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MEMÓRIA E PATRIMÔNIO CULTURAL DE CATAGUASES Volume 3

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M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L D E C ATA G U A S E S

Volume 3

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M E M Ó R I A E P AT R I M Ô N I O C U L T U R A L

D E C ATA G U A S E S

Vo l u m e 3

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2 ª E D I Ç Ã O – 2 0 1 2

Organização e Coordenação: Paulo Henrique Alonso

Pesquisadoras (1ªedição): Gláucia Siqueira, Mariana Cândida Garcia Cardoso Almeida

Auxiliares de pesquisa (1ªedição): Irenilda R.B.R.M. Cavalcanti, Luciana Ferreira de Oliveira,

Maria Aparecida Torre Barcelos

Entrevistadores (1ªedição): Gláucia Siqueira, Hedileuza Maria de Oliveira Valadares, Hélvia Peres Cordeiro, João Carlos Juste, José Luiz Batista, Maria José de Oliveira Paula, Mariana Cândida Garcia Cardoso Almeida, Mônica

Machado da Silva, Rosângela Schettini Rodrigues

Coleta material iconográfico: Marcela Andrade da Silva

Design: Birte Paetrow, Gustavo Baldez, Holger Melzow

Infraestrutura e tecnologia: Américo Vicente Sobrinho

Plataforma de rede e internet: David Azevedo, Danilo Marinho

Comunicação: Beth Sanna

Produção: Bárbara Piva

Gestão administrativo-financeira: Djalma Dutra Jr, Geisiane Marinho de Lima

Ficha Catalográfica elaborada pelas Bibliotecárias:Carla Viviane da Silva Angelo – CRB-6/2590.

Edna da Silva Angelo – CRB-6/2560.

Memória e patrimônio cultural de Cataguases / Paulo Henrique Alonso (Coord.). – 2 ed. – Cataguases / MG: ICC, 2012.

272 p.: il. pb. – (Memória e patrimônio cultural de Cataguases; III)

ISBN: 978-85-65550-02-4

1. Memória Oral. 2. Patrimônio Cultural. 3. História. 4. Cataguases / MG. I. Alonso, Paulo Henrique. II. Instituto Cidade de Cataguases – ICC. III. Título.

M533

CDD: 981.5

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Este é o terceiro volume, em 2ª edição, da série que registra a memória oral de vários personagens da ci-dade de Cataguases, Minas Gerais. Ele é parte de um projeto iniciado em 1988 pela Prefeitura Municipal de Cataguases e pela antiga Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Fundação Nacional pró-Memória.

Aqui, damos continuidade e retomamos o tra-balho original, com a produção periódica de novos exemplares e a reedição dos volumes publicados an-teriormente. O propósito é que tenhamos, de forma sistematizada, registrada e divulgada a memória da-

A P R E S E N TA Ç Ã O

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queles que fizeram e fazem a história da cidade e que possamos, assim, contribuir para a preservação da memória local.

Neste volume estão 12 relatos, colhidos entre 1988 e 1989 e publicados em 1996. Como na edição anterior, o texto privilegia a fala própria dos entrevis-tados, regendo-se mais pelas regras da comunicação oral do que pelas normas da escrita. Na reprodução das fotos, as autorias e datas que não foram identi-ficadas estão citadas nas suas respectivas legendas como s/a e s/d.

Esta publicação está também disponível, em formato PDF, para download gratuito no sítio eletrô-nico www.fabricadofuturo.org.br.

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AMÉLIA GOMES FERNANDESTecelã, 80 anos

31

A M É L I A L A N D Ó E SDiretora de Escola, 75 anos

53

J O Ã O K N E I PEletricitário, 80 anos

75

M A R I A D A G L Ó R I A A LV E S S I LVA Dona de Casa, 90 anos

97

M A R I A M A G A L H Ã E S P E R E I R ATecelã, 67 anos

Í N D I C E

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M A R I T A G U I M A R Ã E S C O S T A C R U ZDona de Casa, 74 anos

145

R E N A T O T E I X E I R ABancário, 70 anos

169

S E B A S T I Ã O L O P E S N E T O Pastor Metodista, 70 anos

191

S Í LV I A M E N D O N Ç A L E I T E ( D O N A V I C A ) Dona de Casa, 85 anos

209

S T E L L A A B R I T A A LV E SProfessora Aposentada, 77 anos

233

T E O D O R I C O T E I X E I R A C A R D O S OFerroviário, 83 anos

245

T E R E Z I N I M A S S E N A G U I M A R Ã E SProfessora Aposentada

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A M É L I A G O M E S F E R N A N D E S

T E C E L Ã

8 0 a n o s

Eu nasci em 1911. Nasci em Ponte Nova, mas vim pr ’aqui pequena e morei em Camargo, no sítio da minha avó: minha avó tinha sí-tio a meia. Agora não tem mais nada lá não. Acabou tudo. Mas nós vivemos lá muitos anos. Vim pr’aqui pequena e fiquei até fazer três anos. Eu fui parar em Cachoeiro do Itapemirim, depois viemos pr’aqui, vim com uns doze anos. Ficava na roça. Acho que pa-pai veio de Juqueri, um lugar que ninguém nem ou-ve falar dele. Em Ponte Nova, logo que ele casou tra-balhou na roça. Meu pai, deixa eu ver, acho que teve quatorze filhos. Foi uma porção, mas são sete vivos.

Foto: Interior da Fábrica de Tecidos, Alberto Landóes, início séc. XX, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de

Cataguases

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Morreram todos assim com um ano, um ano e meio. Morria tudo! Depois vingou... da Aparecida pra lá acho que vingou quatro ou cinco. E nós somos sete ir-mãos vivos. Tem o Zé Mole, o pai da Carminha; tem a Aparecida, mulher do Osvaldo e pai da Marilene. A mãe da Marilene é minha irmã e tem uma também que mora lá no Haideé Fajardo, também é viva. Sei que nós somos sete irmãos. O Zezé toda vida viveu de negócio. E depois têm os outros. Um trabalhou aqui na Manufatora muito tempo. Depois foi embora pra São Paulo, arrumou tudo, lá ficou, lá trabalhou, casou e veio embora pr’aqui. Mora aqui. O outro tá lá até hoje. Minhas irmãs moram por aqui mesmo. Uma está até morando na Vila Reis, outra no bair-ro Haideé Fajardo. A da Vila Reis a casa é dela; a do bairro Haideé, não é não. E a Aparecida do Osvaldo, quando casou ficou lá pra São Paulo muito tempo. Depois voltou. Agora foi pra Juiz de Fora. Meu pai trabalhava na roça mesmo. Plantava, fazia planta-ção: minha vó também ajudava, tinha uma tia que ajudava também. Aí fazia tudo, não comprava nada. Só comprava as coisas que não podia mesmo fazer em casa.

Depois nós começamos a andar... minha vó vendeu o sítio porque ela não podia continuar tam-bém. Aí nós ficamos andando. Eu fui pra todo lugar,

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até que papai arrumou serviço no Nogueira, traba-lhou na fábrica de macarrão. Talvez cê lembra dele: Raimundo Carroceiro. Ele trabalhava de carroceiro. Trabalhou de carroceiro muitos anos, até quase fi-car muito velho. Trabalhou de carroça muitos anos. Depois da carroça pegou a charrete... Ele já não aguentava mais fazer muita coisa, né. Ele também não aposentou depois de velho... Aposentou agora, depois que começou esse negócio... Funrural. Aí ele aposentou por bagatela, né. Ele morreu com oitenta e seis anos. Carregou muito saco nas costas... Ele fa-zia tudo com a carroça... Não tinha tanto caminhão, né. Ele ficava ali na estação esperando os trem de carga. O Expresso chegava, vinha viajante... O viajan-te pegava as coisas, ele entregava. Trabalhou muito com viajante... Trabalhava... Mamãe cuidava da casa e fazia muitas... Assim... negócio de flor pra mês de Maria, coroa e flores para o cemitério: quando morria uma pessoa, às vezes encomendava. Então ela fazia muita coisa pra fora. Ela fez muita coroa... papel, pa-no, passava na pena fina. A coroa dela era muito bem feita, muito bonita! Ela fez muita coroa mesmo, pra essas meninas tudo que coroava aí... engomava os panos, fazia coroas, e ainda, às vezes, pegava umas costurinhas pra fazer. Tudo isso ela fazia. Ajudava, porque o papai sozinho trabalhando para sustentar

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os filhos todos... Naquele tempo tudo era difícil, mas difícil mesmo! Depois eu comecei a trabalhar tam-bém. Ganhava mucadinho melhor. Eu ganhava, a Rita também ganhava, a Mira ganhava e aí foi melho-rando mucadinho. Ajudei bem em casa... trabalhava em casa. Fazia todo serviço de casa. Todo serviço de casa eu fazia... logo depois eu casei, com 23 anos acho. E aí continuou tudo em casa. Os meninos, ma-mãe, o papai. Nós moramos juntos até ele morrer.

Aqui, sabe onde que eu morei? Ali, defronte o (Grupo Escolar) Guido Marlière - nem o Guido não tinha nessa ocasião - tinha uma casinha de sapé, lá no canto. Então nós morávamos ali, numa casinha de sapé - era do Dr. Lisupi, irmão da Dona Luiza Villas

- na beira do córrego. Nesse tempo o córrego não era direto, ele fazia aquela curva assim e nós morava ali. Nem era a avenida que tá alí (hoje). Logo depois fi-zeram o grupo e logo já começou a aumentar. Nós fomos na festa do dia da pedra fundamental do gru-po. Até, me parece, que foi o governador... Acho que o Antônio Carlos veio. Foi uma festa daquelas! Uma das maiores festas que eu vi aqui em Cataguases foi aquela!

E dali é que eu entrei pra fábrica... O ano não me lembro... Eu entrei pra fábrica foi em (19)28... Não sei se foi, não sei. Tinha feito a pouco tempo, aque-

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las casinhas ali atrás da fábrica. Aquele meio de casas. Aquele meio dali daquele morro de pedra. E ali eles me deram uma casa. Ali pagava acho que quinze mil réis... O Seu Lisupi foi embora pra São Paulo... Nós ficamos ali. Trabalhava na fábrica e morava naquela casa: pagava, quinze mil réis, com luz. Eu tava e mi-nha irmã também entrou... entrou com doze anos pra fábrica. O contramestre não queria dar a ela o servi-ço. Depois ele adoeceu e aconteceu que ela entrou. Quando ele voltou, não mandou ela embora não. Eu morei ali, depois fui lá pra perto da fábrica, nessas casas novas, e de lá eu passei pr’aqui, pra essa ca-sa aqui onde mora o Bitoca do Serafim Barata, sabe? Nós viemos pr’ali; e ficamos morando ali uns tempos. Depois, de lá vim pr’aqui. Aqui também é da fábri-ca. Esta casa é da fábrica. Tem cinquenta e um anos que eu moro aqui... Eles davam pros operários... Mas agora já pediram essas casas... mudaram muita gen-te... já tem uns seis anos que eles pediram, mas nós... Mas a gente... pra onde é que a gente vai? A gente só tem que ficar é aqui mesmo! Aí eu falei: - Eu já tô com oitenta anos, deixa eu morrer primeiro...

Mas ali não tinha casa, não tinha nada. Era uma roça no tempo do Chico Leonardo. Aquilo ali era do velho Leonardo. E ali defronte, onde é aquelas casas, onde é a Vila Raimundo - que eu nem sei se

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tem o nome ainda, acho que não tem mais não - ali tinha um correiozinho de casa. Nesse correiozinho de casa morava o senhor Lisupi... Tinhas uns pra cá... O Senhor João, que era ferrador de roda de carroças, era ferreiro. Acho que era ferreiro. Morava ali tam-bém. E nós... morava atrás da casa, tinha que passar pelo beco. E aquele córrego passava atrás da nossa casa, passava assim... fazia aquela volta e vinha pra cá. Não passava direto conforme passa (hoje) não. Era brejo e água pra todo o lado!

Ali é muito bom. É um dos lugares que a gente tinha vontade de morar. Ou ali, ou então na Granjaria. Tem uns quarenta e cinco anos, mais ou menos, a gente olhava: suspendia uma casa. Cada dia que a gente olhava suspendia uma casa! E até ho-je ainda tão suspendendo casa ali! A Vila Domingos Lopes era uma coisinha pequena. Era muito pequena mesmo! Agora progrediu... Quase que são duas ci-dades, ou três, porque lá na Taquara Preta também... Aquilo lá também... Mas lá eu só fui uma vez... Fui lá de passagem... É muito difícil porque... nem sair de casa, quase, eu saio. Na Vila... comerciante que ti-nha aqui era o Seu Pandeló, sogro da Ana. Ele tinha negócio de mantimento e também de pano. Ele tinha bastante coisinha... era ali defronte a loja Estrela, na-quela casa alta que tem alí... mucadinho pra cá, onde

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agora estão fazendo banco... por ali afora... era ali a loja do Seu Pandeló. A casa de cá era da mulher de-le... Acho que ele era casado “segunda vez”... eu não me lembro mais... o Seu Rafael trabalhava ali den-tro, nos fundos, até quando ele morreu... eu ainda tenho uma panela que eu comprei dele. Mas o Seu Rafael tem pouco tempo, né. Não tem muitos anos não... em frente à fábrica tinha um corredor de ca-sa muito vagabundo, que até o Senhor Zé Bonifácio tinha um botequinho lá... Tinha uma casa onde mo-rou o Tanda e mais algum pra cá. Eu não me lembro mais também. A gente não lembra, né. É muita coisa! Muitos anos passam, a gente não lembra. Tem muita coisa que podia... mas não tem jeito mais... não lem-bro mesmo não... eu esqueço tudo! Aqui só tinha es-sas quatro casas... Joaquim Almeida tinha uma casa aqui. Nessa rua aqui onde morou também o Serafim Spíndola, depois morou a dona Maria Vargas... Acho que deixaram essa casa aqui pra pagar dívida lá no banco. As outras repartiram pros filhos. Diz que te-ve uma enchente aqui... Foi até lá em cima também, mas eu não lembro... Lá de cima do Rio Pomba... Eu não me lembro dessa não. Eu só lembro de enchente aqui depois que começou a aterrar essas coisas tudo! Esse Rio Meia Pataca aqui, esse enche à toa! Mas ele também era um rio que tinha muita volta... Fazia vol-

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ta assim... Agora não... Eles cortaram, ele ficou certo, vai direto até lá adiante, mas enche muito! Esse Rio Meia Pataca aqui foi muito aproveitado! A criançada não saía de dentro dele! A criançada tomava banho nele diariamente. Era uma beleza! Agora, depois que essa fábrica de papel sujou acabou o rio. Acabou tu-do! Tem hora que a gente não aguenta a catinga que solta. A água está toda suja, né. Mas aqui era mui-to bom! Os meninos brincavam, muita gente lavava roupa nessa beirada aí... Agora não se pode mais não... De uns tempos pra cá é que deu enchente. A Vila não tinha nada: da fábrica pra cá só tinha a fábri-ca. Depois começou aquelas casinhas que nós mora-mos nela... Fizeram aquelas casas ali. Eu até fui uma das primeiras que morou lá. Cá não tinha quase na-da. Não tinha casa, não tinha nada! Aquele morro ali, do Haideé Farjado era mato. Aquilo ali era mato só! Acho que tem uns quarenta e poucos anos que come-çou aquilo ali. E ficou do jeito que tá! Tem, mais ou menos, uns quarenta e cinco anos...

Tem muita coisa que eu não lembro... Pra falar a verdade foi muito difícil! Além do trabalho, eu pas-seava, brincava muito, saía no carnaval... Brincava carnaval era no “Modesta Violeta”, no Seu Emílio. Cê lembra dele? Não sei se o Seu Emílio ainda é vi-vo. Foi no tempo do Seu Emílio, mas isso há quantos

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anos! Eu era nova ainda, né. Brincava nos bailes, saí no carro, participava nos dias de carnaval. Eu brin-quei muito carnaval. Mamãe não deixava a gente ir sozinha não. Mamãe levava, né. Mas foi há muitos anos... Foi na época que eu entrei pra fábrica. No tempo das crianças eu brinquei muito. Fazia muita farra mesmo! Tive muita regalia, que meus pais da-vam assim, com eles... Papai não, mamãe. Papai não brincava muito não, com mamãe eu tive muita rega-lia. Jogava bola, batia bola, tudo eu brincava! Já es-tava moça quando eles arrumaram esse negócio de basquetebol. Fizeram um campinho ali onde é essas casas novas dos Peixoto. Pra cá tinha um campo, fi-zeram na rua mesmo. No meu tempo de criança eu aproveitei muito!

Eu tenho o primeiro ano só, primeiro ano de Grupo... Coronel Vieira. Foi só o primeiro ano. Não tinha condição, não tinha tempo, não tinha jeito de ir. Não tinha nada: aí fiz só o primeiro ano. Escrevia muito mal, aprendi as quatro contas... Agora eu nem sei mais fazer conta! Trabalhava de dia pra estudar de noite... A gente achava muito... Além de trabalhar lá fora eu ainda fazia muito serviço aqui. Ajudava, eu fazia muito o serviço de casa, porque a gente trocava de turno. A turma que ficava em casa ficava traba-lhando. Não dava para mais nada! Mas eu acho que

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aprendi melhor do que agora. Eu vejo esses meninos aprendendo quarto ano... Eu aprendi melhor! E o que sei hoje é isso... Meus filhos tiraram o quarto ano. A Rita estudou dois anos e parou. Depois de mais ve-lha ela continuou estudando. Fez até a faculdade. O Zezé não. O Zezé estudou até a segunda série. Não estudou mais não.

Eu entrei pra fábrica ainda não tinha 14 anos. Entrei pra fábrica e ali fiquei até aposentar. Trabalhei como tecelã até sair de lá. A gente trabalhava muito, então a gente estragava muito pano! Quando a gente pensava que, no fim do mês, ia receber dinheiro vi-nha os panos tudo nas costas. Dinheiro, além de ser pouco, nós pagava... eles cobravam os panos todos que a gente errava. Pagava e ficava com ele. Então nós não trazia dinheiro quase nenhum pra casa. Aí fi-cava aquela panaiada tudo lá em casa! Trabalhava pe-lo que fazia: se fizesse muito, ganhava muito, se fizes-se pouco, ganhava pouco. Era produção... Mas toda vida trabalhei muito e puxei muito serviço sempre! Eu trabalhava mais e ganhava mais... mucadinho. Ah, aprender, não tive (dificuldade) não. Depois que eu aprendi, até fazer o serviço daqueles contramestre eu fazia! Também eu trabalhava só com o tear liso né, porque não deu pra aprender também o xadrez. Não aprendi de jeito nenhum! Trabalhei uns tempos com

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xadrez, maquineta, mas era ruim. Era muito difícil! No meu tempo às vezes tocava dois, três, quatro tea-res! Acabava uma braçadeira punha a outra. Não da-va tempo pra gente fazer nada. Só andando pra lá e pra cá, mudando braçadeira, troçando... às vezes, re-bentava da lã, ficava vago de cá. Naquele tempo era muito ruim... às vezes o encarregado não tinha tempo de olhar, ficar perto da gente... Atrapalhava a engre-nagem, quebrava a peça. Aí ficava parado. Eu gosta-va muito de trabalhar quando a tecelagem estava boa mesmo, dando produção, eu gostava... Mas quando parava um mucadinho, eu achava ruim... Se tivesse boa produção ganhava bem mais. Às vezes, o tear da maquineta ficava parado uma porção de dias... Eles pelejando com ela. Ela ficando parada a gente não ta-va ganhando. Eu trabalhava já de turno trocado, por-que na ocasião que nós entramos era assim. Quando tinha muita coisa, muito pedido, nós trabalhava qua-torze horas. Trabalhava das seis às dez da manhã. Às dez saía pra almoçar e voltava às onze. E saía as cin-co pra jantar e voltava e saía as dez da noite... Isso, quase a semana inteira. Só ficava dois dias em casa... Mais pro fim do ano fracassava o serviço, aí nós tra-balhava só quatro horas por dia. Uma semana inteira quatro ou seis horas. Ia assim uns dois ou três me-ses, depois consertava outra vez. Depois começou

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as duas turmas... Atrapalhou muito porque até que aprendia uma, a outra tava tendo prejuízo. Aí, não fazia quase nada porque tava sempre arrumando o tear, arrumando as coisas pra outra turma entrar. Foi muito ruim trabalhar ali naquela ocasião.

O patrão era mesmo o Senhor Manoel Peixoto. Nem o doutor Francisco trabalhava lá ainda. Depois que o doutor Francisco formou é que voltou pra tra-balhar lá. Era o doutor Manoel, Senhor Altamiro, o João Peixoto, que de vez em quando estava lá tam-bém... E os encarregados era o Serafim Spíndola, Senhor Werneck, que já morreu também há muitos anos, né. O Serafim era encarregado de uma parte da fábrica, e o Senhor Werneck era da tecelagem, onde eu trabalhava. O Onofre foi bem depois. O Onofre também da tecelagem. Ele era muito bom pra mim. Não tenho o que queixar. Eu não tenho o que queixar de nenhum deles, graças a Deus! Eu gostava muito deles. Eu gosto até hoje porque eles todos me tratavam muito bem, tanto os encarrega-dos, como os que trabalhavam pra consertar o te-ar... Eu acho, também, que eu procurava fazer por onde, né. Muitas coisas eu... eles até me chamavam de “puxa-saco”. Eu não importava não. Até o doutor Francisco, quando passava lá na fábrica, ele chegava perto de mim, cumprimentava e tudo. Eu gostava

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dele. Mas muita gente reclamava dele, e reclama-va do Senhor Manoel, que toda vida foi muito bom, muito atencioso. Quando eu precisava de conversar qualquer coisa com ele, eu ia lá no escritório. Ele era muito bom pra gente. Eu gostava tanto de trabalhar que, quando eu aposentei, eu queria continuar tra-balhando, sabe. O Zezé falou até que ia fazer um escândalo, lá na porta da fábrica, se eu voltasse pra trabalhar. Aí eu fiquei quieta em casa. Também foi bom. Já tem vinte e dois anos que eu estou aposen-tada. Também não incomodava o contramestre não. Por exemplo: mudar martelo, mudar correia, aquela correinha... Tudo isso eu fazia. Eu sentia que o con-tramestre tava apertado, eu via que eu podia fazer, eu fazia... Muitos ficava esperando... Às vezes com o tear parado toda a vida... Depois, parece também que eles gostavam muito de mim... Quarenta e dois anos é uma vida! Mas eu tive uns anos fora de lá, porque eu adoeci... Eu acho que foi nervoso e tra-balhar demais. Adoeci e fui pro sanatório. Tive no sanatório um ano. Depois que eu vim de lá, sarei e voltei... Muita gente morria mesmo, né.

Eu nunca fui atrás de médico. Meus filhos tu-do nasceu com parteira... Quatro... Morreram dois: a mais velha com seis meses. E morreu o mais novo com três meses. Ficou abaixo da mais velha, ficou a

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caçula que é a Rita. Nunca fiz tratamento nenhum. Nunca fiz. Sempre foi tudo em casa. O médico que eu sempre gostei muito dele, e que também eu precisei mais dele, foi o doutor Otônio. Já o doutor Edson... Uma vez, quando eu adoeci, fui embora para o sana-tório... Ele negou até a tirar a chapa, sabe. Aí eu fui até o escritório - a Liza, minha irmã, veio ao escritó-rio, falou com o Senhor Manoel e ele falou, então, que fosse onde fosse! Se precisasse de sair, que podia sair, fazer os exames todos, e que não ficasse sozinha tam-bém! Aí fomos a Leopoldina e fizemos todos os exa-mes. Arrumou tudo para a gente ir. Foi tudo pago por ele. Nesse tempo não tinha Instituto. Não tinha nada. Eles é que pagavam o sanatório, porque no princípio, quando eu entrei, não tinha garantia, não tinha nada. Se adoecesse morria à míngua... Se não tivesse quem tratasse... Depois que veio esse negócio de Instituto, e tudo, foi que começou a pagar. Depois que começou a vir esse negócio de Instituto - que a gente precisava dele - é que eu comecei a sentir. Foi o Getúlio Vargas que arrumou tudo. Férias... Essas coisas todas foi ele que fez. Ele fez tudo de bom pra gente... Mas sei lá... cada dia que passava parece que ficava pior a situa-ção na fábrica, né. O que havia era muito pequeno. A fábrica, pequenininha mesmo... quando eu saí já esta-va bem maior. Teve uma ocasião que ganhamos um

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lucro. Mas o lucro foi tanto que não deu pra nada! Foi pouco... Acho que foi só um ano que deram...

Em certos pontos eu acho melhor é agora, né. Eu não ia ao cinema... quase que não ia ao cinema nenhum. Não ia a cinema, passear no jardim não pas-seava... Só ia à Igreja. Eu fui ser “Filha de Maria” e deixei tudo. Eu tava com dezessete anos e fui ser as-pirante de Filha de Maria. Depois passei a Filha de Maria, no dia 8 de dezembro, ia fazer dezoito anos... No primeiro domingo do mês ia prá Santa Rita de uniforme branco, de faixa azul, véu e tudo. Tudo uni-formizado. Nós íamos também aos retiros: só rezan-do e ouvindo prática do padre. Nesse tempo, retiro era na Semana Santa, depois passou pro carnaval. Durante os últimos dias da Semana Santa nós fica-va presa lá dentro... Ficava ali... Era só rezar. A gen-te ajudava os outros porque queria ajudar, mas não era obrigado não... Todas as roupas de manga com-prida... Era assim umas roupas mais decentes, mas não era igual à Assembleia (de Deus) não. E também andar com namorado pra baixo e pra cima, essas coisas tudo eles proibia. Moças, só, não tinha nenhu-ma casada... Cindonga... Cora Duarte... Carmelita Guimarães... Padre Cota, Padre Zé Avelino de Castro que eu acho que era sobrinho do Padre Cota. Até eu casar ainda tinha. Depois que eu casei é que acabou

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com isso. Mas era muito bom também. Eu gostei muito! Tinha convivência...

O pai do meu marido era irmão da mãe do Manoel Peixoto. Essa gente é primo dele. Eles eram primos: primo primeiro. Meu marido era filho da-quele Zeca Julião. Vocês não lembram dele não, tem muitos anos que ele morreu. Eu sei que é meio pa-rente dos Peixoto, sabe. E porque o velho era casado duas vezes. Ele tinha... acho que dois ou três filhos da primeira mulher, não sei... Depois é que ele casou com a irmã do pai do meu marido. E aí que deu essa porção de filhos: Zé Peixoto, Eponina Peixoto... e se eu não me engano, essa gente tudo era do segundo matrimônio. Era primo do meu marido. Eu não sou parente, ele é que era...

Meu marido trabalhava aqui, depois da-qui levaram ele emprestado quando começou a Manufatora. Levaram emprestado pra lá e não dei-xou sair mais. Ficou lá até sair: também aposentou. Eu não sei se ele era maçaroqueiro... eu não sei se era cargueiro. Falar a verdade: nem sei não. Eu acho que ele trabalhava na carga... Eles tiraram algumas pes-soas pra trabalhar na Manufatora, que eles fizeram aqui, ali atrás da estação. No comecinho, a fábrica ficava ali atrás da estação. E naquele correio de ca-sa que tem ali. Eles fizeram um cômodo alí. Depois

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foram lá para baixo. Fizeram um prédio lá em baixo e passaram pra lá. Aí tiraram meu, e mais alguns, de cá. Daqui passaram pra lá, pra ensinar. E ensinando ficou... ensinando até sair... Não voltou mais...

Toda vida fui dos Peixoto! Toda vida fui! Desde que começou a primeira eleição. Na primeira eleição votamos com eles. A gente votava porque gostava. Eu, por exemplo, gostava. Tudo o que eles fazia, para mim era bom. Eu gostava muito deles! Mas muitos falam, até hoje! Falam que era cabresto! Que era isso, que era aquilo. Mas não era cabresto nada! Não era não. Eu considero assim. Agora, outra gente eu não sei... porque tem muita gente que não é do mesmo lado da gente, né. Nesta época tinha tantas colegas... eu gostava delas todas. Nunca tive raiva de nenhu-ma. Nunca briguei com ninguém Helena do Tito... Marilene... já morreram muitas... muitas mesmo! Já morreu quase tudo... a Eva Comello morreu há pou-co tempo. Morreu bem velha! Morreu em 82... 81... não sei... eu tirei retrato com ela... eu fui naquele fil-me, o primeiro filme do Humberto Mauro... eu lem-bro dele, mas não lembro dele mesmo não. Lembro só... falava dele... até naquele filme dele eu fui, sabe. Um filme que passou aqui primeiro. Eu era menina... passou a Eva Comello, passou o pai dela o Sr. Pedro Comello e, muito mais...

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Tem mais ou menos cinquenta anos... não, tem menos... que o Padre Antônio veio pra cá. Ele mo-rava em Santana, né. Ele morava em Santana e veio pr’aqui. A Rita, minha filha, era pequena. A Rita foi batizar lá em cima porque aqui estava em movimen-to, tava construindo, foi batizada lá em cima... essa igreja foi desmontada duas vezes. Era uma capelinha mesmo, quase que não tinha ninguém. Não tinha pa-dre, não tinha nada. Era uma coisinha pequenininha. E aí, ia lá em cima, na Igreja Santa Rita. Tinha a ca-pelinha pequena, depois aumentaram, agora de uns tempos pra cá fizeram aquela outra grande. Não fui lá em cima mais porque o padre Antônio começou foi missa aqui, quando a igreja era pequena. Ia lá em ci-ma quando tinha festa, uma coisa qualquer, mas para assistir missa não. Essa daqui, depois que começou eu não saí mais não... vou à missa só sábado de noi-te... eu gosto de ir de noite... seis horas estava ermo, antes deles mudarem o horário. Eu acostumei ir sá-bado, porque domingo a gente... Sei lá.

Tinha passeata, tinha! Teve “pic-nic” do 1º de maio. Sempre tinha. Teve “pic-nic” no horto, acho que duas vezes e acho que lá em Dona Euzébia tam-bém teve dias. Tudo isso eu tomei parte. Passeata foi dia sete de setembro, me parece. Eu não lembro mais...

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Tinha muito movimento... tinha bastante... ti-nha dia de semana - acho que terça e sexta-feira que ia e voltava duas vezes. Saía de Caratinga, acho que às nove horas, chegava ao meio dia e ia pra Miraí. Voltava de tarde, cinco e meia, seis horas ele volta-va, sempre cheio com passageiros. Aqui era mui-to movimento de trem. Tinha trem de carga, de le-nha, tinha essas coisas todas daqui pra Miraí, daqui pra Recreio... só sei que era muita máquina! E tinha Expresso daqui também. O Expresso ia e voltava cheio pro Rio... o Expresso é que acabou mais de-pressa... agora tem estrada de ônibus... é mais perto... com uma, duas horas tamos lá... era bem movimen-tada... aqui onde mora Maria José, essa casa grande, ali era Estação Velha, mas eu não alcancei ela não. Ali não é do meu tempo não. Essa ali era velha... logo eles fizeram aquela dali e passaram pra lá... eu só me lembro daquela. E tinha um barracão comprido... esse barracão era caso sério! Pra gente vir da fábrica de noite era uma escuridão! Nossa Senhora! A gente vinha correndo... com medo, porque aqui não tinha casa, não tinha nada. Era só mato. O barracão era da estação também: guardava máquinas... no barracão faziam limpeza das máquinas...

Eu acho que quando fizeram a Rodoviária, lá em baixo, o Sr. Manoel já tinha morrido... eu vou fa-

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zer oitenta anos agora em janeiro. Muitos anos, né. Tem hora que eu cismo assim que vou morrer... eu não estou muito longe de morrer não. Mas eu fico pensando assim... meu Deus do Céu, eu não quero fi-car morrendo toda vida na cama... aí não dá... minha mãe morreu com oitenta e cinco... eu não sei... não sei nada não... eu esqueço tudo!

Entrevistada em 30/8/1990 por Gláucia Siqueira e José Luiz Batista

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Eu posso contar muito pouco porque eu saí de lá muito pequena. Eu saí de lá com quatro anos. Só me lembro do jardim de Cataguases... Eu me lembro que eu brincava muito no jardim. Minha irmã Alcina, tinha uns quatorze anos, é que me levava... E me lembro do cinema. Papai tinha um camarote e eu, pequenininha, tinha uma cadeirinha de armar, que ele botava assim na frente... A nossa casa ia da Rua Coronel Vieira até a Avenida Astolfo Dutra. Aquele pedaço todo, uma casa enorme! Nós tínhamos cava-los, tínhamos um carro com dois animais... O carro que ele gostava de passear com as filhas, não é. Era

A M É L I A L A N D Ó E SD I R E TO R A D E E S C O L A

7 5 a n o s

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uma casa muito grande... tinha então uma tipografia, era uma continuação: tinha a nossa casa, tinha o ate-lier fotográfico, depois a tipografia.

Cataguases era muito pequeno, não é meu fi-lho? Eu só me lembro de Cataguases... da nossa ca-sa... A “Força e Luz”... Depois tinha um hotel assim na esquina... depois descia a Rua da Estação... de-pois tinha, lá no fim perto da estação, o Hotel Villas. Ainda existe? Tinha muito viajante, muito movimen-to mesmo e papai era o festeiro do lugar. Todo mun-do gostava dele. Todo sábado havia uma reunião lá em casa, porque todo sábado ele ia à estação buscar o barrilzinho de chope pros amigos. Ele era jovem nes-se tempo, né. Os amigos dele era só gente moça, mui-to alegre. Bailes no clube, ele marcava quadrilha. Era um homem muito alegre. Mamãe já era mais discreta. Também tinha uma diferença grande, quase dez anos, entre eles, né. Ele tinha um relacionamento muito grande. O Mares Guia, Gaston Bajor, a família do Luiz do Carmo. Ele gostava muito de festa... Papai conhecia aqueles Peixoto, Villas, aquela gente toda. Ele estava em tudo quanto é reunião. Tudo quanto era... qualquer coisa que houvesse em Cataguases papai estava presente.

Ele era estrangeiro, quer dizer, ele não tomava partido. Ele explicava sempre:

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- Eu não tenho partido político. Eu sou estrangeiro. Eu não sou nem A nem B. Agora, eu tenho o meu jornal, eu imprimo o que me trazem aqui. Ele não tomava partido, mas ele tinha a tipo-

grafia. Vinha o jornal, ele editava. Ele vivia disso. O jornal vinha e ele imprimia. Aquilo era um meio de vida. Ele só imprimia o jornal, isso eu quero que fi-que bem claro!

O jornal era da oposição - Jornal da Mata - pri-meiro foi o jornal, depois veio a Revista da Mata. Ele, como estrangeiro, ele não se metia, ele não votava nem nada. Ele era suíço do cantão alemão. Papai era suíço da cidade de Zurique e estudava em Hamburgo. Era de uma família que tinha meios para que o filho estudasse lá. Ele era um homem de uma cultura mui-to grande. Ele falava o alemão, falava o francês, o italiano e alguma coisa do inglês. Meu pai - Alberto Landóes - tinha uma cultura muito grande. O senhor sabe que a Suíça é um pedacinho de terra... Ele tinha uma cultura! Ele conhecia música, ele cantava, ele to-cava instrumento... Uma cultura enorme! Papai estu-dava física e química comigo. Em matemática era um colosso! Era um homem de uma cultura muito rica. Ele não chegou a se formar em engenharia...

Ele veio aqui para o Brasil, viu a mamãe e ca-sou-se. Disseram a ele:

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- Olha, São João Dei Rei tem moças muito bonitas! Ele chegou lá e na Igreja de São Francisco de

Assis ele conheceu mamãe, se casou e ficou por aqui. Quando ele quis voltar à Europa arrebentou a guerra

- foi quando eu nasci - e aí ele não foi. Quando termi-nou a guerra - graças a Deus nós tínhamos a parte monetária sempre direitinha - quando acabou a guer-ra, em 1918, ele disse:

- Eu vou ver a minha mãe. Aí a mãe dele morreu. Ele aí perdeu o interes-

se... Ele fez de memória o retrato dela, como ele dei-xou a mãezinha dele... Eu tenho o retrato da minha avó. Ele fez o retrato dela, a lembrança dele.

Meu pai era um artista. Ele desenhava e pin-tava que era uma beleza! Ele ganhou um prêmio na Europa de um desenho de mãos. O senhor sabe, dar expressão a mãos é uma coisa difícil. Ganhou o prê-mio! Isso foi em 1890 e pouco, lá na Europa. A expres-são da figura que ele pintou... ele ganhou prêmio pela expressão das mãos... Expressão no olhar, no sorriso, é fácil, mas nas mãos... Modéstia a parte, papai era um colosso! Ele fazia clichê, fazia fotogravura, zinco-gravuras, fotografia. Tudo isso é arte. Tenho aqui tu-do isso que ele fazia, era completo nisso, certo?

Ele fazia retratos. Ele veio pra cá com o prêmio que ele ganhou de retrato. Ele escolheu o Brasil como

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prêmio, para vir pra cá. Ele tinha uma irmã, a mais velha, ela morava no Rio, no Leme, ele ficou com ela. Ele gostava de fazer retratos né, e conversando assim no meio de amigos disseram:

- Olha, moças muito bonitas o senhor encontra em São João Dei Rei. Então, na Igreja de São Francisco de Assis,

num domingo de missa, ele conheceu minha mãe - Afonsinha Pereira Landóes - que tinha 15 anos, e ele 24 (anos). Ele nem sabia falar português nem ela sa-bia falar alemão. Não sei como eles se entenderam, né.

Então se casaram em São João Dei Rei. Ele ca-sou-se com mamãe em 1894.

Passou a trabalhar aqui em Minas. Viajou pelas cidades todas. Ele se casou em Minas e continuou em Minas. Sempre em Minas. A maior parte do tempo ele ficou em Cataguases. Uns trinta anos. Ele vinha ao Rio trabalhar com a “Bastos Dias”, uma firma aqui muito grande. Ele fazia retratos pra “Bastos Dias”. No Rio de Janeiro, a “Bastos Dias” sempre tinha re-tratos daqueles políticos todos da época. A “Bastos Dias” recebia a encomenda e passava pro papai. Ele então fazia o retrato do Washington Luiz, Epitácio Pessoa, Artur Bernardes, toda essa gente... com um negócio de veludo assim, na vitrine da “Bastos Dias”, na Rua Sete de Setembro... Retratos de fulano, ele fa-

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zia, eles punham lá. Ele recebia encomenda, ele não sabia pra quem... Retratos de família... Retratos todos que ele fez... Quem gosta de ver isso é meu marido.

Ele não conheceu o meu pai, mas pelo que nós falamos...

Papai teve sete filhos. Teve um menino... mor-reu com quatro meses. Ele quase ficou enlouque-cido com a morte desse menino. Depois veio o ou-tro. Esse foi um grande construtor aqui no Rio de Janeiro. Aposentou-se, mas é conhecida a construtora Landóes aqui. Como meu irmão - era o filho único

- ele tinha verdadeira paixão. Ele não quis estudar en-genharia como papai queria, mas acabou sendo cons-trutor. Ele não era engenheiro-construtor, mas era do-no da empresa: Construtora Landóes.

Muito conhecida aqui no Rio de Janeiro pelos bons trabalhos... Ele teve quatro filhas em seguida, uma atrás da outra, com uma diferença de um ano e meio de cada uma: a Albertina, a Augusta, Adalzira e Alcina. Papai as chamava “meu soneto”. Moças mui-to bonitas, fizeram até muito sucesso em Cataguases nas festas e tudo, né. Eu não me lembro dessas coisas. Eu lembro disso porque ouvia mamãe comentar, mi-nhas irmãs...

As minhas irmãs, duas estudaram na Escola Normal, as outras duas estudaram no Grambery. A

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mais velha e a última estudaram lá, e as duas do meio estudaram no Grambery. Todas professoras. Ele nos educou numa rigidez extraordinária, não é.

Por isso que todas nós - todos nós, porque só temos um rapaz, um homem né - todas nós vence-mos na vida. Ele fez questão que nós estudássemos. Pai amantíssimo, carinhoso, mas enérgico. Ele era genioso. Nos deu uma educação rígida. Aquele rigor, aquela disciplina! Papai tinha hora pra tudo! Eu já mocinha feita, noiva, dez horas tinha que ir dormir. Ele dizia:

- Vai dormir. Às dez horas é o sono da beleza! Ele tinha muito carinho comigo porque eu fui a

caçula, fui a última. Então, minhas irmãs reclamavam: - O xodó que o senhor tem pela Amelinha... Tudo pra Amelinha!

- É com esta que eu vou viver menos, é com esta que vou viver menos! Elas estavam “trintonas” quando ele mor-

reu. Eu estava meninota de 16, 17 anos, quer dizer: “é com esta que vou viver menos”... Ele falava bem o português, mas com um certo sotaque, sabe. Era um homem muito inteligente. Ele tinha tiradas... Em 1935, 21 de maio, ele faleceu...

As crianças da vizinhança iam todas lá pra casa. Papai fazia circo, armava fogãozinho para eu

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brincar, balanço... tudo isso no quintal... quintal enorme!

Agora, ele não me deixava ir pra casa do vizi-nho. Eu não ia, todo mundo era lá em casa. Eu ainda eduquei minha filha assim. Minha filha ainda teve a educação a “lá Landóes”.

Depois, nós viemos pro Rio por causa da polí-tica. Ele tinha um jornal que ele editava, o jornal da oposição. Ele tinha a tipografia, o que viesse ele im-primia. De uma noite pro dia eles quiseram empas-telar a tipografia dele... Ele não se metia em política, porque ele era estrangeiro. Ele conhecia o seu lugar...

Ele fez todo aquele trabalho da Zona da Mata toda. Veja aqui por esta revista.

