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A ESTRUTURA DO ENUNCIADO

V. N. VOLOSHINOV (1930)(tradução de Ana Vaz, para fins didáticos 12 )

_____________________________________________________________________________

1. Comunica çã o Social e Intera çã o VerbalNo artigo precedente 3, n ós evidenciamos a natureza social da

linguagem. N ós tamb ém mostramos quais os fatores e for ças que determinamo aparecimento e, em seguida, o desenvolvimento da linguagem, quais sejam,a organiza çã o social do trabalho e a luta de classes . N ós, finalmente,constatamos que o discurso humano é um fen ômeno biface : todo enunciadoexige, para que se realize, a presen ça simult â nea de um locutor e de umouvinte. Toda express ã o ling üí stica de uma impress ã o proveniente do mundoexterior – seja ela imediata ou tenha ela permanecido por longo tempo nasprofundezas de nossa consci ência at é adquirir uma forma ideol ógica maiss ólida e mais constante -, toda express ã o ling üí stica é sempre orientada em dire çã o ao outro, em dire çã o ao ouvinte, mesmo quando este outro se encontra fisicamente ausente. N ós vimos que as express ões as mais simples e maisprimitivas de nossos desejos, at é mesmo a mais fisiol ógica de nossassensa ções, possuem uma estrutura sociol ógica bem determinada.

Tudo isto nos cria a possibilidade de elaborar uma defini çã o delinguagem, a qual n ã o se faz necess á rio retomar, passando-se, assim para umexame mais aprofundado da estrutura do enunciado – quer este perten ça aodiscurso cotidiano ou – n ós o veremos em um segundo tempo -, à literatura.

Nos é necess á rio, sobretudo, reter a id éia de que a linguagem n ã o éalguma coisa de im ó vel, fornecida de uma vez por todas, e rigorosamentedeterminada em suas “regras” e em suas “exce ções” gramaticais. Ela é umproduto da vida social, a qual n ã o é fixa e nem petrificada: a linguagemencontra-se em um perp étuo devir e seu desenvolvimento segue a evolu çã o da

vida social. A progress ã o da linguagem se concretiza na rela çã o social decomunica çã o que cada homem mant ém com seus semelhantes – rela çã o quen ã o existe apenas no n í vel de produ çã o, mas tamb ém no n í vel do discurso . Éna comunica çã o verbal, como um dos elementos do vasto conjunto formadopelas rela ções de comunica çã o social, que se elaboram os diferentes tipos deenunciados, correspondendo, cada um deles, a um diferente tipo decomunica çã o social.

É, portanto, imposs í vel compreender como se constr ói qualquer enunciado que tenha uma apar ência aut ônoma e acabada, se n ã o se oconsidera como um “momento”, uma simples gota no rio da comunica çã o

verbal, cujo movimento incessante é o mesmo que o da vida social e da Hist ória.

1 N.T. com base na tradução francesa de T e!an Todoro! ("La structure de #$%nonc%)& 'ub# cada emT e!an Todoro! & Mikaïl Bakhtin !e principe dialo"i#ue & ar s& Seu #& 19*+. 2

3 O 'resente estudo % o se,undo de uma s%r e de tr-s (fo 'romet do um outro ue #/e dar a cont nu dade&mas ue ama s fo 'ub# cado). O t tu#o ,era# da tr #o, a % "2st # st ca do scurso 4rt st co56 o 'r me rensa o nt tu#a7se "O ue % a # n,ua,em85 e o terce ro "O scurso e sua unção Soc a#5. 4 re! staL teraturn a :c;ba& cr ada e d r , da 'or <or= & na ua# fo 'ub# cada o 'resente ensa o (!o#ume 3& 1930. ' +>7?*) era uma re! sta dest nada a escr tores n c antes. N@s om t mos um certo nAmero de notas uetec am eB'# caçCes de 'a#a!ras ma s d f ce s.

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Mas a comunica çã o verbal em si mesma n ã o é sen ã o uma das muitasformas do vir-a-ser da comunidade social onde ocorre, no n í vel do discurso, a intera çã o (verbal) dos homens que vivem em sociedade. Esta a raz ã o pela qualseria v ã o procurar resolver o problema da estrutura dos enunciados que fazema comunica çã o, sem levar em conta as condi ções reais – isto é, a situa çã o –

que suscitam tais enunciados.Desta forma, somos levados a formular uma ú ltima proposi çã o: a

verdadeira ess ê ncia da linguagem é o evento social da intera çã o verbal e ela se encontra concretizada em um ou v á rios enunciados.

