volume 01 - 04

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4 A LEI PENAL ____________________________ 4.1 FONTES DO DIREITO PENAL 4.1.1 Fontes materiais: a sociedade e o Estado A expressão fonte identifica-se com nascente, daí por que se falar em fontes do Direito Penal é dizer de seu nascimento. O direito, como já se disse, emana das necessidades da vida em sociedade, e pode-se afirmar, sem medo de errar, que ambos surgem simultaneamente. Onde há sociedade, há direito, e vice-versa. O direito é a expressão da vontade da sociedade. Nasce da vontade dos indivíduos que a compõem. A consciência do povo que integra a nação é a fonte maior do direito. A sociedade está organizada no Estado, com seus três poderes, entre eles o encarregado de elaborar as normas de comportamento: o Poder Legislativo, pelo Senado Federal e Câmara dos Deputados. É a sociedade que escolhe um grupo de indivíduos e confere-lhes o dever e o direito de construir as figuras consideradas crimes, estabelecer as penas e outras regras relativas aos infratores das normas. Uma sociedade pode considerar crime a conduta humana que outra sociedade considera comportamento justo. Por exemplo, no Brasil é crime interromper a gravidez, com a morte de seu produto, definido com o nome de aborto, salvo se não houver outro meio para salvar a vida da gestante ou se a gravidez tiver sido fruto de um estupro (relação sexual violenta e dissentida pela mulher) e, neste último caso, se a gestante ou seu representante consentirem no aborto. Em outras sociedades do mundo, esse mesmo fato não é considerado crime, sendo, por isso, plenamente normal e aceito pelos membros daquelas sociedades. Exemplos: China, França, Noruega. Em certas sociedades, atitudes humanas que se voltam contra valores religiosos são consideradas crime, como é o caso do Irã, ao passo que nas sociedades

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Uma sociedade pode considerar crime a conduta humana que outra sociedade Direito Penal é dizer de seu nascimento. O direito, como já se disse, emana das gravidez, com a morte de seu produto, definido com o nome de aborto, salvo se não necessidades da vida em sociedade, e pode-se afirmar, sem medo de errar, que ambos gestante ou seu representante consentirem no aborto. Em outras sociedades do mundo, A sociedade está organizada no Estado, com seus três poderes, entre eles o do direito.

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4

A LEI PENAL

____________________________

4.1 FONTES DO DIREITO PENAL

4.1.1 Fontes materiais: a sociedade e o Estado

A expressão fonte identifica-se com nascente, daí por que se falar em fontes do

Direito Penal é dizer de seu nascimento. O direito, como já se disse, emana das

necessidades da vida em sociedade, e pode-se afirmar, sem medo de errar, que ambos

surgem simultaneamente. Onde há sociedade, há direito, e vice-versa.

O direito é a expressão da vontade da sociedade. Nasce da vontade dos

indivíduos que a compõem. A consciência do povo que integra a nação é a fonte maior

do direito.

A sociedade está organizada no Estado, com seus três poderes, entre eles o

encarregado de elaborar as normas de comportamento: o Poder Legislativo, pelo

Senado Federal e Câmara dos Deputados.

É a sociedade que escolhe um grupo de indivíduos e confere-lhes o dever e o

direito de construir as figuras consideradas crimes, estabelecer as penas e outras regras

relativas aos infratores das normas.

Uma sociedade pode considerar crime a conduta humana que outra sociedade

considera comportamento justo. Por exemplo, no Brasil é crime interromper a

gravidez, com a morte de seu produto, definido com o nome de aborto, salvo se não

houver outro meio para salvar a vida da gestante ou se a gravidez tiver sido fruto de um

estupro (relação sexual violenta e dissentida pela mulher) e, neste último caso, se a

gestante ou seu representante consentirem no aborto. Em outras sociedades do mundo,

esse mesmo fato não é considerado crime, sendo, por isso, plenamente normal e aceito

pelos membros daquelas sociedades. Exemplos: China, França, Noruega.

Em certas sociedades, atitudes humanas que se voltam contra valores religiosos

são consideradas crime, como é o caso do Irã, ao passo que nas sociedades

2 – Direito Penal – Ney Moura Teles

desenvolvidas tais fatos não interessam ao Direito Penal.