Tudo isso é trabalho dele, organizando... E a beleza desse trabalho dele é que a família dele nunca entrou! Ele nunca colocou a família aqui. Você viu o jornal? Meu irmão há tempo me falou, que foi mais ou menos 1915... Eu era novinha, eu tinha nascido naquela época. Nós temos a Revista da Mata de 17, 18, 19. Tudo isso aqui da revista era feito por ele. A re-vista foi fundada por Eurico Ribeiro. Aqui na própria revista - eu estive vendo ontem, eu já vi isso várias vezes - tinha vários colaboradores aqui. Olha aqui, tenho aqui uma porção de colaboradores. Hermano Mares Guia - que até gostou da minha irmã mais

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velha - era um dos poetas. Olha aqui o homem que deu nome à rua onde nós morávamos: Rua Coronel Vieira, fundador do município de Cataguases, né. Olha aqui o Venceslau Brás. Esse retrato ele fez foi quando eu nasci. Aqui o Astolfo Dutra, esse ficou contra nós porque papai editava o jornal. Eles foram contra, quiseram até empastelar nossa tipografia. O Astolfo Dutra... o Pedrito era namorico com minha ir-mã, o Homero Dutra também, com outra irmã. Quer dizer, nos dávamos bem. Mas por causa do bendito jornal houve essa dissidência, houve essa separação...

Ele sofreu vários atentados naquela época. Um, que eu ouvia falar, jogaram ele na linha do trem. A sorte grande que o trem passava aqui e ele caiu ali, naquele bequinho, naquele vãozinho. Não teve nada! Mamãe vivia em sobressalto. Papai saía, ela não sa-bia se ele voltava. Basta dizer que o papai era um ho-mem pacífico - era um homem muito enérgico e tudo, mas pacífico - ele passou a andar armado. A mamãe não tinha sossego.

Papai saía, viajava muito... Leopoldina, aque-les lugares todos ali, e mamãe ficava preocupada. Nós nos dávamos muito bem com aquelas famílias de destaque, como era a família Astolfo Dutra. Até os meninos dele, o Homero e o Pedrito, eram namorico lá com minhas irmãs. Nós nos dávamos bem com to-

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do mundo, mas depois que acirrou aquela política e o papai foi muito... Mamãe ficou apavorada! Queria vir para o Rio, queria ir para outro lugar! Fomos. Ele vendeu tudo de qualquer maneira. Nós tivemos que fugir da nossa casa porque empastelaram a nossa ti-pografia.

Agora, o que eu me lembro é que quando nós tivemos... quiseram empastelar a nossa tipografia, a nossa casa, nós saímos correndo para a casa do Capitão Ezequiel. Era uma fazenda que havia. Esse capitão era muito amigo de papai. Fugimos pra lá então... A política foi horrorosa! Era uma coisa horrí-vel viver assim! Minhas irmãs já estavam moças, e eu pequenininha, minhas irmãs estavam loucas para vir pro Rio de Janeiro. Papai tinha uma irmã mais velha aqui, que tinha um atelier de costura muito elegante, na Rua Senador Dantas. Então ele resolveu sair de lá. Teve que sair correndo.

Então ele resolveu vir para o Rio de Janeiro. Aqui ele teve uma tipografia e fotografia, na Praça da Bandeira. Aí ele trabalhou muitos anos.

Nós morávamos aqui em São Cristóvão. Minhas irmãs, então, foram trabalhar com esse di-retor, professor João de Camargo. Era um grande mestre! Minhas irmãs, professoras, trabalhavam com o professor João de Camargo e construíram esse co-

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légio. Antes, em (19)24 o colégio foi fundado pelo professor João de Camargo. Ele era diretor do “Pio Americano”, que era um colégio pra rapazes. Então, o sonho dele era fazer um colégio modelo para me-ninas. Ele comprou esse prediozinho, só tinha aquele palacetezinho aqui na frente, onde nós agora estamos demolindo e fazendo uma área maior. Quando o co-légio estava com quatro anos o professor Camargo vende para nós. Em 1929, o João de Camargo quis desfazer o colégio para fazer uma colônia de férias em Paquetá. Então ele vende o colégio à minha famí-lia. Minhas irmãs não podiam comprar, papai então comprou este colégio. Custou cento e vinte contos só esse prédio aqui. Isso aqui nós compramos depois... Aqui tinha uma porção de casas... Aqui era a antiga Rua Emereciana... Eu fui a primeira aluna desse colé-gio: Escola Brasileira de Educação e Ensino. Uma es-cola modelo para meninas. Eu fui a primeira aluna...

Ele comprou esse colégio e ficou trabalhando aqui com mamãe e as minhas duas irmãs mais velhas. Eu era muito menina, eu estava na escola pública, aqui na Gonçalves Dias, na segunda série. Eu estava no primário. Nós compramos o colégio no dia 6 de janeiro de (19)29. Ele ficou muito satisfeito! Ele orga-nizou tudo! Ia a São Paulo comprar carteira! Foi um homem muito dinâmico! Foi a alma desse colégio no

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princípio, né. Ele e mamãe, mamãe sempre marcou... Mamãe também era uma mulher maravilhosa! A fi-lha falar do pai é muito difícil, porque eu tenho um xodó! Com minha mãe então, nem se fala, né. Porque minha mãe foi uma mulher do lar. Nunca cortou os cabelos, nunca pintou as unhas. Mamãe era uma sen-timental, uma romântica. Ela dizia:

- Nesta mão só aliança. Aqui é só aliança, essa mão só serve aliança. Nessa mão minha filha... Pro senhor ver o encantamento que ela tinha

pelo casamento! Ela não usava anel nenhum desse lado. Podia usar desse (outro) lado, mas aqui não... Usava brincos de brilhante... O papai, quando nascia um filho, ele dava uma joia para mamãe.

Eu tenho brilhantes aí que papai dava para mamãe... Isso eu me lembro com admiração. Ela só se dedicou a nós. Foi de uma dedicação! O papai tam-bém. Papai viajava, ela ia junto...

Nós todos morávamos aqui, toda a família aqui, até as irmãs casadas. Nós morávamos aqui no colé-gio, aqui na frente. Fizemos esse Colégio Brasileiro a maravilha que ele é! Nós tínhamos o horário integral, das dez horas da manhã até às cinco horas da tarde. Nós tínhamos o curso completo. Enquanto papai foi vivo o colégio... Nós fizemos exposições belíssimas na cidade! Tinha professora de pintura, nós fazíamos

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uma porção de trabalhos e expúnhamos. A minha ir-mã, essa aqui, a Augusta desenhava, arte do lápis, né. Ela desenhava, ela fez curso de pintura e tudo. E to-das nós temos jeito para desenho. Minhas irmãs eram muito bonitas. Elas escreviam, elas desenhavam, mas eu não encontrei nada aqui do trabalho delas... Se o senhor tivesse pegado a minha irmã Alcina, que fale-ceu em 1972... Essa é que sabia tudo! Esse livro, papai passou pra ela. Depois, em (19)58 ela passou para ou-tra irmã, Augusta Landóes... Depois que ele morreu perdeu um pouco, porque ele era a alma de tudo isso. Ele foi a alma, ele foi o alicerce.

O papai foi um homem dedicadíssimo! Fez de nós gente boa. Nós todas temos a mesma educação, temos o mesmo critério aqui no trabalho. O Colégio passou por papai e mamãe, depois veio as minhas duas irmãs mais velhas. A Augusta, esta aqui, já mor-reu há quatro anos. Era a coisa linda da família, essa alvoroçou Cataguases! Muito bonita mesmo! Depois a outra, Adalzira, morreu agora, há um ano e meio. Eu me aposentei, estava em casa, não quis saber de nada. Ela morreu, essa imensidão, esse gigante branco ficou pra mim... Nós fizemos coisas muito boas.

Minhas irmãs foram ótimas diretoras! Mas isso nós devemos ao rigor - com muito carinho, mas mui-ta energia né. Agora já está... eu digo que é a quarta

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geração: papai e mamãe, minhas irmãs, agora estou eu e já trouxe a minha filha, e já trouxe uma neta, que já está trabalhando. Ela está fazendo informática na Faculdade, mas já está nos ajudando aqui na parte de contabilidade. Estamos aqui pra dar amor a isto, por-que isto aqui é obra Landóes!

Hoje eu sou a última, mas eu trouxe a minha filha, que já estava casada há vinte anos, sempre dedicada à família. Eu a preparei para isso. Ela fez tudo quanto era pra ser ótima diretora! Ela estudou na Europa, passou dois anos lá. Fez o curso de Física aqui na Nacional, foi se aperfeiçoar na Alemanha, fez a pós-graduação, passou lá dois anos e meio. Casou-se também com alemão. Eles se conheceram na Faculdade e quando acabaram, casaram-se e foram fazer o curso na Alemanha. O alemão é muito agar-rado à família, dedicado à família. Meu genro é uma coisa maravilhosa! Essa menina é a que hoje está aqui comigo trabalhando.

Papai adorava Cataguases! Quando viemos pro Rio e tudo, ele tornou a voltar.

Botou um atelier pequeno, porque ele ia e voltava, né. Não era aquele atelier maravilhoso, que ele teve no princípio. Era lá em casa mesmo, na Rua Coronel Vieira, 60. Era ali. Depois foi na Rua da Estação, com meu irmão, para vender máquinas,

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filmes, porta-retratos, tudo. Ele fez um comerciozi-nho... Os quadros de formatura eram todos feitos por ele. Quando eu estive em Juiz de Fora, em 1972, já se conhecia papai. Quando Ari Barroso morreu, os re-tratos que apareciam eram do atelier de papai. Papai não era fotógrafo de jardim, não. Era atelier fotográ-fico, era arte! Não era só fotografia, não. Ele fazia re-tratos a pincel. Era fabuloso! Era do pincel, mesmo! Era do lápis! Tinha uma letra linda... as assinaturas dele... Vinham pessoas de fora para procurar o ate-lier para fotografias e tudo... Sempre trabalhou por conta própria.

Com aquela saída (de Cataguases) teve um pre-juízo muito grande... Vendeu de qualquer maneira né. Ele aí trabalhou na Ilha dos Pombos, com os america-nos. Ele se localizou em Porto Novo do Cunha. Ficou lá muito tempo só com mamãe. Minhas irmãs no Rio e uma tia veio tomar conta de nós. Mamãe sempre acompanhou papai. Ele se fixou em Porto Novo do Cunha, trabalhou naquela represa do Rio Paraíba, que a Light estava fazendo. Aí trabalhou muitos anos e ganhando um dos maiores ordenados! Teve uma si-tuação muito boa! Ele fez este trabalho durante anos, ajudando o engenheiro chefe, que era o Kandel. Em parte ajudava na engenharia, porque ele tinha um estudo - não chegou a se formar engenheiro, porque

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veio para o Brasil e não acabou. Quando acabaram aquele serviço o convidaram, com uma situação in-vejável, para ir a São Paulo. Ele não aceitou. Quando acabou essa represa do Rio Paraíba, ele foi convidado pela Light para ir para São Paulo como um dos maio-rais, ganhando um belíssimo ordenado! Ele disse:

- Não, eu não tenho patrão. Ele fazia o trabalho dele, dava o preço e era

muito elogiado. Ele fez um serviço lá muito bonito, isso é que eu sei. Tinha até um Fordeco, um “ford bi-gode”. Quando a Light o quis efetivar ele não aceitou absolutamente. Ele nunca aceitou... Sempre autôno-mo. Era um homem muito rígido, muito honesto, gos-tava de tudo muito direitinho. Isso ele incutiu em nós.

E quando ele quis, coitado, reunir a família em 1929, as filhas... a Albertina, a mais velha, casada há um ano e meio, morre de parto. Ele ficou com uma paixão, porque ele queria toda a família unida. Ela te-ve um choque pavoroso... Ele veio esperando o nas-cimento do neném... Foi um choque! Ele aí teve um ataque cardíaco, quase morreu.

Ele ainda durou cinco anos, mas sempre tinha suas crises de coração... Até tínhamos medo quando ele viajava... Ele continuou a viajar e tudo. Ele tinha negócios em vários lugares, né. Em Itaperuna, em Cachoeiro do Itapemirim, ele tinha fazenda lá. Ele

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abandonou tudo depois. É uma doença muito traiço-eira a do coração... Ele continuou conosco até 1935. Morreu de um ataque cardíaco... Levantou-se mui-to satisfeito, tomou banho, fez barba, vestiu-se, isso tudo... Estava conversando conosco - comigo e com outra irmã - na sala de jantar. Ele aí virou-se pra mim

- eu já estava com meus dezesseis anos - ele virou-se para mim e disse:

- Olha, está dando o sinal. Então eu peguei a pasta, desci as escadas e fui

pro colégio. Mal eu chego no colégio me chamam di-zendo que ele tinha tido um ataque cardíaco. Morreu bonitinho, não é?

Já sofria do coração. O primeiro ataque cardía-co que o papai teve foi quando ele chegou de viagem, ele veio de Minas e a Albertina...

Engraçado, ele sempre teve amigos muito mais moços do que ele... Levava a gente ao corso de carnaval aqui no Rio: ele, a mamãe e nós. A gente queria uma fantasia de última hora, ele cortava umas bolotas e fazia uma colombina. Aqueles “frufrus”, ele ajudava a passar. Ele sabia enfeitar a roupa da gente... Um artista! Por exemplo, eu tinha aulas de desenho, eu não entendia nada de perspectiva... A professora botava lá uma pilha de livros e mandava copiar... Ele então me orientava, e eu fazia. Estudava com os fi-

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lhos... Quando eu era pequena, ele com a tesoura fa-zia bonecas... Brincava de circo comigo em casa, ele era o acrobata... ele era um homem muito liberal, sa-be, muito liberal mesmo.

Ele gostava de ir, aqui no Rio, aos teatros. Ele botava as quatro filhas no camarote e ele ficava na plateia para ouvir os comentários, orgulhoso do “so-neto” dele... Eu era um bebê muito bonitinho, tem uns retratos. Eu assim em cima da mesa, eu sentada em coluna, eu era um catalzim gordinho, bonitinho, naquele tempo. Agora, uma velhusca, né. Eu sei que minhas irmãs queriam vir era para o Rio. Sabe-se co-mo é que é toda moça, né. Elas tiveram pretenden-tes lá (em Cataguases) para se casar. Mas elas vie-ram se casar aqui no Rio. Eu tive quatro cunhados, né. E papai - o pai das moças - como eles se davam bem! Papai gostava de botar todo mundo de pileque. Minhas irmãs tinham que fechar os maridos porque senão papai fazia... gostava de botá-los de pileque. Gostava de uma brincadeira, gostava muito! Ele era muito moleque. Ele dançava... mas só o olhar dele, todo mundo respeitava. Ele tinha um domínio sobre as pessoas muito grande. Ele só olhava... Natal era uma festa belíssima!

Isso eu não sei porque eu sou a “rapa do ta-cho”. Tem o caso da política, quando quiseram matar

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Anísio Cardoso, que era o grande escritor do jornal, e era da oposição. Ele foi alvejado, quase que morreu. O irmão dele, o Mau (Dr. Mário Cardoso), que era médico, é que cuidou... me parece que a língua ficou esfacelada... Mas quando ele se recuperou continuou naquela luta... Daí, então eles acharam que o papai era da oposição.

Ele era muito alegre, muito chistoso. Era um homem adorável para se viver...

Acho que eu devia ter uns nove anos, eu vol-tei lá pra visitar papai (em Cataguases). A mamãe estava com ele. Minha irmã Alcina, que sempre cui-dou de mim, fomos lá e passamos uns quatro dias. Interessante... eu tenho uma passagem... O meu ma-rido foi comandante da IV Região Militar, lá em Juiz de Fora. E lá em Cataguases acabaram sabendo que a esposa do general era uma cataguasense. Foram lá me procurar para eu ir a Cataguases. O prefeito me convidou para um almoço num domingo... Eu queria conhecer Cataguases... Sabe que eu não tive ocasião de ir a Cataguases.

Isso eu não sei não, não lembro tudo. Isso meu filho, eu sou um pouco ignorante nisso, porque co-mo eu disse, eu sou o último rebento. Ele era maçom, ele foi venerável da maçonaria, da “Cataguasense”, ali perto do cinema. Papai era venerável - eu nem

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sei o que é isso, viu - naquele tempo eu ouvia falar. Minhas irmãs, elas bordavam tudo pra maçonaria, até aquelas bandeiras, aquelas coisas lindas...

Eu estive vendo... Eu estou vendo coisas que se reclamava naquele tempo e nós estamos recla-mando agora. Eu vi aqui uns títulos... a mesma crise daquela época nós estamos vivendo agora. Então é antigo... Isso aqui tem quantos anos? Papai já morreu há cinquenta e tantos anos... Ele morreu moço, mor-reu muito cedo, com sessenta e sete... E, a história se repete.

Entrevistada em 5/5/1989 por José Luiz Batista.

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Nasci aqui. Eu sempre vivi aqui em Cataguases, desde criança. Vou fazer oitenta anos... Meu pai, minha mãe, tudo aqui em Cataguases. Eu sou descendente de alemão, meu pai era filho de alemão. Eu me lembro que o meu pai era um ho-mem muito respeitado aqui em Cataguases. José de Almeida Kneip: tem uma rua aí com o nome dele. O meu pai era um homem que andava muito alinhado! Eu vou te mostrar um retrato do meu pai. Naquele

J O Ã O K N E I PE L E T R I C I T Á R I O

8 0 a n o s

Foto: Usina Maurício (Fachada da casa de força da Usina Maurício), Alberto Landóes, 1908, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico

e Artístico de Cataguases

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tempo os homens andavam tudo direitinho! Tudo que precisavam vinham atrás do papai. Qualquer coisa, o velho estava lá para aconselhar. Questão de balanço, às vezes estava dando prejuízo; ele ia lá, or-ganizava. Era uma beleza nessa época! O respeito de um ao outro: não tinha esse negócio de “conto de vi-gário”, essa bandalheira que está existindo hoje. Os homens eram mais sinceros, mais puros.

A vida em Cataguases era uma beleza naque-le tempo. E como se diz: Cataguases antigamente era uma família, você conhecia todo mundo. Todo mun-do te respeitava e gostava... precisava de um e outro... pedia... Minha mãe chamava Maria e era chamada de Dona Garrincha. Ela não gostava não, mas atendia. Papai era Zequinha. Todo mundo chamava o velho de Zequinha. Ele ensinou muita gente a trabalhar em escritório. Mais ou menos em 1918, eu era garoto ainda, era menino, ele abriu uma escola de contabili-dade. Ensinou muita gente. Mas era um tempo bom aquele... Meu pai, minha mãe, meus irmãos... Um tra-balhava no Banco de Crédito Real, o outro foi pro Rio. Tem uns retratos antigos aí, que eu vou guardando, que foi do velho, da minha velha, das minhas tias... Todas elas eram comadres naquele tempo... Papai e mamãe têm uma porção de afilhados. Eu mesmo já tive uns quatro ou cinco afilhados... tudo era uma fa-

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mília só. Hoje eu quase não conheço mais ninguém! Cataguases triplicou. Isso aqui é um colosso.

O velho era um homem muito respeitado, muito querido... Trabalhou na Companhia Força e Luz muito tempo. Ele era respeitado como se fosse um gerente! Muito bom, muito honesto. Ele não era gerente não, mas ele era respeitado como gerente!

Eu entrei pra “Força e Luz” em 1925. Naquele tempo não era como hoje. A Usina era pouca. Chegava a ocasião da seca, era uma coisa horrorosa! A Companhia fazia tudo: do poste até a iluminação. Hoje não. Hoje o governo ajuda. Hoje, para aumentar a luz nem precisa... Eu me lembro que, numa ocasião, nós fomos lá no Sindicato pedir um aumento de luz para os empregados. Chegamos lá, pedimos... um dos diretores até brigou:

- Mas não pode! Vai subir o custo de vida! Eu tenho vontade de falar com ele:

- E hoje? Hoje sobe todo dia, não é? Quando eu entrei para a “Força e Luz” eu ga-

nhava cinquenta mil réis. Depois fui para oitenta, pa-ra noventa e fui terminando até ficar chefe da ofici-na. Eu trabalhei muitos anos ali na Usina Maurício. Era a mesma Usina, só que tem que ela foi aumen-tada. Hoje, está outra coisa. Está muito bem organi-zada, tudo arrumadinho. Ia sempre lá: dava defeito

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nas máquinas, eu ia pra lá. Eu com o meu pessoal. O doutor Gabriel Junqueira era um diretor muito bom. Eu gostava muito dele.

Já trabalhei muito nessa Cataguases, Nossa Senhora! Trabalhei quarenta anos só essa parte de elé-trica, eletricidade. Eu me aposentei em (19)66. Estou com vinte e tantos anos de aposentado. Depois que eu aposentei, eu botei uma firma aqui. É minha. Trabalho aqui. Trabalho para essa zona toda aí. Conserto mo-tor e transformador, tudo quanto é aparelho de ele-tricidade. E, qualquer coisa que entrar aqui! Graças a Deus sou muito conhecido nessa zona aí, sabe.

Eu sou emérito da Maçonaria. Aquele prédio ali foi construído por mim. Eu era tesoureiro, fui te-soureiro durante o tempo todo, até construir. Eu mais o Paulo Pessoa... Todos os irmãos ajudaram, mas aquele que foi mesmo par meu foi o Paulo Pessoa. Aquele prédio ali, quando eu vejo aquilo, parece um sonho! Quando eu terminei aquele prédio sabe quan-to estava? Quarenta e dois contos! Quarenta e dois mil contos! Hoje, compramos uma sala por trezentos mil... Nós fizemos aquilo e fomos vendendo as sa-las... Depois fomos apanhando (as salas) outra vez. O meu pai, ele é que organizou essas atas. A rua que eu nasci... eu não estou lembrando não, sabe. Não sei se é lá na Rua do Pomba... por ali assim, sabe. As ru-

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as antigamente era tudo de chão. Eu me lembro que, tempo de chuva, dava aquele barro! Essa avenida quem abriu essa avenida foi o Coronel João Duarte. Naquele tempo, ele era prefeito de Cataguases. João Duarte Ferreira era um capitalista muito grande. Ele morou ali onde vocês vão fazer o Museu, ali na pra-ça. Coronel João Duarte tinha muita indústria, tinha Banco, tinha tudo. Quando morreu era o homem mais rico, ricaço mesmo!

Aqui era brejo, aqui tudo era brejo. O trem passava aqui, passava mais pra cá, o “corgo” pas-sava aí. Esse “corgo” foi feito, acho que foi feito em 1922. Fizeram o canal em mil novecentos e vinte e tanto, não me lembro não. Acabaram com o “cor-go”... Mas aqui tudo era brejo. E a rua tinha aquelas pedras grandes. Automóvel só existia um, era da Companhia (Força e Luz): Benz, do Doutor Gabriel Junqueira. Depois começou a aparecer novos carros. Veio um carro aí todo bonitão! Quem vendia carro muito bonito era o Agenor de Barros. Era capitalista, agora perdeu tudo, ficou pobre... O negócio do ca-fé derrubou muita gente naquele tempo... Isso aqui era um brejo, plantava arroz aqui: arrozal. Era um colosso! João Duarte que abriu essa Avenida Astolfo Dutra e fez o canal. Tirou o que passava ali atrás... onde é hoje, era tudo do lado de cá. Não tinha casa

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nenhuma... Mas ali na avenida já tinha a casa do dou-tor Astolfo, foi uma das primeiras casas que fez ali. Depois foi fazendo as outras.

Olha aí no livro... Não era livro, era revista, vo-cê pode ver aí: janeiro, fevereiro...

Era revista, cada vez saía... O papai foi juntan-do aqui nessa escrivaninha. Depois o papai morreu, eu abri lá e vi. Aí mandei encadernar todas três. E a “Revista da Mata”... 1917... Foi o Alberto Landóes, ele que fez isso. A fotografia dele era muito boa! Todo lugar: Leopoldina, Astolfo Dutra, Ubá, São João, Cataguases... Tem muito verso aí, muita coisa antiga, nomes antigos respeitados: Ribeiro Junqueira, doutor Lobo... Aí, esse é o Eurico Rabelo, homem direito... ensinava mesmo! Naquele tempo ensinava... Hoje não ensina conforme era não... No entanto, ganha-va pouco essa gente. Andava bem vestida, ensinava bem... Hoje, essas greves aí...

Estudei (no Grupo Escolar Coronel Vieira). A professora era a Dona Tita, deve estar aí Dona Tita. Naquele tempo era só ele... 1912... 1913... só tinha ele. A não ser a Escola Normal, não é? Aqui tem a Escola Normal, era aqui atrás, você vê justamente em cima, logo no final. Era a Chácara Arthur Cruz. Eu me lembro, eu era menino, não é? Naquela ocasião eu devia ter uns quatorze anos... Ali era um pomar,

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você ia lá, apanhava fruta... Depois passou a chá-cara, fizeram a Escola Normal na praça. O Ginásio era onde é o Colégio hoje, lá em cima. Do tempo do Antônio Amaro, velho respeitado, bom professor! O Sr. Francisco... a Industrial... compraram, derruba-ram e fizeram este. O Jânio Quadros... com aquela lei que era obrigado... toda a companhia tem que fazer o colégio. (Fizeram a doação do) colégio pro Estado. Hoje é do Estado.

A Revista Verde era uma revista boa, mas eu não tinha... Naquele tempo eu não me lembro da Revista Verde não... Eu não ligava pra essas coisas não. Quem podia dizer sobre a Revista Verde é o fi-lho do doutor Francisco, ele que pode informar me-lhor. Tem o Rosário Fusco, tem o Guilhermino, que fazia parte da Revista... Tem o livro até que eles me deram. Emprestei: nunca mais me deram o livro! Esse negócio de emprestar livro pros outros... Eu te-nho um ciúme desse livro! Uma ocasião, eu empres-tei, mas (uma) criança pegou e passou (as páginas) de qualquer jeito. Tem que pegar direito! O doutor Enrique (de Resende) fez um outro livro, está ali, e até pôs o meu nome!

A “Irmãos Peixoto” é a fábrica mais antiga que tem. A mãe das fábricas aqui é a “Irmãos Peixoto”, dela que saíram todas. Só sei que ela foi aumentan-

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do muito. Depois que passou para os netos melhorou cada vez mais. Dali foi a “Industrial”... “Manufatora”, tudo da mesma família: o Zé Peixoto, o Manuel Peixoto. E tem o Rodrigo Lanna também, que é da Emília Peixoto... A indústria era muito pouco, tinha mais lavoura. Agora, tem mais indústria. As operá-rias agora só andam bem vestidas...

Eu me lembro que os operários, antigamente, saía de madrugada com o tamanquinho: toc-toc-toc-toc. Hoje não, operária hoje está igual a professora: chique, bem vestida. Hoje operário tem geladeira, televisão, tem tudo. Naquele tempo a coisa era... ga-nhava pouco... O ordenado naquele tempo não dava muito, dava trinta mil réis; mas passava bem, muita fartura. Você comprava um litro de leite por duzen-tos réis; um frango muito caro era oitocentos réis. O lavrador, por exemplo, comia carne seca. Comia bem! Eu me lembro. Eu tenho um cunhado que ia lá, ven-dia carne seca, arroz feijão, saco de farinha... Hoje, quem come carne seca? Está cada vez pior a vida! Não tem jeito, não.

Naquele tempo o pessoal tinha mais disposi-ção para trabalhar, não é. O pessoal era mais alegre, não tinha que ficar com medo de ser assaltado. Hoje, você não pode sair de noite aqui! Fiz tudo a grade, tudo de grade. A gente fica na grade e os vadios sol-

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tos aí. Seis, sete horas já tranco o portão: tem só eu e a mulher aqui! Naquele tempo, um Juiz de Direito quando passava - o doutor Cleto - o pessoal parava com todo respeito, no meio da estrada. Eu me lembro, o doutor Cleto Toscano, quando passava, o pessoal parava pra ele passar, cumprimentavam... Tudo bem vestido. Hoje acabou isso tudo.

Terno e gravata! Era tudo direitinho, tudo di-reitinho. Antigamente... eu me lembro que a gente fazia baile aqui. Aqui em casa mesmo já fez. Vinha pr’aqui aquelas mocinhas. Fazia baile. Não era muita gente não. Era na casa do vizinho, outro na outra ca-sa - do Coronel Antônio Augusto - um homem muito estimado aqui. Morreu... Me lembro das minhas na-moradas... Já morreu tudo... O namoro era de noite, de vez em quando conversava, mas nada de mão da-da. Qualquer coisa diferente era um escândalo, sabe. Hoje, tá um caso sério, não é? Absurdo!

Os bailes eram ali no “Comercial”. Ali em ci-ma do Cinema Recreio, naquele tempo, tinha o clu-be. Tem o retrato aí. Era ali que eram os bailes, em cima do cinema. Eu dancei muito ali, brinquei mui-to. Depois derrubaram ele, desmancharam e fizeram aquela porcaria! Eles não deviam ter desmanchado este prédio do Cinema Recreio. Eu tenho retrato dele aí: por dentro e por fora. Olha aí no livro. Duas coisas

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que eu fico com dó: a igreja e o prédio... Fizeram uma reunião: o Padre Solindo com porção deles. Fizeram uma reunião lá, houve votação se devia desmanchar ou não. Muitos foram contra. Mas tem a maioria: a maioria era a favor de derrubar. Quem ajudou muito ali foi o João Peixoto, a pedra para aquilo tudo foi ele que deu. Mas é uma pena... O cinema Recreio, por exemplo, pra que desmanchar? Deixassem ele... Eu achei um absurdo derrubarem aquela igreja, uma beleza que era! Que fizesse esta em outro lugar, mas que deixassem aquela! A igreja você conhece? Tem ali o retrato dela. Olha que beleza de igreja aí! Olha que beleza! Devia conservar... Antiguidade é que é bonito. Desmancharam uma igreja dessa para fazer essa igreja feia desse jeito! Moderna! Tudo antigo é mais bonito! Eu acho horrível essa igreja! Aquilo nem parece igreja! Esquisita, não parece igreja não! Não gosto desta igreja não! “A primeira era muito mais bonita que a de agora, não é?” (intervenção de Wanda Kneip, filha). Mês de maio aí era uma beleza! Não tem mais coroações não. No mês de maio, to-do dia, tinha! Agora tem lá na Vila, não é? O padre Antônio ainda conserva. Já fui lá, de vez em quan-do eu vou lá... No batizado da minha bisneta... Eu já tenho, já vem pra quatro bisneto! E neto eu tenho treze! Quando eu casei eu fui para o Rio... a primei-

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ra filha foi passear em 1932. Eu casei em (19)21, vou fazer cinquenta e oito anos de casado... Eu me lembro quando o Pedro Dutra casou. Você ia a tudo, saía de casa tudo de braço dado para o casamento. Aquela fila parecia uma procissão. Não tinha carro, não ti-nha nada... Esses velhos aí, eu me lembro deles to-dos. Essas professoras... Dona Olinda, a Flávia Dutra, mulher do Pedro Dutra... Ela ainda está viva, a Dona Flávia mora no Rio com o filho dela.

Eu estive no Rio em 1927. Estive na “Força e Luz”, depois fui para o Rio, o senhor Gabriel man-dou eu ir pra lá. Lá fiquei um ano através da CIBS. Mas eu adoeci... Depois papai não quis deixar eu vol-tar, senão era capaz de ter ficado lá. Eles não queriam deixar eu sair. Antigamente eu ia para o Rio... Eu me lembro que quando eu ia para o Rio de trem - tinha que ir de trem - pegava o trem, chegava lá no Rio às vezes dez horas... onze horas. Era uma viagem boa. O Rio de janeiro era outra coisa, naquele tempo. Eu me lembro da ocasião em que fui batizar a Nilza, nós fomos de trem. Levamos uma matutagem1 para comer no caminho... Eu me lembro que quando eu vim do Rio, com o papai, pra todo lado via... enchia

1) Expressão mineira para merenda, refeição rápida durante uma viagem.

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a Estação. Todo mundo ia esperar o “expresso” ali, de tarde, na Praça da Estação. Quando era dez ho-ras, ia todo mundo para a estação para ver o pessoal sair na Leopoldina - o trem que vai para o Rio, que ia até o Rio. Quando vinha do Rio... vai tudo para a Estação... Ali na Praça da Estação era um movimen-to naquele tempo! Tudo era despachado, vinha tu-do ali... Gente, era um movimento danado, naquele tempo. Não tinha essa praça. Eu me lembro que, eu era menino, solteiro, rapazinho já, ficava passeando. Tudo bem vestido. As moças vinham de lá e a gen-te ficava rodando ali no jardim, para lá e para cá. A Praça da Estação, hoje, é quase a mesma coisa. Ficou o prédio ali, aquela casa ali onde era o João Duarte... Já derrubaram alguma coisa, não é. Mas o prédio ali, do lado de lá, na Leiteria, é quase o mesmo. Estão conservando o Hotel Villas. É bom a gente saber que reformaram isso tudo... A Carcacena foi feita de-pois. Foi em 1922, eu me lembro quando fizeram a Carcacena... A Praça de Santa Rita tinha um chafariz que era uma beleza! Veio um tal de engenheiro e aca-bou com aquilo tudo: o chafariz, o coreto, as palmei-ras... derrubou tudo! Era praça bonita! O chafariz era uma beleza!

Isso aqui tinha um bando de andorinhas! Quando chegava... às vezes, de tarde voava tudo!

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Era bonito, por causa desse jardim... Aqui era onde fazia o coreto pra leilão. Era do lado de cá. O jardim foi pra frente... aqui tinha duas palmeiras... Banda de música... Tinha a do Rogério Teixeira, tinha a do Pierre. Mas a bonita era a do Rogério. Eu me lembro é a do Rogério, por toda vida. Era uma coisa louca! O Rogério Teixeira era um músico formidável! O cine-ma, antigamente, era mudo, mas quem tocava no ci-nema era o Rogério Teixeira, era a senhora dele, João Ciodaro, aquela turma. Bonito, né. De vez em quan-do toca uma música, eu lembro dele...

Acabou tudo... O jardim era... era uma beleza aquele jardim! Tinha banda de música, o coreto, o chafariz, muito bonito! O cinema, né. Tem aquela fo-to ali do João Butiga, do lado ficava vendendo doce... doce do João Butiga. Meu pai comprava umas coca-dinhas dele. Ele ficava era do lado daquelas colunas, ele ficava ali vendendo...

O bonde é uma coisa interessante, puxado a burros. Ele ia até o colégio, o ginásio. Ele partia lá da Vila, vinha aqui, lá do outro lado da ponte tam-bém, passava na ponte ali. Tinha três trilhos. Eu bo-tava muita pedra debaixo da linha pra fazer ele des-carrilar! Mas ia mesmo mais longe. Ia até no colégio. Vinha lá da Vila, lá da Estação, passava na praça e vinha aqui... Descia para a ponte de madeira.

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Aqui era o colégio das irmãs, era aqui. E tinha uma rua ali que era para a ponte de madeira, depois eles desmancharam. Quando eles fizeram esta ponte de metal, que é a ponte velha (hoje), eu me lembro. A ponte velha era de madeira, viu. Ponte de madeira, depois fizeram a de ferro. Acho que tem até o retrato aí. Era aqui onde está o colégio das Irmãs. Era ali, ti-nha um prédio, acho que tem um retrato aí.

Quando houve a (gripe) espanhola, o doutor Gabriel Junqueira era o gerente. Uma coisa horroro-sa! Ele levou meu pai lá pra casa dele, pra tomar con-ta dele lá. As Irmãs Carmelitas tomou conta de lá de casa, porque o papai é que fundou o orfanato para elas. Tem retrato dele lá (no orfanato). Então elas iam pra lá e ficou tratanto da gente. Naquele tempo as Irmãs eram outra coisa... Eu perdi uma irmã...

Eu me lembro daquela turma velha, aquela turma ali da Praça Santa Rita. O Alfredo Campos... Já morreu todo mundo, os médicos daquele tempo, não é. Naquele tempo não tinha... depois que eles fizeram esse hospital aqui. Tinha um hospital lá em baixo, muito pequeno. Era lá... quem vai lá naquela pon-te do “Meia Pataca”, ali tinha um prédio que era o hospital. Eu ainda me lembro daquele hospital. Certa vez, eu estava até machucado, fui lá e tratei. Mas não tinha recurso nenhum! Operação, quem tivesse que

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fazer ia para o Rio. Aqui não tinha não. Os médicos não eram operadores igual é hoje, não é? Hoje tem. Hoje tem uma porção de coisa. Está caro, não é? É verdade, não tinha esse negócio de aposentadoria. Não tinha nada naquele tempo, não é?

Natal... Natal era aquelas mesas de doce que era uma beleza! Eu me lembro. Aqui em casa, no mês de São João, fazia festa de bandeirinha. A Wanda fazia São João, chamava os outros pra tocar valsa... A vizinhança, as crianças, tudo pra cá! Pé de mole-que, arroz... Naquele tempo era bom! Era uma festa de família, linda. O meu quintal era até na Avenida, então fazia festa ali: fogueira, aquilo tudo... Todo o ano era ali. Era aniversário de uma menina? Festa! Aniversário de um, era festa!2 Cada dia numa casa... Aqui dava também... Na casa do Luiz do Carmo, fica-va aquela enxurrada... Brincando, jogava água, inva-dia a casa. É, jogava água e molhava tudo! Era água mesmo. Tinha o chafariz ali na rua... Às vezes agarra-va o sujeito e jogava dentro d’água! Domingo, como eu já te falei, passeavam no jardim. Aquelas moças

2) As festas eram nas casas de família. De primeiro, dava muita brincadeira – brincadeira de laranja, de maçã – todas as férias de julho. Fazia laranjada,

lembra João? (intervenção de Wanda Kneipp)

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todas passavam pra lá e pra cá. Tudo bem vestidinha, né. Hoje, acabou isso tudo, não tem mais...

Carnaval, antigamente tinha esse negócio de bolas de cera. Então tinha esse negócio que vendia, que era uma bola: uns tinha perfume, outros não. Aí jogava assim... pá... molhava o sujeito! O ruim era o perfume. Jogava e molhava as costas do sujeito to-do! Isso há muitos anos! Eu era garoto, menino, ti-nha uns oito... dez anos. Era muito animado, lança perfume em cima. Tinha gente que jogava na vista: doía. Outros gostavam de cheirar; era perfumada. Eu mesmo comprava muito lança perfume pra vender. Muito mais brilho! Muito melhor! Os bailes... faziam fantasias. Em baile, cada qual fazia a fantasia mais bonita! Hoje, o pessoal já esta tudo fantasiado aí, né. Essas roupas de hoje, antigamente era fantasia! De rua então era uma beleza! De rua tinha aqueles blo-cos. O senhor Emílio fazia os blocos aí. Muito interes-sante! Cantava aquelas mulatas, morenas, tudo! Fazia até concurso para ver quem ganhava. Era animado mesmo! Antigamente tinha o bloco do “Flamengo” e do “Operário”: faziam aquelas coisas, que hoje não tem mais... agora acabou... só do clube... O clube dos viajantes era muito animado. Animava muito o car-naval aqui... A gente fazia no “Comercial” mesmo, ele era muito animado! Tem aí a Climene Barroso,

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que foi fantasiada. O Ciodaro, aquele pessoal, mas eu não me lembro daquilo ali não. Era muito criança.

Eu fazia parte do Flamengo Futebol Clube, aju-dava e tudo. Era Atlético, depois passou a Flamengo Futebol Clube. Esses aí, todos já morreram... Ofir Ribeiro, o Charrão, aquela turma boa. Jogava mes-mo! Tinha o meu irmão, o Geraldo, que jogava mui-to bem! Eu me lembro daquele tempo do Flamengo, que era uma beleza! As moças iam tudo pra lá. A so-ciedade ia toda assistir. Era uma festa: dia de jogo era uma festa! Flamengo e Operário naquele tempo: era caso sério! Antigamente havia mais amor. Ninguém ganhava pra jogar. Hoje não, tudo é dinheiro! Eu gos-tava muito daquele tempo: era uma festa, era bonito! Tem o Daniel Lopes, que era o presidente do... Osório de Souza... Vinha time do Rio... Vinha time do Rio, mesmo, jogar aqui! Naquele tempo a gente fazia sa-crifício... Naquele tempo o campo não tinha grama, era tudo poeira. Aqui na Avenida, o campo era aqui na avenida onde está ali a “Cima”, a Igreja Metodista, em frente ao Grupo. Armava circo ali. Naquele tem-po o campo era aberto, quando vinha o circo... Fazia circo é ali, do outro lado da “Cima”. O circo era ali, o futebol era em frente...

Aqui na Avenida Astolfo Dutra fazia a fes-ta das árvores. Deixa eu ver aqui... plantavam ár-

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vores... era o prefeito, plantava árvores. Naquele tempo tinha mais amor às coisas... Eu não lembro não, eu era garoto... Isso aqui é a Casa Felipe. Aqui a “Henriques Felipe”, é no fim da Avenida... Essa Mecânica Cataguases era do Antônio Lopes. Já aca-bou. Ele quebrou... morreu... uma mecânica muito boa, sabe.

Naquele tempo, a estrada era tudo de chão, não é? Para Miraí, por exemplo, era uma estra-da horrorosa! Era só aquele trenzinho de Miraí. O trem... linha daqui pra Miraí. O único que tinha pra ir pra Miraí era o trem. Naquele tempo não tinha es-trada, não é. Depois começaram a fazer estrada, fi-zeram estrada para Ubá, né. Isso aí foi em (19)28 a (19)30 mais ou menos... Não iam mais de trem, iam de ônibus. Eles deixaram de ir de trem. O trem aca-bou. O Maroti foi um dos primeiros. Era do... Eu me esqueço o nome dele... Ele botou uma linha de ôni-bus para o Rio. Eu esqueço o nome... O Maroti tinha ônibus também...

Depois veio aquele negócio de fazer filme. Eu estava mais ou menos com dezesseis, dezessete anos. Até uma vez tomei parte, dançando lá. O Humberto Mauro foi muito meu amigo. Quando o Humberto Mauro fez a festa, eu iluminei a cidade toda! Tem um livro aí, que é da festa dele, e estão me elogiando por

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causa da festa. O Humberto Mauro é uma coisa mui-to formidável. Ele trabalhava em eletricidade, eu tra-balhei com ele também. Começou a fazer filme aqui em Cataguases. Foi aqui, aqui em Cataguases que ele começou a filmar. Foi mais ou menos em (19)24, por aí a fora. A Eva Nil... o Luiz Soroa... Eu me lembro, tem eu dançando lá (no filme), eu fiz parte do baile... Era ali na Estação. Chiquinho Mauro foi um dos ar-tistas também, do “Brasa Dormida”. Eu estava sem-pre em comunicação com o Luiz Soroa, Eva Comello, Humberto Mauro, Aghenor de Barros, o pai da Eva Comello... A Eva Comello era fotógrafa, né, depois desse negócio de cinema. Era uma criatura muito boa, distinta! Foi uma coisa formidável! Até hoje ain-da festejam a memória do Humberto Mauro. Eu tra-balhei muito com Humberto Mauro, ele mexia com negócio de eletricidade. Aqui o cinema por dentro. Olha aí, viu? Tem um lugar aí que ficava a polícia. Eu sou do tempo do Tom Mix... pagava seiscentos réis para entrar...

