espezinhadas. Nisso, há duas dinâmicas: a atração propagandeada do pólo de­senvolvido por todos os demais elementos das massas intermediárias que cooptam as massas in­viáveis e uma rejeição prática inconfessa do pólo desenvolvido em face das massas - numa pro­porção que vai de um para cinco - seja, um bilhão dito desenvolvido, contra cinco bilhões ou quase o resto. Há matizações, por certo, que faremos oportunamente.

Nesses dois últimos conceitos acima referidos - o autoritarismo e o totalitarismo - estavam e estão as grandes discrepâncias histórico-con­ceituais, e realopráticas: o autoritarismo era a não­democracia, o totalitarismo era o partido único: contra essa hediondez (que não se busca aqui negar em sua eventual essência, se as há), afirma­vam-se as virtudes opostas, as virtudes capitalistas opostas: o multipartidarismo (embora formal, na ponta, reduzindo na prática a dois partidos essen­cialmente parelhos, discrepantes apenas na go­vernança ou governo ou cargos, mas não na go­vernabilidade, graças a uma constituição burgue­sa imutada há duzentos anos) e a (conseqüente) democracia ou democratismo ou democraticida-

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de social- direito de opinar, direito de optar, direito de divergir, direito de votar (entre dois, essencialmente iguais), direito de reconhecer que esses e outros direitos eram explícita e impli­citamente reconhecidos (direito de drogar e/ou drogar-se, direito de prostituir e/ou prostituir-se, direito de criminalizar e/ou criminalizar-se, direi­to de explorar e/ou ser explorado, direito de ser macho contra fêmea (aqui o inverso não se admite)- com o contraposto universo de "rei­vindicações" - anti-racistas, antimachistas, anti­patronais, anti-o-que-se-quiser, nos limites inó­cuos dos direitos teóricos).

Estamos, assim, no reino das essências: toda a imensa gama de divergências e discrepâncias e dissonâncias e lutas que lavram em toda as sociedades de classe (no momento, residuais, há ainda algumas poucas sem classe, absolutamente perecíveis, que devem representar alguns poucos milhões de seres periféricos marginalizados ou em vias de extinção, como os duzentos mil (nem tantos!) brasílicos, supérstites de mais de seis ou sete milhões) - toda essa imensa gama de diver­gências se cifra em haver ou não haver demo­cracia, visceral, essencial, fundamental na socie­dade que seja considerada.

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Esse conceito - filosófico, político, econômi­co, ético, administrativo, operacional - , que ori­ginalmente se opunha ao de aristocracia, sempre foi equívoco, mas buscado há dois mil e quinhen­tos anos pelo menos: democracia e aristocracia se opunham, na pólis grega, de decisões popu­lares por consenso ou voto de aclamação, a deci­sões tomadas sem consulta daqueles sobre os quais elas incidiam. Até hoje esses dois conceitos buscam sua corporificação, pertinentemente e conceitualmente (repitamos), que nunca foi atin­gida igualmente de sociedade para sociedade, de nação para nação, de nacionalidade para nacio­nalidade, de povo para povo (de cidade para cida­de, de bairro para bairro, de profissão para profis­são, de estabelecimento para estabelecimento, de família para família ... ).

Respigar nestes dois mil e quinhentos anos (e, mais procedentemente, nestes oito mil e qui­nhentos anos) onde, como e quando se logrou certa democracia aproximativamente democrá­tica vem sendo obra dos historiadores - embora todos os sábios (se os há) sempre sonharam que essa busca foi e é controversa, mas deve incessan­temente ser feita- como quem incessantemente busca a linha do horizonte - na teoria e na

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prática - e são sábios democratas, porque, de outro modo, ditam o que houve e o que há.

Na ponta, a democracia burguesa pratica a ne­gação do que prega C e não estamos insinuando que o "socialismo real" não o fez ou não o fez também): pratica a exploração do homem pelo homem, coonestada pela igualdade C em verdade, pseudo-igualdade) dos direitos, dos cidadãos pe­rante as leis: há, em verdade, na burguesia, ho­mens C e mulheres, e até crianças, tão bem são educadas) que crêem- sincerissimamente­que nasceram melhores, que nasceram melhores ou que foram melhormente abençoados por Deus, pela sorte, pelo Diabo, pelo Acaso, pelos caprichos de Goya, em suma, estão convictos de que há homens e homens C e mulheres e mulhe­res) superiores, havendo-os (infelizmente em muito maior número) inferiores. Em última aná­lise, isso não foi praticado por acaso pelos domi­nantes: os holocaustos, os genocídios, os infanti­cídios, as castrações sempre foram praticadas pe­los superiores C os exemplos em contrário sem­pre são qualitativa e quantitativamente meras con­firmações do asserto, mas inversamente propor­cionais).

Na verdade, desde sempre - com materia-lização ideal proposta no lema da Revolução Fran-

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cesa -, na verdade, o lema da Liberdade, Igual­dade, Fraternidade, se quiserdes, para uma fór­mula menos agressiva aos brancos C como podem ser fraternos de amarelos e negros?), liberdade, igualdade, solidariedade, foi o lema concretiza­dor da liberdade: a burguesia revolucionária fran­cesa não sem razão para si mesma buscou soropor a igualdade à realização da liberdade C de merca­do, de exploração do homem pelo homem, de seus direitos - com um mínimo de contrapar­tidas para os demais), desde que legal , pospondo os problemas da fraternidade, isto é, quando hou­ver tal abundantismo que suas sobras possam ser prodigalizadas: há muito que o bolo cresce, mas sempre insuficientemente para quatro quin­tos da humanidade.