Quanto à s mudan ças nas formas de linguagem, como elas seprocessam? De que dependem elas? Segundo que ordem elas ocorrem? Osdados do artigo precedente nos permitem elaborar um esquema que sintetiza eresponde à s quest ões ora postas:

1. Organiza çã o econ ômica da sociedade.2. Rela çã o de comunica çã o social.

3. Intera çã o verbal4. Enunciados5. Formas gramaticais da linguagem.

Este esquema nos servir á como fio condutor no estudo desta unidadeconcreta, que se destaca da palavra e que n ós chamaremos de enunciado .

Nós n ã o nos deteremos, obviamente, sobre quest ões relacionadas aoestudo das formas e dos tipos de vida econ ômica da sociedade; essas quest õesdizem respeito a outras disciplinas: à s ci ências sociais e, sobretudo, à economia pol ítica.

Nós tamb ém n ã o perderemos tempo examinando os diferentes tipos derela ções de comunica çã o social. Nos ser á suficiente indicar quais s ã o as maissignificativas e as mais freq ü entes dentre elas - com exce çã o de apenas umtipo, ao qual nos nossos trabalhos ulteriores n ós daremos uma aten çã oespecial: a comunica çã o art ística.

Considerando a vida em sociedade, n ós podemos facilmente destacar,al ém da rela çã o da comunica çã o art ística, os tipos de comunica çã o socialseguintes:

as rela ções de produ çã o (nas f á bricas, ateliers, “kolkhozes”, etc.);

as rela ções de neg ócio (nas administra ções, organismos p ú blicos,etc);

as rela ções quotidianas (os encontros e as conversas na rua, nos bares, em suas casas, etc.);

as rela ções ideol ógicas stricto sensu na propaganda, na escola, na ciência, na atividade filos ófica sob todas as suas formas.

O que n ós designamos pelo termo situa çã o , em nosso artigo precedente,n ã o é outra coisa sen ã o a efetiva realiza çã o, na vida concreta, de uma determinada forma çã o, de uma determinada varia çã o da rela çã o de comunica çã o social.

Mas toda situa çã o vivida sup õe, necessariamente, na medida em que ela produz um enunciado, a presen ça de um ou de v á rios atores/locutores. N ós

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daremos o nome de audit ó rio do enunciado, à presen ça necess á ria daquelesque fazem parte de uma dada situa çã o.

Assim, todo enunciado da vida quotidiana comporta – n ós o veremosmais adiante -, junto à sua parte expressa verbalmente, uma parte extra-

verbal, n ã o exprimida mas sub-entendida, formada pela situa çã o e peloaudit ório. Se n ã o se leva em conta este ú ltimo elemento, o enunciado elemesmo n ã o pode ser compreendido.

Ora, o enunciado, considerado como unidade de comunica çã o etotalidade sem â ntica, se constitui e se completa exatamente numa intera çã o

verbal determinada e engendrada por uma certa rela çã o de comunica çã osocial. Deste modo, cada um dos tipos de comunica çã o social que n ós citamosorganiza, constr ói e completa, de modo espec ífico, a forma gramatical eestil ística do enunciado, assim como a estrutura de onde ela se destaca. N ósdaremos o nome de g ê nero a esta estrutura.

Examinemos, agora, o la ço que une cada um desses tipos de

comunica çã o social - as rela ções da vida quotidiana, por exemplo -, ao tipo deintera çã o verbal correspondente.

Nós j á tivemos a oportunidade de observar que a situa çã o e o audit órioobrigam o discurso interior a exprimir-se de uma determinada forma; essa express ã o se integra imediatamente à situa çã o concreta – n ã o exprimida, massubentendida -, e ela pr ópria se completa pelo gesto, pela a çã o, ou pela resposta daqueles que fazem parte da enuncia çã o.