Naquele tempo tinha muito jogo de bicho... Existia mais do que hoje. Jogo de bicho é o jogo mais sério que tem, não é?

Política naquele tempo era brava, mas eu era amigo de todos eles. Por exemplo: me chamaram pa-ra vereador, eu nunca quis porque aqui se você fosse

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para um lado... o outro lado ficava mal com a gen-te. De forma que eu nunca quis, tratava todos eles... doutor Pedro Dutra era meu vizinho aqui. Era um homem muito bom. Era brincalhão doutor Pedro. A minha filha era pequenininha quando eu mudei para aqui. O doutor Pedro passava a mão na folhinha e falava:

- Folhinha verde, quem está com a folhinha verde? Quem estivesse com a folhinha verde, ele da-

va bala. Politiqueiro... A política naquele tempo era feia mesmo. Mas eu nunca quis salientar em política. Sempre tratei todo mundo... Os Peixoto gostavam muito... O Pedro Dutra também... Política, antigamen-te era uma coisa horrorosa... Eu já assisti tanta coisa na política! Eu ficava de longe, via muita coisa, muita injustiça em palavra do homem. Eu sabia a verdade, mas ficava quieto. Hoje... já me convidaram para ser vereador agora. Estou com vontade de entrar, sabe. Estou animado porque eles estão querendo:

- Oh João, só o seu nome Kneip! Você pode entrar! Vai atrás disso, vai! Eu me lembro... fazia procissão do enterro... A

Rua Coronel Vieira, eles tudo jogava coisas... E das portas e janelas, tudo com aquelas colchas bonitas enfeitando... com jarros nas janelas por onde pas-savam... e bandas de música. Carregavam o Cristo:

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era só gente maior, da alta sociedade. O Juiz, coisa e tal, maior respeito... e a banda do Rogério atrás. Era bonito naquele tempo, eu era garoto... João Butiga... o Ciodário velho eu me lembro dele, o Paulinho Fernandes... o telefone era da “Força e Luz”. O tele-fone atendia toda essa zona. Em 1920 ou 22 vendeu o telefone pra “Telefônica”.

Não havia preconceito não. Eu não me lem-bro de preconceito não. Havia mais respeito, né... Morei naquela casa, não tinha nada, só umas cober-tazinhas, um barraco velho tudo bem arrumado. E a

“Força e Luz” era pequena também... Tinha o Luiz do Carmo... a família do Augusto Cunha, gente impor-tante! Era ricaço! Eu me lembro... só existia o Hotel Villas... Tinha outro também - Hotel da Estação - era mais pobre. Também acabou, derrubaram aquilo tudo... Conheci toda turma antiga, mas esqueço é o nome... Esqueci de muita coisa... eu podia ter dado mais, queria dar mais ainda, mas eu ando muito es-quecido.

Entrevistado em 5/7/1988 por Hedileuza Maria de Oliveira Valadares e Maria José de Oliveira Paula.

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Nasci em Cataguases no dia 28 de novembro de 1901. Graças a Deus vou fazer noventa anos agora, o mês que vem.

Meus pais eram brasileiros, nascidos aqui em Cataguases também. Eu nem sei como é que eles ca-saram, aqueles dois. Ah, porque naquele tempo não havia namoro, não podia namorar. Uai! Namorava... um sentava lá, outro aqui. Sentar perto não podia não. Eu não sei, mas eles viveram muito bem. Na ocasião em que me conheci como gente, eu já estava com uns seis, sete anos, oito anos, a gente já compre-ende, né. Graças a Deus viveram muito bem. A famí-

M A R I A D A G L Ó R I A A LV E S S I LVA

D O N A D E C A S A

9 0 a n o s

Foto: Operárias da Fábrica de Tecidos, Gilson Costa, s/d, acervo icono-gráfico do IBGE

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lia da mamãe. Deram bom exemplo pra gente, ele era muito bom.

Meu pai, Antônio José Maria, era carpinteiro. Ele trabalhava em casa, né, fazia canoa, guarda-rou-pa, fazia malas, tudo ele fazia. Ele trabalhava no ter-reiro lá de casa. A pessoa precisava, ia lá pedia a ele, e ele fazia, só de encomenda. Fazia sozinho. Era ele só. Lá uma vez ou outra eu ajudava um mucadinho.

Comecei a trabalhar muito cedo, né, com dez anos eu entrei na fábrica dos Peixoto. Trabalhei até vinte e dois anos. Aos vinte e dois eu saí, fui trabalhar com uma costureira - D. Elza. Com dez anos eu esta-va trabalhando na fábrica. Tinha uma com sete tam-bém, até morreu lá dentro, né. Ela ia apanhar uma espula assim no chão, o cabelo dela - um cabelo mui-to grande, né - enrolou ela aqui, ela morreu. Ainda vi ela morrer assim. Até (que) parasse a máquina...

(Eu) trabalhava nos teares. Até que os teares não era muito pesado não. Era um tear menor. Não é aquele grandão não. Aqueles que faz maior, né, as toalhas, o americano, o pessoal que tecia. Tinha o estreito e tinha o largo. Era o mesmo horário (dos adultos). Entrava às seis horas da manhã. Saia às dez pra almoçar, voltava às onze e saia às seis da tarde. Quando fazia serão saia às cinco e voltava às seis. Quando estava apertado de pano pra entregar, a

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gente entrava às seis da tarde outra vez e saia às dez da noite. A gente ganhava por metragem. Se tivesse cem metros ganhava os cem, conforme o tecido que a gente fizesse, os metros. Era pago por metragem. Ah, tinha os mestres, né, pra ensinar a gente. Era fá-cil! Eu graças a Deus não tinha nada que queixar não. Meu mestre era muito bom. Ah... me lembro só do seu Olinto, mas não sei o sobrenome dele não. Era italiano. Depois de doze anos eu saí, ele ainda ficou. O chefe era o Manoel Peixoto. Manoel Peixoto, José Peixoto. Eram os donos da fábrica. Eles tratavam a gente muito bem, né, mas se falhasse em alguma coi-sa eles também chamavam a atenção. Era muito bom pra gente.

Uma moça me chamou pra costurar com ela, eu sai e fui aprender a costurar.

Uma senhora que tinha aí. Aí fui aprender a costurar, mas não fiquei lá também não. Não achei bom costurar não, era muito parado. Depois voltei pra fábrica de novo, trabalhei uma porção de anos ainda. Naquele tempo não tinha aposentadoria não. Não tinha nada não minha filha. A gente saía com uma mão atrás e outra na frente. Não tinha nada dis-so não.

Ah, meu filho! Pra te falar a verdade... antiga-mente a gente não tinha infância não... Porque... tra-

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balhava fora, uai! Chegava em casa cansada, né, às vezes ia até dormir, não tinha esse negócio de brinca-deira, brinquedos, essas coisas não. Eu tenho muita lembrança não. Eu morava em frente à fábrica, numa casa velha que tinha lá. Nós morávamos lá. E de ma-neira que eu não me lembro bem não. A mamãe era muito... como se diz, era severa pra gente. Não deixa a gente brincar com qualquer moça, qualquer criança. De maneira que a gente tinha aquele respeito. Ficava mais dentro de casa.

Estudei. Com sete anos, quando inaugurou o grupo (Coronel Vieira) eu entrei. Entrei no primeiro ano, fiz até o terceiro, o quarto não fiz não. Eu não podia comprar material pra gente estudar. Quando... a gente pedia coisa a ele, às vezes um caderno, um lápis, uma coisa assim, papai dizia que não tinha dinheiro pra comprar. Ele ganhava dez... era dez tostões por semana. Eu não sei como era o dinhei-ro antigo. Dez tostões ele ganhava por semana. Era eu, Conceição, papai, mamãe e o Nonô, meu ir-mão, Nonô, sapateiro. Cê lembra dele? Tinha as tias. Quando a vovó morreu, foram duas tias morar com a gente também. Aí quando apertou aqui na cidade nós fomos pra roça. Fui criada lá no Estado (Colônia Major Vieira). Aí perto onde morreu aquela menina do Francisco Toledo (Raquel). Naquela lagoa que ti-

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nha aquele negócio de fazer travesseiro... paina. Ela morreu afogada ali, né. Minha casa ficava lá em ci-ma. Foi antes de sete anos que nós viemos pra cidade. Nós viemos pra cidade estudar. Depois quando eu... quando nós estudamos, eu, Nonô e Conceição, vol-tou pra roça de novo. Eles davam a terra pro pessoal plantar - O Estado. Ali papai plantava milho, planta-va feijão, a gente ajudava, né, na roça também. Tudo que a gente fazia era da gente.

Iiiih, mas era tão bom! Eu achava bom lá no Estado. Eu achava muito bom! Eu morava lá no alto do morro, longe. Lá onde ele (o vizinho) gri-tava a gente ouvia lá em casa. Era um nosso pri-mo. Chamava Alberto. Mora lá em cima no morro. Vizinho perto mesmo não tinha não... Não sei quem foi morar na casa lá, porque quando nós viemos pra cidade não voltamos mais lá. Dizem que aquela casa está de pé até hoje. É no caminho de Itamaraty. A úl-tima vez que eu passei pra ir em Itamaraty... da estra-da a gente via a casa lá nos fundos.

De lá do Estado a gente vinha até na Igreja, de dia. Nasci na Metodista. (Meus pais) já eram meto-distas. Fui criada ali naquela igreja perto da cadeia. Ali que eu fiz a minha “Profissão de Fé”. Sou meto-dista desde que nasci, graças a Deus! Alfredo Duarte, Juvenal Pereira, Seu Guerra - teve muito pastor

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aqui - Bittencourt, acho que João de Barros também. (Quando passou) pra Avenida, o Reverendo Kennedy, um americano, era nosso pastor. Tinha uns outros (pastores) porque demorou a fazer a igreja. Por causa de dinheiro, por causa de material. O Afonso Pires é que fez a igreja. Ele era construtor. Tem aquela Chácara Pires, lá na Vila Reis, era dele também.

Ah, me lembro quando puseram luz elétrica, quando furaram os buracos para fincar os postes pra botar a luz. O Nonô até ainda caiu dentro de um bu-raco, quebrou um braço ou a perna - mamãe enca-nou. E me lembro quando puseram luz, mas era uma luz igual querosene. Acendia às seis horas da tarde e apagava às dez horas da noite. Ficava tudo escu-ro. (Antes) tinha lampião na rua. A gente não saía de noite na rua não, tinha medo. Não iluminava mui-to bem não. Mas... um negócio assim que eles bota-vam em cima de um ferro. Botava um aqui, botava outro dez metros mais distante. Quase que não ilu-minava nada não. Devia ser querosene, porque tinha um homem que chegava com uma tocha e acendia ele. Tinha um homem que tomava conta. Às dez ho-ras ele voltava apagando tudo. Tinha só umas ruas assim, só aqui no centro é que tinha luz. Pra outros lados não tinha não. Cataguases antigamente era is-so aqui, só... eu conheci isso aqui tudo mato. Da es-

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quina aqui até lá embaixo no rio tudo era mato (Rua Alfredo G. Barroso). Conheci tudo mato isso aí. Praça Rui Barbosa toda cercada de uns pedaços de trilho. Tinha uns buracos, passava uns arame e cercava a praça toda. Cavalo... era porco, cabrito, tudo que an-dava na rua entrava pra comer as plantas, né. A gen-te tinha um portãozinho... você entrava em frente a padaria Santo Antônio e saía lá em frente o Bemge. Tinha outro portãozinho lá. Você entra ali e saía lá. Não podia deixar o portão aberto. A gente tinha que entrar, passar e fechar. De noite, a gente, às vezes, ia sentar lá mucadinho, mas não podia porque era mui-to escuro, tudo lampião. A gente tinha medo. Mamãe não deixava a gente sair de noite por causa da escu-ridão, o lampião quase não iluminava nada. Perigo mesmo não havia, mas você sabe, o perigo está em toda parte, né.

Eu andei muito de bonde. Pagava duzentos réis pra andar de bonde, mas eu andava de graça. Eu morava na Praça Santa Rita na ocasião dos bondes. Puxado a burro, né. Tinha, acho que três... três ou quatro bondes. A linha lá na ponte... aquela linha o bonde não chegou a estrear ela não. O percurso era na Praça Santa Rita, descia, virava ali no Mulambo

- aqui na Praça Rui Barbosa, aqui em cima - virava, descia até lá na Estação. Pra lá da Estação tinha uma

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casa velha lá onde guardava os bondes e os burros. Eram quatro burros que puxavam o bonde. Não, na Avenida não (Avenida Astolfo Dutra). Nessa ocasião não tinha Avenida não, era tudo mato e tinha aque-le córrego. Aquele córrego que tem perto do Felipe (Casa Henriques Felipe), ele passava lá perto da Força e Luz, por ali assim. Depois passaram ele pra cá para poder passar a linha de trem. Ali não podia passar o bonde, porque era tudo mato. Conheci a Avenida desde ali debaixo, onde foi a Carcacena, até lá em ci-ma, na Usina de Açúcar (atual Praça de Esportes e al-moxarifado da Prefeitura). Conheci aquilo tudo mato, não tinha casa nenhuma não. Era tudo mato, foi tudo capinado ali. Só sei que eu andei muito de bonde e o moço não cobrava nada porque era garotinha, ti-nha idade, mas era muito magrela, ele achava que eu era nova e deixava eu andar. (Funcionava) dia intei-ro, à noite não, até seis horas da tarde. (Era) mais pra passear. Ih... tinha ocasião que ele enchia de gente. O burrinho coitadinho, é que cansava, né. Era muito bom aquele bondinho. Eu sei que tinha um condutor e tinha o que recebia as passagens, né, que a gente levava, mas não lembro muito bem deles não. Eram muito amigos da gente, mas não me lembro não.

O Hospital era ali onde era o beco, Vila Duarte. Ali era o Hospital antigo mesmo. Era ali, nas du-

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as partes ali. Aqui, nessa rua de lá. Rua Professor Alcântara. E, aquela escada. Ali que era o Hospital. Vila Duarte, agora é Vila Adolfo de Carvalho (pró-ximo à antiga Telemig). Até uma ocasião tinha uma Dona que morou lá, numa casa daquela, disse que de noite as coisas mexia na casa dela, tirava as panelas do lugar botava em cima do fogão, parecia que mexia nas panelas. Diz que era os defuntos que... alma dos defuntos que ficou lá. Falei assim:

“Ah deixa de ser boba menina! Quem morre não volta aqui não”. “Ah, mas mexe sim! Mexe nas minhas panelas a noite inteira”. Bobagem, né.

Na inauguração do Hospital, onde é hoje, eu fui. Acho que foi... o mês eu não me lembro, mas foi em 1923. Aquela ponte metálica... lembro da inaugu-ração dela também. Agora, essa última inauguração que teve quando pintaram ela e arrumaram, eu fui também. Conheci (a ponte de madeira). Era onde... sabe lá do outro lado da ponte? Tem rua que tem uma meia entrada assim, ali que era a ponte. Saía lá no colégio das Irmãs. Eu um dia eu vim com a ma-mãe pra Igreja, nós viemos todos juntos, eu enfiei o pé no buraco, a tábua quebrou comigo, quase que eu caí dentro do rio, lá na ponte de tábua. Iiiih! Mas tava muito velha, precisava tirar mesmo, na ocasião que fizeram essa de ferro. Alemã, né, acho que é alemã.

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Num instantinho construíram a ponte. E desmancha-ram a de lá. E teve gente que chorou, por tal ponte ter acabado, a ponte de madeira. Todo domingo eu passava nela pra ir à Igreja. Vinha lá do Estado a pé. Passava por ela e saía onde é o colégio das Irmãs hoje. (Ali) não tinha nada não. (Tinha) uma igrejinha pe-quenina que tinha lá. Uma capelinha. Atravessava a ponte, ia pra Igreja. Vinha nessa perto da cadeia, por-que não tinha outra lá não.

“Da Maria Fumaça”? Lembro, muito mesmo. Andei pra Miraí. Era a “Maria Fumaça” que ia pra Miraí, aquele trem velho, aquela maquininha peque-nininha. Era uma fumaçada mesmo! Eu fui muito a Miraí na “Maria Fumaça”. Quando a minha amiga casou que foi morar lá, eu ia lá sempre. Era a “Maria Fumaça” que rodava. Parecia que era muito longe. Era tão pertinho! Ia uns dez (passageiros), quase não ia ninguém não. Se tivesse gente para embarcar ele parava (em São Diniz), se não tivesse não parava não. Depois ia até Glória... Sereno, Glória. Depois tinha um lugarejo pra lá, aquele parava também. Chegava em Miraí num instante, dentro de uma hora a gen-te chegava lá. Miraí era muito atrasado também, né. Conheci muito Miraí quando Lila Poyares morava lá.

Lembro! Lembro muito! Antiga aquela cháca-ra! Era menina e já conhecia aquela chácara, era mui-

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to bem tratada. Conheci o Seu João Duarte também. Quando eu trabalhava na fábrica passava lá, o Seu João Duarte tava lá, no escritório, naquela chácara em frente ao Hotel Villas, naquela chácara que hoje está acabando, né. Ele mesmo trabalhava no escritó-rio. Era português. Dona Catarina era... diziam que era amiga dele. Eu não sei não. Era uma portuguesa, morava lá. A dona Catarina era uma senhora já... de quase uns cinquenta anos mais ou menos, quando eu conheci ela. Era bonita! Ficava sempre no portão, a gente passava pra fábrica, né, eu abanava a mão pra ela. Ela morava com seu João Duarte, do café.

Humberto Mauro... me lembro. Ele era de cine-ma, né. Eu fui lá em Volta Grande pra ir na casa de-le, mas não encontrei com ele não, porque ele estava viajando. Humberto Mauro foi muito amigo da gen-te: ele, os irmãos dele. A Bebe, a mulher dele, era da nossa Igreja. Um dia desse, um sobrinho meu foi lá (em Volta Grande) e disse que a casa dele ainda está lá. Acho que é museu. Diz que é uma chácara bacana mesmo lá, casa dele.

A Eva Comello eu conheci ela com dois anos. Dois aninhos, quando ela veio para aqui. Trabalhava no cinema. Eu conheci muito a Eva, foi muito minha amiga também. Pai dela tinha um cinema aí, acho que tinha um cinema aonde é a padaria do Nelo,

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por ali assim. E, eles faziam filmagens. Depois mu-dou aqui pra rua... aquela rua que desce pra cadeia... É Marechal. E ela morava ali com a mãe dela. Ele (Pedro Comello) era italiano. Dizem que vieram fu-gido, né. Veio a Eva e veio o irmão dela. Era um casal só que tinham. Dona Ida que é mulher dele, mãe dela.

Iiiiih!! Rosário Fusco, eu conheci ele chupando bico com dois anos. O filho dele, o François, teve na-morando uma neta minha e então a gente teve lem-brança do pai dele. Eu passava às vezes ali em cima, ele morava prá lá daquele botequim, indo pra praça (Rui Barbosa), numas casas que tem ali ainda. Perto da Canuta por ali assim. Eu passava na rua, o Rosário Fusco estava assentadinho chupando bico. Depois que ele cresceu, casou... ele foi pra França, né, foi ser... o que ele foi ser na França? Ele ia ser um negócio na França. Chegou lá encontrou aquela francesa e casou com ela, né, depois ele veio pr’aqui outra vez casado. Morou lá em cima na Avenida, o François nasceu lá.

Dr. Francisco eu lembro, eu lembro porque tra-balhei na fábrica, ele estava sempre lá. Francisco, o João, o José, o Manoel - Manoel careca.

Dr. Norberto? Me lembro. Aquele... um terre-no que tem lá em baixo do pontilhão grande, aquele terreno à direita ali, onde é a fábrica de papel, onde é a... aquela química (Indústria Química), por ali assim

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tudo era dele. Diz que ele tinha doado aquilo tudo pro hospital. A fazenda da fumaça também, lá em Santana, deixou pro hospital. O Seu Anízio Pinheiro ficou tomando conta. Ah, esse, Cataguases tem mui-ta coisa... as pessoas deixavam uns pros outros sem ser deles. Às vezes deixava uma coisa pro fulano, quando ia ver a coisa era do outro muito diferente. É. Não tinha nada. Não tinha escritura, não tinha papel nenhum.

Quem conheceu Cataguases como eu conhe-ci! Rua tudo chão! As fábricas lá embaixo. Tudo de-sorganizado, né. Se a gente perdesse hora era mul-tado em dois, dois mil réis, que era naquela época. Descontava no pagamento da gente, quando ia pagar. Perdesse hora de manhã podia entrar pra trabalhar, mas tinha que pagar os dois mil, dois mil réis que eles falavam. Levava todo dinheiro que a gente ga-nhava. Seu Manoel era muito ruim pros operários. Seu José não, Seu José era muito bom. Altamiro... mas o Manoel era muito ruim.

Eu só trabalhei naquela lá embaixo (Irmãos Peixoto). Trabalhei lá 12 anos. Depois de 12 anos papai me tirou. Achou que eu estava ficando doen-te, estava emagrecendo muito, me tirou de lá. Em uma ocasião quase que eu fiquei tuberculosa, uai! Alimentava mal e trabalhando naquela poeirada!

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Tinha o sanatório lá em Barbacena, já tinha uma parte do sanatório separada pras operárias daqui. Numa ocasião, foram cinco de uma vez pra lá, pro Hospital. Não havia remédio pra isso né. A gente passava mal e tinha que suportar tudo. Quando papai me tirou da fábrica eu estava muito doente. Ele fez um remé-dio no leite com uma porção de coisa pra mim tomar. Foi quando eu fiquei mais forte. Fábrica não serve não, a gente toma muita poeira. Hoje tá outra coisa. Naquele tempo a gente entrava às seis da manhã, ia até às seis da tarde e voltava... vinha em casa jantava, voltava e saía às dez da noite. Quando estava mui-to apertado de pano, de pedido, fazia serão. Um fio que desse defeito no pano a gente tinha que pagar ele. Quando a gente recebia uns trocadinhos já era por milagre de Deus.

Trabalho e Igreja. Trabalhava na fábrica, en-trava às seis horas da manhã e saía às dez da noite, né. (lgreja) aos domingos e quando tinha reunião das moças eu ia também. Mas era mais só aos domingos, porque, às vezes, dia de reunião a gente não podia ir, né, por causa da fábrica. Cansava muito também. O serviço. A fábrica cansa muito. Cansa mesmo.

Olinda Neves, Alice Neves. Elas eram minhas amigas inseparáveis, essas duas, morreram no Rio. Acabaram. Tem a Zizinha Marinho também. Era me-

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todista também. Morava lá na Vila. Antigamente a gente não tinha tempo de ter amiga não. Porque tra-balhava fora, estava fora, estava sempre em casa aju-dando a mamãe no serviço da casa. De maneira que a gente quase não tinha tempo de sair com as amigas não. Encontrava um mucadinho no domingo na igreja.

(Praça) Lá uma vez ou outra, que a mamãe não gostava não. Ela não gostava que agente saísse, principalmente para ir na praça. Quando a Olinda e a Alice iam lá em casa pedir, ela deixava dar umas vol-tinhas. De lá mesmo ia pra Igreja, da Igreja vinha pra casa. Mas era muito difícil passear assim. Não é igual hoje: filhas às vezes sai de casa, a mãe nem sabe onde estão andando. Naquele tempo, a gente tinha de falar aonde ia. Às vezes ela até mandava o Nonô atrás pra ver se a gente estava no lugar que a gente pedia. Era tão severa assim e graças a Deus eu queixo nada, eu acho que estava muito bom, porque eu fui uma chefe de família, né, minhas filhas me obedecem até hoje, são muito boas pra mim.

De noite tinha que ir pra Igreja. Carnaval... nunca brinquei em carnaval. Mamãe não deixava não. Circo era proibido. Metodista não ia em circo não. Uma noite tinha um negócio que ia haver lá no circo, não sei o que foi, eu sei que foi muita gente, muito metodista. Aí o pastor não pôde... não deixou

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de chamar atenção, mas não castigou ninguém não, porque foi muita gente, né.

(Naquela época) era muito melhor. Parecia que havia mais amor entre os crentes... No dia da inau-guração da Igreja nova, lá na avenida, nós saímos a pé ali de perto da cadeia, fomos cantando hino até lá. Passamos pela Prefeitura e descemos aquela rua da “Cima” cantando hino, até lá na inauguração. Dia vinte dois de julho a inauguração da nossa igreja, mas não lembro o ano não (30/7/1922). Todo mun-do tinha que ajudar. As crianças da Escola Dominical, todo domingo, levava um tijolo. Tinha que levar um tijolinho e botar lá. Foi construída com a maior difi-culdade aquela Igreja. Até o Pires trabalhava de gra-ça. Não cobrava pra fazer, nunca cobrou um tostão pra fazer a Igreja. A gente dava lá uns trocados a ele, mas que ele cobrava não.

Pra te falar a verdade, não me lembro da en-chente quando eu era menina, quando eu era moci-nha. Agora, só me lembro de uma... eu morava na rua do... Rua do Cabral (Dr. Sobral). Eu lembro de uma que foi lá no meio de nosso quintal. Chegou aqui na pracinha (Sandoval Azevedo), aqui tudo. O meu quintal, onde eu morava lá em cima, era um morro, de maneira que dava no meio do morro. Só me lembro daquela enchente grande que dava. Era

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solteira ainda, morava ali, morava com mamãe o pa-pai, a Conceição. Não me lembro de enchente que da-va não. (Agora) a enchente chega até aqui. Qualquer chuvinha que dá vem enchente. A Déa tinha limpa-do a casa o ano passado. Quando foi esse ano (1991), princípio do ano, foi que deu enchente... Ficou tudo sujo outra vez. A gente não tem segurança.

Lembro da “espanhola”. Papai ficou mui-to ruim! A mamãe deu chá de erva-cidreira, aquela erva-cidreira de capim, fez um chá bem forte e deu a ele com um negócio lá, com azeite, não sei. Ele te-ve ruim com a “espanhola”! Uma febre! Era febre só que dava na gente, mas eu não tive não. Eu trabalha-va na fábrica, continuei trabalhando. A Lelé, minha tia, teve também. Teomília que ela chamava. Sarou. Mamãe deu chá de erva-cidreira a ela com azeite de mamona, ela sarou. Papai também. Morreu depois. A única que me lembro de epidemia foi a “espanhola”. Não me lembro mais de nenhuma.

Ah, a gente dava remédio caseiro. Eu dava remédio caseiro. Eu às vezes fazia. Plantava em ca-sa hortelã. Tinha poejo, tinha tudo em casa. Adoecia com gripe... qualquer coisa era chá de mato que eu dava. Dava resultado. Médico uma vez na vida e ou-tra na morte. Porque não podia pagar médico, mesmo barato do jeito que era, né. Dr. Miranda... Dr. Walter

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ali que é antigo... o mais velho é o Dr. Miranda. Tinha outro eu não me lembro bem não. Dr. Otônio era muito bom. Nunca fui no médico. Ganhei oito filhos. Parteira. Não, nunca frequentei médico, nunca con-sultei com médico, este período, nascia tudo em casa. Na hora que começava a passar mal chamava a par-teira. Era Dona Rosa Amaral, mãe do Antônio Amaral da Igreja, era da nossa Igreja também. D. Rosa...

“D. Rosa Parteira”. Graças a Deus em três dias levan-tava, ia cuidar da minha obrigação e não tinha nada.

Era muito desdeixado o comércio. Era ruim da gente andar, ruim da gente comprar as coisas, tu-do muito... a gente achava caro porque a gente não tinha dinheiro, mas a gente comprava com muita dificuldade, muita dificuldade mesmo. Me lembro do Joaquim Peixoto Ramos, que era ali na esquina onde é o Banco Nacional hoje. Era do tamanho do Banco. O Fortunato era em frente da Marcelus, o seu Joaquim Carvalho era ali pra baixo também; depois lá em baixo tinha o Felipe, o Felipe é antigo ali. A Nacional também.

Não tinha armazém grande da gente comprar as coisas não. Era tudo pequenino, igual aquele bo-teco que tem ali em cima. A gente ia, comprava uma coisa aqui, comprava outra lá. Custava encontrar aquilo que queria. Fome graças a Deus, nunca nin-

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guém passou, né. Todo mundo plantava, todo mun-do colhia, né, trazia pra cidade para vender.

Não! Que calçamento! Não tinha nada, era chão puro mesmo. Ah, o calçamento foi pouco tempo. Eu estava até em Brasília quando calçaram a minha rua aqui, resolveram calçar ela.

Me lembro no outro lado da ponte, do Fla-mengo. Lá naquele fundão (atrás da Industrial), lá ti-nha campo do Flamengo. Iiiih! Eu ia muito a futebol lá. Tudo uns fulasqueiros! Vinha de Miraí, vinha de Sereno jogar aqui; a gente ia lá pra distrair. Ah, futebol antigamente era muito ruim, eu acho, não sei, porque eu não conheço, né, negócio de futebol. Mas eu gosta-va do Flamenguinho, quando tinha o campinho dele ali, né. Onde é o SESI, por ali tinha um campinho do Flamengo, bom mesmo. Todo joguinho do Flamengo eu estava lá, torcendo prá ele. Era uma vargem ali.

Ah, mais alegre? Ah, acho que quando eu me casei. Que eu gostava muito do Antônio, né, ele era um mulatinho, ele era um mulato bem fechado. Mamãe não gostava muito não, mas deixou eu casar. O dia mais triste da minha vida foi quando ele mor-reu. Me deixou com os filhos tudo. E, (as moças) ca-savam muito cedo, mais eu casei com 30 anos. Não sei porque eu... fui conhecer o Antônio muito tarde. O Antônio trabalhava na Força e Luz, depois passou

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pra telefônica. Quando nós casamos ele trabalhava na telefônica. Eu casei no dia 30 de setembro de 1931. Se meu marido tivesse aí... eu fazia sessenta anos de casada. Nós casamos e fomos pra Muriaé. (Depois) viemos pra Leopoldina, de Leopoldina fomos pra Volta Grande. Em Volta Grande fiquei cinco anos. A Déa, o Udnei, a Loló são nascidos lá em Volta Grande. Depois voltamos pra Cataguases e estamos aqui até hoje. Meu marido morreu e nós ficamos aqui. Eu mo-rei lá na Vila naquele beco do Agustinho Rezende, um beco que tinha ali. Depois morei na Vila Minalda, e na Vila Duarte. De lá é que o Antônio comprou essa daqui. Foi a Companhia que comprou pra nós e foi pagando, foi descontado no ordenado dele, né, mas quando foi daí a nove meses ele morreu. Ficou um tanto ainda para pagar e eles perdoaram a dívida, não cobraram não. Eu fiquei com a casa.

Eu acho que... pouquinho mas tinha (uma pen-são). Mas eu custei boba! Passou acho que sete me-ses sem receber um tostão. As meninas trabalhavam ali na Nogueira embrulhando balas e o Udmar lá na farmácia do José Esteves, é que ajudava. (Tive) oito. Cinco mulheres e três homens. Graças a Deus são to-dos oito vivos: todos casados.

Ah, Gláucia! Pra te falar a verdade, minha filha, eu acho que antigamente era mais fácil. Não havia

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dinheiro não, mas era fácil. Ah, porque as crianças eram obedientes. Hoje se vê crianças muito rebeldes pros pais. Os meus filhos, graças a Deus, nunca me deram trabalho. Nunca me desobedeceram, mesmo depois que o pai morreu. Eles me ajudaram muito, principalmente o mais velho, o Udmar. A vida, acho que era mais fácil, as crianças tinham mais vontade de estudar. Mas, (ao mesmo tempo) era muito difícil. Eu ganhava... às vezes eu pedia no grupo um cader-no, folha... aquelas folhas de almaço que eles precisa-vam, eu pedia tudo no grupo pra eles, eu não podia comprar. Eu recebia muito pouco, né. Estavam todos dentro de uma casa ainda, todos comigo.

Eu acho que sou tão feliz! Graças a Deus! Fui feliz no meu casamento, um marido muito bom. Tenho saudade dele até hoje. E meus filhos também são muito bons pra mim. De maneira, que a única coisa que eu tenho que agradecer a Deus é a bonda-de dos meus filhos pra mim. São muito bons. Bons mesmo!

Entrevistada em 3/10/1991 por Gláucia Siqueira e José Luiz Batista.

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Sou de Astolfo Dutra, meu pai é de Astolfo Dutra, minha mãe é de Astolfo Dutra. Antigamente era Porto de Santo Antônio, depois passou à cidade de Astolfo Dutra. A minha mãe é Carolina Maria de Jesus. Meu pai é Aristides Magalhães Pereira. Eu nasci em 1925. Então, eu gosto muito da minha terra, sabe. Eu adoro Astolfo Dutra, mas tem tanto tempo que eu não vou lá!

Eu vim muito pequena pra Cataguases, sabe. Naquela época, eu era muito pequenininha e gosta-va muito de brincar no jardim... Corria aquele jardim

M A R I A M A G A L H Ã E S P E R E I R A

T E C E L Ã

6 7 a n o s

Foto: Maria Magalhães Vieira, 19 anos, Rainha dos Operários, Indústria Irmãos Peixoto, s/a, 15.05.45, Arquivo Instituto Nossa Senhora do Carmo

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de Astolfo Dutra... Eu brinquei muito naquela praça com as outras colegas, sabe? Brinquei... Eu não saía da Igreja. Eu era pequena, podia ter uns quatro ou cinco anos, mas eu gostava muito de ajoelhar nos pés de Nosso Senhor dos Passos e Nossa Senhora das Dores.

Ficava encantada de ajoelhar ali... Eu tenho muita vontade de ir em Astolfo Dutra... Ainda vou, eu tenho conhecidos antiquíssimos... é pertinho, mas minha luta não deixa eu ir. Sempre tem uma coisa pra resolver todo dia! Faço uma coisa, faço outra... Então, nunca chego a apanhar o ônibus pra poder ir à Astolfo Dutra... Mas qualquer hora vou aparecer lá. Lá tem um senhor que eu quero muito ver, com-preendeu. Ele chama Rui, sabe eu não sei o sobre-nome dele, porque eu era pequenininha... Ele tinha venda, eu comprava muito doce na mão dele, sabe. Rui... eles eram da família dos Florianos... São pesso-as assim que a gente tem uma recordação de infância, compreendeu?

Nós... o papai tinha uma casa muito grande. Papai possuiu casa, uma casa muito grande, sabe? O meu pai comprava café, entendeu. Ele é um Senhor de Camargo, Joaquim Carvalho, que eu não cheguei a conhecer. A nossa casa era grande! O salão de pôr café também era grande! Então, meu pai comprava

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café junto com esse senhor Joaquim Carvalho, mas veio uma época... eu não sei te explicar que época é essa... Foi uma febre de café, sabe. Então meu pai quebrou junto com Joaquim Carvalho também3. Não sei te dar uma explicação porque eu era criança, na-quela época. Então, meu pai vendeu a casa lá a troco de outra casa, pra poder vim pr’aqui. Nem me lem-bro mais o nome do homem que comprou. Naquela época tudo era baratinho, né. Eu era pequenininha e achei ruim com meu pai de vender aquela casa! Mas o homem que comprou, dando outra casa a meu pai, voltou um tanto a ele, compreendeu: dinheiro, por-que nossa casa era um terrenão! Uma casa grande, um terreno muito grande, fizeram um prédio nesse lugar! Então nós viemos pra Cataguases.

Nós moramos ali naquela casa do Francisco Rossi, onde é a Rodoviária. Eu conheci o Francisco Rossi, sabe, tava velhinho... Naquela época eu era criança... Então, nós viemos pr’ali, nós moramos... nós mudamos também para vários lugares aqui, de-pois que meu pai vendeu... Meu pai chegou a com-prar uma casa, ali na Rodoviária. Ele veio pra cá pra gente poder trabalhar, pra minha irmã mais velha entrar na fábrica, sabe. O meu pai começou a conser-

3) Crise de 1929, com a quebra da bolsa de NY.

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tar máquinas, concertava relógio, punha mesa nas máquinas... muito caprichoso, muito! Depois ele vi-veu disso. Era tão inteligente que na mocidade dele, ele fez um moinho sem ninguém ensinar! Moinho d’água, sabe, porque ele já morou na roça também. Isso não é do meu tempo não. Eles que contava e eu tava sempre ouvindo as conversas, né? Então ele fez um moinho na roça. Você tá vendo aquela caixa que tá ali? Ela tem mais de cem anos! Aquela caixa ali foi do tempo do meu pai. É relíquia! É uma madeira roxa, sabe. É relíquia porque ali ele guardava roupa, ali em cima daquela caixa ele trabalhava. Aqui em Cataguases consertava máquina, consertava relógio, compreendeu? Depois ele vendeu a casa dele aqui... não comprou mais. Nós ficamos sem casa. Aí, você sabe... Mas naquela época o meu irmão Elias estava trabalhando, a minha irmã Dalila estava trabalhan-do... Eu não, eu ainda era muito pequena para tra-balhar. Eu tava estudando ainda, né. Eu estudava no Grupo. Eu era pequena ainda...

Eu estudei aqui no Grupo Guido Marlière. Eu só tenho o terceiro ano. Não estudei mais não, sabe? Vendo os trabalhos da minha mãe, do meu pai, dos meus irmãos, um dia eu cheguei perto da minha mãe e falei assim: - Minha mãe, me tira do grupo. Eu paro de estudar. Vou trabalhar para ajudar a senhora.

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Aí resolveram. Naquela época eu tava com treze pra quatorze anos. Eu fiz quatorze anos, a mi-nha irmã pediu serviço pra mim. Aí o Onofre Correa Neto arrumou o serviço pra mim. Minha irmã entrou na Indústria Irmãos Peixoto não sei a época. Eu en-trei na fábrica com quatorze anos. Eu fui criada den-tro da Indústria Irmãos Peixoto. Eu não arrependi de ter parado de estudar, porque eu gostava muito de trabalhar na fábrica. Eu fiquei trabalhando só na fá-brica, foi uma coisa muito boa pra mim. Eu fui criada dentro da fábrica porque quatorze anos, pra chegar até o ponto que eu cheguei... trinta e dois anos... Eu trabalhei trinta anos e me aposentei. Mas tive que trabalhar mais dois anos para pagar o INPS. Porque a gente às vezes falha porque fica doente, né, fica por conta do INPS. Então, aqueles dias, aqueles meses que a gente falhou é descontado. Então, eu trabalhei trinta anos. E quando eu me aposentei, eu fiz aquela festa pros operários! Convidei os operários pra to-mar uma cervejinha na minha casa, como eu te mos-trei no retrato.

Em 1944 mudamos pra casa da Indústria Irmãos Peixoto, porque minha irmã já trabalhava, ela arrumou. O Seu Manoel Peixoto deu a casa pra nós morar. A nossa casa foi ali na Rua José Hardy Ramos. E ali aquela rua que vai pro pontilhão, pra

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Vila Reis. Ali, beirando a linha tem um correio de ca-sa, ali perto da Companhia, aquela Estação Velha. Eu não sei se você lembra não, porque ali antigamente... Naquela época, o Seu Mota - que Deus dê a ele um bom lugar - trabalhava na fábrica e conseguiu, com Seu Manoel Peixoto, uma casa pra Dalila minha ir-mã, sabe? Aí nós mudamos e moramos ali quarenta e três anos. Aquela casa ali, pra mim tem uma relí-quia. Você nem queira saber! Gosto muito dali, por-que graças a Deus, fui muito feliz! Os vizinhos são tão bons! Ali todo mundo é bom, entendeu? Então, aonde eu vou eu faço amizades. Eu sou muito co-municativa. Eu gosto de comunicar! Eu gosto de ter boas amizades! Tem uma senhora que mora ali, você conhece a dona Maria Vargas? Ela deve ter uns 86 anos... Quando eu mudei ela já morava ali. Uma vizi-nha ótima, só você vendo!

Quarenta e três anos eu morei ali: de 1944 até 1987. Eu mudei pr’aqui porque o pessoal agora, eles tão pedindo a casa aos aposentados, entendeu. Em 1960... eles me ofereceram a casa, pra comprar. O doutor Francisco mandou o chefe, não sei se era o Zé Margato que era o mestre... não sei. Eu sei que ele mandou me oferecer... cem cruzeiros, naquela épo-ca. Eu queria, mas meu dinheiro era pouco. Eu não cheguei nem a conversar com ele, só falei que não

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queria comprar. Foi o erro que eu fiz na minha vida! Se eu comprasse aquela casa... Eu tô pagando pou-co porque o dono da casa aqui, e a dona, são muito bons para mim. Eles faz um preço camarada aqui pra mim, compreendeu? Mas eu vejo que aí na cidade ninguém aluga mais casa por três mil! Eu vou te di-zer uma coisa: um chefe de família como é que vai pagar roupa e alimentação? Tá tudo caro! Então, eu falo que o aposentado que ganha um salário devia ganhar dois!

Eu aposentei com um salário. Se eu aposentas-se ao menos com dois salários, ainda vá lá, mas eu aposentei com um salário! Não tá dando, sabe? Não tá dando porque um salário não dá: tem despesas de casa, as roupas estão muito caras. Eu sou sozinha e passo aperto, quanto mais um chefe de família! Eu aposentei com trezentos e onze... Hoje não está valen-do nada... Hoje, são três notas de cem, né. Eu recebo o salário mínimo na minha aposentadoria. Quem ganha um salário mínimo não dá pra pagar aluguel de casa não. Não dá não! Não tenho nada! Trabalhei esse anos todos e não tenho nada! Só tenho minha aposentado-ria: eu vivo da minha aposentadoria. E dou graças a Deus! Dou conselho à mocidade: entra numa fábrica, entre em qualquer serviço, trabalha, paga o INPS até aposentar, porque o dinheiro da aposentadoria é sa-

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grado! É pouco, mas é sagrado! Mas o Collor vai dar um jeito de melhorar isso, não vai? O Collor podia dar mais um salário pra quem ganha um salário mínimo.