A fonte de produção, ou substancial, do Direito Penal é remotamente a

consciência popular, e diretamente o Estado, por força do que dispõe o art. 22, I, da

Constituição Federal, que diz competir, privativamente, à União legislar sobre Direito

Penal.

A União, por meio do Poder Legislativo, por seus deputados e senadores, é a

fonte produtora, material ou substancial do Direito Penal.

4.1.2 Fonte formal imediata: a lei penal

O Direito – conjunto das normas de comportamento – para se estabelecer no

seio da sociedade, para valer e imperar, para ser obedecido pelos membros da

sociedade, os indivíduos, precisa ser conhecido da sociedade, exteriorizar-se, ganhar

forma, tornar-se concreto. Esta concretização se dá por meio de instrumentos de

comunicação criados, ao longo do tempo, pelos vários povos.

Modernamente, o instrumento utilizado para a exteriorização do Direito Penal é

a lei, documento que contém a norma jurídica emanada do órgão Estatal encarregado

de sua produção, segundo determina a Constituição do Estado.

Tratando-se de Direito Penal, por força do já conhecido Princípio da Legalidade,

só a lei pode definir o crime e cominar a pena. Conseqüentemente, só a lei é fonte de

exteriorização da criação dos crimes e das penas.

A doutrina denomina esses meios de exteriorização do Direito de fontes

formais, ou de cognição; todavia, segundo HELENO CLÁUDIO FRAGOSO, “não são fontes,

mas formas do direito, como bem assinalou Goldschmidt”1.

Correto o entendimento do saudoso advogado e jurista brasileiro, pois fonte só

pode ser a substancial, de produção do Direito. A lei, na verdade, é o instrumento

utilizado pelo Estado para dar expressão real às normas que elabora. Nesse sentido,

não pode ser fonte.

Fonte, então, é tão-somente a consciência da sociedade, é o Estado, ao passo

que a lei é a única forma ou o único instrumento pelo qual o povo, por meio do Estado,

define os fatos considerados criminosos, e estabelece as penas que a sua prática

correspondem.

1 Lições de direito penal: parte geral. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1991. p. 77.

A Lei Penal - 3

4.1.3 Fontes formais mediatas: costume e princípios gerais de

direito

A sociedade constrói o direito também por meio do costume jurídico e dos

Princípios Gerais de Direito.

Diz, aliás, a Lei de Introdução ao Código Civil que, quando a lei for omissa, o

juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, o costume jurídico e os princípios gerais

de direito. De analogia, fala-se mais adiante.

4.1.3.1 Costume jurídico

Dentro de uma sociedade, ao longo dos anos, muitas vezes, vão as pessoas

realizando certos comportamentos, reiteradamente, no tempo, sempre de um mesmo

modo. Com o passar dos dias, anos, das décadas, todos resolvem obedecer a certa

orientação, por entenderem necessária e proveitosa para a sociedade, de tal modo que

chegam a considerar que estão obrigados a agir sempre daquela forma.

Surgem, assim, na sociedade diversas normas de comportamento, não escritas

em lei, que as pessoas obedecem, de modo uniforme e constante, pela certeza que elas

têm de que estão obrigadas a assim se comportarem.

É o costume uma norma não escrita a que as pessoas obedecem, de modo

uniforme e constante, na certeza de que estão obrigadas a obedecê-la.

Ressalte-se a importância de que haja a constância e a uniformidade, que são os

elementos objetivos do costume jurídico, e a convicção da obrigatoriedade da norma

costumeira, que é seu elemento subjetivo.

O costume não tem o poder de revogar a norma penal, e tampouco de criar

delitos ou cominar penas, por força do princípio da legalidade.

Apesar de muito comum no Brasil, a prática do chamado “jogo do bicho” não é

comportamento permitido, pois ainda está em vigor uma norma penal que o considera

um comportamento proibido.

Do mesmo modo, o desuso de uma norma, ao longo do tempo, não a revoga.

Tome-se como exemplo a questão do adultério. Nos últimos anos, mormente após a

instituição do instituto do divórcio, a sociedade brasileira passa a tratar o adultério de

modo bem mais compreensivo que nos anos anteriores e nos que se seguiram à edição

do Código Penal. Hoje, o homem moderno vem compreendendo que não é proprietário

4 – Direito Penal – Ney Moura Teles

de sua mulher e esta, à medida que deixa o lar e a cozinha, disputando o mercado de

trabalho com o homem, já não tem aquele comportamento do passado. O adultério

deixou, há muito, de ser, na prática forense, assunto do Código Penal. Mas só a

revogação expressa do art. 240 do Código Penal, pela Lei nº 11.106, de 28.03.2005,

baniu o adultério do ordenamento jurídico-penal brasileiro. Um importante avanço

que, há muito, vínhamos reclamando.