Entretanto, esse é o problema humano que o capitalismo triunfal, ou triunfante, ou triunfa­lista, herdou e não saberá encaminhar - longe, assim. de sequer pretender resolvê-lo.

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Manifesto dos cem*

A discussão em torno da natureza política do governo de Cuba deve levar em conta que todos os governos de todos os Estados do mundo são perfectíveis, não cabendo a nenhum o direito de erigir-se como padrão aos demais e querer destes que o sigam à sua imagem e semelhança.

Mas Cuba, por seu povo, por sua soberana von­tade de não aceitar ingerência ou intervenção nos seus negócios internos, dá ao mundo- ainda que nos limites de seu território e população - uma lição de dignidade, desenvolvendo um programa social sem precedentes na moderni-

• Um grupo nde intelectuais brasileiro liderados por Oscar Niemeyer (o PSB esteve presente nas articulações por inter­médio de Antônio Houaiss e Roberto Amaral) iniciou um movimento de âmbito latino-americano de solidadiedade ao povo cubano. Na sua fase brasileira esse movimento foi inau­gurado com o lançamento desse manifesto, que, todavia, não logrou divulgação ou registro pela imprensa brasileira.

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dade, se levadas em conta as deficiências de seus­recursos materiais e o estado de exploração cultu­ral sob os quais iniciou a construção de sua socie­dade socializante.

Por esse motivo, respeitamos e saudamos os avanços que Cuba conseguiu nas questões básicas -educação, em todos os níveis, pleno emprego, saúde, igualitarismo, solidariedade -, certos de que seu caminho, o caminho próprio dos cuba­nos, deve levar esse povo a formas políticas e sociais mais perfeitas, dentro do ideal até hoje não atingido por povo ou nação alguma do mun­do, o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade ou solidariedade.

Cuba é, assim, para povos como o brasileiro e de modo geral subdesenvolvidos ou depen­dentes, símbolo da dignidade política e social - imperfeita, é lógico, mas aperfeiçoável, como se vê da coragem com que seu povo vem supe­rando os obstáculos que tem tido pela frente.

Salvo um obstáculo, contra o qual não estamos de acordo e por cuja razão nos solidarizamos publicamente com o povo cubano.

Não é lícito, não é moral, não é digno, não é decoroso, não é honesto, não é democrático, não é justificável, não é decente que a só Grande

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Potência do mundo - que convive com certos governos torpes mas por ela tolerados ou mesmo acarinhados -se enraiveça contra Cuba, impon­do-lhe embargos e bloqueios nas suas relações com o resto do mundo. E nós brasileiros temos ainda a defender a nossa Constituição, que patro­cina, nas relações internacionais de nosso País, os princípios da independência, a prevalência dos direitos humanos, a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a igualdade entre os Estados, a defesa da paz, da solução pacífica dos conflitos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade.

Tememos, com justo motivo, após a tragédia de Hiroshima, de Nagasaki, do Vietnã, do Iraque, que os dirigentes norte-americanos, na sua fúria de exibir seu poder bélico incontrastável- entre em ação genocida ou pelo menos etnocida contra Cuba e os cubanos.

Ao fazê-lo , vemos na linha do horizonte próxi­mo os arreganhas externos sobre nossa Amazô­nia, nossas riquezas naturais, nossos valores cultu­rais.

Ao apoiarmos os cubanos e seu direito de se aperfeiçoarem sem ditames externos ou embar-

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gos e bloqueios, somos movidos pelo nosso amor e respeito ao Brasil e aos nossos conterrâneos.

Por todas essas razões, conclamamos o povo brasileiro a manifestar seu repúdio ~ ameaças que pairam sobre o povo cubano.

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COMISSÃO EXECUTIVA NACIONAL DO PARTIDO SOCIALISTA SRASILEIRO

Deputado Federal JAMIL HADDAD- Presidente Deputado Federal MIGUEL ARRAES - Primeiro Vice-Presidente ADEMIR ANDRADE --,Segundo Vice-Presideote RAQUEL CAPIBERIBE- Terceira Vice-Presidente ROBERTO AMARAL- Secretário-Geral Deputado Federal JOSÉ CARLOS SABÓIA- Primeiro Secretário RENATO SOARES - Segundo Secretário Deputado Federal ULDURICO PINTO- Primeiro Tesoureiro Deputado Federal CÉLIO DE CASTRO- Segundo Tesoureiro Vereador RONALDO LESSA- Vogal Vereador LEOPOLDO PAULINO - Vogal Deputado Estadual BETO ALBUQUERQUE -Vogal WALDO SILVA - Vogal Lide r do Partido na Camara dos Deputados- JOSÉ CARLOS SABÓIA Uder do Partido no Senado Federal -JOSÉ PAULO BISOL

Suplentes

MÁRCIA ALMEIDA MACHADO -Primeira Suplente

RUI MAC~DO- Segundo,Suplente

Secretaria-Geral do PSB Camara dos Deputados - Anexo 11 - 2• andar - Sala 29 CEP : 70160 - Brasllia - DF Te i. : (061 ) 224-8493 e 311 -5198