Na época que eu aposentei o doutor Francisco - o Seu Manoel acho que já tinha morrido - uma pes-soa muito boa para os operários... Eu, mesmo apo-sentada, continuei na casa. Eu aposentei em (19)72. Mesmo aposentada eu continuei na casa porque o doutor Francisco é uma pessoa muito boa pros operá-rios. O seu Emanoel é ótimo! O seu Altamiro, o João Peixoto... Tudo foi bom pros operários. Aposentou, ele deixava ficar, né? Nós somos inquilino bom, eu fui uma operária muito boa. Graças a Deus fiz por onde. Eles gostava muito de mim e eu também gosta-va deles, entendeu? Eu não tenho nada a dizer da fa-mília dos Peixoto porque eles foram muito bons pra mim. Todos eles.

Eu entrei na fábrica em 1939. Eu trabalhei na tecelagem. Eu trabalhei não sei quantos anos na te-celagem! Eu mudei de serviço porque eu adoeci. Eu tive problema acho que de rins... não sei, não me lem-bro mais. Então eu fui trocada de serviço. Depois da tecelagem eu trabalhei nos carretéis. Eu fui encarre-gada da maquininha de espularia, pra fazer espulas pras tecelagem, entendeu? Depois eu fui pra sala de pano, duas salas de pano. A sala pra gente revisar os

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panos e depois tem outra sala pra gente cortar os pa-nos, arrumar tudo direitinho e despachar, compreen-deu? São duas salas de pano: uma só pra revisar. A gente vai revisando, as outras vão cortando. Então eu trabalhei: tecelagem, carretéis, sala de pano, fui en-carregada da maquininha de espularia. Eu aposentei como encarregada da maquininha.

Na tecelagem, o Onofre Correa era o mestre. Tinha um contramestre, ele morava na Vila Minalda, tratava ele de Neném. Não sei o sobrenome de-le não. Depois o Riviria também entrou na fábrica. Eu fui pros carretéis, o encarregado era José Alves. Encarregado é o mestre; o contramestre é para con-sertar as máquinas, consertava tear... Tinha um ra-paz que também trabalhou na maquininha, chamava Expedito. Tinha o Zé Vieira, que também trabalha-va nos carretéis e na maquininha. Era uma seção só: carretéis e maquininha. Depois que eu fui pra sala de pano, o encarregado era o Ciro. Não, era o José de Souza. Falar nisso tem o Zé de Souza pra você en-trevistar, na casa dele. Ele foi chefão da sala de pano também. O Ciro também trabalhava na sala de pano como encarregado, sabe? Tinha... ah meu Deus, ele já morreu...

Tinha muita gente trabalhando na fábrica: oito horas, toda vida. Na fábrica, a gente que vai trabalhar

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tem que dar produção, né. Se a gente trabalhava na tecelagem, tem que dar produção! Se a gente traba-lhava nos carretéis, tem que dar produção! Se traba-lhar na maquininha, também tem que dar produção, porque tem que dar conta das espulas pra tecelagem. A sala de pano também tem que dar produção, por-que se tiver defeito você tem que cortar os defeitos, separando os panos com defeito e outros panos sem defeito, entendeu? Os panos sem defeito eles manda alvejar, limpar tudo direitinho e manda despachar.

A fábrica era diferente, quando eu entrei. Tinha uma roda enorme, compreendeu. E tinha as outras roda pequena, como no retrato. Olha. Só tem que no retrato não apareceu a roda grande puxando. A roda grande rodava todas rodas, da tecelagem toda, sabe? Depois, passando um tempo, eles puseram um motor. Neste retrato que tá aqui ainda era as correias, enten-deu. Depois, passando uns tempos, eles tiraram as correias tudo e puseram um motor nos teares. Cada tear tinha um motor pra gente ligar e trabalhar.

Teve uma época, sabe, que os operários da Indústria Irmãos Peixoto usou uniforme. E esse uni-forme que eu estou com ele aí no retrato: saia azul, blusa branca, tênis branco, meia branca, com um escudo aqui no braço. Durante um tempo nós tra-balhamos de uniforme. Depois, não sei o que houve,

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acabou nosso uniforme. Acho que a gente ganhava, não tenho certeza, não. Eu não me lembro mais não. A gente ia de uniforme desfilar. O desfile era muito bonito dentro de Cataguases. Então teve uma épo-ca que o João Peixoto trouxe uma pessoa, não sei de onde, pra poder filmar Cataguases. No dia do filme, quando eles filmaram dentro da Indústria Irmãos Peixoto, eu estava de uniforme. A Manufatora, eu não sei se filmaram lá, mas o pessoal da Manufatora foi filmado na rua também. Durante o desfile, dentro de Cataguases, foi filmado. Eu só sei que todas vezes

- 1º de maio, 7 de setembro - nós desfilava, compre-endeu? Saía a Indústria Irmãos Peixoto, Manufatora, Industrial, o Colégio das Irmãs, os Grupos, tudo saía pra desfilar. Era uma festa! Banda de música... Tinha mais de não sei quantos homens, cada um com o seu instrumento, sabe? Era bonito! Nós ia de uniforme para desfilar... A banda de música de Cataguases era muito bacana! Muito bonito, só você vendo!

Todo mundo gostava de festa! Coisa boa é uma festa! E eu gostava: desfilava, carregava bandeira. Era coisa muito boa mesmo. Tinha tudo, todos mes-mo: homem, mulher... tudo. Toda vida gostei de festa. Quando eu fui eleita pra ser rainha dos operários... Sabe, dentro da Indústria Irmãos Peixoto eles me es-colheram! Naquela época, minha mãe não gostava

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muito de baile, não deixando eu frequentar baile não. Não deixava não! Mas aí, uma senhora - chamava Lourdes Peixoto - foi candidata, e os colegas me ar-rumaram pra ser candidata. Eles que venderam vo-to pra mim, sabe? Eu não vendi nenhum voto. Eles mesmos, os colegas, vendia votos na rua, dentro da Indústria Irmãos Peixoto... Aquela que tinha mais voto ganhava. No final das contas eu ganhei como rainha da Indústria Irmãos Peixoto. Eles me elege-ram, sabe? Foi em 1945 que eu ganhei como rainha. Venderam votos... não sei te explicar direito como foi o negócio não. Eu só sei que eu ganhei como rainha. Fui coroada no Clube dos Operários. Houve um bai-le muito bonito, que baile, antigamente, dava gosto a gente ir! Fui muito feliz! Depois de mim a Elza - não sei o sobrenome dela - também foi rainha. E teve a Galiléia, que também foi rainha na Indústria Irmãos Peixoto, depois de mim. E teve também concurso de simpatia. A moça que ganhou o concurso de simpatia saiu da fábrica. A Elza, depois que ela foi rainha, saiu também. Acho que casou, não sei, foi embora. Só eu fiquei plantada dentro da Indústria Irmãos Peixoto. Ali, trabalhando: a durona foi só eu!

João Peixoto organizava isso. Gostava muito de festa. Aqui dentro de Cataguases João Peixoto ta-va em primeiro lugar pra fazer festa pros operários,

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pra pobreza. Dia 13 de maio: bate-pau. O pessoal ia desfilar na praça com bate-pau pra lembrar dos tem-pos do cativeiro. Eu acho bonito... Cataguases era animado! Cataguases era animado demais! Agora Cataguases não é mais esse Cataguases... Você não vê ninguém fazer festa... Outro dia, na Igreja aqui, eu vi banda de música atrás da Virgem. Eu falei com mi-nha colega assim:

- Ah, no tempo do João Peixoto, seu Manoel, doutor Francisco tinha muito, sabe. Tinha banda de mú-sica atrás dos operários da Industrial, tinha ban-da de música atrás do pessoal da Indústria Irmãos Peixoto, então, quando ajuntava era muito bonito, só “cê” vendo! Tempo bom, já acabou... Eu gosto daquela praça, o busto do Zé Peixoto

foi uma homenagem sim. E a praça é bonitinha. Eu não lembro muito de festa não, mas foi animada aquela festa ali. Não sei te contar sobre aquela praça ali não. Não me lembro da festa ali não. Não sei se houve discurso... Só sei que eles fizeram aquela festa ali, né?

Eu sei que houve uma festa dos “pracinhas”, mas eu não sei contar não, sabe? Não me lembro, não me recordo da festa dos pracinhas não. A única coi-sa que eu lembro, é que eles foram lá no salão dos operários. Foi assim: nós estávamos dançando, tinha

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baile no Clube dos Operários. Podia ser quase no-ve ou dez horas da noite, chegou - não sei se foi o Pedro Dutra ou Zé Esteves - uma turma de homens que eram os “pracinhas”. Na hora parou de dançar. Reuniu os “pracinhas” tudo lá no baile. Puseram banco, mandaram sentar ali, os “pracinhas” assim em volta e tiraram nossos retratos. Eu, como estava no baile... Acho que os “pracinhas” venceram a guer-ra... não sei se é guerra ou se é revolta, não me lem-bro mais o que era não. Eles vieram embora... Então, como nós tava no baile dançando, eles chegaram foram no Clube, reuniram todo mundo e tirou retra-to. Naquele retrato tá o Pedro Dutra, o Zé Esteves, o doutor Edson, doutor Jaime... Tem várias pessoas ali que hoje em dia - o retrato tá meio embaçado - não dá pra gente reconhecer os outros... Tem o Rolô, que foi

“pracinha”... o Didi foi também. O Didi mora aqui. É isso mesmo, nós tiramos aquele retrato. Ninguém esperava quando eles chegaram... Aquela porção de homem lá dentro do salão. Aí eles resolveram, puse-ram um banco lá e tiraram nossos retratos.

Olha, eu toda vida gostei de baile, gostei de cinema e rodar aquela praça, passear. Na época que eu era jovem eu não passeava porque minha mãe não deixava. A minha mãe não deixava eu sair sozi-nha, não deixava eu passear sozinha, não deixava eu

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ir a lugar nenhum. Tinha de ficar rente com ela, ali! Aonde que fosse, tava comigo. Ela me levava no baile, com esse meu irmão Elias, que morreu agora. Ele ia com minha mãe: me levava no baile às nove horas e quando dava onze horas me trazia pra casa. Ele não deixava eu ficar até terminar o baile não.

A minha mãe soube me criar, Deus dê um bom lugar a ela, porque eu agradeço a ela, sabe. Eu agra-deço muito! Eu acho que o filho, uma filha, deve obe-decer pai e mãe, porque é tudo na vida! A família da gente é muito importante. A coisa mais sagrada que tem na vida da gente. Os pais se pôs filho no mun-do, precisa saber criar, porque tem de entregar con-ta a Deus. Cê sabe disso? O que minha mãe e meu pai falava, tava falado! Minha mãe era antiga, desse tempo antigo, ela é antiguíssima, mas ela sabia criar um filho. Eu gosto do tempo antigo, sabe, porque os filhos ficam obedientes ao pai e mãe. Minha família pra mim é sagrada. E uma família distinta, uma fa-mília de gente boa. Uma família que não tem defeito nenhum. Eu te pergunto: porque os mais novos de hoje não podem olhar um pai ou mãe, na velhice? Eles puseram no mundo, eles criaram... Educou o fi-lho: formou pra médico, formou pra engenheiro, for-mou pra doutor! Porque esses filhos não pode olhar mãe ou pai na velhice? Eu graças a Deus, eu olhei

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minha mãe, olhei meu pai e meu irmão. Eu deixei de me casar. Eu não casei, tô solteirona até hoje porque tinha um compromisso com o meu pessoal! Como é que eu ia casar? Também se eu casasse, nem sei como era minha vida... Já estava viúva já muitos anos, por-que vários rapazes que eu namorei, já se foi... Eu tava sozinha do mesmo jeito. E como eu disse a vocês: a gente nasce sozinha e morre sozinha. Ninguém vai com a gente. É ou não é? Tô certa ou não tô?

A vida é essa. Eu não me importo de me en-velhecer. A velhice não é bonitinha? Outro dia no

“Fantástico”4 passou aquela velhinha, de cabelo bran-quinho, com noventa e seis anos. Sozinha. Porque neste mundo é assim mesmo: você nasce sozinho, termina sozinho... todo mundo tem sua vez de ir. Vamos conformar como Deus faz a gente... Na minha mocidade eu fui muito feliz! Agora estou sendo feliz! Se eu chegar nos oitenta ou noventa, se eu for até lá, pra mim é sagrado... Única coisa que eu acho triste, aquelas velhinhas no asilo...

Eu me sinto uma pessoa realizada na minha vida. Minha vida pra mim é boa, uma vida sagrada, porque fiquei muito junto com pai e mãe, toda vida. Não me casei. Olhei minha mãe - morreu em (19)53

4) Programa que de TV que vai ao ar aos domingos.

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- depois ficou meu pai - morreu em (19)63 - depois teve meu irmão mais velho, que foi nosso pai. Meu irmão mais velho trabalhou, ajudou a criar a gen-te. Ajudava em casa, pagava aluguel, punha manti-mento dentro de casa. Meu irmão mais velho - Elias Magalhães Pereira - foi carpinteiro. E tinha apelido de Elias carpinteiro. Ele trabalhou na Igreja de Santa Rita, trabalhou no Edgard Cunha, trabalhou até na casa do doutor Francisco. Trabalhou em vários luga-res. Então ele ficou esclerosado, sabe. Olhei ele cinco anos! Eu deixei de passear, deixei de ir em festa, dei-xei de ir à igreja, tudo porque não podia deixar ele sozinho. Eu era uma companhia, uma irmã. Ele aju-dou papai me criar, então eu olhei o fim da vida dele. Ele não casou, mas teve um filho. Esse filho dele, que é o Roberto, também me ajudou. Eu criei o Roberto (depois) que a mãe dele morreu. Com idade de dez anos ele foi pra minha casa, ficou aos meus cuidados e do pai dele. Criei e eduquei, graças a Deus! Ele es-tudou no colégio Cataguases, formou contador, tra-balha no INPS. Agora está estudando Direito. Este ano ele forma pra advogado. É casado, tem uma filhi-nha. Isso é uma felicidade! Pra mim, que sou solteira, nunca fui mãe, é uma felicidade! Também criei uma sobrinha - de um aninho até sete anos - hoje ela é ca-sada, já tem filhos, está no Rio de Janeiro. O que cai

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nas minhas mãos eu amparo, quer dizer, eu ajudo. O que eu puder fazer para ajudar, eu tô pronta pra aju-dar. Coração bom tá aqui, só falta trato.

Depois que meu irmão Elias adoeceu, com ar-teriosclerose, eu não pude sair. Eu não saía mais de casa. Eu só ficava dentro de casa, cozinhando e olhan-do ele. Eu abandonei tudo pra ficar de olho nele, por-que estava esclerosado. Eu tomei conta do meu irmão cinco anos. Hoje, graças a Deus, tão quase tudo velho, mas todos aposentados. Só tá faltando pra aposentar o Expedito, que trabalhou no Clube do Remo e mora na Taquara. Eu não faço queixa de ninguém, porque eu fui bem tratada. Eu não tive problema com nin-guém, entendeu, com ninguém! Trabalhei muito em política pro Seu Manoel Peixoto. Trabalhei em políti-ca pro João Peixoto - o João Peixoto foi prefeito - to-dos eles gostava muito de mim. Eu também gostava, tratava todo mundo bem. Todos os operários foram bons, porque a coisa melhor na vida da gente é tratar todo mundo bem. Não faço queixa de ninguém.

Na casa do doutor Geraldo, eu trabalhei do-brando cédula, entregando cédula. Eles punha a gen-te pra trabalhar, pra dobrar cédula. Depois de tudo dobrado, a gente ia entregar nas casas, compreendeu. Eu trabalhei com Adail, com a Minalda Simões. Eles tiravam uma turminha pra fazer o serviço pra eles,

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porque naquela época os papelzinho era pequeno. Tinha folha do prefeito, dos vereadores. Agora, com uma cédula só, você tem que por o xis. De primeiro era diferente, já levava a cédula. A gente arrumava a cédula e ia entregar nas casas pra poder votar. Pra quem eles quisesse dar o voto, né. Eu trabalhei mui-to... gostava, gostava muito. Mas eu fui cortada da fábrica, por causa de política. Não me importo com isso não... Se alguém falou da minha pessoa, que eu estava dobrando cédula, marcando cédula com ba-ton, eu não ligo pra isso não. Mas eu chorei muito, na época que eles me cortaram, porque eu adorava a fábrica! Eu gostava muito de trabalhar. Nós... traba-lhando pro Peixoto, eu não me lembro mais quem era o candidato, eu fui acusada. Não sei quem falou de mim, quem levou meu nome não sei pra quem. Eu só sei que o Onofre Correa chegou perto de mim e falou:

- Maria, você está despedida. - Por que? Que que eu fiz? - Não sei. - Você pode falar com eles que eu não andei marcan-

do cédula de baton não. Eu acho até graça! Eu não liguei não, porque

naquela época eu era muito nova. Tinha o meu pai, tinha a minha mãe, não liguei muito não. Eu só virei e falei assim:

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- Fizeram uma calúnia comigo, porque eu não fiz o que eles estão falando não. Mentira! É mentira! Eu fui cortada? Não tem importância não! Eu apenas trabalhava na rua. Eu, a Eva, muitas

moças trabalhava na rua pra tomar conta das pessoas, levar as pessoas, ensinar onde tinha que votar, ensi-nar as pessoas como vota. Mas é mentira, eu não fiz nada disso não... Anulava as cédulas, anulava o voto! Aí sai, em 1946.

Eu fiquei o ano todo estudando lá no seu Domingos Tostes. A filha dele, a dona Dulce dava aula de bater máquina, uma professora muito boa. Comecei a estudar, bater máquina. Eu sei mais alguma coisa porque estudei particular durante um ano. O ano que eles me cortaram eu fiquei estudando. Foi aí que eu aprendi mais... até bater máquina: aula de datilografia.

Passou 1946, tô na minha, né. Quando foi em (19)47 houve outra eleição. Não sei quais eram os candidatos... Aí eles mandaram o João Ramalho. Ele foi lá em casa, bateu lá em casa:

- Maria, o João mandou falar com você. Se você votar neles...

- Você fala com eles lá, com João, com doutor Manoel ou com doutor Francisco, que eu nunca fui contra eles. Eu não sou fingida não. Eu sou uma pessoa muito pontual, muito sincera na minha vida. Eu

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não votei contra eles não! Eu tô pronta pra traba-lhar pra eles: voltar pra fábrica pra trabalhar; traba-lhar nas eleições pra eles, como antigamente. Eu não sei qual dos dois, dos três... eu não sei

se é o João, se é o doutor Francisco, ou se é o Seu Manoel... mandou me oferecer uma vaga na fábrica de novo, se por acaso voltaria... Aí eles arrumaram um discurso pra mim. Quando foi no dia da festa do comício, eles arrumaram um papel pra eu falar. Fui. Trepei no palanque, falei bonito! Decorei o meu pa-pel: um discurso a favor dos Peixoto, a favor do can-didato, que eu nem lembro mais quem era... Eu não me lembro quem fez o discurso. Eu só sei que eles me deram o papel pra falar. Aí eu decorei o papel e falei. Aí eu fiz o meu discurso.

Aquela turma, aqueles colegas da gente, tava tudo assim perto do palanque. Aquela festa toda, as bandeiras... Seu Mota também estava no meio - Deus que dê um bom lugar a ele. A gente trabalhava tu-do em política. Aí, na mesma hora eu vim parar cá dentro da fábrica, junto com a turma. Quando foi no outro dia, eu já estava trabalhando.

Eu gosto muito da família dos Peixoto, porque eles foram muito bons pra Cataguases. Se alguém fa-la deles, eu não tenho nada com a vida dos outros. Cada um tem o seu problema. Cada pessoa tem um

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modo de ver. Então, eu não tenho nada a dizer deles. Todos eles são bons pra mim. Eu sou muito feliz. Fui muito feliz. Foi muito bom. Até hoje, se eles quiser eu vou lá fazer um cafezinho pra eles lá. É mesmo, eu gosto de lidar com as pessoas. Eu não tenho nada a dizer dos Peixoto. Eles foram bons patrões.

Metade da minha vida foi na Vila Rezende. Naquela época era umas casas, agora está tudo mu-dado. Agora, um vai comprando, vai renovando... Hoje, a vila tem muitos prédios bonitos. Os antigo eles vão comprando, vão desmanchando... vai reno-vando. A cidade de Cataguases, hoje, é outra cidade. Do jeito que a gente viu, antigamente...Porque aque-las casa antiga tá se acabando... Tá fazendo prédio, fazendo apartamento... Tem que melhorar a cidade. Antigamente as pessoas tinha amor às casas, tinha amor a um objeto. E a gente entrava naquela Igreja Santa Rita... Era uma coisa antiga, a gente achava bo-nito. Era bonita!

Vai mudando os tempos, vai renovando os tempos, as pessoas vão derrubando as coisa antiga e fazendo tudo novo. A Igreja de Santa Rita era mui-to bonita... Eu não me lembro quem quis fazer ou-tra matriz... A população de Cataguases aumentou muito! Cataguases agora é uma cidade maravilhosa! Uma cidade muito bonita! Você vai na praça e você

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só vê juventude! Cataguases tem muita gente nova, bonita. Cataguases tá renovando. Lá uma vez ou ou-tra, você vai na praça, cê vê aquela colega antiga, que você tinha antigamente. Eu tinha tanta colega! Tem a Judite, A Judite é a única colega que eu saía mais, passeava na praça. Essa irmã da Elvira, que mora ali perto do CB, foi minha colega de passeio. Trabalhou na fábrica comigo. Naquela época tive várias colegas, sabe. Tinha a Arlete, do Bazar René. A Arlete não foi operária não, mas ela era minha colega de passear na praça.

Baile é a coisa melhor que tem! O divertimen-to melhor que tem, eu acho que é baile! Baile assim familiar somente. Baile direitinho, como antigamen-te tinha. Tinha o Clube do Operário atrás da Estação. Aquele correio de casa que tem ali... o Clube do Operário era ali, um salão muito bom, prédio novo... Eu dançava muito no Clube do Operário... Agora já tudo velho... O Emílio era ali onde é o Sindicato do Fundo Rural, o Clube do Emílio era ali. O pesso-al gostava muito porque o Emílio, quando punha o pessoal dele pra sambar na rua, minha filha! Vou te contar! Todo mundo gostava de ver aquela turma de-le nos carnavais! Tinha carruagem bonita! Na minha época o Clube do Operário fazia carruagem também. No carnaval eu saí numa carruagem vestida de rai-

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nha. Um vestido muito bonito! Aquele vestido ali, to-do bordado de vidrilho. Eu não me lembro mais se eu ganhei, se eu comprei aquele vestido... Não me lembro mais... Eu só sei que arrumei a costureira. Ela chamava Carmem, essa senhora que fez este vestido lindo. Ela era costureira e eu sou madrinha da filha da Carmem. A menina chama Dirce. Ela me deu a menina pra batizar... Ela era esposa de um senhor magro, alto, branco...

Ganhei a taça. Eu trouxe a taça pro Clube do Operário. Era um clube muito bom, respeita-dor. Tinha polícia tomando conta do clube. O Mário da Paixão também frequentava muito o Clube do Operário, o Clube do Emílio... Era cem por cento, não tinha briga nem nada... O Lord Clube, eu ainda era criança, eu vinha com minha irmã olhar. Nunca dan-cei não, os de menor não entrava no baile. O Lord Clube era em frente à Indústria Irmãos Peixoto, ali onde é aquela padaria. Então, as moças se apresenta-vam muito bonitas, vestido comprido. Antigamente as moças se vestiam bem, era charmosa... Os homens também se apresentavam de terno; gravata... Muito bonito! No Comercial eu entrei uma vez, numa fes-ta que houve lá. Uma vez eu entrei, nem me lembro mais... ali no Comercial era muito animado! O cine-ma era animado! Olha, ia gente pro cinema! Tudo ia

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pra primeira sessão - tinha primeira e segunda sessão, né - nós ia pra primeira pra depois a gente poder pas-sear na praça. A gente saía às oito horas do cinema, a praça tava cheia! Hoje, eu vou à praça e fico recor-dando, sabe, lembrando daqueles tempos... Era mais animado! Você chegava na praça sete horas... aquela turma de rapaz, de homens, tudo engravatado, tudo de terno passeando em volta. A gente, as moças, pas-seava de um lado, os moços de outro. A gente, naque-la época, só flertava. Flertava com um, flertava com outro, depois a gente escolhia com quem queria falar. Eu gosto muito daquele tempo. É um tempo muito bom, gostoso... Eu não sei se porque o pessoal tem muito carro, (hoje) só passeia de carro, né.

Eu sou católica toda vida. Eu sou da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário.

Eu sou da Irmandade do Sagrado Coração de Jesus, São José e Santa Rita, desde o tempo que o Padre Antônio veio pra essa Igrejinha aqui. Antes, eu frequentava muito a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, frequentava a Igreja de Santa Rita. Eu era muito católica, não perdia uma procissão! Você sabe que Deus ajuda muito a gente nas horas que mais a gente precisa. Nós devemos ter muita fé em Deus! Pedir a Deus sempre proteção, compreendeu. Pedir pra ter uma vida boa neste mundo. Desde que eu

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nasci, o meu tempo foi bom. Eu tenho essa felicidade na minha vida, porque eu acho a vida boa. Eu acho a vida gostosa! A gente precisa de aprender viver. Se você não fizer sua parte, quem vai fazer? Eu, graças a Deus, até hoje me sinto muito alegre, tenho alegria!

O que eu tô contando aqui... esse gravador... muita gente não vai acreditar! São coisas que eu nun-ca falei com ninguém. Você está me entrevistando, me fazendo pergunta, eu estou contando a minha vi-da. Eu gosto de lembrar do passado. Tem muita gen-te que não gosta da idade, nem gosta de falar. Mas eu não ligo não, porque minha mocidade foi muito bonita. Meu tempo de mocidade foi bom... Se você quer viver muito, você tem que chegar na velhice... se você não quiser... tem que morrer novo... Cada um lembra do seu passado. O meu passado foi maravi-lhoso! Até hoje tá sendo bom. Não tenho nada, mas tenho Deus comigo! O que eu estou dizendo aqui é sobre minha vida, é o meu passado. Sobre o passado dos outros, eu não sei informação. Eu agradeço e fico muito satisfeita de você estar aqui comigo, me fazen-do perguntas, compreendeu.

Entrevistada em 27/6/1990 por José Luiz Batista e Gláucia Siqueira.

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Minha família é de fazendeiros, lá de Campo Limpo. Hoje Campo Limpo é chamado de Ribeiro Junqueira, (município de) Leopoldina. Naquela época a pessoa era fazendeira, era rica, comprava título. Por exemplo, meu pai era coro-nel, uai! Todo mundo o chamava de Coronel Chico Guimarães. Antigamente era assim: era rico, era co-ronel. A pessoa era rica, era fazendeira, tinha muito

M A R I TA G U I M A R Ã E S C O S TA C R U Z

D O N A D E C A S A

7 4 a n o s

Foto: Fazenda do Coronel Arthur da Costa Cruz (Fazenda Bom Retiro), Alberto Landóes, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico

e Artístico de Cataguases

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café, muita coisa, comprava título: era coronel. Meu pai, Francisco Ribeiro Guimarães, todo mundo só chamava de Coronel Chico Guimarães. Minha mãe, Cecília Ventura da Silva Guimarães era lá de Barra do Piraí, Estado do Rio. A minha mãe é fluminense, né. Papai é que é português. A Marilis é que sabe contar... Minha família é daqueles Breve... tinha os Breve miúdo e os Breve graúdo, né.

Eu nasci em Campo Limpo, em 1918, e vim pra cá com 10 anos. Dez para onze anos... eu perdi pai e mãe e vim pra cá. Minha mãe morreu num ano, meu pai no outro. Mamãe foi rins, meu pai suicídio. Desesperado, né. Perdeu tudo! Tinha um ano que tinha perdido a mulher, desorganizou tudo! Nós tí-nhamos uma fazenda muito boa, um sítio muito bom, muito bem montado, muita fartura! Nós residíamos em Recreio. Tinha casa própria e tudo, em Recreio. A gente tinha sítio pra passar fim de semana... Tinha a Fazenda Bocaina, em Campo Limpo. Em Recreio, uma casa de luxo. Ainda tem lá até hoje, aquela casa no alto da Igreja. Uma casa de luxo! A nossa casa lá era do tipo desta, né. Meu pai tava muito bem de vi-da! Negócio de café: era fazendeiro e tinha armazém de café. Depois ele perdeu tudo, aí desesperou!

Foi em 1930. Meu pai perdeu tudo! Perdeu fazenda, sítio, a casa que morava, carro... Tinha au-

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tomóvel, tinha tudo! Hoje, ainda existe a Fazenda Bocaina. Era dele... Ele entrou naquela Revolução de 30. Ele queria tanto morrer, que ele entrou na Revolução de 30. Ele foi elevado a tenente na Revolução, por ato de bravura! Ele era contra a Aliança Liberal, eu acho que era... Era contra, devia ser contra... Um dia nós vimos ele e o ordenança che-gando, lá na porteira... Todo mundo achando que era as forças federais que tavam entrando...

A fazenda produzia açúcar, cachaça, muito ar-roz, café. Ele montou armazém de café, em Recreio. Trabalhou muito, também, naquela companhia de café Monteiro de Barros, lá em Providência. Nós vie-mos pra cá depois da Revolução de 30. A Revolução foi em outubro, papai morreu em novembro e eu vim terminar o quarto ano aqui. Eu era aluna da dona Flávia, esposa do Pedro Dutra. O quarto ano era dona Flávia... A Cordélia Dutra foi examinado-ra. Depois eu fiz o curso em Leopoldina, interna no Colégio Imaculada. Formei lá e vim para Cataguases trabalhar na Força e Luz. Foi aí que conheci a família Cruz.

Eu me lembro quando nós ficamos sem nada. Eu tinha dez pra onze anos. Nós viemos morar aqui, em frente às Carneiro. Foi a primeira casa que mora-mos. Saímos do conforto e viemos morar numa casa

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que nem banheira tinha! Era só chuveiro e privada. Passamos um choque tremendo! Sair disso tudo, des-sas grandezas todinha, e morar numa casa aluga-da! Nós todos ficamos morando com esse irmão, o Armando, e esta irmã, Marilis... Todos eram solteiros, não tinha nenhum casado na época. Meu irmão mais velho tinha 22 anos e a irmã mais velha tinha 24 anos. A Marilis uma heroína! E o Armando também! Foi quando abriram “A Nacional”. Meu irmão estabele-ceu junto com o senhor Antônio Rodrigues Gomes. O irmão mais velho trabalhava na “Nacional”. Antigamente era ali, perto da Casa Felipe, onde é a Dirce hoje. Quem tomou conta da família foram os dois irmãos mais velhos.

Quando meu pai perdeu tudo, falou que ia para Belo Horizonte. Arranjou colocação lá em Belo Horizonte e veio, até com três aluguéis adiantados. Antigamente era assim: pro cê entrar numa casa ti-nha que pagar adiantado. Quer dizer que ele não tava com ideia de morrer... Quando foi no dia de finados - ele morreu no dia de finados - ele colheu muitas flores, pra todo mundo lá em casa. Ele fez um buquê de flor pra cada um levar pra mamãe. Lá em casa tinha muitas flores! Nós estávamos saindo pro cemitério, quando a empregada veio com a notícia que ele tinha morrido. Ele morreu na linha, longe de

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casa... Ele saiu fora da cidade... Pra nós foi um cho-que tremendo!

Nós tínhamos que começar tudo de novo, porque ele vendeu o que podia vender; o que não pode vender, deu pros outros. Ele tinha dado tudo pros outros. Não queria que levasse nada para Belo Horizonte, só as malas. Ele falou pra Marilis, que tinha alugado casa e que ia comprar tudo de novo. Então, ela pôs roupa de cama, talher, umas travessas bonitinhas que a mamãe tinha, uma bandeja muito bonita - que a Marilinha tem, até hoje, de lembran-ça - muita roupa... Foi o que salvou! O resto ela deu pras nossas vizinhas, lá em Recreio. A Marilis deu muitas coisas para elas: jarras bonitas, de porcelana... Nós ficamos sem nada! Veio montar casa aqui, não tinha nada!

Deus parece que calha tudo, que encaixa tudo direitinho. O senhor Kleber Miranda tava mudando, nós compramos tudo! Tinha uma prima, que o mari-do trabalhava na Irmãos Peixoto - Diocélio Tindó, era guarda-livros na fábrica velha - e tava de mudança pro Rio; também. Então deu muita coisa pra Marilis montar a casa.

Estudei um ano aqui em Cataguases, no Colégio Nossa Senhora do Carmo, formei e fui pro colégio, interna. Fui pra Leopoldina. A Marilinha

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também estudou interna no Colégio Imaculada. Fiquei lá até formar, em (19)36. Eu achava ótima a vida no internato. Gostava muito das freiras. Elas eram rigorosas, mas davam muito carinho pra gente. Eu me dava muito bem com essas freiras. Eu ajuda-va muito na secretaria a passar nota... Eu tenho, até, um quadro, uma Imaculada Conceição que a diretora mandou pra mim, de presente de casamento. O colé-gio era apertado. O professor de português, doutor Bandeira de Melo, era muito bom! O professor Gilrat, de francês. O professor Machado, de matemática. Na minha época, era aritmética. Eu gostava muito! Eu al-cancei aritmética até o segundo ano normal, depois passou pra matemática. Eu já não gostava mais. Todo último domingo do mês tinha saída. Saía na Semana Santa, às vezes no feriado. Às vezes eu passava em casa de conhecidos, lá em Leopoldina. Não vinha aqui não, aquele ônibus era muito ruim! Eu passava o último domingo em Leopoldina, porque situação não era das boas, pra ficar trançando pra lá e pra cá, não.

Aqui em Cataguases, eu frequentei pouca festa porque eu entrei logo pra “Filha de Maria”. Lá em Leopoldina, eu fui, eu ia a festas, mas não dançava. Antigamente, quem era “Filha de Maria” era muito presa. Não podia namorar, não podia dar braço ao rapaz, só no dia do casamento! Toda de branco, só

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manga comprida... Eu entrei lá no colégio interno. Lá todo mundo era “Filha de Maria”. A Nilzinha, a Nidinha, a irmã da dona Titiva, do Dr. Edson, todas eram... elas foram minhas contemporâneas.

Eu formei, um ano e pouco mais ou menos, quase dois, eu casei. Não lecionei não. Trabalhei na contabilidade, na Força e Luz. O Dr. Junqueira era muito amigo do meu pai, negócio de política. Meu pai era chefe político lá em Recreio. A minha famí-lia se dava muito com a família Junqueira. O Dr. Junqueira era meu padrinho... arrumou colégio pra mim. Eu estudei por conta dele: Dr. José Ribeiro Junqueira, tio do Dr. Ormeu. Eram três irmãos: José, Custódio, Sebastião Ribeiro Junqueira. As irmãs, eu não lembro tanto, só da Pequetita Junqueira. Eu ia muito na casa dela, quando ia com papai nas fes-tas em Leopoldina. Meu padrinho vivia pedindo a papai pra me dar pra ele, sabe. Então, nesta época nós perdemos pai e perdemos mãe, a Marilis escre-veu uma carta para ele, falando que a gente estava naquela situação. Ele, imediatamente, escreveu que podia mandar pra Leopoldina, porque ele tinha ar-ranjado colégio interno pra mim. Fui interna por conta dele. Quando eu formei, ele arranjou com o Sr. Manoel Peixoto, político aqui em Cataguases, depu-tado na época, pra eu ser professora. O Sr. Manoel

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Peixoto escreveu um cartãozinho dizendo que, de-pois que nomeasse as três afilhadas dele, a primeira vaga era minha. Ele nomeou as três afilhadas, e nós sabíamos quais eram, e eu fiquei esperando a minha vaga. A minha vaga não apareceu! Ele nomeou a fi-lha do Domingos Tostes, que era farmacêutico rico, e nomeou a Tereza Souza também, que o pai era dono de usina. A minha ficou esquecida, né. Aí a Marilis escreveu para o Dr. Junqueira de novo, falando que havia uma vaga na Força e Luz. A Olga ia casar com o Sicarini, ia haver essa vaga, que ela pedia para mim. Nós mandamos a carta. Daí a três dias veio um radiograma para a Força e Luz: “Coloque Marita Guimarães, haja vaga ou não”! Aí, eu entrei de estalo. Devia ser fim de (19)37.

Na Força e Luz tinha a Evangelina, a Lurdes Drumond, a Virita trabalhou também, a Olga... A Berenice Barroca também era do meu tempo. A Mariazinha Athouguia, a Iracema Fonseca. O escritó-rio era muito difícil! Trabalhei com o Sr. Gonçalves, pessoa muito boa. O Afonso Lanna era o chefe. Afonso Lanna, Sr. Gonçalves, Seu Mourão da dona Cidália, eram os diretores. Na parte de engenharia era o Dr. Walter, casado com a dona Maria, irmã da Idinha. Depois veio o Dr. Osmar trabalhar na seção de engenharia. Foi pouco tempo, minha filha, um

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ano e três meses só. Eu fiquei conhecendo... A histó-ria é tão grande!

Eu fiquei conhecendo ele, lá na Força e Luz, porque ele foi lá fazer um pagamento... tinha uma menina, que estudava comigo interna, e falava muito dele, né. A Nair Duarte era namorada do José Cruz. Aí, quando foi um dia, eu estou lá na Força e Luz - eu estava escrevendo na máquina - José entra, diz que foi fazer um pagamento. Nunca tinha visto! Diz ele que eu fui receber, mas eu não me lembro. Eu olha-va tão pouco esse negócio de homem, porque eu era novinha. Tinha dezoito pra dezenove anos, na época. Armando falava assim:

- Cuidado com esses viajantes! Cuidado com esses homens assim mais maduros, porque geralmente são casados! Então, a gente nem olhava quando via um ra-

paz maduro. A diferença dele comigo era dez anos, né! Ele procurou pelo Sr. Mourão, eu fui lá, chamei o Sr. Mourão e voltei outra vez pra máquina. E ele cis-mou comigo na máquina de escrever. Foi embora pro Rio... Diz ele que estava lá num cassino, não sei onde, aquela porção de mulher, uma porção de coisa e ele estava vendo só aquela menina escrevendo à máqui-na. Ele só via aquela menina escrevendo na máquina! Voltou outra vez pra Cataguases... Ele disse que fica-

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va todos os dias ali em frente à farmácia. Ali, onde é o BEMGE, tinha a farmácia do José Venâncio. Então ele ficava ali, pra ver eu passar, pra lá, pra cá. Eu sem saber quem era. Até que um dia ele quebrou o nariz (montando) cavalo, sabe. Então, nós estávamos na sa-cada da Força e Luz e eu falei assim:

- Coitado daquele rapaz ali, com uma cruz no nariz! - Ele tá com cruz no nariz e ele é Cruz. A Clotildes falou. Você lembra da Clotildes,

mãe da Isa? A Isa é prima da Vera, do Edinho, que mora em São Paulo. Pois é, eu falei assim:

- Que Cruz é aquele? - E o José Cruz. - Ah, esse é o José Cruz da Nair?

Nesse dia nós começamos a namorar, porque eu olhei pra lá, vi que ele estava olhando e veio todo mundo:

- Ele tá olhando é pro cê! Ele ainda brincava comigo e falava sempre

assim: - Foi preciso eu quebrar o nariz pra você me enxer-

gar! Não havia meio de você me enxergar! Já tinha quase três meses que eu estava ali, naquela farmá-cia, olhando você passar pra lá e pra cá. Era filho do coronel Arthur Cruz, fazendei-

ro. A família de José vem de índio, vem daquele ín-

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dio Tibiriçá. Eram dois irmãos. Um fez a família do Getúlio Vargas e outro fez a família do José Costa Cruz. A Marilinha tem um livro... tem a árvore gene-alógica todinha da família Cruz. Se vocês quiserem alguma coisa assim, no livro tem tudo, tem os fun-dadores... agora, dos Costa Cruz só existem dois: a dona Tatá e o Breno. E a Tatá tem uma filha só... e um enteado... a família Cruz vem lá de Itabira.

O doutor Joaquim era médico, irmão do seu Arthur. Ele morou naquela Fazenda da Saudade, ali por Dona Euzébia, que agora ficou pros herdei-ros. E teve (a chácara) Passa-Cinco. O Dr. Joaquim é pai do Antônio Carlos, que morreu há pouco tempo, que era médico de vista. O José estudou em Além Paraíba quando menino. Depois foi aqui mesmo, no Colégio Cataguases. Não quis ir pra fora. O único que estudou, formou pra advocacia, foi o Afonso... o Geraldinho estudou também lá em Viçosa... os ou-tros ficaram... seu Arthur Cruz, ele morou na Vila onde é aquela chácara do João Carroceiro. Aqui na chácara era um colégio antigamente. Ali nessa esquina... pegando a casa da Marizinha até na da Marilinha... Esse quarteirão todo, aquela esquina toda ali, e ainda pegava um pedaço do terreno da Emília. Era uma chácara que tinha um casarão no meio: era um colégio. Meu sogro transformou esse

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colégio numa casa. Comprou e veio morar aqui na chácara. Tinha muitos quartos, salões enormes! Era um casarão imenso! Tinha dois portões, esse portão que tinha ali na Marilinha era da chácara. Esse meu também era. Eu me lembro, quando eu casei tinha a chácara... a Marília é casada com um irmão do meu marido. São duas irmãs casadas com dois irmãos Costa Cruz. Meu sogro era dono disso aqui até na Belém, indo ali pro horto. Isso tudo aqui era dele! Eu vim pra cá com dez... seu Arthur já morava nessa chácara. Ali, onde é hoje o campo de esporte tinha uma outra chácara que era do pai da minha sogra. O senhor Arthur era muito rico! Tinha muita terra! Naquele tempo, terra não valia nada, dava até pros outros. Ele deu pra construir casa. Ele dava terra pros outros assim à toa. Amigo dele, ele dava pos-se... Antônio Amaro também teve muita terra aqui. Quem deu o terreno pra fazer o Fórum foi o Antônio Amaro e o Senhor Arthur. Foi ele que deu pra pre-feitura fazer caixa d’água. Eles tinham muito gado: café e gado leiteiro. O senhor Arthur era produtor de creme... mandava pra Guarani. Eu acho que an-tigamente não tinha esse negócio de botar dinheiro em banco. Era só produzir, eles queriam era comprar gado, muito gado! Naquela época o pessoal tinha mania de ter muito, né. Tinha muitos empregados,

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muitas casas de colono. Antigamente tinha muito. Foram pra fazenda depois... eu não sei se aquela fa-zenda era deles... era da firma do Rama, marido da Dedé Peixoto. A fazenda foi a leilão, né. Eu não sei esses negócios direito não. Eu acho que a fazenda era da firma - negócio de café - que fazia parte seu Manelinho Cruz... O Rama era muito rico também. Foi dono da Fazenda do Retiro. A casa do Rama pe-gava o quarteirão assim, na esquina...