O costume jurídico terá importância para o Direito Penal como elemento

auxiliar na interpretação das normas penais, como se verá, oportunamente.

4.1.3.2 Princípios gerais de direito

Nem tudo o que é Direito está escrito na Constituição Federal e nas leis vigentes

no país. Em outras e mais límpidas palavras, de CARLOS MAXIMILIANO: “não é

constitucional apenas o que está escrito no estatuto básico, e, sim, o que se deduz do

sistema por ele estabelecido”2.

O Direito é um sistema harmônico de normas, do qual se deduzem alguns

preceitos fundamentais que não precisam estar escritos para terem validade. São as

bases, os fundamentos, os pilares que decorrem de todo o ordenamento jurídico, que

têm valor e aplicação geral.

O Direito Penal não está interessado na punição daquele que realizar uma lesão

insignificante de um interesse jurídico, porque, como já se disse, sua finalidade é a

proteção dos bens mais importantes das lesões mais graves. Se ela é insignificante, não

interessa ao Direito Penal. Esta conclusão advém do Princípio da Insignificância, que

será estudado mais adiante, juntamente com outros princípios gerais de direito.

Desnecessário dizer que os princípios gerais de direito não definem crimes, nem

estabelecem penas, mas aplicam-se exatamente para deixar de considerar delitos certos

fatos que como tal são definidos.

4.2 A LEI PENAL E A NORMA PENAL

Lei é um documento elaborado e emanado do Congresso Nacional, sancionado

pelo Presidente da República, publicado no Diário Oficial da União, que contém

normas jurídicas, regras obrigatórias a que todos estão obrigados a obedecer, posto que

2 Comentários à Constituição brasileira de 1946. 5. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1948. v. 3, p. 175.

A Lei Penal - 5

impostas coativamente pelo Estado.

A lei é o único instrumento utilizado pelo Estado para dar conhecimento do que

é o Direito Penal. É nela, somente nela, que estão contidas as normas que definem

crimes e cominam penas.

São leis penais o Código Penal, a Lei das Contravenções Penais, o Código Penal

Militar, a Lei de Segurança Nacional, a Lei de Entorpecentes, encontrando-se normas

penais também nas Leis de Falência, de Imprensa, de Alimentos, no Estatuto da

Criança e do Adolescente, no Código de Defesa do Consumidor, e em número muito

grande de outras leis elaboradas pelo Poder Legislativo.

Nas leis estão contidas as normas. Esta afirmação conduz à necessidade de se

mostrar a diferença entre lei e norma.

A norma é a regra de conduta, imposta coativamente pelo Estado. É o comando. É

a ordem. A norma está contida na lei. Esta é o instrumento de manifestação da norma.

É o meio pelo qual a norma é comunicada aos indivíduos.

A norma penal por excelência é aquela que define o crime e comina a pena.

4.2.1 Classificação das normas penais

O Direito Penal é um sistema harmônico de normas jurídicas. Um grupo dessas

normas é composto de regras que definem os comportamentos que são considerados

crimes e estabelecem as penas correspondentes. Não bastam, porém, essas normas.

É necessário, também, que o direito se preocupe com algumas situações

excepcionais, em que certos comportamentos definidos como crimes não podem ser

assim considerados, em razão de peculiaridades que os tornam justificados.

Por exemplo, se “matar alguém” é crime, em certas circunstâncias pode não o ser.

Basta que a pessoa que tira a vida da outra estivesse sendo, no exato momento

antecedente a sua atitude, agredida pela outra, de modo injusto, e tivesse reagido como

única forma de preservar sua própria vida. Não seria justo que o direito não permitisse

ao agredido defender-se por seus próprios meios.

Com base nessas observações e na necessidade de o Direito Penal construir outras

espécies de regras, podem-se classificar as normas penais em dois grandes grupos: o

das normas penais que definem crimes e estabelecem penas e o das normas penais que

não definem crimes, nem cominam penas, respectivamente chamadas de normas

penais incriminadoras e normas penais não incriminadoras.