“A quest ã o bem formada, a exclama çã o, a ordem, o pedido, eis asformas mais t ípicas de enunciados da vida quotidiana. Elas todas exigem – e,sobretudo, a ordem e o pedido – um complemento extra-verbal e, tamb ém, um

ponto de início que

é de natureza extra-verbal. Cada um desses pequenosgêneros de enunciados, que ocorrem no quotidiano, pressup õe, para ser

realizado, que o discurso esteja em contato tanto com o meio extra-verbal,como com o discurso do outro.

O modo como uma ordem é formulada, é determinado pelos elementosque podem obstaculizar a sua realiza çã o, pelo grau de submiss ã o encontrado,etc. O g ênero toma, portanto, sua forma “acabada” nos tra ços particulares,contingentes e ú nicos que definem cada situa çã o vivida.

Mas n ã o se pode falar de g êneros constitu ídos, pr óprios do discursoquotidiano, sen ã o se se est á em presen ça de formas de comunica çã o que sejamrelativamente est á veis na vida quotidiana, e fixados pelos modos de vida epelas circunst â ncias.

É desta forma que se pode observar um tipo de g ênero espec íficoconstitu ído nos bate-papos de festas sociais: h á uma conversa çã o superficialque n ã o leva a nada, entre pessoas de um mesmo mundo, onde o ú nico crit ériodiferencial dos que ali participam – o audit ório – é a distin çã o entre homens emulheres. Ali, s ã o elaboradas formas espec íficas de discurso: a alus ã o, o sub-entendido, a repeti çã o de pequenas narrativas conhecidas por todos comofr í volas, etc.

Um outro tipo de g ênero tamb ém é formado na conversa çã o entremarido e mulher ou entre irm ã o e irm ã . Supondo uma fila de espera, na qual

se encontram reunidos, por acaso, pessoas de categorias sociais diferentes, emuma empresa qualquer, ou em qualquer outro lugar, ouvir-se- á , em cada caso,

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declara ções e r éplicas que se distinguem radicalmente umas das outras, emseu princ ípio, seu fim e na estrutura dos pr óprios enunciados que ascomp õem. Os vel órios, as dan ças, as divers ões dos trabalhadores durante oseu intervalo de almo ço, conhecem tipos de g êneros que lhe s ã o pr óprios.

Toda situa çã o da vida quotidiana possui um audit ório, cuja organiza çã oé bem precisa, e disp õe de um repert ório espec ífico de pequenos g ênerosapropriados. Em cada caso, o g ênero quotidiano se adapta à trilha que a comunica çã o social parece lhe ter tra çado – e isto, pelo tanto que ele apresenta de reflexo ideol ógico do tipo, de estrutura, de objetivo e de constitui çã o dasrela ções de comunica çã o social.

O g ênero quotidiano é um elemento do meio social, quer se trate de uma festa, de divers ões, etc. Ele coincide com o meio e ali é limitado e determinadoem todos os seus componentes internos.” 4

2. O Discurso Monol ó gico e o Discurso Dial ó gico

Ao observar o processo segundo o qual se formam estes pequenosgêneros cotidianos, remarca-se que a rela çã o discursiva na qual eles apareceme tomam sua forma acabada se divide em dois momentos: a enuncia çã o, que éo ato do locutor; a compreens ã o do enunciado pelo ouvinte, a qual j á cont émem si elementos de resposta. Com efeito, em condi ções normais, n ós sempreestamos ou de acordo ou em desacordo com o que se diz; e n ós trazemos, via de regra, uma resposta a todo enunciado do nosso interlocutor – resposta quen ã o é necessariamente verbal, podendo consistir em um gesto, um movimentodas m ã os, um sorriso, um franzimento de testa, etc. Pode-se, portanto, afirmar que toda comunica çã o, toda intera çã o verbal, se realiza sob a forma de uma troca de enunciados, isto é, na dimens ã o de um di á logo.

O di á logo – troca de palavras – é a forma mais natural da linguagem.5

Mais que isso: os enunciados, ainda que emanados de um interlocutor ú nico(como, por exemplo, o discurso de um orador, a aula de um professor, omon ólogo de um ator, os pensamentos em voz alta de um homem sozinho) s ã omonol ógicos em raz ã o da sua forma exterior, mas, dada a sua estrutura sem â ntica e estil ística, eles s ã o, na realidade, essencialmente dial ógicos. Éimportante que o escritor tenha consci ência disso, quando ele faz uso domon ólogo para um de seus personagens.