Eu casei e fui pra roça: Fazenda Goiabal, de-pois de Barão de Camargo. Lá tinha café, cana, gado. Primeiro, o José tinha gado Gir, esse gado é impor-tado. Depois comprou vaca de leite. Foi quando foi diretor da cooperativa, junto com o Dr. Cardosinho, o Dr. Moura. Um era tesoureiro, outro secretário... foi presidente da Cooperativa, acho.

A vida na fazenda eu gostei muito. Eu fiquei sem luz elétrica muito pouco tempo. Eu quebrava tanto lampião, que o José resolveu colocar luz elé-trica. Eu ia pegar o lampião, aquilo tava quente eu soltava o vidro! O tio dele, seu Juca Cruz, tinha tra-balhado na Usina Afonso Pereira e ele falou com José:

- Vou trazer um transformador e vou botar aí pro cê. Vou botar uma luz de dínamo. Eu fiquei sem luz de abril a setembro: dia 7 de

setembro inaugurou a luz lá.

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Mas eu não tinha prática de fazenda não. Eu ia na fazenda a passeio, com meus avós. Meus avós pa-ternos eram fazendeiros em Ribeiro Junqueira. Então, nas férias, a gente ia para a fazenda do meu avô. A gente achava mais graça ir pra fazenda do vovô, do que a nossa fazenda, que tinha administrador. A gen-te preferia ir pra fazenda do meu avô, porque lá tinha outros primos que moravam lá perto. Os outros tios todos tinham sítio perto. Tinha aquelas cachoeiri-nhas... Era tão bom tomar banho naquelas cachoeiras, aquele ribeirão gostoso! Tudo limpinho! Tinha uma cascatinha que descia assim... A gente adorava ficar ali, deitado nas pedras, deixando a água correr... de roupa! Às vezes a gente ia no sítio para passar o fim de semana, porque o sítio era bonitinho. Papai estava arrumando o sítio quando morreu... O sítio era muito perto de Recreio.

Eu tive meu primeiro filho aqui na chácara. Nasceu aqui o Raimundo, com parteira. A segunda foi a Cecília, que nasceu na fazenda Goiabal. A par-teira era uma crioula, e a minha sogra também es-tava lá. O terceiro, que foi o Armando, já tive aqui em Cataguases. O Armando e a Gilda, com parteira também. E o último, o quinto, também com partei-ra, eu tive lá na Fazenda Goiabal. Esse nasceu do-ente, esse que eu tenho até hoje doente. Nasceu per-

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feito... teve derrame com cinco dias de nascido... Ele teve derrame e não fala, não anda... Passei bem em todos! Nesse também! Eu comecei a sentir aquele derramamento de água só, resolvi entrar num banho. Tinha uma banheira muito grande, tomei um banho, de água bem esperta. Quase que ele nasceu dentro d’água, minha filha. Quando eu saio da água para escovar dente senti aquela dor fortíssima. Não teve segunda dor, porque na segunda ele nasceu. Achei uma felicidade! Foi o melhor de todos pra nascer! Mas cinco dias depois ele teve derrame. Aí a vida já não teve mais graça. Ter um filho doente assim... Já passou a não ter aquela graça que tinha, que teve... todos os outros sadios, muito sadios. Mas esse deu, e continua dando, muito trabalho. Ele está com 37 anos, vive numa cama... Gosta de televisão... novela... Mas é um sofrimento, né.

Eu vim pra cá a Gilda tava com 8 anos. Os me-ninos estudavam... passou a ficar muita gente na ca-sa do Afonso, casado com a Marilinha, minha irmã: Raimundo, Cecília, Armando, Gilda. Aí resolvi fazer casa. José fez essa casa aqui. O Zezé precisava de mais conforto - ele já tava maiorzinho - e lá na roça não ti-nha um ventilador! Não podia ter luz contínua, por-que era dínamo! Então, tinha que ter mais conforto, televisão... pra ter um fim de vida melhor... Aqui, ele

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tem o apartamento dele, que tem tudo, né: a televi-são dele, ar refrigerado, renovador de ar... Agora botei ventilador. Na fazenda não tinha recurso para isso... Só dava pra ferro elétrico. Mas a noite não podia ligar ferro elétrico, porque ligava a luz. A luz do gerador não podia puxar muito! Agora não, porque tem tudo lá. Tem até aquele aparelho de puxar televisão.

Armando gosta muito de gado de leite, planta muito pouco. Nem pro próprio sustento o Armando tá plantando! Acha que precisa de muita gente... Ele acha que é mais fácil tirar leite. Agora também, ele é da Cooperativa, ele tá no mesmo lugar do pai dele, ocupando o mesmo cargo que o José ocupou.

Eu sempre falo com a minha nora: eu tive bons empregados. Ótimos! Eu não me queixo dessa parte de empregados. Eu não sei se é porque eu lidava com eles com muito carinho... Eu tinha ótimos funcioná-rios. Lidava com doze mulheres, mas de primeira! E elas gostavam de trabalhar pra mim. Vinha gente de fora, de outras fazendas, pra trabalhar pra mim. Eu dava gratificação pras empregadas. Quando ter-minava a safra eu gratificava. A safra de goiaba era maior! Eu fazia muito doce pra vender: muita goia-bada, muita pessegada, muita laranjada! Tudo quan-to era fruta que eu podia industrializar, eu industria-lizava. Eu tinha uma fábrica de doce e ganhei muito

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dinheiro! Eu desmanchava seis sacos de açúcar por dia! Trezentos e sessenta quilos de açúcar por dia!

A gente trabalhava, mas os filhos estavam to-dos ali por perto. Era mais fácil do que hoje. Dona de casa, hoje, trabalha fora, os filhos ficam entregues a empregada. Eu não me queixo, tinha boas empre-gadas. E essa que mora comigo - crio desde os cin-co anos - é muito leal! Mal de mim se não fosse ela, que me ajuda muito! No fim do ano eu gratificava minhas empregadas! Eu tinha dinheiro! Era meu! Minha menina tem pulseiras de ouro, tudo dado por mim, com dinheiro dos doces. Muita coisa aqui em casa, eu que comprei, porque eu queria do meu jeito! Eu dava joias pras minhas meninas...

A vida na roça era boa, eu gostava! O José tinha muito porco. Lá em casa tratava de porco com inha-me, banana nanica, batata doce, abóbora, moranga... Aqueles montes de inhame, fazia aquela fileira de inhame no meio do arroz... Colhia e vinha pro terrei-ro aqueles montes de inhame, pra tratar de porco... Na fazenda tinha bailes, era muita gente! Natal, a gente fazia na fazenda. Era uma vida mais pura.

Eu acho que era mais animado... Na praça ti-nha aquelas bandas de música...

Os bailes também eram muito animados, eu acho. Eu ia sempre olhar. Carnaval também era mui-

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to era mais animado! Aqueles carros alegóricos bo-nitos! Um rico que tinha, - Inácio Duarte - que era dono da casa onde morou o João Peixoto, a filha dele fantasiava-se muito, a mãe dela também. As fantasias eram caríssimas! Vestido bordado a ouro, até. Eles viviam na sociedade e acabaram pobres, riquíssimos, tinham palacete no Rio também, davam recepções... Todo mundo falava isso. Mandava fazer carro alegó-rico... Teve um carro de melancia - esse eu cheguei a ver - a filha fazendo o miolo da melancia, aquela fan-tasia toda vermelha, e as outras cabecinhas eram as sementinhas aparecendo no meio daqueles babados. Foi uma coisa rica! Uma beleza esse carro da melan-cia! Tudo patrocinado pelo Inácio Duarte... ficou po-bre, ele morreu pobre... Pobre mesmo!

Entrevistada em 15/5/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.

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Eu nasci em 20, em 1920. Eu não sei,

mas se tratado da minha família aí eu tenho mais condições... com o tempo, da cidade propriamente dita, já me falha alguma coisa...

A minha mãe era filha de Pedro Soares de Nazaré, português, que foi um dos donos do “Porto dos Diamantes”. Ao que me consta, ali havia uma pequena povoação, em 1810 por aí. E ali parece que descobriram algum diamante. Deve ter sido um fa-to muito raro, porque nunca mais apareceu diaman-te por aqui. Se você for procurar, se você aceitar co-

R E N AT O T E I X E I R AB A N C Á R I O

7 0 a n o s

Foto: Banda de Música da Indústria Irmãos Peixoto, maestro Rogério Teixeira, s/a, 1945, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e

Artístico de Cataguases

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mo “Porto dos Diamantes” daria a impressão que realmente tinha diamante. Se teve, é aquele “Tipo Conceição: ninguém sabe, ninguém viu”. E igual gi-rafa: existe, mas eu não compreendo com aquele pes-coço! Como “Meia-Pataca” também. Dizem que foi descoberto quantidade de ouro equivalente a uma moeda de valor meia-pataca. Nunca mais ninguém falou em ouro no “Meia-Pataca”. Pode ser ilusão, va-mos dizer assim.

Então ali que aglomerou, ali se constituiu um pequeno núcleo. Vieram alguns padres para... Não sei se somente pelo espírito missionário ou também em busca de fortuna. A Igreja também, era muito comum, a Igreja juntava o útil ao agradável. Então vieram esses padres pr’aqui, para catequizar e botar uma certa ordem ali naquela povoação. Existiam ín-dios. Eram agrupamentos de índios civilizados, mas eram poucas pessoas, pouca gente. Se não me engano não chegavam a cinquenta, coisa assim. Mas eu acre-dito que esse problema de índio trabalhar... Você sabe que os índios eram muito arredios ao trabalho. Eles não aceitavam a escravidão. Os índios nunca se sub-meteram, ao trabalho escravo. Senão, talvez... tanta migração, tanta compra de escravos da África pra cá. Nós... o Brasil, ainda submetido a Portugal, tinha ne-cessidade de fazer comércio com o exterior, vender as

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suas mercadorias. E a maneira de... Até hoje, quanto mais barata a mão de obra, mais condições tem de ex-portar. Então, não havia mão de obra mais barata do que a mão de obra escrava. Umas das razões porque prevaleceu, por muito tempo, a escravidão no Brasil foi, justamente, para produzir barato e vender, prin-cipalmente a cana-de-açúcar. O que eu sei é mais ou menos isso... E ali mesmo. Está lá. Ainda resta, ainda existe o chalé. O núcleo da família Soares é ali nesse chalé, saiu dali. Nunca me constou que ele (meu avô) tivesse escravo não. A escravidão terminou em 1888. Ele veio de Portugal, os ascendentes dele ficaram em Portugal... (Trabalhava com) comércio em geral, mi-nha irmã tem uma fotografia da loja dele. Era na boca da ponte de madeira, mas não era na praça, era do outro lado do rio. A gente vê pela fotografia que era uma casa boa para a época, uma casa grande...

Ali onde tem aquele pedaço daquele chalé an-tigo... eu acho que era uma sede de fazenda. Quando você chega mais ou menos no Beco do Fruta-Pão, tem uma ponta lá que é um chalé antigo. Ali morava o Pedro Soares Nazaré, que era meu avô. Quando ele morreu eu tinha seis meses, mas ele me deixou uma marca. Diz a minha mãe, que ele brincando comigo, eu no colo dele pulando, bati com a cabeça na jane-la e fiz uma brechinha na cabeça, que até hoje tem a

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marca. O meu avô morreu quando eu tinha seis me-ses, mas mesmo assim eu fiquei marcado por ele.

Ali morava, então, a família do Pedro Soares Nazaré. Ele casou duas vezes e teve vários filhos. O mais velho estava até estudando medicina na França. Morreu. O outro filho, ainda é vivo, mora em São Paulo. Deve estar com oitenta e três anos! Todos to-cavam piano. Todos eram músicos, porque naquela ocasião fazia parte da educação... a pessoa ter sempre essa parte musical, uma instrução de música qual-quer. Ele morou aqui onde é a escola Flávia Dutra, aqui desse lado, morou aqui também. Mas ele come-çou mesmo lá, nesse “Porto dos Diamantes”, lá no chalé do Bairro Leonardo.

O meu pai (Rogério Teixeira) era de São João Nepomuceno e veio para Cataguases com onze anos. O pai dele era professor, a família de meu pai era de professores. Eles desbravavam um certo lo-cal, construíam uma escola, ficavam lecionando até um certo tempo, depois iam pra outro lugar... Meu avô paterno era assim... Meu pai era o caçula da fa-mília. Era criança ainda quando morreu o pai dele e eles ficaram em situação difícil, no que vieram para Cataguases... Aí já tinha esse princípio de música, os outros irmãos dele também já estavam estudando música... Ele tinha um irmão, João Teixeira, que era

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maestro de uma outra banda de música. Dizia meu pai, que naquele tempo Cataguases era atrasado, ha-via mais manifestações artísticas que Cataguases de hoje. Ele dizia que aqui veio muita opereta italiana. Empresas de teatro do exterior vinham a Cataguases!

Com onze anos de idade ele já começou a fazer parte de alguma banda de música, que talvez tives-se aqui naquela época. Era comum... Você vê nessa banda de música do Sigismundo, que é muito esfor-çado, crianças também. Então, foi daí que começou a se desenvolver musicalmente. Ele era autodidata, porque a instrução musical que ele teve não foi mui-to grande. Mas ele tinha querer e vocação! De forma que foi um dos maiores destaques... O meu pai era uma pessoa modesta. Ele não gostava de... não era pretencioso não, mas ele realmente tinha muita ha-bilidade! Ele tocava qualquer instrumento de sopro. Embora não tocasse podia dar aulas de piano, sabia dar aula de piano. Foi professor de música muitos anos e nesse setor, realmente ele se destacou na histó-ria de Cataguases.

Depois de casado, já mais velho, ele tinha uma orquestra que tocava no Cinema Recreio durante os filmes. O Cinema Recreio era bem montado. O cine-ma era mudo, então eles tocavam, procuravam mais ou menos tocar a música de acordo com o enredo

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do filme. Assim, se era um filme mais triste, eles tocavam música de mais emoção. Inclusive, mui-tas pessoas diziam que iam ao cinema pela músi-ca. Gostavam tanto da orquestra que iam mais pela música do que pelo cinema! Essa orquestra, ele dizia que os empresários dessas operetas, desses grupos teatrais elogiavam muito a Orquestra de Cataguases, porque era mesmo muito adiantado pra época!

Eu me lembro que era meu pai, minha mãe - porque ele também era pianista - Adolfo Teixeira, ir-mão dele. Tocava também uma irmã de minha mãe, a Dona Madalena, viúva do Cesar Abranches, que foi um dentista muito bom aqui de Cataguases. E outro, o Pascoal Ciodaro, que era pai do “Seu” João Ciodaro,

“Seu” João pai da Irene Ciodaro. A Dona Carmelita, mulher dele... Era assim... pessoas que faziam seguir aquele conjunto. Eram profissionais. Durante o dia tinham suas atividades e à noite iam para o cinema tocar, para dar fundo musical. Eu acho que, naquela época, não tendo televisão, não tendo cinema - aliás, o cinema tinha, mas era mudo - e outras coisas atrati-vas, o pessoal se dedicava mais a esse tipo de arte, e isso enchia o tempo deles.

Por falar nisso, eu tinha 7 anos mais ou menos, eu me lembro perfeitamente disso. A casa onde o Dr. Francisco morou e morreu, ali era uma casa pareci-

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da com aquela casa do Lacerda, da casa da Meina Vaz. Eram casas iguais parecidas... e tinha uma sala muito grande com aqueles sofás de palhinha, pia-no... Lá em casa sempre teve piano. Então, quando chegava depois do jantar - naquela época jantava-se mais cedo - mamãe sentava-se ao piano e começava a tocar. Isso eu me lembro muito! Aí papai pegava a flauta e começava a acompanhar. O meu tio Adolfo Teixeira tocava violino, não se continha, vinha com o violino e começava a tocar. Daí a pouco aparecia o Sr. Pascoal Ciodaro com o contrabaixo, começava a tocar. Olha, os meus irmãos mais velhos tinham amigos... os viajantes... Essas pessoas começaram a ir lá pra casa. Aí uns começavam a declamar. Eram verdadei-ros serões de arte! Um declamava, um cantava... As companhias, em dia de folga, vinham também. Isso aí, mais menos, no máximo até nove horas, porque nove horas já era tarde, naquela ocasião. Eu me lem-bro perfeitamente dessas noitadas de arte. Isso deve ter sido mais ou menos em 1927.

Agora, eu me lembro, quando nós moráva-mos numa casa em frente onde morou o falecido Dr. Francisco, ali, pra lá da casa do Dr. Tarcisio. Aquela casa ali foi do meu pai também, e eu morava ali em criança. Não me lembro bem a idade que eu tinha, mas eu me lembro, que depois de todos os serviços

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caseiros - colocar todos os filhos na cama, ela teve quatorze filhos - quando, às vezes não tinha cinema pra ir tocar, minha mãe então é que iria tocar piano, pra se exercitar e por prazer também!

Mais tarde, conversando com meus irmãos, eu dizia que muitas vezes, deitado na cama, crian-ça ainda, eu me emocionava ouvindo minha mãe tocando e acabava chorando de emoção. Ela tocava

“A Grande Fantasia Triunfal” sobre o Hino Nacional Brasileiro. Eu não sei a nacionalidade dele, o nome, portuguesmente falando é Gottschalk5. É um arranjo muito bonito!

Então, nós fomos criados assim, numa família em que predominava a música.

Engraçado, os filhos de meu pai não se dedi-caram à música. Todos eles - quase todos, menos eu

- estudaram um pouquinho. Quando chegou a minha vez, ele já estava sem paciência. Mandou eu começar a solfejar, eu comecei a chorar, ele falou:

- Some, some que eu não aguento mais! Neste conservatório de musica da Dona Lila

Lorenzo Fernandes, que eu saiba, só três alunos tira-ram nota dez, do princípio do curso até o fim, até o

5) Louis Moreau Gottschalk, Orquestra Sinfônica de Berlim: Regência de Samuel Adler; Piano: Eugene List.

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exame no Rio de Janeiro. E desses três alunos duas são da minha família. Uma é Renata, minha filha - eu só tenho uma filha - que hoje mora na Argentina. Outra é a Silvinha, casada com Paulete6 do Banco do Brasil. A terceira, a Verinha, casada com Carlos Alberto de Souza, filha da Dona Lila, tirou dez tam-bém, do princípio ao fim! A Renata casou, foi embora, está cuidando dos filhos em Buenos Aires, não tem mais tempo pra isso. O piano dela está aí. Quando vem aqui, de vez em quando, ela se preocupa um pouquinho... Eu acho que só a Silvinha é que conti-nua gostando muito. A Verinha, nem tanto... De certa forma eu, nós da família, embora a gente seja muito modesto, sem falsa modéstia, nós nunca procuramos receber homenagens, mesmo que a gente por ventura merecesse! Mas recebemos com justificado orgulho o nome da escola (Marieta Soares Teixeira) por se tratar de uma professora de música, mãe de quatorze filhos, um exemplo de mulher dedicada ao lar, dedicada a criação da família. Então, homenagear uma pessoa simples, do povo, uma mãe, uma senhora que criou uma família com todo amor e carinho, todo sacrifí-cio... Esse lado humano da homenagem...

6) Paulo Sérgio Ferreira de Souza.

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Agora é noite... mas aqui no quintal eu fiz um jardinzinho... Eu gosto. Tenho muito orgulho do meu quintal que é muito arrumadinho! O Paulo Shelb, quando era presidente do “Operário” me deu uma placa que sobrou da praça da Rodoviária: Praça Rogério Teixeira! Então ele me deu a placa e eu botei (no quintal). De forma que até hoje eu me recordo desta fase da minha vida. E até hoje me emo-ciono quando eu ouço o arranjo do Hino Nacional Brasileiro, porque eu volto àquela época. Porque é piano também, e ela (minha mãe) tocava isso... E to-cada pela Orquestra Sinfônica de Berlim, não é nacio-nal não, é alemão, mas tem solo de pianista. Descobri esta fita numa loja, lá no Rio de Janeiro...

Nós tivemos crise de todo jeito! Foram mo-mentos de muita dificuldade que nós vivemos! Mudamos para o Rio, mudamos para Miraí, volta-mos para Cataguases, essa luta toda e ela ali, no leme. Mesmo porque o homem é um trabalhador, mas sem ter uma retaguarda, uma mulher forte também segu-rando a barra, ele não vence não! De forma que a mi-nha mãe deixou um exemplo muito bom, e eu creio que todas as minhas irmãs seguiram. São todas ex-celentes donas de casa e pessoas do melhor conceito. Mas em matéria de filharada nenhuma seguiu, não! Quando chegou em (19)35, a situação da nossa famí-

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lia foi ficando cada vez mais apertada. Muitos filhos, muita coisa. Aqui não tinha emprego, não tinha nada. Então meu pai foi convidado por uma sobrinha dele, para ir para o Rio, pra gente se empregar lá. O pri-meiro, ponta de lança, fui eu. Eu tinha quinze anos quando comecei a trabalhar. Já trabalho há cinquenta e três anos!

Eu me lembro que saí aqui do Ginásio, daque-la boa vida - apesar de ninguém ter nada, todo mun-do vivia numa miséria danada - era uma boa vida! Então, em julho, eu comecei nessa fábrica de lâmpa-das. Eu fiz dezesseis anos em setembro e trabalhava nove horas em pé! No fim do dia eu achava que mi-nha perna estava mais curta que o corpo! Isto na GE, na General Eletric, uma fábrica americana. Eu respei-to o americano nesse ponto: o almoço lá era fabuloso! A hora do almoço, tinha o restaurante, uma bandeja muito farta, uma comida saborosíssima! Muito boa, muito bem feita! Isto naquela época. Eu fiquei lá não sei quanto tempo. Até houve um acidente comigo - queimei o braço - coisa de somenos. No dia seguinte eu estava trabalhando.

Dali, mais tarde, eu entrei para a Estrada de Ferro Leopoldina, no Rio de Janeiro. Comecei a tra-balhar como “boy”, na administração, com os ingle-ses. Eles eram muito gentis, muito atenciosos, muito

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boas pessoas. Tratavam a gente muito bem, esses in-gleses. Não posso falar mal de estrangeiro não, por-que com quem eu trabalhei, eu me dei muito bem. Nessa parte eu tive muita sorte. Tinha um irlandês, que era mais exótico, me deu um relógio, o relógio dele. Parece que ele estava sempre em briga com o relógio. Acabou me dando o relógio e quedê que o pessoal aceitava que um homem tivesse me dado um relógio! Isso era preocupação de saber que aquele re-lógio foi mesmo ganho, se eu podia ter “subtraído” o relógio, por uma fraqueza. Isso é coisa de educação, que deve prevalecer em todas as famílias! Mas ele me deu o relógio! Por fim, eles se convenceram mesmo que eu tinha ganho: o relógio era uma porcaria! Não funcionou nada e eu joguei fora!

Bom, mas ali da Leopoldina eu fiz, depois, concurso para o Banco Crédito Real. Eu estava tão fo-ra de estudo que eu não sabia mais nem fazer conta de dividir. No duro! A gente vai largando de lado... Mas eu tenho força de vontade! Eu sei que, quin-ze para as cinco da manhã, eu já estava estudando. Estudava até a hora de trabalhar, ir para a Estrada de Ferro Leopoldina. Depois eu pedi demissão e vim pra Cataguases. Fiquei quatro meses - eu digo, com franqueza, que foi o período da minha vida que eu fiquei à toa - estudando para o concurso do Banco

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Crédito Real. Então fiz o concurso e passei. Voltei pa-ra o Rio, o Banco me mandou para o Rio de Janeiro. Mas meu período no Crédito Real foi um período de uma gestação, porque nove meses depois, eu ti-nha feito concurso para o Banco do Brasil, fui para o Banco do Brasil no Paraná.

Eu fui trabalhar em Ponta Grossa, no Paraná. Cidade muito boa! Ponta Grossa é uma cidade fabu-losa! Naquela época, era a segunda cidade do Paraná. Cidade muito limpa, um planalto, novecentos e se-tenta metros de altitude. Venta muito. O vento var-re a cidade, não precisa ter varredor não. Então, eu acostumando na cidade fui transferido para o Rio, novamente. Eu tinha um irmão que era do Banco e conseguiu minha transferência, meio assim sem eu querer. Mas foi bom, porque eu me aproximei nova-mente daqui. Eu cheguei no Rio mais ou menos em setembro, em abril de (19)42 eu já estava transferido para Cataguases. Eu fiz a carreira do Banco toda em Cataguases. Em (19)43, logo em seguida, eu já peguei um cargo de comissão no Banco.

Então eu fui depois chefe da Carteira Agrícola. Minha vida toda foi no Banco do Brasil, então fun-cionário comum, depois fui pra Carteira Agrícola. Eu lidei muito com o pessoal da roça daqui. Eu ti-nha muito pouco contato com o pessoal da cidade

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propriamente dito. Então eu fui a subgerente, fiquei mais preso internamente. Depois eu fui à gerência, aí (lidei) mais com comércio e indústria.

Um dos funcionários que trabalhavam comi-go, e eu gosto de lembrar sempre, é o Levi Simões da Costa, que escreveu este livro “Cataguases Centenária”. O Levi era uma criatura fora de série! O Levi sempre foi muito modesto, tinha muita timi-dez pra redigir. O Levi era incumbido de examinar os relatórios finais da Carteira Agrícola. Um relató-rio normal era resolvido na Agência mesmo, mas to-do relatório que tinha uma anormalidade tinha que ser encaminhado à direção geral do Banco. Então, havia necessidade de um parecer. O Levi punha es-ses relatórios na minha mesa para eu dar o parecer. Então, falei:

- O Levi, você escreva! - Mas eu não tenho jeito... Eu não sei... - Você escreva o que você quiser! Você pode escrever

a maior bobagem, eu faço tudo de novo, mas preciso que você escreva. Eu quero que você escreva! Moral da história: o Levi escreveu um livro e

eu não escrevi livro nenhum! Mas eu acho que eu te-nho o mérito de ter forçado o Levi a redigir, porque no fim ele escreveu este livro. Um subsídio tremendo para Cataguases! Esse livro sempre vai ser pesquisa-

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do futuramente. Então, eu acho que tenho um pou-quinho desse mérito desse livro do Levi.

Em janeiro de 65 eu assumi a gerência. Eu fui nomeado em 1965 e fui gerente até 1972. Foi justa-mente no período... um ano depois da revolução, que esse Roberto Campos foi Ministro do Planejamento, e ele virou a mesa do país, financeiramente falan-do. Todo o sistema financeiro foi modificado por ele. Houve uma recessão muito grande! Nós passamos o maior aperto! Cataguases, mesmo, viveu momentos de muito aperto! E eu peguei essa batata quente! Mas, felizmente, aqui em Cataguases, os industriais daqui sempre progrediram com cautela, batendo o pé no lugar, sabiam onde estavam pisando. De forma que eu consegui ajudá-los a vencer a crise. Isso foi em 65. Eu fiquei até janeiro de 72, quando eu me aposentei. Aliás, eu estava propenso a aposentar, mas eu nunca acostumei a ficar à toa.

Aposento, não aposento, aposento, não apo-sento... O pessoal queria que o Rodrigo Lanna fosse candidato a prefeito pela segunda vez. Ele não que-ria. Reuniram vários para ir forçar o Rodrigo a mu-dar de ideia. Fui junto com a turma. Eu não me lem-bro agora as pessoas. Mas as pessoas de maior des-taque na cidade foram lá. Tinha bastante gente. Ele relutou muito, no fim acabou aceitando. Muito bem,

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passados uns dias ele me telefona: - Renato, eu preciso falar com você. Que horas eu

passo aí no Banco? - Bobagem, eu dou um pulo aí e converso com você.

Fui lá e ele falou assim: - Você foi um dos que insistiram para eu aceitar a

candidatura e todos prometeram que, se eu preci-sasse, estavam às ordens. Eu vou precisar de você. Você vai ser meu secretário na Prefeitura. Você vai aposentar no Banco do Brasil e vai ser meu secre-tário.

- Que é isso Rodrigo?! A gente fala assim de brinca-deira! Aquilo é pra botar sujeito em cima do lombo do burro! Botar peão em cima do burro, depois dei-xar o burro pular! Eu me aposentei. Já que eu tinha que me

aposentar mesmo, pelo menos é uma oportunida-de de trabalhar pela minha cidade. Fiquei vinte dias só à toa. Logo em seguida comecei a trabalhar na Prefeitura com ele. Eu não sei como é a situação hoje, eu sei que, naquela ocasião, dinheiro não ti-nha! O dinheiro era suficiente para a manutenção da Prefeitura... Varrer as ruas, pagar o pessoal e olhe lá! Durante os quatro anos que eu fui secretário da Prefeitura - isso eu falo com muito orgulho - eu tra-balhei com o meu carro e com a minha gasolina. E

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o Rodrigo Lanna também viajava no carro dele. Nós não tínhamos recursos, não tínhamos condições. O sujeito ser um prefeito já é um sacrifício! E ainda vai pagar pra ser prefeito, pra trabalhar! Era a contribui-ção que a gente prestava à cidade. Nós fazíamos isso porque não tinha outro jeito, não tinha dinheiro. Não tinha. Justamente aí é que houve a reforma tributá-ria do Roberto Campos. O que vinha do Governo Federal vinha com fins específicos: telefone, rodoviá-ria, ICM... tanto para educação, tanto pra aquilo, tan-to pra aquilo outro. O imposto da cidade é pouquís-simo. Até hoje eu acredito que o imposto arrecadado na cidade é muito pequeno!

Depois dos 15 anos fui pro Rio. Trabalhei fora, fui para o Paraná, voltei com 21 anos. Eu me lembro... engraçado, eu morava... a Rua Major Vieira ainda não era calçada, era de terra, e o senhor João Ciodaro tinha um ônibus - o ônibus era tipo jardineira, aber-to do lado - isso eu me lembro perfeitamente. Vocês já viram esses ônibus antigos parecendo um bonde, aberto de um lado e de outro? Então, ele fazia um transporte... era mais um trenzinho praticamente, porque não era pra transportar gente pro trabalho, era mais pra passeio. Levantava uma poeirada!

Aqui (na rua) era uma família só! Morava ali o pessoal do senhor Jota Lacerda, o Zé Lacerda que

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já morreu, a Dona Olga, mãe dele, uma santa cria-tura! O senhor Alípio Vaz - o nome do Museu - a Taninha, mãe dele. Tinha a Meina, a Maria, a Meirene, a Marina, o Alísio, o Alípio, filho dele. Em frente de minha casa morava o senhor Raimundo Queiroz.

Eu me lembro do Humberto Mauro, quan-do eu morava nessa esquina, em frente ao Hotel Cataguases. Ali tinha uma casa, logo depois da casa da Aninha7, do falecido José Pinto, tinha mais uma casa e ali morava o Humberto Mauro. Eu me lembro, ainda, de uma filmagem de Humberto Mauro, nes-ta casa onde mora hoje o Tarcísio. Ali morava o Sr. Drumond, não me lembro o primeiro nome dele. Ele era dentista e eu tratei de dente com ele, com motor de pedal. Então, ali naquele terreno, um pouco pra lá, na casa mesmo do Tarcísio tem aquela parte onde desce pra garagem, ali era um terreno baldio. A casa era um pouco pra cá... Morou muito tempo depois o pessoal do Peloso: Dona Maria Peloso, Emília Peloso. Não estou lembrando não... Então, ali tinha um me-nino, filho do Drumond, que fez parte em um filme. Ele fazia parte de um dos filmes de Humberto Mauro. Ele era um menino... Antigamente tinha aqui um sa-po muito grande, que chamava sapo-boi. Eu não vejo

7) Ana Pinto Pinheiro.

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mais sapo-boi aqui, já desapareceu com certeza... Os meninos colocavam cigarro na boca do sapo para ele fumar. Já viram falar nisso? Pois é. Então foi filmado pelo Humberto Mauro, eu me lembro disso8. Conheci muito o Humberto Mauro. Assisti filmes dele e assis-ti às filmagens... A Eva Comello, o pai dela, o Pedro Comello, conheci muito. O senhor Homero Cortes - é quase contemporâneo, porque morreu tem muito pouco tempo - o Homero Cortes era um dos financia-dores, um dos produtores. Isso eu me lembro dessa época. E gente muito amiga mesmo.

E depois eu me lembro quando a Rua do Pomba foi calçada, em “pé de moleque”. A gente chamava a Rua do Pomba, até hoje a gente chama Rua do Pomba, para mim é Rua do Pomba! Calçou em “pé de moleque”... rede de esgoto... A gente jo-gava bola de meia. Hoje não se vê menino com bola de meia. Era meia comprida: virava a meia, enchia de pano, fazia aquela bolinha, costurava e era bola de meia. Valia mais a força do pé do que outra coi-sa! Gente no meio fio, um empurra pra lá, outra pra cá, aquela briga! Podia-se jogar bola no meio da rua à vontade... O que eu queria dizer é o seguinte: era uma família só. As mães tomavam conta de todos co-

8) Cena do filme Thesouro Perdido, 1927.

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mo se fossem zeladoras de todos. Aquela que tivesse ocupada não se preocupava, que outra mãe tomava conta, chamava atenção. E não havia briga de vizi-nho, não havia não. As meninas brincavam de roda e os meninos brincavam de pique e outras coisas, até uma certa hora. Aí de repente: fulano, beltrano, sicra-no, cada um pra sua casa tomar banho, lavar os pés, não sei o que e tal, porque era tudo poeira!

Tinha uma família aqui, o Luiz Megre, o Miguel Megre... Eu não sei se eles eram descendentes de franceses... Naquela época tinha um portão na mi-nha casa e eu conseguia, com o “Seu” Megre, a gen-te pedia emprestado o lagarto e arranjava barbante, qualquer coisa assim, e punha o lagarto em baixo do portão. E ficava do outro lado da rua. Quando ia passando, principalmente pessoa velha, a gente ia puxando devagarinho aquele lagarto... Aquela farra! Era uma brincadeira ingênua, mas era a nossa brin-cadeira daquela época. Eu sei que o mundo mudou muito!

Eu sou meio piadista. Eu costumo dizer que o único diploma que eu tenho é de primeira comunhão. Até botei na parede! Mas eu fui vítima das circunstân-cias. Em (19)34 eu repeti o ano, o terceiro ano ginasial eu repeti. Em consequência disso eu perdi a minha turma, que se formou mais tarde. Eu voltei... Fiquei...

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O senhor Amaro era o diretor do colégio anti-go, aqui em Cataguases. Quando eu estava no segun-do ano ginasial, ele arrendou o colégio para uns pa-dres. O senhor Amaro já estava cansado. Anos e anos, a vida inteira lutando, calculo eu, estava cansado e achou que seria uma boa. Quer dizer, arrendava para os padres. Os religiosos sempre foram destacados co-mo educadores - seria uma solução para Cataguases e para ele propriamente. Mas não deu certo. Isso foi em 1933... 34, por aí. Não sei se eles eram francisca-nos. Sei que tinham aqueles capuchinhos espanhóis, que estavam fugindo da revolução na Espanha. En-tão, nessa época, vieram esses padres espanhóis para Cataguases... Eles não falavam português e ficou con-turbado o estudo. Com esses padres ficou comple-tamente desmanchado o colégio. Eles ficaram aqui um ano e meio, mais ou menos, se não me falha a memória. Então, a gente... menino sabe como é que é, muito levado, nós já fomos assim meio de cambu-lhada. Quando chegou no meio do ano seguinte, eles abandonaram simplesmente... Quando o Franco9 do-minou a situação eles entregaram o colégio ao pro-fessor Amaro e foram embora! Os outros professores

9) Franco, ditador espanhol.

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já tinham saído. Não tinha mais professores aqui, na época, contratados pelo professor Amaro. Então ele ficou no ar. Foi muito difícil pra ele! Ele se esforçou ao máximo! As filhas dele, a Carmenzinha, a dona Filhinha, eu me lembro que tinha um médico aqui, o doutor Sicarini, que também dava aula... Era o úni-co ginásio que tinha. Tinha o colégio das Irmãs, mas era só mulheres, era feminino... Bom, em consequên-cia, eu repito o ano. O francês era a matéria que eu tinha mais facilidade na época, mas o Antoniquinho Mendes, que era o professor, me reprovou. A minha irmã Silvia, a mais velha falou assim:

- Não tem esse negócio de fazer segunda época não. Se tomou pau tem que repetir o ano! Isso era a conclusão dela... eu achei que podia... Eu lembro do Cardozinho, foi meu cole-

ga. Tinha o Leôncio Moura, filho do juiz... A Josélia Peixoto, Irmã do Zezito... Tinha a Dinha, a Maria de Lourdes, que é filha do doutor Amaro também... Foram meus colegas. Eu lembro do Luiz Peixoto, que foi escrivão até pouco tempo... Era uma série muito grande. Uns seguiram e eu fiquei com a turma atra-sada... Meu amigo Luiz Peixoto era também um me-nino meio levado. Nós fizemos as nossas artes aqui... Mas as artes de antigamente, comparadas com as de hoje... Dá pra tornar santo qualquer um!

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Eu tenho uma prima, que mora em Uberlândia - nós brigamos porque ela é defensora da separação do Triângulo - ela saiu de Cataguases pequenininha, novinha, mas ela tem uma ligação... tem um amor por Cataguases! Coisa impressionante! Então ela veio aqui, depois de muitos e muitos anos e fez questão de ir lá no chalé. Eu tirei uma fotografia de lá e tudo (para) a família conhecer...

Uma das meninas que está fazendo esta pes-quisa já descobriu de quem (o meu avô) comprou o

“Porto dos Diamantes”... Pode ser, quem sabe, talvez um engano, porque isso pode acontecer. Mas trinta e seis quilômetros afora passaria de Barão de Camargo e chegaria bem longe. Sairia talvez, até, da área mu-nicipal. Não seria o caso. Eu acho que há um enga-no qualquer. É ali mesmo! Está lá! Ainda resta, ainda existe o chalé!

Entrevistado em 14/6/1988 por João Carlos Juste e Rosângela Schettini Rodrigues

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Em primeiro lugar, eu gostaria

de agradecer a oportunidade que a Secretaria de Cultura está me oferecendo para esta entrevista, re-latando alguma coisa ligada à Igreja Metodista, em Cataguases. Em segundo lugar, devo me apresentar como pastor da Igreja Metodista em Astolfo Dutra, Campestre, Piraúba e Dona Euzébia, tendo nascido na cidade de Cataguases, no dia 8 de janeiro de 1922, e aqui militando na Igreja Metodista desde a infân-cia. Quando eu nasci meus pais já eram da Igreja Metodista. Naturalmente, como filho de membros da Igreja Metodista, eu tive uma ligação muito grande com a Igreja.

S E B A S T I Ã O L O P E S N E T OPA S TO R M E TO D I S TA

7 0 a n o s

Foto: Templo Metodista (rua Major Vieira), Alberto Landóes, 1915, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de

Cataguases

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Meus pais - Otávio Corrêa Neto e Ana Áurea Neta - eram muito fiéis à Igreja e, desde a minha meninice, ensinando e doutrinando para servir à Igreja. Numa certa ocasião eles mudaram aqui para Cataguases e foram residir numa fazenda próxima do Estado - a localidade era conhecida por Estado10

- e ali eles se tornaram metodistas. Trabalhando sob a administração de Bento de Souza e dona Maria de Souza, uma família da Igreja Metodista, eles vieram a conhecer a Igreja. Meu pai era carpinteiro e minha mãe do lar, naturalmente.

Os dados que eu tenho sobre a história da Igreja Metodista foram coletados pelo reverendo Epaminondas Moura, que foi pastor aqui na década de 40. Através de documentação, através de informa-ções de nosso saudoso irmão José Fernandes Sucasas, o que nós temos aqui é o seguinte, e eu tomo a liber-dade de fazer a leitura do próprio histórico da Igreja:

“No dia 9 de fevereiro de 1894 chegou em Cataguases, pela primeira vez, o Reverendo Felipe Revale de Carvalho, que trazia algumas Bíblias pa-ra vendê-las aqui na cidade. Contudo, havia um fato curioso, ele não conhecia ninguém... Naquela épo-ca o senhor Sucasas trabalhava de alfaiate ali, num

10) Antiga Colônia Major Vieira.

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prédio próximo à Estação da Estrada de Ferro. E, tra-balhando ali, viu aquele homem passar com aquele amarrado de livros, e o chamou e perguntou que livros eram aqueles que ele levava. Então, ele disse que era a Bíblia e outros livros religiosos para ven-der. E o Sucasas, naturalmente, perguntou a ele como fazia para adquirir os livros. Como o Sucasas vinha da Espanha e via falar tanta coisa a respeito da Bíblia dos chamados protestantes, ele quis tomar conheci-mento. Adquiriu duas Bíblias de uma só vez, em vez de adquirir uma Bíblia só. E passou a estudar a Bíblia. Sempre que Felipe Revale de Carvalho vinha à Cataguases hospedava-se na casa do Sr. Sucasas e da Dona Encarnação. E também do Sr. Ezequiel Alonso, sogro do Sucasas, também espanhol.”