6 – Direito Penal – Ney Moura Teles

4.2.1.1 Normas penais incriminadoras

São aquelas que definem o crime e cominam a pena. Exemplos:

1. a norma contida no art. 121, caput, do Código Penal: “Matar alguém: Pena –

reclusão, de 6 a 20 anos.”

2. a norma contida no art. 213, do Código Penal: “Constranger mulher à conjunção

carnal, mediante violência ou grave ameaça: Pena – reclusão, de 6 a 10 anos.”

4.2.1.2 Normas penais não incriminadoras

O Direito Penal não se limita a definir o comportamento criminoso e a estabelecer

a pena correspondente. Em algumas situações de fato, o Direito permite ao indivíduo

realizar um comportamento por ele mesmo definido como crime, desde que se

observem algumas condições.

Noutras oportunidades, o Direito, mesmo não permitindo a realização do fato

considerado crime, entende que não deve ser aplicada a pena criminal. Exemplo: os

menores de 18 anos são considerados, pelo Direito Penal, incapazes de cometer crimes.

Para eles, a conseqüência jurídica que o direito reserva é diferente, não a pena, mas

uma medida que visa a sua socialização e educação.

Aquelas e estas situações são reguladas por normas penais não incriminadoras,

que são chamadas pela doutrina de normas penais permissivas. São duas as espécies

de normas penais permissivas.

4.2.1.2.1 Normas penais permissivas justificantes

São as que tornam lícitas, permitidas, justificadas, condutas definidas como

crime. Fatos definidos como crime por normas penais incriminadoras são considerados

lícitos, justos, deixando, de conseqüência, de ser crime.

Exemplo dessas normas é a contida no art. 23 do Código Penal:

“Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II

– em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no

exercício regular de direito.”

Isto significa que, se alguém matar outrem “em legítima defesa”, não terá

havido crime ou, em outras palavras, “matar em legítima defesa não é crime”, porque é

A Lei Penal - 7

permitido pelo Direito Penal.

Outros exemplos se encontram no art. 128, I e II, do Código Penal. Estas são,

portanto, normas penais permissivas justificantes, pois tornam lícitas condutas

definidas como crime.

4.2.1.2.2 Normas penais permissivas exculpantes

A outra espécie é daquelas normas que isentam de pena condutas definidas

como crime não justificadas. Em algumas situações, fatos definidos como crime, não

tornados lícitos por nenhuma norma penal permissiva justificante, devem ser, contudo,

desculpados. Mesmo proibidos, mesmo não justificados, a eles não deve corresponder

uma pena criminal.

Por exemplo, o fato praticado por pessoa doente mental e totalmente incapaz de

compreender seu comportamento. Ou o fato praticado por pessoa capaz que, nas

circunstâncias em que agiu, não tinha nenhuma possibilidade de compreender o real

significado de seu comportamento.

Essas situações serão objeto de estudo, quando for abordada a teoria geral do

crime.

Exemplo dessas normas é a que está contida no art. 26 do Código Penal:

“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental

incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente

incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com

esse entendimento.”

Outros exemplos se encontram nos arts. 27, 28, § 1º, e 21, do Código Penal. Essas

são as chamadas normas penais permissivas exculpantes.

A expressão permissiva, contida na denominação adotada por grande parte da

Doutrina, não é precisa porquanto sugere a idéia de que o fato, na hipótese, é

permitido pelo direito, o que somente ocorre quando se estiver diante de norma

justificante. Esta permite, mas a norma exculpante não permite o fato, apenas o

desculpa.

4.2.1.2.3 Normas penais explicativas

Além das normas permissivas, há outra espécie de normas penais, aquelas que

tornam claras questões penais ou que explicam o conteúdo de outras normas. Quando

8 – Direito Penal – Ney Moura Teles

se analisa a norma do art. 23, vê-se que nela está dito que não há crime quando o

agente pratica o fato em legítima defesa (inciso II).

Mas a norma do art. 23 não esclarece, não explica, o que é a legítima defesa.

Esta é uma questão penal que precisa ser explicada pelo direito.

Por essa razão, no art. 25 está esclarecido o conceito de legítima defesa, com

seus requisitos, assim: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente

dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de

outrem.”