Já nessa época residiam na Rua Alferes Henriques de Azevedo, naquelas imediações do Sindicato de Fiação e Tecelagem. E ali surgiu a ideia da criação de um ponto de pregação da Igreja Metodista. Residindo ali, eles instalaram ali a Congregação Metodista. Ela teve seu ato inaugural no dia treze de maio de 1894. Mas no dia 20 de maio de 1894, quando eles estavam ali reunidos - realiza-vam um trabalho normal de culto, de estudo da pala-vra de Deus - aconteceu um fato inédito! Aquele am-biente muito alegre, muito festivo, foi surpreendido

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com a chegada de, mais ou menos, cinquenta homens armados de porretes e de chibatas, tiraram o pastor de dentro da casa, levando até as proximidades da Estação Ferroviária. Arrastado pelas ruas da cidade! O propósito deles era deportá-lo, mandar para outra cidade! Naquela época havia uma intransigência re-ligiosa. Havia como que uma certa oposição entre o catolicismo e o protestantismo. Com essa oposição a igreja sofreu quando iniciava aqui o movimento. Mas o Sr. Sucasas, que era jovem ainda, espanhol, de sangue agitado né, então ele enfrentou todos aque-les homens. E surgiu também José Schettini, uma figura que era da maçonaria em Cataguases. Então, juntamente com ele, conseguiu tirar Felipe Revale de Carvalho das mãos dos agressores. Retornaram com ele ao ponto de partida, lá na Rua Alferes Henriques de Azevedo. Não tardou que chegasse lá um capitão da polícia, juntamente com as autoridades, pergun-tando ao pastor se queria que punisse os agressores. Ensanguentado, Felipe Revale de Carvalho - com a roupa toda em sangue - já presidindo uma reunião de orações, pedindo bençãos a Deus para dar força àquele povo. Mesmo naquele estado! O reverendo disse:

- Não, não quero que dê castigo nenhum a eles. Eu desejo apenas que eles se convençam, reconheçam o

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poder de Deus e esse poder do evangelho, que trans-forma suas vidas espiritualmente. Essa foi, natu-ralmente, a primeira iniciativa, vamos dizer assim. Na época era tão pequeno o grupo pra começar! Era nada mais que umas quatro ou cinco pessoas. Agora, uma coisa que devemos observar tam-

bém, no início, era pouca frequência. E sendo pou-ca frequência enfrentava-se, também, um problema muito difícil! Na época fazia-se de tudo para sufocar aquele trabalho que estava começando, estava se ini-ciando... Mas aconteceu que logo no início houve vá-rias conversões. Muitas pessoas começaram a chegar... Era esse o desejo, mas para decidir mesmo, para ba-tizar, para se tornar membro da igreja, foram poucas. José Fernandes Sucasas foi o pioneiro, vamos dizer assim, o iniciador. Ele, juntamente com o sogro dele, Ezequiel Alonso é que foram os primeiros. Depois co-meçou a chegar, como foi o caso da família do Bibiano Pimenta... Outras pessoas. Mais ou menos na época, quando foram recebidos Bibiano Pimenta e sua es-posa, foram recebidos o senhor José de Almeida e a esposa, um outro simpatizante, um outro membro da igreja. Mais tarde, a figura do nosso saudoso ir-mão Sizenando Dutra de Siqueira, avô da nossa irmã Gláucia né, que foi um dos que ajudou, também, a le-var avante a bandeira do metodismo, na época.

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Agora, nós temos aqui os quatro primei-ros batizados realmente. No dia 15 de outubro de 1894, Felipe Revale de Carvalho recebeu por batis-mo e profissão de fé, os primeiros quatro metodis-tas: José Fernandes Sucasas, José de Almeida Pinto, Encarnação Del Rego Sucasas e Bibiano Pimenta. No dia seguinte - porque eles faziam reuniões diárias - mais dois batizados: dona Hisbela Francisca Pimenta, que era esposa do Bibiano, e a dona Angélica de Moura. Agora, conforme eu disse, surgiram pos-teriormente outros nomes como: Joaquim Pereira Louro, Sizenando Dutra de Siqueira e muitos outros. Depois tiveram sequência em prosseguir a obra do metodismo em nossa cidade.

A Igreja Metodista de Cataguases é a pioneira dessa região toda aqui. Foi daqui que saiu a igreja das cidades de Leopoldina, Ubá, Além Paraíba. Toda essa região da Zona da Mata leste, enfim. Quando o Reverendo Felipe chegou aqui, ele era um pastor mis-sionário, quer dizer, era subordinado à Conferência de Juiz de Fora, parece. Ele percorria essa região fa-zendo trabalho missionário.

Nós conseguimos pesquisas, né. Havia uma coisa interessante... Isso é um fato verídico! Acontecia o seguinte: os que saiam a campo mesmo, pa-ra realizar o trabalho verdadeiramente, era o José

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Fernandes Sucasas e o Bibiano Pimenta. Agora, o seu avô, o senhor Sizenando Dutra de Siqueira e o Joaquim Pereira Louro - que eram homens de certo poderio econômico por aqui - custeavam as despesas desses que estavam no campo realizando trabalho. Eles faziam questão! Pagavam a mensalidade para que o senhor José Fernandes Sucasas se dedicasse ao trabalho religioso. Ele tomava algum tempo da pro-fissão dele - alfaiate - então aquilo que faltava eles complementavam. Era assim custeado por eles. Era cooperação.

Agora, uma coisa que eu gostaria de frisar, já que estamos falando sobre a história, é que, infeliz-mente, daquele ponto de pregação da Rua Alferes Henriques de Azevedo, quando nós tivemos aquela prova de fogo, como eu já me referi, o Monsenhor Araújo - que era o padre da Igreja Matriz - ele assistia passivamente da casa dele! Eu tenho a impressão que seja ali, naquela casa onde mora a família do doutor Tarcísio, hoje. Pela que se deduz, seria ali... A hosti-lidade era a olhos vistos, dada a oposição religiosa que havia na época. Inclusive, a residência do senhor José Sucasas era alvo de pedradas. Atiravam pedras... quebravam janelas... Era realmente uma época muito difícil, de pouca tolerância religiosa. A intolerância foi mais com o Monsenhor Araújo...

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Dali, da Rua Alferes Henrique de Azevedo, te-ve algum tempo reunida na casa do senhor Bibiano Pimenta, avô do Jairinho - Jairo Pimenta Junior - esse nosso amigo. Mas eu não consegui precisar onde era a casa do Bibiano Pimenta. Procurei o Jairinho, ele es-tá viajando, está para São Paulo, então não consegui precisar... Da casa do Bibiano Pimenta a Igreja foi pra Rua do Pomba, que é a Major Vieira, ali no Beco da Cadeia. Tem fotografia do templo ali... Dali nós fo-mos para a Avenida Astolfo Dutra, em terreno que foi doado pela Prefeitura Municipal de Cataguases. Na época, foi inaugurada em 30 de julho de 1922, já tinha acabado aquilo, em parte. A própria comuni-dade dando apoio aos trabalhos da Igreja Metodista. Em 1922 a situação amenizou bem.

Quando saíram aqui do beco da cadeia, do templo antigo para o templo novo, da Avenida, sa-íram em procissão. O jornal Cataguases deu ampla cobertura do acontecimento de inauguração do novo templo. O senhor Pergentino era superintendente da Escola Dominical, ia à frente com o Reverendo José de Azevedo Guerra, o pastor. E a banda de música acompanhando o desfile dos metodistas.

Eu acho que a causa metodista pesou muito, quando Felipe Revale de Carvalho teve aquela ati-tude. Foi dado conhecimento à própria comunida-

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de... As autoridades queriam punir os agressores... Inclusive o Doutor Astolfo Dutra, que era pai do Doutor Pedro Dutra Nicácio, neto, quis mover um processo e Felipe Revale de Carvalho foi lá no Fórum e pediu a retirada do processo! Quer dizer: não pu-nissem os agressores, que cada um deles se cons-cientizasse, e salvasse a vida deles espiritualmente... Transformasse, né?

Naquele tempo, Cataguases era uma pequena cidade. Eu acho que isso aí pesou muito na balança porque a comunidade tomou conhecimento desse fato. Então começaram a sentir que aqueles poucos evangélicos, que estavam ali, mereciam um certo apoio! No dia da inauguração estavam vários pasto-res, inclusive o bispo da Igreja Metodista, na época. Não preciso o nome dele, porque não consegui... Eu não tenho nome de todos aqui... Mas foi, realmen-te, uma noite de gala para a família Metodista de Cataguases, o ato de inauguração, em 1922.

O templo que nós temos agora foi amplia-do. Nós construímos no fundo aquele salão social. Está servindo até à comunidade, com salas de aula alugadas ao município, para atender à reforma do grupo Coronel Vieira. Examinando as atas da Igreja, examinando todos aqueles dados históricos, houve um crescimento rápido. A gente vê pela recepção de

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membros anualmente. Sempre havia um crescimento, a despeito daqueles que saíram de Cataguases para outras cidades...

Naquela época poderíamos dizer que a clas-se social que era recebida como membros da Igreja Metodista era... equilibrada. Uma parte mais hu-milde, outra mais elevada e entre eles podemos destacar a família Siqueira: dona Jandira Siqueira, que era formada em farmácia; o senhor Pergentino Siqueira mais os filhos do senhor Sizenando, como o Elvindo, professor em Belo Horizonte. Então, a Igreja Metodista tem caminhado no campo da conquista de almas para Cristo. É o objetivo principal!

Nós observamos que a Igreja tem um nível so-cial equilibrado, nós temos pessoas de uma certa ca-pacidade intelectual e temos, uma boa parte também, de pessoas mais humildes. Mas todos eles se desen-volvem! Todos eles procuram se aprofundar, cada vez mais, nos conhecimentos religiosos, na doutrina da própria Igreja. O relatório escrito pelo reverendo Felipe Revale de Carvalho, datado de 17 de outubro de 1894, diz o seguinte:

“Amados irmãos, É com contentamento indizível que eu levanto-me diante de vós, congregados em conferência, para relatar-vos so-

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bre a nossa obra evangélica, desde que para aqui cheguei, enviado em nome de nosso Bendito Salvador Jesus Cris-to. Entrei na cidade de Cataguases com fim único de pre-gar o evangelho da salvação, no dia 9 de fevereiro de 1894. Durante três meses e quatro dias, unicamente, conversei com o povo e visitei várias famílias. No 13 de maio, glo-riosa data da fraternidade brasileira, inaugurei nossa sala de culto, desde quando temos trabalhado com regularida-de, pregando todos os domingos, às sete horas da noite, à uma assistência média de vinte pessoas. Às onze horas da manhã, uma Escola Dominical com assistência satisfatória. Pela fidelidade dos irmãos, nossos ouvintes, aos cultos e à aceitação das Santas Escrituras e Doutrinas, temos tido como resultado a benção já conhecida por nós, isto é, trinta e três candidatos. Destes, seis foram batizados e fizeram sua profissão de fé. Esses são os seguintes: José Fernandes Sucasas, Encarnação Del Rego Sucasas, Bibiano José Pi-menta, Hisbela Francisca Pimenta, Firmina Angélica de Moura, José de Almeida Pinto. E batizamos também três crianças que são: Leopoldo Del Rego, Samuel Del Rego e Israel de Carvalho. A causa evangélica da cidade promete um futuro risonho, embora muitos de nossos candidatos tenham se retirado e mudado de residência. A nossa Escola Dominical, que foi organizada com dez membros, só tem uma classe devido a motivos justos, mas em tempo opor-tuno aumentaremos os membros e o número de alunos das

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classes. Contamos, presentemente, com treze membros, que se esforçam a responder as perguntas que lhe são feitas. Durante o tempo de minha residência na cidade tenho con-seguido angariar vinte e sete assinaturas do órgão oficial da Igreja, ‘O Expositor Cristão’, e tenho a esperança de mais alguns. Concluindo esse relatório, peço aos irmãos congra-tularem-se comigo por termos já uma Igreja Evangélica organizada em Cataguases, e pedir ao Nosso Pai Celestial, que nos cubra com suas santas bênçãos e nos guie com o Espírito Santo, para que possamos desempenhar a nossa tarefa, que é bastante espinhosa.

Nada mais tenho a dizer.

Respeitosamente, Felipe Revale de Carvalho Pastor”

Naturalmente que o trabalho produziu frutos. Em primeiro lugar, todos aqueles que passaram a mi-litar na doutrina metodista, abandonando um cami-nho de vícios, de erros, caminho de pecados, essa coi-sa toda, eles obtiveram frutos procurando santificar mais a vida. O espírito doutrinário obedece a uma doutrina rígida com referência à abstenção de vícios, essas coisas... Já saíram daqui para desempenharem suas missões dentro do pastorado da Igreja. Dentre eles, podemos destacar o Bispo Isaías Fernandes

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Sucasas, que chamado para ser pastor veio a ser, mais tarde, consagrado bispo da Igreja Metodista do Brasil. Ele passou a exercer o episcopado ao tempo em que a Igreja só tinha um bispo. Como pastores nós te-mos o José Sucasas Junior, filho de José Fernandes Sucasas, hoje aposentado. Temos o Tércio Machado de Siqueira, pastor metodista também, hoje exercen-do o magistério na Faculdade de Teologia em São Bernardo do Campo, São Paulo. O Tércio, inclusive, esteve fazendo mestrado na Inglaterra e nos Estados Unidos. Nosso irmão Tércio Machado de Siqueira é hoje uma das colunas mestras da Igreja Metodista do Brasil, em matéria de cultura, do Velho e do Novo Testamento.

Aluísio Faria de Siqueira, militando no pas-torado em Belo Horizonte; Luiz Israel de Barros foi pastor aqui em Cataguases cinco anos, falecido re-centemente. Nós tivemos também o Ormeu Alves da Costa, pastor lá em Curitiba, Estado do Paraná; Silas Namorato, pastoreando em uma das Igrejas de São Paulo; Olívio Andrade da Silva, que saiu daqui para pastorear igrejas e hoje faz parte, como economista, da alta cúpula da Igreja Metodista! E Sebastião Lopes Neto, que está sendo entrevistado, pastoreando qua-tro campos: Astolfo Dutra, Piraúba, Campestre e Dona Euzébia.

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Pra chegar ao pastorado, naturalmente depois do preparo ginasial, ou melhor, primeiro e segundo graus, vai à Faculdade de Teologia, fazer cinco anos de bacharel em teologia... Fazer um vestibular para ingressar é... (curso) superior! Agora, existe também a categoria pastor evangelista. Esse pode chegar ao pastorado através de um curso básico de teologia, que é o meu caso. Eu sou pastor evangelista. O cri-tério para a escolha do candidato hoje é da Igreja local, onde a pessoa está exercendo a sua atividade religiosa. Ela é recomendada pelo Concílio da Igreja às autoridades superiores para dar encaminhamento ao processo de estudo do candidato. Muita gente aí anda confundindo as coisas...

- Eu vou ser membro de determinada Igreja pra ser pastor! Não é bem isso não! O chamado para o Minis-

tério é uma coisa realmente maravilhosa! Meu cha-mado foi através de uma visão, em sonhos. Eu atri-bui que foi Deus falando. E Deus, realmente, me abençoou e tenho feito um trabalho... da melhor for-ma possível.

Para ser missionário da Igreja Metodista exige-se o curso superior, desde que a igreja existe. E sem-pre teve, assim, uma oportunidade para aqueles que não pudessem chegar ao curso superior. Pra atender

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às Igrejas menores, poderia ser através de um curso básico de teologia, ou uma equivalência, vamos dizer assim. Eu tenho a impressão que o Felipe Revale de Carvalho tinha curso superior porque ele exercia o trabalho missionário.

O trabalho metodista iniciou em 1738, na Inglaterra, através do movimento de John Wesley, juntamente com seu irmão Carlos Wesley. Ali na Inglaterra eles se levantaram para aconselhamento dos jovens, num momento de revolução espiritual.

Eles denominaram de “grupo santo”. John Wesley relata, no diário dele, que cancelava nomes de membros da Igreja por quebra do dia de domin-go! Quem trabalhava domingo era excluído da Igreja! Quem passava na rua e olhava para a mulher do ou-tro, se ficasse provado... Chegou ao Brasil com os pri-meiros missionários americanos. Vários bispos ame-ricanos passaram por aqui! Até pastores americanos pastorearam a Igreja Metodista de Cataguases!

A igreja procura manter o seu nível doutrinário e disciplinar. Ela não pode abrir mão totalmente! A essência ela procura manter! Um equilíbrio... conti-nua a abstinência dos vícios. O jogo, por exemplo, a loto, a loteria, é proibido... se tornar um alcoólatra, é excluído da Igreja! Tudo isso é abstinência de vício! Se cometeu falta grave é advertido, dá-se oportuni-

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dade por determinado tempo. Agora, se continuar... A Igreja não abre mão disso! Desde os tempos de Wesley a filosofia é esta. A Igreja Metodista não está preocupada em quantidade, mas sim em qualidade. Agora, as Igrejas aí estão preocupadas em conseguir maior número de adeptos... Mas do jeito que entra, sai. Parece que não há consistência doutrinária. A pessoa entra por entusiasmo, né. De qualquer forma, seja qual for o tipo de trabalho, tem seu mérito por-que estão contribuindo para um aprimoramento de cada cidadão. E isso vem ajudar muito no compor-tamento da vida de cada pessoa: deixar aquilo que eles faziam, aqueles vícios que tinham, abandonaram aquilo tudo para se dedicar a uma causa.

Agora, infelizmente, o que nós estamos ven-do aí, pela televisão... Há uma proliferação muito grande de pessoas, que assumem o comando de uma igreja, visando mais a parte monetária. O perigo está aí! A Igreja Metodista, como muitas igrejas evangé-licas, sobrevive com as contribuições que os mem-bros dão. Mas a Igreja Metodista não faz carga cer-rada em termos de contribuição, quer dizer, pede a cada membro uma oferta liberal, naturalmente. Uma oferta liberal quer dizer nem tão pouco, mas também não muito! Cada um na medida que pode, na possi-bilidade...

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Há anos atrás, a Igreja desenvolvia um traba-lho melhor, realmente. Mas de uns tempos para cá, parece que havia se acomodado. Agora a Igreja ho-je está com nova dimensão. A igreja parte para um trabalho de avivamento espiritual. Em Astolfo Dutra, a Igreja Metodista vai espantar muita gente, porque é um trabalho de despertamento espiritual. A Igreja cantando, orando, vibrando, testemunhando o evan-gelho! De uma maneira positiva e extraordinária! E a mocidade que tá abandonando o mundo lá fora e se entregando nas mãos de Deus. Por exemplo: eu tenho dois jovens na Igreja - um cantava no conjun-to da cidade, outro jogava futebol - abandonaram... Ainda não é membro da Igreja, ainda não se batizou, ainda não assumiu o lado de membro da Igreja!

- Não, para servir a igreja e ser realmente um cristão, eu estou abandonando tudo lá fora, que possa impe-dir a minha candidatura! Eu vejo a Igreja se despertando realizando um

grande trabalho... Cataguases está despertando tam-bém. Agora, no tempo em que fomos da sociedade de jovens, você lembra, você também já pertenceu à igreja, nós tínhamos um trabalho muito bem progra-mado. Muito bem programado!

A Igreja tem uma comissão de Ação Social e essa comissão procura atender, na medida do

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possível, e diante de suas possibilidades de arreca-dação, às pessoas mais carentes da própria Igreja. Naturalmente dando uma certa prioridade aos mem-bros mais pobres da igreja e, também, atendendo às pessoas pobres da comunidade, geralmente em época de Natal: distribuição de gêneros alimentí-cios, roupas, etc. Os trabalhos da Igreja Metodista se organizam dentro da própria igreja, por exem-plo: Sociedade de Senhoras, Sociedade de Homens, Sociedade de Jovens... Crianças... Cada um na sua faixa etária, procurando elevar o nível de cada um deles.

Eu gostaria de fazer aqui uma colocação muito importante. Nós falamos tanto no princípio - a época em que a Igreja enfrentou duras perseguições - que havia aquela oposição, então eu gostaria de dizer hoje, aqui nesta entrevista, como a Igreja hoje caminha. Eu me recordo que, no pastorado do Reverendo Omar Daibert, nós fizemos parte de uma Comissão Central de Festividades aqui. Numa reunião que nós está-vamos lá na Prefeitura - Omar Daibert, Monsenhor Solindo, e membros da comissão - o reverendo Omar propôs um culto de Ação de Graças, nas festividades de 7 de setembro11. Houve a proposta do pastor da

11) Festividades de aniversário da cidade.

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Igreja Metodista, e houve apoio. Monsenhor Solindo gostava de estar sempre relacionado com metodistas. O pastor propôs que a Católica fizesse seu palanque de um lado, que a Igreja Metodista faria de outro. O monsenhor levantou e declarou:

- Ô pastor, porque não estamos juntos, as duas Igrejas no mesmo palanque?

- Desde que o palanque estivesse simples. O pastor Omar Daibert aceitou o desafio e, na-

turalmente, fez algumas observações... Nós temos a nossa doutrina e a Igreja Católica tem a dela... Foi combinado tudo isso e, no dia 7 de setembro, nós es-távamos no palanque: os pastores, o coral da Igreja Católica e o Coral da Igreja Metodista. Eu tenho foto-grafia desse evento: 1962. Outra coisa que eu gostaria de dizer, é que aquele mesmo pastor que foi massa-crado, que foi arrastado pelas ruas da cidade, hoje dá nome a uma das principais avenidas do Bairro Independência, um dos bons bairros de nossa cidade. Foi na administração do prefeito Milton Cavalheira Peixoto este ato, homenageando os metodistas, dan-do nome: Avenida Reverendo Felipe Revale de Carvalho. Eu publiquei uma reportagem... A inaugu-ração se deu no dia 20 de maio de 1979, quando esti-veram presentes autoridades civis, militares e religio-sas. O decreto da egrégia Câmara Municipal recebeu

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o número 942 e foi publicado no Jornal Cataguases, no dia 6 de maio de 1979. Quer dizer, nós vimos aqui duas épocas distintas: uma em que havia intolerân-cia religiosa, e hoje nós caminhamos de mãos dadas, para alegria de toda nossa comunidade. Haja vis-to o 7 de setembro este ano (1990). Nós tivemos um grande culto ecumênico abrangendo todas as Igrejas Evangélicas de Cataguases. Todas as Igrejas da ci-dade estiveram no palanque, não somente a Igreja Metodista e a Igreja Católica.

Encerrando essa nossa entrevista sobre a História da Igreja Metodista de Cataguases - este ano ela completa 96 anos de existência - que está a cami-nho do centenário, nosso propósito é realmente dar um cunho festivo. Que esta data do centenário mar-que época na história religiosa de Cataguases! Como humilde membro da Igreja Metodista de Cataguases, filho da terra, filho dessa Igreja que tanto amo, essas são as minhas palavras para deixar nos arquivos da Secretaria de Cultura.

Entrevistado em 3/4/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.

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Meu pai, Veríssimo Mendonca, ele era fazendeiro. Aquela fazenda onde é que chama Ibraim Mendonça, aquilo ali era de papai, ali era uma fazen-da, Santa Clara. Vinha até aqui na cidade, atrás do Hospital, Vila Tereza (atual). Ali tinha uma porção de casa até ali em baixo; aquela casa tá lá até hoje, é dele, uma casa que tem uma entrada assim, perto daque-le... daquele gerente da “Cima”. Aquilo ali é do papai. Papai quando morreu deixou pra Ceição. Ceição foi herdeira, uma irmã, né. Conceição. Depois ela vendeu.

Primeiro ele tinha uma outra fazenda lá em Santa Cecília, lá perto da Fazenda Estrela. Era um sítio, uma fazendinha, né. O movimento da fazenda era café, cana, né, essas coisas de engenho de cana...

S Í LV I A M E N D O N Ç A L E I T E ( D O N A V I C A )

D O N A D E C A S A

8 5 a n o s

Foto: Vila Tereza, A Brasileira, 1915, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases

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Tinha os empregados. Não, tinha grande numero não. Uns quatro, cinco. Hoje acabou tudo, aquilo tudo lá é pasto hoje. Já passei lá há pouco tempo, já vi, não tem mais nada. Vendeu pra essa gente de Aurora, né.

A Fazenda Estrela era daquela gente Souza, lá perto da Aurora, Fazenda Aurora, né. Era lá pra aqueles lados. Ainda tem até hoje por lá. A Fazenda da Saudade... terra dividindo com a Aurora. Aquilo ali era do Souza. Souza era riquíssimo! Minha irmã mais velha era casada com o Tonho de Souza, pai do Filhinho. Ih! Os Souza tinha dobrado de enorme! Só cê vendo! Nós perto dele não, tinha nada. Engenho de café, de cana-de-açúcar, tinha muita coisa. Gente riquíssima! Acabou tudo, né, menina? Acabou tudo, tudo, tudo!

A família da minha mãe, Jovelina Soares Mendonça, era de Ubá. Meu pai que era daqui. Minha mãe morava aqui perto, o pai dela tinha um sítio. Depois até papai quando casou foi tomar con-ta da fazenda, a Fazenda Santa Cecília, lá perto da Aurora. Minha vó, não sei nada dela, tinha uma fa-zendinha, e depois o papai tomou conta. A minha vó era viúva, né. Pra tomá conta... ele casou, foi pra casa de minha vó e foi tomar conta do sítio. Onde do sí-tio ele fez uma fazenda. Cresceu! Não comprou tanta terra, mas mexeu... progresso, né.

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Fui criada na fazenda, nessa fazenda lá perto da Aurora, criada não, eu vim de lá com sete anos pra oito anos, pra Fazenda Santa Clara. Estudei in-terna no colégio, fui até o segundo ano Normal, só isso. (Saí) não foi pra casar não, fui pra roça, pra casa, né, depois que eu casei, porque nem foi mais a minha mãe... eles começaram a entrar em rixa, ele deu um pulo fora lá, sabe como é que é, né, e ela não aguen-tou e brigaram muito e tudo. Isto atrapalhou muito a família. Ele nos botou interna aqui no Colégio, estu-dei interna uns tempos - eu, Ceição e Cinoca. Aí de-pois fomos lá pra casa, né, pra roça. E nós ficamos convivendo lá, até casar.

Quando eu tava solteira, ele morava junto com ela. Viviam separados, mas sabe como é que é, né, dentro de casa. Quando, essas coisas, mas moravam juntos. Eu já era casada quando ele morreu, sabe, aí dividiu tudo pros filhos em vida, sabe, dividiu tudo. Quando ele morreu deixou cada um com o seu pe-daço, igualzinho. Dividiu a fazenda. O Ibraim ficou com a sede, né, e nós ficamos com os outros pedaços. Até, por exemplo, onde morou o Faber Rezende, que casou com minha irmã Cinoca, ali no Beira Rio, ali é do papai também. A Cinoca casou e ficou morando ali. Ah! Mas acabou tudo, minha filha! Só o Sadi que era rico, né, mas não foi com herança do papai não.

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Ele trabalhou muito, era muito trabalhador, agencia-dor da vida, sabe. Ele ficou bem, a família dele ainda está bem, nos dias de hoje. Trabalhou (com café), com cana, moinho de cana. (Vivi na fazenda) até quando eu casei, né. (Depois vim) pra cidade, Cataguases.

Eu já rodei mundo, boba! A gente já andou muito. Eu conheci (meu marido), José Leite, na ci-dade, que ele é filho daqui, né, ele era filho daqui. Conheci ele aqui, fui namorando, eu acho que eu fi-quei noiva uns seis meses, ou um ano, nem sei mais não, e logo casei. Não fiquei permanente, porque ele era contador daquele... João Duarte, do Banco do João Duarte. Quando casei com ele era... depois per-deu, houve a falência, né. Ele perdeu o emprego.

(O banco) logo que abriu falência, né, foi uma desilusão, foi uma tristeza, sabe. Nós fomos passear no Rio de lua de mel, quando nós voltamos a falência já tinha sido declarada. Perdeu o emprego. Ih! ... aí depois ele fez coisas do diabo! Não sei quantos em-pregos que ele teve! Ele era um agenciador da vida, sabe, nunca ele ficou parado. Teve uma ocasião que nós saímos daqui e fomos morar em... botou uma sociedade com um primo dele lá em... pra cima da Ponta Nova, esqueci o lugar, o nome. Moramos lá uns tempos, mas ele não gostava de lá, então nós viemos embora. Mas eu andei, minha filha, nessa vi-

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da! Filho e mudando! (Meu marido) foi prefeito aqui na Prefeitura. Quer dizer, ele trabalhava com o Dr. Edson Rezende e depois o Dr. Edson saiu pra candi-datar a deputado, ai ele ficou como prefeito uns tem-pos. Tanto é que naqueles retratos, de ex-prefeitos, que tem lá no Fórum, ele deve tá lá.

Política era fervendo aqui. Pedro Dutra com os Peixotos, né. Ah, naquele tempo? Tiro? Uai! Deram tiro na Rádio, foi uma coisa horrível! (“Meu pai foi preso, foi preso pelo Pedro Dutra, né, tudo por causa da política”, esclareceu Virginia, filha de D. Vica). Naquele tempo prendia todo mundo. Manoel Peixoto era o chefão aí, né. Seu pai era guarda-livros, trabalhava com os Peixoto. E o Pedro Dutra era con-tra. Muita gente já passou aperto por causa de polí-tica aí. Hoje, graças a Deus, já acabou tudo. O papai, o papai... não, o papai levou tiro foi na roça. Era por causa da fazenda.

Vizinhança de fazenda. Você sabe onde mo-ra o Josué Peixoto hoje, na roça? Pois é, ali morava um que era inimigo do papai. Ele passava na porta lá de casa, pra ir pra cidade. Papai andava a cava-lo. Naquele tempo todo mundo andava era a cavalo. Não tinha esse negócio de automóvel pra aqueles la-dos nem nada não. Era só de carro... de carro de boi e de cavalo. Então, papai um dia vinha pra cidade...

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ele vinha sempre, todo dia ele vinha. Quando che-gou numa volta que tem lá - até hoje tem essa volta lá, aqui no Beira Rio. Como é que se chama aquele lugar ali? Faber Rezende? E quando chegou na volta lá, o homem tirou a garrucha e deu um tiro nele. Não é de revolver não, é de garrucha. Ele atirou no papai, o cavalo pulou; ele atirou o segundo, o cavalo pulou; o terceiro, acho que acabou a coisa, né, não disparou. E o papai contou uma coisa que tinha sido atirado. Ele tinha uma oração que chama “Justo Juiz”. Eu te-nho essa oração que não sei quem me deu. Uma vizi-nha, uma senhora que tinha lá que era vizinha, e que gostava muito dele falou: “O seu Veríssimo, você vai usar essa oração no bolso, porque você anda muito em perigo”. Ele usava daquele lado, dentro da cartei-ra. Eu acredito que seja isso, porque eu sou muito ca-tólica e acredito muito nas coisas. O homem deu três tiros nele, e a garrucha... era garrucha que ele tinha, Nem era revolver não. (A polícia) interferia, tudo, mas não prendeu nada porque não foi flagrante, não foi pego na hora, né, e o tiro não pegou... Ih! Nós vi-ramos num desassossego, mas uma coisa horrorosa! E ele ainda voltou para a cidade. A mamãe gritando e falava: “Não vai Veríssimo, não vai!” Porque estava com medo dele atirar outra vez. Veio para a cidade voltou e não teve nada.

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Rico, rico, não, né, (papai) era bem rico, não era rico igual os Souza, Antonio Augusto de Souza, não era, mas ele era abastado, né, como se diz, né. Ih!... Nós fomos criados na fartura. Lá em casa tinha ceva de porco, porco gordo, galinheiro, galinha em quantidade e roça de café, lavoura de café, de cana. Tinha engenho de cana. Pé de fruta. Ih!... tudo. Uma coisa eu posso falar: fui criada na fartura, graças a Deus. Agora os meus filhos já não foram criados as-sim, não foi criado na miséria, mas tudo... você sa-be como é que é, né, com o marido desempregado... sai de uma coisa pega noutra, sai daqui pega noutra, porque ele perdeu o emprego, né. Se ele perde o em-prego antes, uns dias antes, eu não tinha casado. Ah! Papai não deixava, não deixava mesmo!

Na minha infância tenho lembrança, minha mãe tinha piano, tocava piano... e reunia as pesso-as lá em casa, ia gente daqui da cidade pra lá, uma família, por exemplo, que tinha – Samuel -, ia pra lá ficava dez, doze, quinze dias. E lá tocava piano e aquela coisa. Papai fazia fogueira... tempo de foguei-ra, Nossa Senhora! Era uma fartura! Tinha forno de fazer quitanda, lá fazia quitanda, fazia tudo. Padeiro não aparecia lá em casa. A cidade era longe. Hoje está mais perto. Mas era longe. Tanto é que quando apa-recia um padeiro lá, ficava tudo gritando: “Ô padei-

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ro! Ô padeiro!” Vinha o padeiro com o pão fresqui-nho. Então era feito em casa biscoito, broa, bolo, tu-do. Era uma fartura! Por exemplo, dia de sábado era dia de enfornar junto com as empregadas. Amarrava um pano na cabeça e ia enfornar pra semana inteira. Tinha, me lembro, um caixote grande, umas caixas de pau, sabe, usava assim. Aquilo ficava cheio de qui-tanda pra semana inteira. O dia de fazer quitanda, já de manhã cedo, cedo, mamãe tava lá, fazendo, enro-lando, fazendo as coisas, a massa da broa, a massa do biscoito, aquela coisa toda, biscoito de polvilho dos grandes, sabe, mamãe fazia... era uma fartura, só cê vendo! Naquele tempo era uma beleza!

O pessoal da Aurora... você já viu falar na Fazenda da Aurora? Gente de Farjado... Acho que tem aquela fazenda até hoje lá, né. Hoje lá até fábri-ca existe. Lá era uma beleza! Dia de sábado assim eles iam lá pra casa, aquele pessoal da Dona Ritinha Farjado ia lá pra casa, tinha piano, minha mãe toca-va piano, e a gente cantava... era uma farra, sabe. Era bom demais! A minha infância foi uma beleza!

As visitas... um domingo eles vinha pra cá, ou-tro domingo nós ia pra lá. Eles iam muito lá pra casa porque mamãe tocava muito piano, tocava até tarde da noite. Mamãe tocava piano e tinha um professor, não sei quem é, eu era pequena, não me lembro mui-

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to, tocava violino. Tinha um que tocava flauta, não sei quem é mais; sei que era uma movimentação na roça, a gente não ia à cidade não. Divertia na roça. Eu era, nós era boba, tinha tanto medo da cidade! Quando a gente via soldado agarrava na barra da saia da mamãe. Medo de soldado, quando era peque-nininha. Vinha de carro de boi, punha tolda no carro de boi, tanto é que tinha uma pessoa... daquela gente do Samuel, ia pra roça, ficava lá às vezes quinze dias. Vinha carro de boi buscar eles na cidade. Minha casa era um movimento muito grande.

A casa era grande, toda envidraçada! Não, não tinha (banheiro) era água na bacia. Dava uma traba-lheira, né, esquentar água assim na bacia! Tinha (casi-nha) lá de fora, no terreiro. Eu conto sempre caso do meu tempo. Os urinóis todos tinham nome. Naquele tempo tinha muito médico em Cataguases e a ma-mãe conhecia muito médico, eles iam sempre lá em casa. Dr. Ventania, Dr. Pedro de Sá, Dr. Cavalcante e não sei mais quem... era uma porção de médicos e todos... então os meus urinóis tinham nome. Na hora de tirar a gente falava: “agora vou tirar o fulano de tal.” É, nome dos médicos. Eles falavam que médico é doutor, e urinol tem apelido de doutor. Mas a ma-mãe sempre teve empregadas boas. Nós tínhamos la-vadeira e cozinheira dentro de casa. Mamãe nunca fi-

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cou sem empregada. Naquele tempo havia emprega-da. Eu lembro quando... antes de mamãe... papai nos deixar... a gente andava de cavalo era cavalo de lado, assim, cilhão, não era igual montaria não, montaria veio depois, né! E... então papai tinha viajado, e a em-pregada acabou de arrumar cozinha, a lavadeira tam-bém... ficava dentro de casa, tudo lá. De noite é que ia pra casa. Só a cozinheira que dormia em casa. Mas então “agora nós vamos na roça, buscar verdura na roça...” umas verduras que dava no mato, cariru de porco, você já ouviu falar? Cariru de porco, e não sei mais o que, que nós vamos buscar na roça. Então nós fomos todas pra roça, as empregadas, a cozinheira, a lavadeira. Sei que moravam todos dentro de casa. E... então mamãe viajou com papai e nós fomos pra roça buscar cariru de porco. Cobra gosta muito de cariru de porco. Aquelas coisas mais verdes, fresquinhas, cobra gosta muito de ficar ali dentro. Então tinha uma casa de colono, tinha caído... ficou velha caiu, fi-cou caído lá, ficou aquele sapé - você conhece sapé?

- sapé que cobria a casa, ficou caído lá, e tinha cobra lá debaixo. Sei que nós descemos para buscar cariru de porco, desceu todo mundo na frente, empregada na frente, outra atrás, correndo. A última que vinha atrás foi a minha irmã Cinoca. A cobra mordeu ne-la. Ela gritou: “Maria, Maria Rita, volta aqui, cobra

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me mordeu!” Aí ninguém apanhou cariru de porco, ninguém apanhou nada! Foi tudo embora correndo lá pra casa. A mamãe não estava em casa nem papai. Usava... naquele tempo... homeopatia existia, um vi-drinho que fazia cura, negócio de cobra, mordida de cobra, sabe. Alguém trouxe uns, pôs umas coisas, um negócio assim. Não veio médico, não foi médico, não foi médico lá não. Acho que um senhor lá, e que sabia tratar, começou a tratar, botar remédio, dar remédio, pra beber também, de plantas. Não teve nada, não morreu, não ficou aleijada, não ficou nada. Botou re-médio de horta, remédio no pé, sei lá, sei que punha pano com leite... pra chupar, pra tirar veneno da co-bra, né, ensopava um pano com leite, tirava, depois tornava a por outro. O pano saía amarelinho, tirava o veneno da cobra. Não me recorda mais que eu era menina, também era mais nova do que ela. Sei que tomou o remédio. Ela sarou. Ficou muitos anos, uns três ou quatro anos sem andar, encostada numa mu-leta. Depois ficou boa. Até hoje ela tem o tornozelo meio inchado por causa do pé.

(Eu) frequentava a (Igreja) Católica. Tanto é que nós estudamos no colégio interno, né. Frequentava, mas era muito difícil, a gente morava na roça, né. Mas eu não perdia uma missa de domingo, isso é quando eu morava aqui, onde eu casei. Quando eu morava

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antigamente né, no Rio Pardo, perto da Aurora, lá não, fica fora de mão, muito difícil. Nem sei como é que a gente ia à missa. Agora, a Fazenda da Aurora era uma fazenda enorme! Era uma fazenda enorme! Era uma fazenda que não deixava a desejar nem pra cidade! Ela tinha um engenho de cana, engenho de café, fabrica de manteiga, tinha venda grande, tinha uma banda de música, campo de futebol... De manei-ra que o nosso movimento todo era lá.

Nossa! Papai era assim uma coisa horrível! Exigente. Não podia sair pra parte nenhuma. Às ve-zes a gente quando saía, dava umas fugidas, como por exemplo, uma ocasião nós... mamãe arranjou uma mentira com ele, nós fomos passar o carnaval em Ubá. O Carnaval! Uma beleza! Fugido dele, ele não sabia onde nós tava. Mamãe... eu... acho... não sei se foi eu, a Ceição e a Cinoca, ou se foi eu e a Ceição só. Acho que a Cinoca também foi. Olha, mas eu era sirigaita pra baile, pra clube... Ih!... Nossa Senhora! Mas não podia ir, ele não deixava, não deixava a gen-te ir em baile não, Eu lembro numa ocasião que eu entrei num bloco aí, daquela gente de... como é que chama aquele farmacêutico... de Tostes. Eu entrei num bloco de “Pierrô” e “Pierrete”. Até atrapalhou o bloco, que o papai tirou a gente. Depois de tudo arrumado, aquele branco e preto, tão bonito! Aquelas

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bolas... Lembro tanto disso! Ele atrapalhou muito o bloco, duas “pierretes” saíram, eu e minha irmã.

(O Carnaval) era no clube, Comercial Clube, mas eu ia fugida lá, nunca tive... olha, eu me lembro que uma ocasião que eu passei um baile lá... isso foi depois de casada. Um baile de passagem de ano, sa-be. A D. Nair Peixoto era muito animada! Lembro tanto disso! Mas eu, por exemplo, o meu marido era de sociedade, ele gostava de festa, de baile, tudo, mas e a filharada? Tenho 12 filhos.

A gente vinha muito à cidade, uai! Antiga-mente isso aqui era uma coisinha pequenininha, não tinha jeito de cidade. Hoje é... tem um movi-mento grande, né. Passeava muito sabe, só não fre-quentava baile que ele não deixava. Mas a gente ia na praça. Antigamente minha filha... aquela praça ali, aquilo era uma coisa... não é aquele lixo que tem lá hoje, aquilo é um lixo, né, lá, aquela Praça Rui Barbosa é um lixo. Antigamente era uma beleza, era um jardim mesmo! Tinha canteiros... Tinha pas-sagem embaixo e em cima; as moças passeavam em cima e os rapazes passeavam embaixo, sabe, nem sei explicar. Ah, mas era muito bonito ali! Só cê ven-do! Antigamente a praça não era aquilo ali não, ago-ra está muito diferente, muito diferente! Hoje está chique, tem coisa muito nova, mas nem se compara

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com antigamente. Tinha muitos bancos... eu lembro até que a gente passeava em cima - as moças - os rapazes passeavam na parte de baixo. As vezes eu tinha namorado, papai não queria... Então ele falava assim: “Eu vou lá pra cima.” Eu falava assim: “Você vem cá pra cima que eu vou lá pra baixo”. Eu fala-va pra ele porque papai zangava, sabe, papai não deixava a gente namorar não. Passear com namora-do, Deus me livre! Não deixava, eu nem sei como a gente namorava. Namorava mesmo... Ele prendia, prendia, muito, papai.

Minha filha, vou te falar uma coisa, sou tão presa! Tão presa! O papai prendia tanto a gente, que a gente não tem... não tô falando com você? Clube... Comercial Clube, às vezes tinha um baile lá, ia escon-dido dele, ele vinha buscar a gente. Era uma brasa pra gente. Minha mãe era doida pra festa. Foi criada em festa. Ela estudou naquele... num colégio grande perto de São Diniz. Eu sei que ela tocava piano junto com o Dr. Astolfo (Dutra). Ela tocava, ele acompanha-va, declamava, fazia coro sabe, estudou junto com ele.

Eu aprendi a tocar piano. Zé tocava música, tocava com meu marido, tocava violino, tocava pia-no. Depois, a filharada entrou, acabou tudo. Ele tinha dois violinos... eu estava conversando com minha menina aqui. Falei: “Minha filha, e os violinos de seu

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pai, heim?” Um senhor, vindo de lá de Governador Valadares, levou pra consertar, nunca mais nós vi-mos o violino. O violino, era daquele violino, ó... an-tigo, alemão.

Nunca vi tanto filho! Dez filhos que eu tenho, né. Hoje só se tem dois, e olhe lá! Vinha mesmo, as-sim mesmo, não há isso que há hoje, hoje está uma beleza! Hoje você tem os filhos que quiser, que quiser ter. Nunca perdi nenhum, nunca teve um aborto, não tive nada! Graças a Deus! Dois eu tive com médico, porque foi muito demorado e tal, e veio o médico. Mas era parteira que fazia, D. Rosa Amaral... a gente antiga aqui de Cataguases. Tinha com ela. Mas dois... duas foi preciso médico. A primeira foi preciso, tava passando do tempo e tal. Era o Dr. Edson Sicarini. Você já ouviu falar nele? Era um médico e tanto! Naquele tempo ninguém tinha criança no hospital, bem dizer, né. Hoje é só passar mal, e a beleza do hospital, né. Eu era em casa mesmo. Era em casa que o Dr. Edson Sicarini fez meu parto sozinho. A par-teira não era nem formada; D. Rosa Amaral. Prática, muita prática. Era mãe dessa gente de Cataguases, quase toda, as mais velhas, ela era a parteira. Depois é que foi acabando esse negócio de parteira.

Dr. Sicarini era um médico e tanto! De tudo! Depois que o menino acabou de nascer o Dr. Sicarini

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falou assim: “Nunca mais!” Quer dizer, fazer parto sozinho, né. Ele arriscou, uai! Podia ter perdido eu, ou ter perdido o menino e ter morrido. Foi mesmo um parto difícil. Essa última, a Silvinha, eu chamei o Dr... como é que chama, meu Deus, o médico... o doutor... Dr. Otônio. o Dr. Otônio era um médico e tanto!

Ah, foi só criar filho, nem sei nada de alegria, quer dizer, tristeza também não tem, porque eu nun-ca perdi nenhum, graças a Deus. Só teve esse que fi-cou doente que foi pro Rio tentar estudar medicina e adoeceu, não pôde continuar a estudar. Vem pra cá, doutor Edson (Rezende) olhou e não deu certo. Depois foi para Belo Horizonte, lá tratou e sarou, né, o Raul. Cuidava só de casa e de filho. Só. Não arreda-va pé pra nada. Passeio... nada.

Entrevistada em 17/6/1991 por Glaucia Siqueira e Mariana Cândida

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Eu escrevi aqui nesse livro: “Recordar é sofrer com saudades. O passado nos faz sofrer, mas é dever de gratidão relembrar tudo que nos deu ale-gria, e todos que foram tão bons amigos, carinhosos, principalmente nossos pais, irmãos”... Isso daí eu es-crevi aqui, da minha cabeça, não é de ninguém não. A gente lembra sempre de todos com saudade, né, às vezes a saudade dói. Às vezes eu fazia soneto no Colégio quando eu era interna. Eu dormia perto da janela, hora que a lua aparecia, pegava um caderno e começava a fazer. (Mas) quem era poeta era Oswaldo, meu irmão. A Emilinha Quaresma é que gosta de fa-lar que eu sou poetisa. Ah! Nada! Uns versos bobos que eu faço. O Joaquim (Branco) falava comigo que a

S T E L L A A B R I TA A LV E SP R O F E S S O R A A P O S E N TA D A

7 7 a n o s

Foto: Escola Normal, dormitório, s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases

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minha poesia é do tipo espanhola. Não sei, Não en-tendo. Eu faço qualquer... de acordo com a atualida-de, o que acontece: um aniversário, um nascimento... Olha um rascunho de poesia minha aqui: “Sabedoria Infinita”.

“No começo: Adão e Eva amor: chave de tolerância tempo: chave de sofrimento Não em câmara lentacom sorriso, com lágrimas, com lamúria”.

(Nasci) em Cataguarino. Vou fazer 77 (anos) no dia 29 de julho. Sou da idade do Padre Antônio. Meu pai chamava-se Boaventura José Abrita. (Minha mãe), Castorina Maria Abrita. Morreram novos, já falece-ram há muito anos. Minha mãe faleceu com 48 anos e meu pai faleceu em 1933, com cinquenta anos. O meu pai foi agente do correio de Cataguarino e era vere-ador da Câmara Municipal de Cataguases, na época vereador não tinha ônus nenhum. Trabalhava por amor a política. De vez em quando ele falava com a minha mãe assim: “Apronta a minha roupa que ama-nhã tem reunião lá na Prefeitura, eu tenho que ir”. Então tinha que pegar cavalo, comparecer no dia se-guinte nas reuniões. Nessa época que ele era vereador

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não tinha estrada. Era mesmo só para carro de boi e cavalo. Quase não ia carro. La em Cataguarino, pa-ra ir um carro naquela época era um... Uma história. Quando chegava um carro, o arraial ficava em festa. Não tinha luz elétrica, não tinha instalação de água, era muito atrasado mesmo. E quem começou, deu a primeira melhoria em Cataguarino foi o João Peixoto, que colocou a luz. Foi o primeiro prefeito que se in-teressou por Cataguarino. E na política, na época da política feminina, quem iniciou mesmo pra trabalhar em Cataguarino fui eu. Na época eu subia serra atrás de voto feminino. Os políticos daqui daquela época eram o Dr. Sandoval Soares de Azevedo e o Sr. Alípio Vaz. Foi uma época de muita luta, muita briga de po-lítica. Nessa época o Dr. Pedro (Dutra) já trabalhava na política. Meu pai era contra o Dr. Pedro e a favor do Dr. Sandoval. Ele me apanhou no Cataguarino pra estudar aqui em Cataguases. Eu era apaixonada com política! No início (do voto feminino) eu ia completar dezenove anos. Vou te falar na gíria: achei um bara-to! Aquilo deu pra fazer movimento. O meu pai me deixou trabalhar bastante. A gente vinha até aqui em Cataguases pra trazer os eleitores. A minha parte foi a Serra da Onça, lá no alto do Retiro. Então eu subia... o carro levava e depois a gente subia a pé pra ir lá em cima, porque o carro não subia, ele ficava lá em baixo.

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A gente ia a pé. Então precisava de tirar o sapato... Eu tinha saído do internato, né, com os pezinhos bem fi-ninhos... quando chegava lá na minha casa, tinha que dar banho de água de sal nos pés, porque estava todo machucado, de tanto andar naquele pedregulho lá da Serra da Onça. Consegui bastante eleitores. Aí meu pai falou comigo: “agora você toma conta dessa tur-ma”. Aí ele tinha que contratar um carro e trazer aqui na cidade pra poder fazer a inscrição. (Os maridos) concordavam. Eu trazia as mulheres todas aqui.

(Minha infância) foi um pouco tolhida. Meu pai era muito severo. A gente não podia brincar até tarde da noite... lá não tinha luz. Às vezes, na época de lua, todo mundo tava brincando, a gente só ficava ate às oito horas. Às oito horas tinha que deitar, tinha que dormir cedinho. Meu pai era bonzinho, cuidava muito das coisas, trabalhava muito, tudo que podia dar à gente ele dava, preocupava com os estudos da gente... tanto que ele mandou o Oswaldo aqui pro colégio do Antônio Amaro (Ginásio de Cataguases) e me mandou aqui pra Escola Normal pra eu estudar interna, né, com 13 anos, mas por muita insistência do Dr. Sandoval e do Alípio Vaz.

Quando eu nasci, (Cataguarino) chamava Empossado. (Minha) casa (era) assim um sobra-do, dois andares, eu achava bonita. Quando lá no

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Cataguarino aparecia circo, meu pai deixava fazer - debaixo tinha um porão grande - o meu pai deixa-va até fazer um circo. A minha mãe falou que no dia que eu nasci, tinha um circo debaixo do quarto. Lá em casa era tudo. Às vezes servia até pra prender os ladrões. Quando a polícia ia dar uma batida, pegava os ladrões - lá não tinha cadeia - quando era tarde da noite prendia lá os crioulos pelos pés. Muitos ladrões de cavalo. A roubaria mais lá no Cataguarino era de cavalo. E também tocaia. Tinha muita tocaia lá no Cataguarino. Constante tinha um cadáver lá na es-trada. Por qualquer coisa eles brigavam. Tinha muita cachaça e negócio de peão montar na rua. Cada um queria lançar o campeão... o peão melhor... Quando acabava aquele negócio, era briga certa. Cachaçada. Eu acho que eles ganham pra isso, pra amansar cava-lo, amansar burro. Gente brava mesmo.

Fui reprimida. Até os 13 anos a gente ficava lá no Cataguarino. Festa que tinha lá era coroação, brin-quedo de roda, as coisas durante o dia; mas à noite a gente não podia brincar de roda na rua porque tinha escuridão. Quando tinha luar, meu pai punha a gente pra dormir às 8 horas.

Lá em Cataguarino, nas férias, a gente passava uma vida! Como é que a gente ficava lá? Passar as férias... eu tinha 16 anos e um namorado que mora-

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va em Juiz de Fora. Ele tinha dezoito (anos). E pra conversar com ele? Só cê vendo que sacrifício! Era demais. Eu me lembro uma vez que meu pai esta-va meio adoentado, ele falou: “Vou deitar um pou-quinho”. Eu falei: “Gracas a Deus, agora eu vou dar uma voltinha”. E saí. O rapaz vinha de Juiz de Fora ficar com um irmão dele que era farmacêutico no Cataguarino. Passei na farmácia, comecei a conver-sar com ele, chegou o papai: “Que que cê ta fazendo aí, menina?” Ih pai, saí pra comprar agulha, o senhor não viu que eu deixei a maquina aberta? Ele falou as-sim: “Ah é? Comprar agulha em farmácia?”

Do internato, tanta lembrança... era bom, eu gostava. (As irmãs) não tratavam ninguém mal. Carinhosas... Só muito severas. A gente não podia, por exemplo, passar na portaria. Se passasse, tinha que ficar de castigo. Lá no colégio eu fazia parte da Congregação dos Santos Anjos e me puseram como conselheira geral da irmandade e tinha uma fitinha cor-de-rosa que punha no pescoço. Eu era a santinha lá do colégio, uma santa do pau-oco. Eu dava nó em fumaça. Sabe o que eu fazia? Combinava com umas três meninas, Falava assim: “Ó, nós temos que arran-jar uma paquera. Você faz o seguinte: ‘Vai falar que esta com dor de dente’”; a outra com dor de dente, a outra com dor de dente. Com três meninas com dor

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de dente, as Irmãs mandavam a gente pro dentista. Então a gente paquerava os filhos do pessoal da Casa Matos. O Waldir Matos com os irmãos dele. Eles ti-nham uma casa de comércio lá perto do Meia Pataca, em frente de Conceição Quaresma, aquela casa alta. Naquela casa morava o Sr. João Guimarães, dentista. Três (meninas) era bom. Enquanto uma estava no ga-binete dentário, a outra estava na janela namorando. O dentista até me quebrou um dente de tanto que eu falar que meu dente doía. Espatifou meu dente bom.

Cataguases... a Praça Santa Rita... a gente pas-seava de vez em quando, fazia umas barraquinhas... não tinha calçamento, era só terra; duas palmeiras bonitas e aquela igreja linda que foi desmanchada. As irmãs de vez em quando deixavam a gente fazer barraquinha em benefício. Aquela Capela da Escola Normal foi construída quase que com nossa turma. E aqui a Praça Rui Barbosa... o “footing”. As moças prum lado e os rapazes pro outro lado, era engraçado.

Ali onde mora a Nancy de Souza, na Praça Santa Rita, tinha um birô eleitoral (onde) eu trazia as mulheres pra fazer inscrição. Foi assim que pegou o meu namoro com o Domingos Ciribelli Alves. Eu já tinha sido apresentada a ele no dia 1º de dezem-bro de 1932, na minha festa de formatura. Bom, me marcou. Desde essa época pra cá... ele também tra-

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balhava muito no birô do Dr. Pedro, e aquele bate-papo pra cá, bate-papo pra lá... começou o namoro com ele. O Domingos nasceu em Miraí. (A família) mudou pra Cataguases, ele era rapazinho novo; tra-balhava com o Sr. Humberto Henriques e o Sr. Janir. Era auxiliar da Coletoria. (Aí) comecei a frequentar a sociedade. Quando havia baile no Comercial, os rapazes entravam todos de branco, baile de verão. Noite de inverno já era outro tipo de roupa. Naquela época os bailes eram muito chiques. Tinha um espe-lho bisotê em volta do salão. Então, na noite de inver-no - eu era membro da comissão - enfeitava o espelho, o lustre, tudo de algodão. Ficava como neve, tudo penduradinho lá. Muito bonito! (As moças) sempre de longo, principalmente a comissão. Uma semana antes a gente trabalhava, fazendo barbante, aqueles algodões com papel douradinho... a gente aproveita-va até aquele papelzinho de cigarro para dar reflexo no salão. Não tinha orquestra. Quase sempre Aída Ribeiro no piano. A gente dançava a noite toda. As moças usavam decote até o meio da cintura. Na fren-te tapadinho, coberto.

Quando eu saí do internato, que eu vim tra-balhar comecei a namorar sério o Domingos. Eu era sozinha aqui na cidade e pagava pensão. Então eu ía ao circo com ele todas as noites, eu ia em baile

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com ele... aos domingos, eu, ele e o motorista fomos jantar lá em Ubá, na casa do irmão dele que era ge-rente do Crédito Real. E língua cascando, o pessoal falando que isso não tava direito, que minha mãe ficava lá em Cataguarino, não sabia da minha vi-da... e eu não tava nem aí, ó. Vinha às duas horas da madrugada do circo. O Rubens Cunha me cor-tou na língua com o Seu Fortunato. “O Fortunato, se eu fosse você não ficava com essa menina na casa não, que ela está com um namoro muito adiantado. Você porque não sabe. Olha, chega tarde em casa, ci-nema acaba tarde, fica conversando toda a vida na porta”. Ih, mas o Rubens Cunha me estragou, sabe, mas eu nem me incomodei, falei assim: “Não estou nem aí com conversa”. Muita que passou, eu falei:

“Primeiro o temor de Deus e deixa o resto”. A gen-te nesse mundo tem que ter temor de Deus. Então, nessa ocasião, eu passei por uma experiência engra-çada. Eu achava graça. Todo mundo batia asas. Eles falam hoje: “Ah, que antigamente... eu não fazia isso, eu não beijava namorado, não sei o que...” que não beijava o quê! Saltava até janela pra conversar com o namorado! Quando a família tinha melhor estrutura, uma educação mais fina, respeitavam e davam um jeito de amenizar, de esconder. (Quando) eu morei em Teixeiras, a sobrinha do prefeito engravidou e

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eles ficaram com ela direitinho. Quando o menino tinha nove anos, ela arranjou um ótimo casamen-to. Aqui em Cataguases eu me lembro de uma mo-ça muito bonita que era professora em Rio Branco. Ela engravidou e o pai botou ela pra fora. Então ela veio ficar aqui na zona, tinha uma zona aqui onde é a Telemig. Naquela época o ruim era isso, o pai da criança não assumia. Agora já é diferente, a maioria assume, não existe o preconceito que havia antiga-mente. Coitadinha da moça, ficava isolada! Muitas faziam o aborto, iam pro Rio, pra Juiz de Fora... Mas eu saí do internato, bobinha como ninguém, tinha muito temor a Deus, tinha um medo danado de pe-car. Comigo não tinha perigo não.

Ainda ontem mesmo eu tive uma conversa aqui do internato. (O Domingos), casei com ele, tinha uma namorada aqui em Cataguases que era filha do coletor, e esse coletor morava ali, naquela casa que tinha sido do Enrique de Resende, (que) passou pa-ra o João Peixoto. Por sinal ela era minha colega, ex-terna, e eu interna. Então, por causa do namoro dos dois, que era muito avançado, o pai botou ela interna. Então a Madre Madalena falou assim: Olha aqui, a Marta - que era a namorada dele - vai dormir perto de você aqui no dormitório. E a Marta chorava que era uma coisa horrível! Eu perguntava: “ô Marta, por

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que você está chorando?” Não falava nada. Quando foi uma noite, a Marta subiu na beirada da janela; quando abri os olhos vi a Marta na janela pra suici-dar. Passei a mão na camisola dela e fiz “buf” com ela no chão. Fui até a sala das Irmãs e a Madre Joselina falou: “o quê que foi? Eu falei assim: “A Marta que-ria pular da janela e eu a segurei”. No dia seguinte foi aquele sururu. As Irmãs falaram com o pai, que a Marta não podia continuar interna porque estava com umas ideias muito extravagantes. Aí ela prome-teu. Falei: “Ô Marta, você dorme perto de mim, não faz arte não, senão como é que eu fico? Os outros vão pensar que eu te joguei da janela abaixo, não vai fa-zer uma bobagem dessa não”. Ela falou: “Não, não vou fazer mais, pode deixar”. Passou. Também na hora do recreio eu tinha que ficar fiscalizando a tur-minha toda: o que estava acontecendo, quem estava de bolinho, quem ficava de conversa... e acompa-nhando a Marta. A Marta vai lá pro canto, vou eu de olho atrás dela. Então eu vi a Marta assim na beirada do muro, entregando um bilhete pro empregado do quintal. Fiquei quieta e chamei a irmã Catarina, falei:

“Irmã Catarina, a Marta entregou um bilhetinho pro seu Gastão”. Ai ela falou: “Vou ver o que é”. “Vem aqui, Gastão, escuta aqui, me dá esse papel que está no seu bolso”. Ele falou assim: “Não tem papel não,

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Irmã Catarina”. Agora ela: “Tem. Me dá esse papel que a menina te entregou”. Ele ficou tremendo um mucadinho e entregou o papel. A irmã Catarina leu assim: “Aqui no Colégio tem muito rato, preciso de arsênico”. Pedindo pra comprar arsênico! Aquele dia acendeu mesmo a fogueira no Colégio! A Marta es-tava querendo apanhar arsênico pra tentar suicídio por causa do Domingos. Aí veio tudo: o pai, a mãe, ele... eu fui lá na sala pra confirmar... eu nem me lembro mais como era a cara dele na época. O pai e a mãe levaram pra casa. Então o pai dela ficou de-sorientado, porque ela tinha que estudar. Mandou ela pro Colégio Salesiano em Muriaé. Botou externa. Daí mucadinho ela começou a fazer programa com o Sady Mendonça lá em Muriaé. Ele era um fazendeiro. Nessa ocasião o Sady era solteiro. Foi aquele sururu. De Muriaé, o pai resolveu mudar pra Barbacena. Lá ela arranjou um casamento com um jogador de fu-tebol. Acabou a novela da Marta. Eu já tinha casado com o Domingos, não sabia que a história era com ele não. Então um dia, depois de casado, ele foi fazer um curso lá em Barbacena. Chegou e falou assim: “Você não sabe com quem eu encontrei lá em Barbacena? Falei: “Com quem?” “Com a Marta”. Falei: “Que que tem a Marta?” “Ela ficou contando o caso do Colégio”. Que eu nem sabia que era com ele.

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Me formei em (19)32. Naquela época era só po-lítica. Então comecei a trabalhar no dia 15 de outubro de (19)33, uma vaga que o Dr. Pedro me arranjou no (grupo) Astolfo Dutra, substituindo a Ema Ciodaro. (Era) irmã do Seu João Ciodaro. Ela foi dirigir um grupo em Belo Horizonte. Aí eu fiquei trabalhando de (19)33, (19)34... trabalhei (19)35 também. No fim de (19)35, dezembro, me casei. Quando eu voltei pro grupo em (19)36, entrei na sala de aula pra turma do... do Gelson Rocha, Roberto Sachetto, da Carmem Souza, do Ladário Faria... a Isabel Henriques... então eu tava na sala de aula quando entrou o Custódio Leite, naquela época era inspetor. Eu dando aula, ele entrou e falou assim: “Ah, de agora em diante a senhora está dispensada.” Aí comecei a chorar den-tro da sala de aula. “Ah, por que dispensada?” “É porque aqui tem outra professora”. Era a Emília Carvalheira. “Por ordem do Sr. Manoel Peixoto, a Sra. está dispensada. A Sra. nos dá muito prazer de ficar aqui no grupo, passear, visitar os seus alu-nos...” Então eu tive que sair da sala e entrou a Emília Carvalheira... tive um trauma! Como eu sofri! Aí eu fui pra casa, naquele bangalozinho, perto onde mora a Isabel Salgado. Quando eu casei, morei ali. Cheguei lá de manhã, chorando. O meu marido passou a mão num revólver e queria ir lá pra matar o Custódio. Eu

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falei “Não, não vai fazer isso não, deixa ficar.” Passou. Depois o Manoel Peixoto falou que eu trabalhei pro Pedro Dutra e todas pessoas que tinham trabalhado pro Dr. Pedro tinham que desocupar o Grupo. Ele ganhou pra Deputado Estadual. Um dia encontrei com a D. Ondina (Esposa do Manoel Peixoto) e ela falou assim: “Onde você trabalha, minha filha?” Eu falei assim: “Agora não trabalho em lugar nenhum, D. Ondina, já deixei o grupo muito tempo.” “Oh, vo-cê não está no grupo mais não.” Não levei a conversa pra frente. Deixei pra lá. E com o passar dos anos... fiquei viúva. (Fui) casada quinze anos. E logo que fi-quei viúva, fiquei sem trabalhar, mas precisava tra-balhar. Um dia a Tereza Ladeira chegou lá (em casa) e falou assim: “Stella, você não tem uns livros aí da Biblioteca do SESI?” O João Batista, meu filho, fre-quentava a biblioteca. Então ficou trazendo livro pra casa e não entregava. Eu falei: “não sei, Tereza, tem?” Ela: “Seu menino precisava de dar um jeito de entre-gar os livros.” Aí eu olhei pro guarda roupa dele e tinha uns livros mesmo. A Tereza falou assim: “Ih, eu vou te falar um negócio: eu estou mais apertada não é por causa dos livros não, é porque o curso supleti-vo do SESI vai acabar, eu não tenho uma professora pra esse curso”. Eu falei: “Muito bonito! Eu fiz a ins-crição pra professora no SESI, mas era o Adail Matos

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com a Lupi Siqueira que estavam lá na liderança. Ela falava: “Ah, você não pode mais entrar pro SESI, de-pois de 35 anos não pode candidatar a professora no SESI”. Não consegui, né. Eu falei: “Tereza, eu não posso...” ela falou assim: “Você podia ir lá pro SESI agora, pra ver se fica alguns dia como professora do curso supletivo, porque já correram onze candidatas, elas não aguentam o trabalho da noite com adulto. Você podia... porque senão... o diretor falou que vai mover o curso supletivo. Você vai lá pro SESI porque tem uma semana que estou pelejando pra segurar o curso supletivo”. “Mas Tereza, eu não vou poder, eu já estou com 38 anos, e também aquele serviço do SESI é impossível”. Eu tinha olhado o serviço de uma professora, irmã do Américo da Caçula. O serviço do SESI é muito complicado, eram nove folhas pra um serviço de um mês de aula. Era demais! Muito cheio de burocracia. Aí: “Bom, você vai lá, toma con-ta das aulas e eu faço o serviço”. Nessa ocasião a Naudir Machado tinha um curso em Belo Horizonte e ficou lá como orientadora, na época que eu entrei. A Naudir falou: “Você vai ficando por aí”. Eu disse: “Tá bem, eu dou as aulas”. De repente lá no Senai (emprestado ao SESI), estava com quarenta alunos na turma. Eu falei: “bom, vou empregar o método global, que aprendi na época do colégio, e a Naudir

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vai observando”. Foi indo, chegou o fim do mês, a Tereza falou assim: “Ah, difícil... não fui eu que dei aula e agora eu é que vou fazer o serviço... você po-dia ver como é que faz “. Comecei a olhar e falei as-sim: “Você precisa me dar três dias pra eu olhar es-se serviço”. Nesses três dias veio uma modificação. Eu li direitinho as orientações. Falei: “Naudir, nem Tereza, nem ninguém precisa de olhar. Deixa quebrar a cabeça com isso lá na minha casa que eu vou fa-zer o serviço”. E fiz. Aí a gente passou a trabalhar na Rua do Pomba. Eles comecaram (o SESI) na prefei-tura com corte e costura, mas quando veio o curso supletivo, não tinha lugar, foi lá pro Senai. Você ima-gina, onze moças concursadas, nenhuma aguentou a turma de adultos. Então eu fiquei. Mandaram eu as-sinar o serviço, eu assinei como substituta. Aí comu-nicaram a Belo Horizonte e a direção do SESI lá man-dou que eu ficasse uns três meses como experiência. Fiquei três meses e me mandaram a carteira, todos os documentos. Fui ficando. Tinha reunião em Belo Horizonte, eu ia: ninguém nunca tinha me pedido diploma, nem nada de concurso. Quando tinha uns seis meses, veio um elogio imenso, porque eu man-dei um trabalho feito com uma árvore genealógica de Cataguases. Então a Marlene Sete Câmara levou pro Rio e o trabalho foi muito elogiado, e eu fiquei

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satisfeita. Foi passando o tempo, fui trabalhando e estudando. Na época eu alfabetizei uns mil operá-rios dessas fábricas. (Fiquei) vinte (anos) no SESI. Na época que eu entrei, todos escreviam com impressão digital. Esse vereador, Jorge Sales, foi meu aluno tam-bém. Então eles traziam os pagamentos, aquela coisa, eu dava mais uma aula prática pra eles. Aprendiam a controlar o desconto do sindicato, a encher cheque... o negócio foi passando... quando chegou uma ordem aqui que todas as não concursadas seriam dispensa-das do serviço. Falei: “Agora é hora”. Mas eu já ti-nha passado de dez anos, né, tinha estabilidade. Fui a única no Estado de Minas Gerais que permaneci. Foi até... eu fui dispensada pela política dos Peixoto, e trabalhei a favor da política dos Peixoto ensinando a fazer requerimento depois pra eleitores, ensinando os analfabetos. Trabalhei com os operários para eles poderem votar nos Peixoto. Eu ajudava e nunca en-trei em conversa política. A gente nesse mundo tem que ser assim, deixar a coisa passar. Fiz meu enxoval dentro da casa da Eponina Peixoto. Nunca briguei com ninguém. Conversava muito com a D. Ondina... depois eu fui muito elogiada pelos próprios Peixoto. Trabalhei até dentro da área da Industrial.

O meu irmão, Osvaldo Abritta, fazia parte da Verde. Está escrito aqui: “Falecido aos 28 de feverei-

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ro de (19)47 em Carandaí.” Muito novo. Ia completar 39 anos. Tem umas poesias aqui... ele era apaixonado pela Zoraide Guimarães. Casou com outra, mas mor-reu apaixonado pela Zoraide. Foi através do Grêmio Literário Machado de Assis que nasceu a “Verde”. Todos amigos frequentavam o Colégio de Cataguases. Eu tenho todos os capítulos da Verde, os poemas de-le. Eram cheios de esperança. Com o afastamento de um pra cada lado, a “Verde” morreu verde. (Mas) ela deixou um bom exemplo de literatura. O Osvaldo foi embora para Belo Horizonte com o Guilhermino César. Rosário Fusco partiu pra outro lado, o Ascânio morreu... o (Osvaldo) fazia direito em Belo Horizonte. Foi juiz municipal em Carandaí. Morreu como juiz. Na ocasião, a política que ele liderava perdeu. O che-fe da outra política sabe o que fez? Prendeu os eleito-res dele e deu purgante de azeite! Fez uma maldade louca! Ele ficou super apaixonado e foi ficando doen-te, até aparecer com cirrose. E outro (irmão), morreu como desembargador do Rio.

(Fiquei casada) quinze anos, mas eu conto só treze, porque dois anos eu fiquei no Rio com a minha filha mais velha - Mariangela - que sofreu encefalite com quatro anos. Vinha em casa passear, arranjava um filho voltava pro Rio. Depois Domingos ia pas-sear lá, arranjava outro filho. O negócio ficou assim,

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constituindo família no maior sacrifício. Nove filhos. O primeiro parto, um casal de gêmeos, que é essa que sofreu encefalite; perdi o outro por descuido médico, porque a gente não fazia pré-natal. A menina nasceu de parto normal, de lado, e deu muito trabalho, e o menino ficou, o médico não sabia que tinha outra criança. Nasceu depois com três quilos e duzentos, já com o sangue todo perdido pelo cordão umbilical. Eu nunca fiz exame ginecológico. Não se usava. O Dr. Edson Rezende, coitado, até chorou. Falou que sen-tia muito, mas ele nunca tinha feito parto de gêmeos com uma placenta só. Depois eu tive mais dois me-ninos gêmeos, perdi também. Tudo isso pela falta de progresso de Cataguases, porque os meninos nasce-ram com seis meses e quinze dias, muito gordinhos... o Hospital não tinha estufa nem balão de oxigênio. Ficou combinado que eles iam ser levados pro Rio, mas daqui pro Rio eles poderiam morrer. Os meni-nos foram esfriando, esfriando... perdi três homens. Comecei a fazer a novena do São Geraldo Magela e falei com a Mariangela: “minha filha, reza pro papai do céu dar a gente um irmãozinho, que ele vai cha-mar Geraldo Magela”. Fiz a novena. Marquei direiti-nho: do quinto dia da novena ao nono dia, eu engra-videi. Então arranjei a caminha, peguei uma estampa de São Geraldo, coloquei na cabeceira, falei assim:

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“Agora São Geraldo vai me dar um menino, um fi-lho, que eu quero um filho”. Passei uma gravidez óti-ma. Morava em Astolfo Dutra. O Teotônio Lourenço vinha a Cataguases sempre de moto e falava assim:

“o que vai trazer hoje pro nenê?” Porque em Astolfo Dutra não tinha nada. Eu falava: ‘’Traz um abacaxi gostoso, Teotônio”. Ele levava. No dia seguinte ele falava assim:

“Nenê quer outra fruta?”. “Então traz maçã”. E foi assim. Passei uma gravidez ótima, comendo muita fruta. O parto foi natural. Ele nasceu com qua-tro quilos e duzentas gramas, com o Dr. Antonio, ir-mão da Zezé Cortes. Depois dessa época não perdi mais não.

Meu marido era um santo! Uma santa criatu-ra. Ele trabalhava na Coletoria e eu então de tarde arrumava as crianças, mudava roupinha, levava pra esperar ali na praça - nessa ocasião já tinha voltado pra Cataguases, como escrivão - então a gente encon-trava naquela alegria. Jantava com as crianças às 6 horas. Ele falava assim:

“Minha filha, você está cansada de olhar meni-no” - é pra você ver só como ele e eu tinha cozinhei-ra e tinha arrumadeira; a arrumadeira me ajudava a olhar os meninos, eu não trabalhava fora - mas ele falava assim: “Eu fico com as crianças e você vai ba-

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ter um papinho na praça. Se você quer ir ao cinema você pode ir”. Me mandava passear e ficava sentado no escritório dele com o menorzinho. Dava mama-deira... ele era bom demais! Todo sábado pegava as crianças, cortava as unhas de todas. E eu, às vezes, deitava mais cedo, quando (ele) chegava eu estava dormindo... eu até tenho remorso. Uma noite ele pe-gou um copo de leite e levou pra mim. Falou assim:

“Você jantou muito pouco, comeu mal hoje, toma es-se copo de leite”. Ele era muito bonzinho, sempre foi. As cartas dele desde namorado... está tudo aqui. Os desenhos que ele fazia pras crianças enquanto eu es-tava na praça... sentava no birô com os dois menores e ficava desenhando. Às vezes eu vou fazer limpeza, quero jogar fora, mas me dá uma dorzinha no cora-ção (e)vou guardando. Na ocasião que eu fiquei viú-va, quatro filhos, eu fiquei procurando meio de vida pra sustentar os filhos. A Elizabeth estudou na Escola Normal, o Geraldo estudou, não houve perturbação de coisa nenhuma. Mas eu comprava cerâmica em Recreio e vendia em Cataguases. Eu andava venden-do vasos, toalhas... (meu marido) recebia onze con-tos de réis na época. Eu fiquei com um conto e cin-quenta e seis mil réis. Foi um tombo muito grande. Arranjei um fornecedor de cerâmica em Recreio. Eu ia apanhar, às vezes telefonava ou mandava apanhar.

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Tava fazendo uma feriazinha, mas deu um descarri-lamento de trem e o meu capital foi embora. Eu desa-nimei da venda de cerâmica, mas nem por isso fiquei desatinada. Fui em Carandaí, na casa das minhas irmãs, então elas me arranjaram a representação da fábrica de manteiga Carandaí, para ajudar na renda familiar. Vinha de trem umas latas de dez quilos e eu vendia. Mandava entregar no Hotel Villas, no Hotel Cataguases, em casa de família.

Mas daí mucadinho começou todo mundo a reclamar que pedia dois quilos; chegava lá pesava, não tinha dois quilos de manteiga. “Ai meu Deus! Já vou desistir também dessa manteiga”. Fui procurar saber: é porque os meninos iam entregar a mantei-ga, sentavam na praça e comiam a manteiga. Falei:

“Olha, então agora nem vocês vão comer manteiga”. Do lucro dava pra todo mundo comer manteiga em casa, mas eles começaram a tirar manteiga. “Então eu vou desistir da manteiga, porque eu estou com vergonha. Vou deixar essa manteiga de lado”. E os meninos ficaram... o dinheiro era pouco, não dava pra comer manteiga todo dia. Aí o João falava assim:

“Como é que é? Hoje tem ou não tem manteiga pra eu passar nesse pão levar de merenda?” Eu falava assim:

“Manteiga de filho de viúva, sabe o que é? É sopro, ó fu... “ Fechava o pão: “Leva esse pão e vai pro grupo”,

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falava com ele. Ele falou assim: “Por desaforo eu vou untar esse pão todo de gordura de coco”. Então en-chia o pão de gordura de coco. Comia tanta gordura de coco que deu um caroço nele que foi preciso o Dr. Hugo abrir. Eu só comprava manteiga uma vez por semana. Se desse, muito bem; se não desse paciên-cia. Então eu passei esses apertos todos com a viuvez. Ah, eu vou falar mesmo com verdade: eu achei que a minha vida que foi boa mesmo, foi a minha vida de colégio. O marido foi ótimo, foi uma boa vida de casa, mas muito cheia de atropelo com a doença da meni-na. Hoje a vida é de uma preocupação intensa! Nossa Senhora! Sou muito preocupada, me preocupo muito com os filhos, com os netos e agora com dois bisnetos. Ninguém tira essa preocupação de mim, (mas) pode começar tudo de novo que eu enfrento.

Entrevistada em 4/6/1991 por Gláucia Siqueira e Hélvia Peres Cordeiro

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Meu pai era de Portugal: Joaquim Teixeira Cardoso. Minha mãe brasileira, daqui de Cataguases: Joaquina Martins Teixeira. Vou comple-tar oitenta e dois anos... 1908... primeiro de julho de 1908... eu era o mais velho... e a minha mãe falava que não podia casar, porque tinha de ajudar a criar oito irmãos. Resta três ainda... quatro... aqui eu só tenho uma irmã, aqui em São Diniz... Trabalhei em casa quando era menino. Naquele tempo os pais, por exemplo, só se preocupavam com os filhos com bar-riga cheia, né. Meu pai perguntava assim:

T E O D O R I C O T E I X E I R A C A R D O S OF E R R O V I Á R I O

8 3 a n o s

Foto: Estação Ferroviária, s/a, 1906, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases

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- Tá com a barriga cheia, meu filho? Tá? Então gra-ças a Deus! E não perguntava se tinha alguma roupa bo-

nita. Não perguntava mais nada. Só perguntava se a barriga estava cheia, não tinha uma vida, tinha... o negócio de ter roupa bonita, sapato bonito, não usava não. Pra pobre não, né.

Não gosto muito de lembrar da infância não. Estudei no Grupo da Avenida (Coronel Vieira) dois anos. Uma péssima recordação! Porque eu vinha a pé de lá de São Diniz aqui no Grupo da Avenida. Não trazia um tostão para comprar merenda! Na entrada de Cataguases, pela estrada, pra lá não tinha luz. A luz elétrica ia só até ali. Muitas vezes passei numa figueira que tinha lá, com medo de assombração! Pra lá era en-trar no escuro até lá em casa. Dali pra lá não tinha luz não... A gente almoçava e vinha, ficava aqui... chegava aqui meio-dia. De tarde saía às quatro horas... ia brin-cando por aí afora... chegava cinco e meia, seis horas pra jantar e tomar café também... depois fui trabalhar...

Meu primeiro emprego foi na rede. Aos dezes-sete anos eu entrei na estrada de ferro. Eu comecei a trabalhar em 1925, e naquele tempo não tinha car-teira (de trabalho), não tinha nada! A primeira férias que eu gozei foi em abril de 1934! Fui gozar férias tinha nove anos de serviço!

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Trabalhava na linha, capinando, socando dor-mente. Serviço de conservação de linha tinha um ponto certo, não tinha turma. Isso quando eu entrei, né. Depois eu passei a feitor, a mestre de linha.

Aí, daqui eu fui pra Viçosa... não, daqui eu fui pra Guarani como feitor, e de Guarani eu tornei a vol-tar pr’aqui. Daqui eu fui pra Viçosa como mestre de linha. Mestre de linha comanda os feitor. Trabalhava muito! Quando eu entrei na Estrada trabalhava das seis às cinco da tarde: dez horas de serviço! Depois passou pra oito... depois veio a semana inglesa... ao sábado trabalhava até meio dia. Agora eles... sábado nem vai lá. Quando havia um acidente, ou coisa as-sim, tinha que trabalhar domingo, né. Só (descansa-va) domingo quando podia.

De distância a distância tinha um médico que atendia o setor. Tinha um médico. Meu pai traba-lhou dezoito anos doente. Sofreu dezoito anos com reumatismo.

Tinha muito movimento na Estrada, e quando chovia muito... caiu muita chuva nas costas, pegou um grande reumatismo. Adoeceu e aposentou. Ele aposentou por invalidez. A princípio eu pegava o en-velope que recebia e entregava ao meu pai sem ver o dinheiro! Depois, ele me entregava o dele, porque fi-cou doente e então eu tomava conta. Sempre na luta!

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Fui folgar depois de aposentado. Saí com cinquenta e sete anos e tenho vinte e cinco de aposentado. Os ingleses é que exploravam: cortês eles eram muito, né. Mas pagava pouco. Pagava muito pouco! O pa-gamento atrasava muito naquele tempo. Enquanto o pessoal não fazia greve não saía pagamento! Nós nem recebia um, já tava vencendo outro. Atraso do pagamento num passava de dois meses, porque ti-nha que comer, né.

O Rio de Janeiro comandava todo o setor. Vinha correspondência do Rio, pagamento, tudo vinha do Rio de Janeiro. Tinha um escritório inglês da Rede: mandava de Recreio e, naquela época, ia até Raul Soares. De longe em longe vinha um trem cheio... Tinha que tirar o chapéu pra eles: um absur-do! Mas não havia perseguição não. A perseguição é que ganhava pouco, mas tinha que trabalhar muito! Se trabalhasse estava tudo bem, se não trabalhasse rodava, né. Apertava no serviço até o camarada lar-gar e ir embora. Depois foi modificando... modificou tudo. E hoje tá tudo diferente!

A estrada de ferro mudou muito, nem parece aquela. Passou pra Rede foi em 1947. Ainda houve umas greves, mas foi modificando e melhorou ul-timamente, porque o pagamento vem no dia certo. Antigamente tinha trem de passageiros, tinha trem

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noturno, hoje não tem trem. O que passa é trem de carga pra Recreio e pro lado de Ponte Nova. Num tem movimento quase nenhum. Acabou. Deixaram a ferrovia acabar, né. Quem fosse a Miraí e perdesse o trem, tinha que dormir lá pra vir no outro dia. Se fos-se a Santana, se não viesse no trem que vinha de ma-nhã cedo, tinha que vir a pé, ou ficar pra vir no outro dia. Não tinha ônibus, não tinha nada. Num tinha outro transporte. Não tinha outro meio de transpor-te fácil não. Transporte forte era trem, né. O pessoal andava de trem. Então começou a... aquilo tava dan-do prejuízo, porque começou a aparecer ônibus pra carregar os passageiros, e caminhão pra carregar as compras... o café fracassando... não foi só Miraí, não. Santana também tinha outro ramal... Leopoldina... Aqui, de ligação a Três Rios também tinha. Cada can-to, pra Juiz de Fora... Tudo foi desativado porque eles achavam que era deficitário. Então foram arrancando os trilhos, em (19)64. Trabalhei não, começou a retirar e eu saí. Um mal que eles fizeram né. Porque ago-ra o transporte de caminhão tá muito caro. O trans-porte pesado pelo menos... Que passageiro hoje não sujeita... Porque saindo daqui de Cataguases às nove e vinte, chegava ao Rio às nove da noite: era doze ho-ras, se não atrasasse! Quando dava de atrasar, atra-sava era muito: era hora, não era minuto, não. Tinha

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época que havia algum tombamento de vagão, coisa e tal... mas não era tanto não.

Aqui era muito pequeno e qualquer coisa importante falava: vai buscar lá no Rio de Janeiro. Quando iam fazer compras precisavam de quase tu-do. Não me lembro bem, nesse tempo eu era garoto. Aqui era zona de café. Aqui, Miraí, Santana. Cana era só quase que pro gasto, né. Transporte pesado mes-mo era o café. O trem pegava e levava pro Rio, mas tinha leite, tinha galinha... tinha passageiro que le-vava pro Rio. Vinha de Santana, Miraí, chegava em Cataguases. A galinha e o leite era transportado no expresso. Todo expresso que chegava levava aquilo pro Rio.

Aqui teve uma época de queima de café, né. Ali onde era a Manufatora, na Saco-Têxtil, ali é que queimava café. Juntava café, ia despejando num monte lá e punha fogo! Eles diz que tava barato de-mais, então queimava pra dar preço! Não lembro bem não... o presidente acho que era o Getúlio. Ah, os grandes fazendeiros... agora não me lembro o no-me... ele foi fazendeiro aqui, mas eu não me lembro que ele produzia muito café não...

Eu conheci a Praça Rui Barbosa de cascalho, saibro... Tinha um chafariz no centro, ali. A gente fi-cava rodando. Vinha passear na praça. Mas não era

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todo dia não, né. Porque de tarde não tava com von-tade de andar muito não. Ah... era diferente d’agora. Ninguém tinha dinheiro. Não saía porque não tinha condição, né. A gente ia em baile na roça... Dançava valsas, xote, mazurca: A coisa que eu mais gostava quando solteiro! Mas depois que casei não fui mais dançar não. Porque não tinha graça eu ir em baile depois de casado. Tem gente que falava que dançava pra divertir. Eu sempre dancei interessado... Não era igual agora não. Havia mais respeito. Hoje o pessoal tá mais avançado.