Tal norma não é incriminadora nem permissiva, mas simplesmente explicativa

do conteúdo de outra norma. As demais normas do Código Penal, que não se

enquadrarem nas classificações anteriores, serão explicativas, por conterem o

aclaramento de questões penais ou a explicação de institutos penais ou, ainda, o

conteúdo de outras normas.

4.2.2 Características das normas penais incriminadoras

Entre as características da norma penal incriminadora, que é a norma penal em

sentido estrito, vale ressaltar as seguintes.

A norma penal é exclusiva, porque só ela define o crime e comina a pena. Além

disso, é imperativa, porquanto faz incorrer na sanção aquele que não cumprir seu

mandamento.

Tem, ademais, a característica da generalidade, pois se dirige a todos os

indivíduos, valendo erga omnes. A norma penal incriminadora dirige-se inclusive aos

homens absolutamente incapazes de responder por seus atos, que, mesmo assim, estão

obrigados a obedecê-la. É, ademais, abstrata e impessoal, pois não se dirige a um

indivíduo.

4.2.3 Preceito e sanção

Para obedecer ao princípio da reserva legal, a norma penal incriminadora é

elaborada de modo diferente das demais normas do direito, com uma técnica toda

própria. É constituída por duas partes, bem delimitadas na aparência, em sua forma: o

preceito e a sanção.

O preceito, também chamado preceito primário ou preceptum iuris, está

contido na primeira parte da norma, que é a descrição da conduta proibida, do

A Lei Penal - 9

comportamento que o direito deseja que não ocorra.

No art. 121 do Código Penal, o preceito está contido em: “matar alguém”. Esse

comportamento é proibido. A lei, como se observa, criou o crime de homicídio, e, nela,

implicitamente, está a norma, o comando, a ordem, o preceito, ordenando: “não

matar”.

A segunda parte da norma é a sanção, também chamada preceito secundário ou

sanctio juris. É a conseqüência jurídica da violação do preceito primário, do

descumprimento do mandamento.

A técnica legislativa da norma penal é diferente das demais normas jurídicas,

ficando bem delimitada a conduta que é proibida, o fato que é considerado crime.

A razão é a construção de uma norma clara, exata e precisa, de modo a não

pairarem dúvidas, em atenção ao princípio da legalidade.

4.2.4 Norma penal incriminadora em branco

Já foi visto que a norma penal incriminadora deve ser clara, exata e precisa, de

modo que todos os indivíduos possam saber exatamente qual é o comportamento

proibido, qual a conduta que não deve ser realizada, enfim, qual é o fato que a lei

considera crime.

Veja-se agora o caso das substâncias entorpecentes que causam dependência física ou

psíquica, as famosas drogas. Maconha, cocaína, heroína, LSD, crack são algumas das

conhecidas substâncias que a sociedade considera perniciosas, e cuja comercialização,

fora das normas regulamentares, constitui crime.

A sociedade considera importante proibir a disseminação dessas drogas, e a

saída encontrada foi a de construir algumas figuras de crime, visando a proteger a

saúde pública, com vista em impedir que as pessoas consumissem com facilidade essas

substâncias.

Para obedecer ao princípio da legalidade, caberia ao legislador elaborar leis

proibindo a venda, a entrega, o transporte, enfim, toda e qualquer conduta relativa a

distribuição de todas as substâncias entorpecentes. Ora, elas são centenas e centenas, e

a cada dia novas delas são descobertas, na natureza, ou sintetizadas, nos laboratórios.

Isto significa que, se o legislador tivesse listado todas as substâncias, e uma

nova viesse a ser descoberta, ou sintetizada, seria necessária a elaboração de uma nova

lei, acrescentando à lei anterior o nome da nova substância que devesse ser proibida.

10 – Direito Penal – Ney Moura Teles

Isto demandaria tempo, pois o processo de elaboração de uma lei é demorado.

Enquanto não fosse elaborada, sancionada, publicada e entrasse em vigor a nova lei, a

dita substância poderia ser livremente comercializada ou distribuída. Nesse tempo, da

descoberta da substância e da entrada em vigor da nova lei, o bem jurídico, a saúde

pública, ficaria, com relação a ela, absolutamente desprotegido.

Para resolver problemas como esse e outros, existe uma espécie de norma penal

incriminadora sui generis, a chamada norma penal em branco, cega ou aberta.

Essa norma penal traz a sanção completa, perfeita, pronta e acabada, mas traz

seu preceito primário incompleto, com seu conteúdo indeterminado, o qual se completa

por outra norma jurídica.

Tome-se o exemplo da Lei de Entorpecentes, nº 11.343 /2006. Diz o seu art. 33:

“Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à

venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever,

ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem

autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. Pena –

reclusão, de 5 a 15 anos, e pagamento de 500 a 1500 dias-multa.”

Observa-se que a sanção está completa; todavia, o preceito está indeterminado

ou incompleto, pois não está claro, preciso, exato, o significado de “drogas”.

Sabe-se que os cigarros comuns, legalmente vendidos no país, e sobre cuja

venda o Estado arrecada grande volume de tributos, são drogas, substâncias que

causam dependência psíquica; todavia, como é óbvio, sua comercialização não é

proibida.

Torna-se necessário saber, então, quais são as substâncias que se enquadram no

preceito. Como se afirmou, a norma penal em branco tem preceito que se completa por

outra norma jurídica.

Na mesma Lei n° 11.343 /2006, no parágrafo único do art. 1° está estabelecido:

“Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos

capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em

listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União..”

A norma do parágrafo único do art. 1° esclarece que o preceito do art. 33 será

completado por outra lei, ou por uma norma jurídica elaborada pelo órgão público, que

é a Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA. A norma em branco do art. 33

da Lei nº 11.343/2006 será completada por outra lei ou por uma resolução expedida

pela ANVISA.

A Lei Penal - 11

Todas as substâncias proibidas pela Lei nº 11.343/2006 são relacionadas em ato

administrativo do órgão competente. O problema apontado no início fica superado. Se

uma nova substância vier a ser descoberta, sintetizada, importada, não será necessária

a elaboração de uma nova lei, bastando uma simples resolução ou portaria do órgão

competente, que pode ser expedida imediatamente e, desde que publicada no Diário

Oficial da União, a substância nela relacionada será proibida, tornando-se, a partir de

então, crime sua comercialização, nos termos do art. 33 da Lei n° 11.343/2006.

A norma penal em branco é construída não apenas para resolver situações como

estas, mas, em outros casos também, por exemplo, quando o Direito Penal visa a

proteger o cumprimento de certas decisões administrativas que possam ser necessárias

no futuro. Em casos de calamidade pública ou de grave epidemia, ou outras situações

emergenciais, o Poder Executivo necessita adotar certas medidas e vê-las respeitadas

pelos cidadãos. Desse modo, pode-se entender necessário colocar o cumprimento de

tais ordens sob a proteção do Direito Penal.

Para isso, recorre-se à construção de normas penais em branco como as do art.

268 do Código Penal:

“Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou

propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de 1(um) mês a 1(um) ano,

e multa.”

Esta norma tem seu preceito impreciso, que pode ser completado a qualquer

momento, com a edição de um ato administrativo, emanado do Poder Executivo,

Federal, Estadual ou, mesmo, Municipal. Como se vê, a norma em branco está em

pleno vigor, aguardando seu complemento, que a torna viva e perfeita, pronta para

surtir efeito no mundo.

4.2.4.1 Norma penal em branco em sentido estrito

Chama-se norma penal em branco em sentido estrito aquela cujo complemento

emana de outra instância legislativa, por exemplo um decreto, uma portaria, uma

resolução. Exemplos: art. 33 da Lei n° 11.343/2006, completado por Resolução da

ANVISA; art. 269 do Código Penal, completada por Portaria do Ministério da Saúde;

art. 2º, VI, da Lei nº 1.521, completada por Portaria da Sunab.

4.2.4.2 Norma penal em branco em sentido amplo

Quando o complemento provier de outra lei, chama-se norma penal em branco

12 – Direito Penal – Ney Moura Teles

em sentido amplo, como ocorre com a norma do art. 237 do Código Penal: “Contrair

casamento, conhecendo a existência de impedimento que lhe cause a nulidade

absoluta: Pena – detenção, de três meses a um ano.”

Os impedimentos de que trata esta norma são listados no art. 1.521 do novo

Código Civil.

Neste caso, se houver qualquer mudança na lei civil, acrescentando ou

suprimindo um impedimento que torna o casamento absolutamente nulo, não será

necessária qualquer modificação da norma penal incriminadora.