Conceição... Acho que foi num baile... Namo-ramos... Casamos, tem aí cinquenta e cinco anos! Eu casei com vinte e sete anos. Desobedeci minha mãe e casei. Ganhava cento e trinta e cinco réis por mês, quando casei. Eu tinha dez anos de Leopoldina e só ganhava cento e trinta mil réis! E ganhava bem! Tinha muita gente que tinha inveja do meu ordenado! Foi muito apertado. Criei oito filhos - seis homens e du-as mulheres - apertado. Tinha que dar, né. Padaria: eu comprava o pão o dia que podia. Tinha mês que dava mucado na farmácia, no armazém... o ordena-do... quando vinha o aumento, já tava precisando de-le há muito tempo! Eu ganhei duzentos mil réis na Leopoldina muitos anos! O pessoal da roça ganhava dois mil réis por dia. Dois mil réis não é do seu tem-

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po não, né? Teve uma época que eu tive oito filhos eu e a mulher - dez dentro de casa - só meu ordenado! Também não tinha jeito pra inflação não! Se subisse, o sujeito não podia comprar, não tinha dinheiro. Fosse agora não dava não. Eu consegui. Graças a Deus!

A vida aqui sempre girou em torno da indús-tria. Tinha uma fábrica, aquela fábrica mais velha do que eu, só tinha aquela. Depois foi criando as outras indústrias, a cidade foi crescendo, foi crescendo, mais indústrias... Sempre o forte aqui foi a fábrica. Tinha muito português, tinha italiano, espanhóis... mas português era mais.

Gostava muito dos estrangeiros pra trabalhar. Porque português vinha pro Brasil só pra ganhar di-nheiro, né. Chegava aqui, dava duro pra não perder o emprego! Eles dava preferência à Estrada de Ferro. Os portugueses até já vinha com lugar arranjado na Estrada de Ferro. Tinha o Joaquim Peixoto Ramos, o Joaquim Carvalho, o João Duarte Ferreira, que era o chefão grande comprador de café. E tinha até uma agência de Banco aqui. Eu sei que o Banco era ali, perto do Hotel Villas, ali onde é o SAPS (Cobal), ali que funcionava. Ouvi falar que ali onde tem um cor-reio12, na barreira da linha, pra lá do escritório: ali foi

12) Arruado, conjunto de casas ao longo de uma rua.

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Estação Estrada de Ferro Cataguases, até Miraí. Ali, linha, pra lá do escritório: ali foi Estação Estrada de Ferro Cataguases, até Miraí. Ali, na Vila Tâmega... Antes o trem voltava dali... no meu tempo, já vinha cá na Estação pra completar o percurso.

Fui criado aqui... seis quilômetros... Miraí. Aqui tinha uma estação chamada Astolfo Dutra... Dona Euzébia... Depois, não sei por que passaram pra lá. Astolfo Dutra era Santo Antônio... Trocaram de nome passaram Astolfo Dutra... Onde é hoje. Não sei porque. Ele morou aqui na avenida. Ali. Conhecia de longe... Conheço. Zacarias era o supervisor. O Zacarias, ele entrou bem depois. O Zacarias entrou na turma da picareta, na linha. Depois passou pra turma de pedreiro. Depois passou a encarregado e de encarregado aposentou. No meu tempo era en-carregado de obra, né. Agora apelidaram de supervi-sor. Tinha Rezende, mas não conheço não. Ofélia eu ainda conheço. Ainda é viva. Acho que ela nunca se casou. Ou casou? Os sobrinhos conhecia alguns... co-nhecia assim... Eles era grande, eu era pequeno, inté passava longe deles, né. Aqui tinha muita briga do Pedro Dutra com o Manoel Peixoto, mas era política daqui da cidade. Partido... Não tomava parte. Nessa ocasião eu só pensava em trabalhar, sabe. Nunca gos-tei de tomar parte nessas coisas. Aqui todo mundo

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era grevista, né. Eu sempre fui contra! Achei que po-dia... por outras maneiras... Não era contra as greves, porque elas falavam que o pagamento atrasava por-que não tinha dinheiro, depois da greve tinha dinhei-ro!? Sacanagem, né. Não podia gostar de outra coisa porque eu não tinha dinheiro. (Batistinha) foi depois. Isso não é do meu tempo não. Ele era do Sindicato, né. Na época da Revolução é que andaram... Mas não por aqui, por lá mesmo... o pessoal do Getúlio Vargas andava de trem... não tem nenhum não... Os amigos já morreram todos, né.

Eles falam: Que tempo bom! Tempo bom é agora! Melhorou. Agora trabalha pouco, ganha bem. Tempo bom, mas ninguém quer que volta aquele tempo. Tempo bom pra cachorro. Morava na roça, então não tinha tempo... criei oito filhos: nenhum pe-ga ferramenta não! Agora é melhor, dinheiro é me-lhor... não, acho que pra mim nunca teve tão bom!

Entrevistado em 14/3/1990 por José Luiz Batista e Mônica Machado da Silva

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Sou mais conhecida como Lora, por-que eu era muito lourinha quando era criança, ca-cheada, aquele louro quase prata. Aquele louro pra-teado, e a vovó, mãe da mamãe, tinha loucura co-migo. Ela só me chamava de “Lora”, ou então “meu sonho dourado”. E a gente à medida que os anos vão passando, o cabelo vai escurecendo. O meu não branqueou nada ainda, até gostaria de ter cabelos brancos porque eu sou avó, com todo orgulho, de três; agora a Flávia vai ter mais um. Eu gostaria de ter cabelos brancos, então eu faço reflexo pra mim continuar loura, pra fazer jus até ao meu apelido que a minha avó me colocou carinhosamente: “meu sonho dourado”e “Lora”.

T E R E Z I N I M A S S E N A G U I M A R Ã E S

P R O F E S S O R A A P O S E N TA D A

Foto: Pedro Dutra e correligionários, s/a, s/d, Departamento Municipal do Patrimônio Histórico e Artístico de Cataguases

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A minha avó, a vovó Josefa, mãe da mamãe, ela morreu com 96 anos. É família que dura muito. A mamãe vai fazer 90 agora dia 22 de maio. Você não fala que a mamãe tem 90, pela disposição dela. Eu lembro que a vovó, pouco tempo antes de morrer, ainda conserva uma faixa loura no meio do cabeli-nho branco, que ela fazia coquinho para traz. Eu sou descendente do lado da mamãe de italiano. Graciolli. E o meu pai... a mãe do meu pai era filha de escravos. O pai do papai veio... eu não lembro, não sei aonde eles moravam. Veio, gostou da mãe do papai e teve, ele teve o papai. É onde veio o Massena. Ele é francês. O pai do papai. Papai é descendente de francês.

Um sobrinho meu de Friburgo, ganhou uma bolsa de estudo, foi fazer belas artes na França. Ele procurou se informar da família Massena. Então ele viu rua Lorde Massena, porque lá é Massena, né. É uma família nobre da França. Não sei o que ele (meu avô), veio fazer. Aventura. Às vezes ele veio procurar uma escrava, né.

Os Graciolli, a vovó e o vovô, vieram da ltá-lia. Ela trouxe filhos da Itália - uma até morreu no navio na vinda pra cá - mas a mamãe é nascida em Cataguases, né. Mas o vovô chegou... chegou aqui ele sentiu muita saudade, teve vontade de voltar. Ele apareceu até num filme da... da... hoje é Eva Comello,

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como é o nome dela? Eva Nil. Ele (apareceu) com aquele pau de... passando, vendendo frango. Ele não se realizou como ele desejaria. Então ele se apaixo-nou muito porque ele gostaria de voltar, mas não ti-nha condição pra voltar com a família. Já tinha mais filhos aqui, que nasceram aqui. Então ele passou a beber, bebeu até morrer. O avô materno, Graciolli.

A mamãe fala que eles moravam numa rua aqui perto, que, na época, tinha o nome de Bedengó. A mamãe conta que eles moravam numa casa de pau a pique. E conta que uma coisa que divertia muito e quando aqueles barros começavam a cair. Uma fica-va de dentro segurando, e outra de fora juntando o barro e batendo pra tampar os buracos. Eles tiveram uma vida muito difícil aqui. Agora, se alimentavam muito bem por causa do costume da Itália. Eles fa-ziam muito queijo, faziam massa de macarrão em casa, eu mesma comi muito macarrão feito pelas mi-nhas tias e pela minha avó. Mamãe não tinha tempo porque costurava muito, né. Uma beleza de massa! E quando era uma sopa daquela massa fininha, sequi-nha, elas usavam botar um pouco de vinho dentro da sopa. Então foram criados assim muito fortes, muito corados, sempre muito trabalhadores.

(Meus pais foram) nascidos e criados em Cata-guases. O papai (Nestor Massena) morreu com 83

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anos para 84 anos. Ele com 70, 80, ainda tirava umas quatro horas por dia para estudar música. Ele lisava muito o saxofone, limpava porque era de prata o úl-timo dele, sabe. Ele estudava diariamente 3 a 4 horas de música. E sabia a fundo a música. Aqui mesmo na rua tem uma pessoa que às vezes tava ensaiando e eles, de lá do bar dele, falava assim: “Tudo errado, num sabe nada!” Era um dom, eu acredito até que ele não tenha estudado. Eu... isso eu não sei, sincera-mente. Eu fui uma filha que amava, ele falava mesmo com as pessoas: “Eu gosto de todos os meus filhos, mas a Lora é diferente, é especial”. Porque eu acom-panhei o papai a vida inteira. A profissão dele era música e alfaiate. Detestava ser alfaiate. Então não era. Mas a roupa dele, ele próprio, ele mesmo fazia. Consertos em ternos e tudo.

Ele tocava em baile, por exemplo, era uma coi-sa que não dava, né! Então é como eu falo. Esse aqui (Luís Cláudio) tem aí dom de compositor e tudo. Vai dar um show no Elite mês que vem. Eu falo: “meu filho, você tem que ter a sua profissão pra sobrevi-vência.” A música não mantém família, num... num... vai ter que dar muita alegria, muita realização, nes-se ponto de... Porque a família, parece que a família é muito romântica, o italiano é muito romântico, o francês passou de romântico. Então a mistura é fina.

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A gente tem sangue negro porque a minha avó era filha de escravos. Então meu pai é descendente de es-cravos. A gente tem sangue de italiano e de francês, que é uma super mistura.

Ele (papai) compunha músicas de carnaval todo o ano e deixou uma valsa lindíssima, que ela (Aparecida Massena) toca no piano até hoje. Uma valsa lindíssima! Eu não lembro o nome, mas é um encanto! Às vezes, numa audição de piano que ela dá todo ano com as alunas, ela toca no fim a valsa. Ele fez várias marchinhas de carnaval e fez uma música chamada Espera, e eu fiz a letra. Ele ainda brincava comigo, falava assim: “eu te dou um trocadinho pra você fazer a letra pra mim”. Teve qualquer coisa no cinema, no Cinema Edgard, então apresentou aque-le conjunto velha guarda: o Ciodaro, o papai... tinha mais uns antigos. Só que cê sabe, hoje a música é muito barulhenta, pode não ter agradado tanto as-sim... “Esperei o romper da aurora e o por do sol / Esperei que os pássaros partissem no inverno. E vo-cê não veio / Vieram sóis, chuvas e flores. A esperar me debati / E perdido de amor esperei, esperei vo-cê / Esta espera me angustia, esta espera me tortura / Você virá, virá um dia e findará minha amargura”. Era muito animada! Ritmada mesmo! E foi um suces-so assim... mas o pessoal jovem que tava no cinema

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não se empolgou, porque eles estão gostando de ba-rulho do rock.

Eu fui assim quase como babá do meu pai. Porque eu... Ele trabalhou... o primeiro emprego dele na Prefeitura, ele foi perseguido pela política. Antigamente era PSD e UDN. O Dr. Pedro Dutra era meu padrinho de casamento, ele tinha muita consi-deração. O João Peixoto foi meu padrinho de forma-tura. Quer dizer, a gente era amigo, a gente não tinha nada pessoal. A gente tinha gratidão com o Pedro Dutra, que ele me colocou, colocou meu pai, que já estava vinte anos desempregado. Mamãe costurava de manhã à noite inteira. Quando a gente era de me-nor ela punha os colchonetes, esteiras, naquele tem-po era mais esteira, e a gente dormia tudo em vol-ta dela aí, 8 filhos. Depois que ela ia deitar, que ela punha cada um na cama. A gente não dormia sem ela. Sabe, mamãe não respeitava nem resguardo. No segundo dia ela já tava sentada cortando costura e fazendo. Costurando na máquina, sabe. Mas o papai foi assim... uma pessoa que eu orientei muito a car-reira dele, eu que consegui a nomeação pra fiscal de renda do Estado. Aí melhorou a situação da casa, da família, né.

Eu formei muito nova, eu formei com 16 anos. Eu tirei diploma com 9 anos, mas era uma menina

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muito precoce na escola. Tive professoras maravilho-sas: Ruimar, Minalda Peixoto... Dona Minalda me pu-nha era pra cantar e dançar. Ela punha aquele cachor-rinho de pele que eu usava... a boquinha do cachorro prendia no rabinho, sabe. Bolsinha, aquele vestido bem curtinho, aparecendo a beiradinha da calcinha, aquelas pernas grossas. Ih... ela me punha muito pra cantar. A gente fazia um sucesso! O grupo tinha salão, tinha palco, cortina de veludo, tinha tudo, depois tu-do se transformou. (o prédio era do) Coronel Vieira, mas era Astolfo Dutra o horário da manhã. Eu sem-pre estudei e me aposentei lá como diretora, a minha vida toda lá.

Do grupo eu fui para a Escola Normal, mas co-mo eu tinha nove anos só, a Irmã, a Madre Aparecida, aconselhou... Eu fui estudar porque a Cacilda Duarte, vizinha da mamãe, minha madrinha de primeira co-munhão - havia naquela época madrinha de primei-ra comunhão - falou: “Nós não podemos perder essa inteligência da Lora”. Então eu consegui uma bolsa de estudos com a Prefeitura. Era aquele tipo de bolsa que a gente não podia perder um ano que perdia o lugar, e a Irmã, deu a ideia de aumentar minha idade pra doze. Foi ideia pra não perder a bolsa. Mas eu formei com quinze anos. Com dezesseis fui nomeada pelo Pedro Dutra.

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No tempo que eu formei era tão... era uma gló-ria tão grande ser professora... eu acho que é, que de-ve ser encarado assim até hoje. Porque tudo começa ali, né.

Caiu muito... não há estímulo, e muita refor-ma de ensino. (Na época) só tinha a Irene, filha da D. Clarisse, no Banco Nacional. Fora disso não havia moças, mulheres trabalhando em repartição pública. E ser professora era uma glória! Eles diziam assim quando a gente era nomeada professora: “a filha da Terezinha Graciolli ganhou uma cadeira”.

Nessa época que eu formei, fui trabalhar num armazém na Rua da Estação, que era a antiga Social. A Alva Spíndola estava saindo - e a afilhada da ma-mãe - me chamou pra trabalhar no lugar dela. Foi meu primeiro trabalho. Dali uma tarde eu fui con-versar com o Pedro Dutra sobre a situação do papai. Papai estava trabalhando na Prefeitura e foi perse-guido. Depois foi na fábrica, através do João Peixoto, que sempre foi amigo nosso, que Deus o tenha. Mas ele não aguentava trabalhar numa sala de pano, em pé das seis às cinco da tarde. Mamãe toda vida foi muito trabalhadora. Desde criança senti o drama da mamãe com o marido desempregado. Quer dizer, ele tocava num baile, cê sabe que não dava nada. E ma-mãe lutava muito. Eu sempre me preocupei. E então,

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uma tarde, eu fui lá no escritório do Pedro Dutra. Encontrei ele sozinho. Por acaso, acho que a chance tinha que ser minha mesmo, né. Ele ficou muito ad-mirado que eu falei: “Eu trabalho, mas ganho pouco, mamãe luta muito”. “Mas você trabalha? Você é uma menina!” Realmente eu era miúda, apanhei muito corpo depois de casada, depois do primeiro filho. Era um brotinho muito bem feitinho de corpo, mas não era corpulenta. Eu falei: “Não, eu sou normalista”. Ele falou assim: “Olha, eu vou nomear você e o seu pai. Mas por enquanto você vai avisar lá o seu pa-trão e vai trabalhar no meu birô”. Nos éramos vinte e cinco moças no birô eleitoral. (Era época) de eleição. Foi quando ele ganhou para deputado federal. Então chegaram juntos os telegramas: o meu, me nomean-do professora, e do papai nomeando fiscal de rendas da coletoria estadual. Aí tudo passou a melhorar lá em casa. Mamãe já tinha um apoio, né, tanto meu - que ela exigia, até três meses antes do casamento ela exigiu - como o do papai. O chefe de família sabe o que ele representa, né.

Eu trabalhava num fichário que tinha todas as informações do eleitor. Tinha informações até assim de... O quê que a pessoa pediu na eleição passada. Tinha adversário, correligionário... Tinha gente que tinha pedido uma caixa de pó de arroz.

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Tinha o eleitorado tudo no fichário. Eu preci-sava de qualquer informação ia ali. Tinha tudo ali. Na época de eleição fazia-se uma listagem, e por ali ele sabia mais ou menos se ele ganhava ou não elei-ção. Ele já sabia antes da eleição. Eu trabalhei bas-tante! Ele foi um patrão excelente, um ser humano maravilhoso! Pra nós da minha família, ele foi um pai. Porque ele beneficiou minha família toda. Pra nomear a Estelina professora, por causa de concur-so, a colocação do concurso, ele teve que nomear du-as adversárias pra não saltar, pra poder beneficiar a Estelina. Eu sempre tive nele um amigo. E depois de casada ele colocou o meu marido na Receita Federal, (onde) morreu numa chefia.

Ele tinha tanto poder e ele brigava tanto com os políticos, tinha liberdade, que ele conseguia pelo telefone daqui falar com os políticos e exigir: “Você vai nomear fulano de tal”. Ele pôs muita gente no Banco do Brasil pela janela, através do telefone dele.

“Ó, eu exijo que você faça isso”. Ele tinha muito poder mesmo. Mas ele fez tanto bem! Ele botou o pão na mesa de tanta gente! Na época que eu fui nomeada, ele nomeou todas que estavam no birô, eram umas vinte e cinco professoras. E na época que o Procópio foi nomeado, nomeou o Procópio, a Hermínia, a Viena, Ula e o Klebinho. Cinco. E se tivesse consegui-

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do durar aquele “IPASE” aqui, que chegou a abrir, te-ria colocado muita gente.

Foi uma política terrível! Ele foi traído na épo-ca do Zé Esteves. Ele... num ficou satisfeito porque o Zé Esteves foi candidato dele. Então foi muito tra-balhado, foi muito votado. Mas ele, aquela vitória, parece que ele já sabia que num ia levar nada dela, porque ele dizia que a prefeitura é uma mãe, porque podia dar emprego a muita gente.

Eu mesma fui muito perseguida. O Pedro Dutra me punha pra diretora, daí uns dias o outro me tirava. Bastava ele perder a eleição pro outro me tirar. Então me perguntaram uma vez como é que eu encarava aquilo. “Eu encaro isso como uma coisa mesmo de política, porque pessoalmente nem a gen-te tem nada um contra o outro, somos amigos”. Eu fui muito amiga da Lourdes do Fortunato, Lourdes Ribeiro. Ela até falava que eles chamavam o pessoal que gostava do Pedro Dutra, que era amigo, de “lom-briga”. Eu ia em comícios da UDN com ela e ela fala-va assim: “Cê é uma lombriga mansa”.

Mas a minha família, a gente nunca foi fanáti-co, a gente era amigo, sempre continuamos amigos da dona Flávia enquanto ela teve vida. Sempre com muita atenção com eles - era uma dívida de gratidão

- porque ele nunca exigiu da gente. Quando o pa-

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pai foi trabalhar na fábrica, passaram uma lista, um manifesto contra o Pedro Dutra pra assinar, ele não aceitou assinar. Foi mandado embora. Foi quando ele foi... daí a pouco colocado como fiscal de rendas 2.

Papai trabalhou na sala de panos, ali na Irmãos Peixoto. Ele era vaidoso, gostava de andar bem vestido e de chapéu. Chapéu da moda. Então eles queriam que colocasse um macacão e não usa-va chapéu. Então ele não aceitou aquilo. E realmente não estava fazendo bem pra saúde dele, começou a inchar as juntas, e eu me preocupava muito com a família toda, observava todos os problemas. Eu me propus a colocar o papai melhor. Acompanhei a car-reira dele a vida inteira. Quando era época de retor-nar: “Papai, dia tal o senhor tem de retornar”. Eu fui a primeira a estudar, porque a Eni, a mais velha, ficou na sala de costuras, arrematando e bordava a sutache, bordava a lantejoula. Mamãe tinha uma máquina de bordar... e a gente nunca viu igual. Então, em época de carnaval faziam capas de fantasia com aquele dra-gão atrás. Ela incluía num instantinho, a cores. Uma máquina fabulosa, nunca mais a gente viu. Não sei porque a mamãe dispôs daquilo. Teve que vender, algum aperto que ela deve ter passado na vida, né. Mas eu acompanhei o papai. A licença toda pra ele aposentar... eu acredito que ele tenha sido muito feliz.

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Porque ele foi muito amado, mamãe era muito apai-xonada pelo papai. Foi uma convivência muito boni-ta, muito boa. A gente foi criada com uma mãe que é um exemplo até hoje. Naquela luta, naquela peleja. Ele amolado de não ter como... eu dei um impulso depois que formei, né. Mas eles vieram muito bem. Ele pode ter tido as mancadas dele aí, por fora, né, mas a gente não ficou sabendo de nada não. Papai participou duma banda. Até eu, numa crônica minha, eu citei, “Meu largo do Rosário quanta saudade”, porque quando a gente era pequeno o circo era arma-do ali, todos os circos. Foram os circos mais lindos e mais ricos que passaram por Cataguases. Então, che-gava 7 horas, 7:30, quando ia começar o espetáculo, antes um pouco, vinha lá de cima a banda tocando dobrado. Papai na frente. Então eles puseram o ape-lido de “Banda Furiosa”, sabe. Que vinha trazendo mais crianças, mais gente. Eram circos maravilhosos! E a gente tinha o direito ao camarote. Um parente ia todo dia, não pagava, né, por ele tocar. Todos os mú-sicos tinham permanente pra família ir. A gente não perdia uma noite. Era uma coisa louca! Nós tivemos uma infância maravilhosa! Eu não lembro do papai ter dado aula de música pra ninguém. Ele num teve assim alunos de música, porque depois que ele pas-sou a trabalhar na coletoria, trabalhava o dia todo, né.

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Então não teve condição. Estudava muito: três a qua-tro horas por dia. Isto era diariamente. Sabia e gos-tava de um livro de inglês perto dele. Todo ano, no meu aniversário, ele fazia uma quadrinha pra mim. Me cumprimentava pelo aniversário. Ele terminava...

“your father”. A gente foi muito amigo. O cinema era mudo. Eu já ouvi comentários da mamãe, da dona Hilda Condé. Dona Margarida Condé também co-mentava muito que eles tocavam. Era o Ciodaro, o papai, a Aída Nacarati e o Rogério Teixeira. Então enquanto passava o filme havia a orquestra. Mas o pessoal ia mais pra ouvir a música, do que, propria-mente pra ver o filme. Realmente era uma música muito boa.

Eu sempre amei Cataguases. Coisa assim que me faz bem demais e quando eu saio um pouco, quando eu começo a avistar ali o João XXIII, já come-ço a chegar em Cataguases... ai, que coisa boa! Que felicidade de estar voltando! Às vezes eu saio, visito um filho aqui, dali vou pro outro, de lá vou pro ou-tro, porque eu sou pai também, então não abando-no. Agora, gosto, gosto do meu cantinho sossegado. Deito cedo e levanto cedo. Dou uma caminhada de 3 Km todos os dias.

Eu acho que a cidade progrediu muito. Mas eu sempre gostei de ter nascido em Cataguases. Este pe-

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daço... Praça Sandoval Azevedo hoje... antigamente Largo do Rosário e aqui a rua Francisco Rossi, foi o pedaço de minha vida, né, porque ali a gente brinca-va, e na época da enchente isso aqui era o nosso lugar de brincar. Tinha aqui a chácara do Chico Rossi, de goiabeira assim na beirada da cerca! (Nessa rua) não tinha nada, nada, nada! Tinha lá em baixo um mata-douro. Isso aqui tudo é coisa do progresso. A chácara do Chico Rossi era aquele pedaço ali da Catauto. Dali daquele ponto do prédio da Catauto. Pra lá era uma chácara enorme. Então, na rua... tinha assim, uma distância de pedra. E a cerca, de arame farpado, era toda volta goiabeira! ... Ah, mas a gente pintava e bor-dava ali com aquelas goiabeiras! Então, na época de enchente, que era uma tristeza para todo mundo, pra nós era uma alegria. A Carminha Graciolli, a Lucy Graciolli, a Eni, tem as irmãs do Paulo Esquerdo que mudaram pro Rio, Vanda e Ivone Santos... Primavera era uma menina muito bonitinha. A gente fazia jan-gadas com os troncos de bananeiras, ia até lá perto do campo, atravessava o campo do operário quando a enchente era muito forte. Era uma festa pra nós en-chente aqui. A gente vinha até aqui, até no meio, era uma festa.

Foi um encanto a minha infância! Aliás, das meninas todas do meu tempo. Um brinquedo que

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a gente apreciava muito é brincar de circo. Então, a gente arranjava tudo quanto é roupa estrambólica pra apresentar os números da gente, né. A gente fa-zia às vezes no quintal de uma, no quintal de outros. Arranjava assim uma coisa alta, preparava tipo um circo. E pra entrar pagava cinco palitos de fósforos na entrada. E aí tinha de tudo. Esta época tinha a Zélia e a Zilda Marques, a Eni casada com o Fernando Miranda. Mas a gente se distraiu muito porque... a gente vivia com treze anos, a gente vivia uma crian-ça, uma menina de treze anos. As meninas de treze anos hoje como é que estão? Elas não têm infância, não tiveram infância. Nós tivemos aqui no Largo do Rosário um time. Era queimada. Então a gente fa-zia o nosso time e tinha um time na rua Dr. Sobral. Tinha domingo que era jogo contra o outro. Era aque-la turminha. Carminha Graciolli, Lucy Graciolli, Eni, minha irmã, eu. E nessa época tinha também dois... Narte e Nilson Vassalo. Narte namorava a Eni, e o Nilson me namorava. Eles mudaram daí há muito tempo, anos. Tinha Delvani, que morreu, o Manoel Ladeira que também morreu. São meninos que brin-cavam, não havia essa coisa... essa malícia, essa mal-dade que há hoje. A gente falava que era namorado, pra ser sincera até sem saber o que era flertar. Mas foi muito gostosa a minha infância. E a minha vida toda

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eu sempre fui muito feliz. Eu sempre fui muito oti-mista. E sempre tive muita presença de Deus na mi-nha vida. Assim, eu tenho muito amor pra dar. Como professora eu fui uma daquelas crianças. Eu encontro na praça ali, aqueles homões, aqueles cavalões, me abraçam, me beijam: “o D. Terezini, me dá receita, eu estou mais velho do que a senhora.”

“Ah! eu comecei a dar aula eu tinha dezessete, você tinha quatorze, nós regulamos você tá de cabe-lo branco, cê tá sem dente. Você que não está se cui-dando”. “Ó, se eu não fosse casado, eu ia paquerar a senhora”. Todos falam assim. Ah, o Meia Pataca! Que coisa linda! Até coloquei no “Cataguases” uma crônica:

“Meu Meia Pataca Pobrezinho”. Que coisa lin-da! Quando a gente volta passa aí, fica até triste. Você via o fundo, a gente juntava ali, atravessava para o outro lado. Do lado de cá, assim... a volta dele todo fazia uma curva, tinha tamarindo - vivia carregado o pé - e muita goiabeira. Então a gente tinha tudo ali, né. E como eu falo na crônica, eu faço um para-lelo da poluição dele com a minha: ele poluído pelo progresso, né, sujo, feio, fétido e eu poluída pelo de-sencanto da angustia da saudade, do amor que par-tiu cedo demais. A água era tão cristalina, tão linda, que a gente enchia as mãos e vinha cheinha de giri-

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no. Água branquinha! A gente atravessava com água aqui, (pelos joelhos). Não tinha peixe grande ali, que era muito razinho. Tinha aqueles peixinhos pequeni-ninhos. Aí desse lado da Rua Professor Alcântara, na-quela margem ali, a gente brincava. Então na crônica eu pergunto: “aonde estão os meus girinos?”

A mocidade foi maravilhosa. Eu sou uma pes-soa muito feliz, sempre fui muito feliz. Eu comecei a trabalhar muito cedo e a mamãe sempre foi muito enérgica pra mim. Comigo mais que com as outras. Eu não tenho nada a reclamar, são todas ótimas, to-das modelos de mãe de família e de donas de casa e tudo. Mas a mamãe, o modo que ela me criou, talvez ela visse em mim muito mais capacidade para exigir mais de mim. Ele exigia tanto de mim, que eu pas-sei, eu mesma, a exigir de mim, o que me forçou a ser esta mulher autossuficiente que eu sou. Há mui-to tempo que eu sou esta mulher autossuficiente. Ela exigia demais de mim e eu aprendi a exigir de mim também.

Ah! A Escola Normal acabou, não tem mais, não volta nunca mais! Era uma coisa louca! Tinha in-ternato e externato, mas não era mista, no meu tem-po não era mista. Eu peguei o Colégio novo, né, já novo, este prédio novo. Mas o internato e o externa-to era muito amigo. A minha turma tinha Carminha

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Peixoto, tinha a Nize Pessoa, a Eliana que foi aque-la artista da Atlândida, que hoje está acabadíssima, muito doente, que teve uma trombose. Ela ficava hospedada numa casa da Avenida. Ela veio fazer o terceiro ano normal. Sabe, a gente fazia o primeiro e o segundo de adaptação, que seria assim uma quinta série, uma sexta. Depois vinha o primeiro, o segundo e o terceiro normal. No ano seguinte que eu saí, co-meçou o de Formação. Então quem tinha o terceiro normal já podia começar no segundo de Formação. Eu já trabalhando, eu voltei pra fazer o de Formação. Mas a gente saía sabendo. A gente tinha tirocínio. Eu tive uma professora uma professora de português maravilhosa, a irmã Edith, que hoje eu soube que ela está em Mariana. Está velhinha e tá cega. Nancy Salgado, que foi minha professora de matemática muitos anos, Dona Nancy, ótima professora. Depois no último ano foi a irmã Salomé, Irma Paulina. Ah, mas eram professoras maravilhosas, não desfazen-do das de hoje. Agora, eu acho que mudou muito do meu tempo pra cá. Porque no meu tempo a gen-te recebia uma educação religiosa, cristã, coisas que acompanham a gente a vida inteira. Princípios mo-rais, uma formação. A gente, por exemplo, estudava uma História Sagrada, Antigo e Novo Testamento. Dessa grossura! Além disso, um catecismo assim. E

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a gente tinha aqueles horários de ter uma visita ao Santíssimo. Hoje a minha filha não aprendeu nem o Pai-nosso lá. Além do exemplo de casa, do lar que é muito importante, aquela educação que a gente rece-bia lá, aquilo dava a gente uma posição de fortaleza diante da vida. Firmeza de caráter. Porque a gente que teve felicidade dessa formação... aquilo sem-pre segurou, sempre foi um obstáculo para alguma mancada que se pudesse dar ali adiante. Um princí-pio moral. Mudou muito, o ensino mudou. A gente aprendia realmente.

Ah, Naíde Quaresma, professora de Educação Física, não tinha nada mais lindo! A gente fazia aque-la ginástica de pião, sabe, a gente tinha sempre uma coisa preparada pra um momento de ter uma fes-ta. Foi um professorado... eu não estou desfazendo dessas agora. Mas eu... foi uma coisa maravilhosa a Escola Normal na minha época! Muito bom (o re-lacionamento com as irmãs). Elas conversavam so-bre namorados, elas falavam dono. “E o seu dono? Você já tem dono?” Elas conversavam, tinha toda a liberdade de conversar com a gente. Ah, as inter-nas tinham aquele regime de hábito de Escola mes-mo. Levantavam muito cedo, banho frio e começar cedo. Tinha hora de estudo, tinha hora pra tudo, né. E a gente não podia, por exemplo, era proibido, era

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proibido levar uma carta cá de fora, uma carta de um namorado pra uma interna. Eu mesma quase fui sus-pensa por uma semana, porque a Carminha Peixoto namorou o Mário Góes e ele mandou uma carta pra ela, eu entreguei e a irmã pegou a carta.

Tinha internato (no Colégio de Cataguases). Foi quando o colégio era pago, né. Ai foi uma época que veio o Chico Buarque, veio o Darcy Fernandes, que é o capitão. Que me paquera, que está comigo a uns 4 anos, né. Ele veio a Cataguases com o filho. Veio até de moto, ele pratica muito esporte. Veio vi-sitar, mostrar pro filho o colégio que ele estudou. Era filho único, estudou um ano, e depois o pai adoeceu, eles voltaram pro Rio, eles são do Rio. Depois de al-gum tempo que a gente se conheceu, conversando, eu falei: “Darcy, eu te conheço de algum lugar. Tenho certeza que já te vi”. Ele virou pra mim e falou assim:

“Você não é aquela menina lourinha, que dava aula naquele grupo da Avenida, naquela primeira janela? Lembra que eu flertava com você, você não era aque-la menina?” Lembrei, era eu mesmo. Ele passava, a gente flertava. Ele não chegou a ficar interno, né. Era filho único, estudou aí, estudou pouco.

Nossa! Os bailes hoje até da tristeza vê baile. Os bailes eram lindíssimos! Acabou a poesia, onde está a poesia? Acabou. Em todos os pontos. Não digo

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só em baile. Por exemplo, baile de professora, era um baile lindo! A gente fazia em benefício a caixa escolar. Eu fui a bailes no colégio Cataguases, baile a rigor. Mamãe costurava muito e fazia vestidos de bailes lin-díssimos. Eu tenho até um retrato aí de vestido de baile. Pena que não era colorido, né. E os bailes... ha-via muita poesia, a própria música era muito român-tica. E não havia essa barulheira. A última vez que eu fui lá no clube do Remo, que ele (Luís Claudio) insis-tiu muito, a gente não podia conversar na mesa, por-que a gente não escutava nada, uma da outra! Você saía dali cansada, super cansada. (O traje) ou era ri-gor ou era passeio, traje passeio simples. Hoje você vê bermuda, calça jeans, short colorido, longo, tudo junto. Chanelsinho, tudo junto num baile só. Quer di-zer, não entende.

Carnaval era uma coisa linda! Havia o “Lord Club” e a rivalidade era com as “Mimosas Camélias”. Eu com treze anos saía na carruagem do Emílio. Tinha atrás de mim um avião enorme. Eles fizeram uma espécie de uma jarra toda sextavada ou oita-vada. Toda em espelho com aquelas flores coloridas. Em cima, no meio daquela porção de flores de papel, eu sentada. Com a roupa linda, branca, jogando bei-jos. Quando eu passava em frente do Social, cheio de pessoas na sacada pra ver passar os blocos, o avião

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deu aquele tiro de confete. Foi lindo! Era lindo! Era lindo! Pra te falar a verdade eu nem vou à rua pra ver carnaval mais. Uma pobreza, é uma pobreza.

Os bailes eram lindíssimos, lindíssimos! Não esse negócio de pessoa beber, jogar copo, jogar garra-fa um no outro. Não tinha isso. Aliás, uma moça não bebia cerveja. Era feio. A gente tomava refrigerante. Eu era muito nova, eu já era professora, mas eu não tinha aparência de moça. Então eu dançava na mati-nê e a noite também.

Ah, a Praça Rui Barbosa era interessante. Era... a gente andava assim... os rapazes assim e a gente ao contrário. Chamava “footing” na época. Ali a gente arranjava os namorados, né, porque agente passava por eles assim. Cortava volta (pra encontrar mais rá-pido). Às vezes quando a gente chegava a dar uma volta ele já vinha. O cinema também era muito bom. Quer dizer, o cinema você tinha condição de ir. Hoje você quase não tem. Ou é karatê ou é filme de se-xo. Então a gente prefere ver um filme na televisão. Como ontem, sessão da tarde, “Noviça Rebelde”, que coisa linda! Eu já vi três vezes aquele filme e não canso. Que saudade... Foi uma época muito... muito bonita.

Eu gostaria de falar sobre o ensino, um pouco, né, porque eu trabalhei dezessete anos com regência

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de classe. Eu fui regente de classe de quarto ano, qua-torze anos seguidos. Eu já dava sistema métrico de-cimal, aquilo saía assim, com a maior facilidade. Fui professora do Joaquim Branco, o que é uma honra! Aliás, todos os meninos que passaram por mim, eu acho que foi uma honra. Porque pra mim são filhos. Eu amei aquelas crianças desde a primeira vez que vi, sabe. Então isso marca muito a gente.

Agora, realmente a professora nunca foi bem remunerada. É uma coisa que magoa. Mas há a re-compensa invisível, que gratifica muito a gente. E o carinho dos ex-alunos, a gratidão dos pais, alguns, né. Quer dizer, isso é a recompensa que a professora tem, porque em matéria de ordenado uma professo-ra não pode pagar uma doméstica que ganha salário. De jeito nenhum. Agora, quanto a um deputado, que passou pela professorinha primeiro, pra chegar on-de ele está, não faz um movimento em benefício das professoras. Eu já gritei muito pela classe, mas você sabe, sabe como que são os gritos que ficam sufoca-dos. Publiquei tudo, correu o mundo, o estado de Minas todo. Entreguei nas mãos do Newton Cardoso, do Hélio Garcia, quando estiveram aí. Então você vê uma professora que trabalhou trinta e cinco anos, quanto você acha... comparado com um deputado que ganha aquele horror. E uma professora, ela tem

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que manter uma linha, a maneira de vestir, né. A gen-te dá muito material escolar pras crianças que não tem. Merenda... quanto a gente segura pela meren-da diária. Eles não estão mandando nada! Quando chega aquelas coisas dos Estados Unidos, você abre aquele saco assim de triguilho, ou duma farinha la-minada, que eles mandavam quando eu era direto-ra, já tava saindo borboleta. Você vai dar aquilo pra menino? Você ia dar aquilo pra criança, aquilo podre, saindo borboletinha pra todo lado? Quantas vezes a diretora, como eu, saía de porta em porta. Era óleo, era macarrão, era tudo que eu ganhava. A professora além de estudar muito ela tem que saber psicologia para entender cada aluno. A professora vai lapidar, ela tem que saber entender cada cabeça, porque tudo começa no lar; a escola é a continuação do lar, se não é, devia ser. Então a professora bem preparada enten-de cada criança daquela.

Ah, foi linda! Me realizei demais como profes-sora, e mais ainda como diretora.

Porque diretora eu pude ajudar muita criança pobre. Eu ajudei o máximo que eu pude as da minha sala, enquanto eu fui regente de classe. Eu fui regen-te de classe dezessete anos, quatorze anos no quarto ano primário. E depois eu passei dez anos como di-retora. Então eu trabalhei vinte e sete anos. Como eu

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entrei com dezesseis anos, eu sai com quarenta e três. Aposentei nova e com muita vontade de continuar. Abri aquele jardim de infância no Centro Espírita, on-de a gente pode ajudar muito as crianças menos favo-recidas, e quase não cobrava, a gente dava todo o ma-terial. Ali eu devo ter ficado uns seis anos. Como eu gostava de ficar no meio das crianças, eu vim pra cre-che SOS. Achei uma beleza o trabalho da Dona Emília, da diretoria toda. E mais ainda o da Sebastiana, que tomava conta dos meninos, né. E me ofereci pra aju-dar quando precisasse dum relatório, quando preci-sasse de um cartaz, porque eles têm convênio com a LBA e exigem, né. Semana da Comunidade, Semana da Alimentação, tudo. Logo que eu comecei a tra-balhar lá como voluntária, a primeira coisa que eu fiz foi abrir duas salas de aula, porque os meninos dormiam depois do almoço. Então os pequenos, as menores tinham aula de manhã e as maiores, que já não gostavam, de dormir, faziam à tarde. Então há um trabalho pra duas professoras. O que sempre me realizou muito foi poder ajudar a colocar mais pes-soas. E eu orientava, até que a D. Emilia conseguiu que o Mobral pagasse as professoras, porque estava ficando difícil pra ela pagar as professoras. Consegui fazer coisas lá que ninguém acreditava que eu conse-guiria. Fazer, por exemplo, peças infantis todo Natal

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com as crianças. Crianças pequenininhas, muito ca-rentes, de ambientes terríveis... porque além da par-te de diretora das duas salas, eu fazia a escrita toda. Os prontuários do LBA tinham toda a informação de cada criança. Então eu tinha que entrevistar as mães, no princípio do ano, uma a uma, pra saber aonde que ela morava, se a casa era de cimento, se tinha banhei-ro... a maioria não tinha banheiro em casa. Então era um ambiente assim de meninos que vivem na pro-miscuidade mesmo. Tudo numa cama só com o pai e a mãe. Mas eu consegui fazer peças infantis lindas. Trabalhei lá quatro anos e foi muito bom.

Sou uma mulher muito feliz, muito realizada, tive assim, muitas derrotas, sofrimento, mas sou uma vitoriosa. Eu tenho aquilo que as pessoas me dão, não é? Porque realmente a gente tem aquilo que aparen-ta ter. Mas de coração eu devo tá com vinte e cinco anos, que eu tenho um coração assim muito apaixo-nado, muito jovem. Eu tô realizando um sonho dos meus quinze anos: ter um quarto cor-de-rosa. A mi-nha filha teve um quarto cor-de-rosa. Agora eu estou realizando meu sonho. Nunca é tarde para o amor e nunca é tarde para realizar um sonho. Coração não tem idade...

Entrevistada em 27/04/1990 por Gláucia Siqueira e Mariana Cândida.

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