Assim, todo enunciado (pronunciamento, confer ência, etc.) é concebidoem fun çã o de um ouvinte, isto é, da sua compreens ã o e da sua resposta – n ã osua resposta imediata, é claro, uma vez que n ã o se deve interromper um

orador ou um conferencista com observa ções pessoais; mas tamb ém em fun çã odo seu acordo ou seu desacordo, ou, em outras palavras, da percep çã oavaliativa do ouvinte; enfim, em fun çã o do “audit ório do enunciado”. Umorador ou um conferencista experiente sabe perfeitamente levar em conta esta dimens ã o dial ógica do seu discurso; o orador n ã o considera seus ouvintescomo uma massa indiferente, inerte, im ó vel, que o observa sem tomar partido;ao contr á rio, ele sabe que ele tem diante de si um ouvinte vivo e polimorfo. Omovimento de um ouvinte qualquer, sua pose, a express ã o de seu rosto, sua tosse, s ã o, tamb ém percebidos por um orador profissional como um conjunto

4 V. N. Vo#oc/ no!& Marksiz$ i filosof%a %az&ka& o'. D t.& '. 11>711+. Tradução francesa sob o nome deEa=/t neF Mar'is$e et hilosophie du lan"a"e, o'. c t.5 Ver art ,o de L. . Ga=ub ns= (um 'ouco d f c #& % !erdade& 'ara um escr tor n c ante)& na co#et n

uss=aa a rec/$& I& 19J& sob o t tu#o "O d a#o, c/es=o rec/ 5 ( o d scurso d a#@, co).

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de respostas precisas e expressivas que acompanham de um ponto a outro, oseu discurso. 6 E se um orador é freq ü entemente levado, de modo inesperado, a realizar uma digress ã o, a contar um epis ódio divertido ou uma hist ória engra çada, nem sempre é para animar o seu p ú blico; algumas vezes é para sublinhar – digamos, acentuar – uma id éia que ele pode julgar n ã o ter sido

suficientemente remarcada por seus ouvintes. Assim, um orador que se escuta falar é um mau orador; um professor

que n ã o se ocupa sen ã o de suas notas é, igualmente, um mau professor. Elesdesfazem o impacto de suas propostas, eles quebram o la ço vivo, de natureza dial ógica, que os une a seu audit ório e, desta forma, eles pr óprios depreciam osseus pr éstimos.

3. O Car á ter Dial ó gico do Discurso Interior

“Que seja. Estamos de acordo. Admitamos que é bem assim”, podemnos replicar, “mas acontece que, nos exemplos citados, o ouvinte-interlocutor estava, de fato presente; e se n ã o existe nada de surpreendente no fato de que

as palavras do locutor levem em conta essa presen ça, o que ocorre se o locutor est á s ó e n ã o existe ouvinte? É verdade que os pensamentos mais íntimos – advindos do discurso interior ou at é mesmo pronunciados em voz alta -, é

verdade que as proposi ções enunciadas no íntimo da alma sejam, em sua pr ópria estrutura, igualmente orientadas em dire çã o à sociedade? Em dire çã oa um audit ório? Deve-se acreditar que esse discurso solit á rio, endere çado a sipr óprio, n ã o é a mais pura forma do mon ólogo, isto é, um discurso orientadoexclusivamente para o locutor e para mais ningu ém, dependendo apenas deum “estado psicol ógico”?

Nós n ã o hesitamos em afirmar categoricamente que os discursos maisíntimos, eles tamb ém, s ã o inteiramente dial ógicos: eles s ã o atravessados pelasavalia ções de um ouvinte virtual, de um audit ório potencial, mesmo se a representa çã o de tal audit ório n ã o aparece de forma clara no esp írito dolocutor.

Isto foi demonstrado, n ã o apenas nas conclus ões de nosso artigoprecedente, n ã o apenas pelo elemento sociol ógico inerente à consci ência humana, a suas “emo ções” e a sua express ã o. N ã o. Esta determina çã o social -esta determina çã o de classe , (dito de forma mais precisa e franca) - de tododiscurso monol ógico, que se manifesta exteriormente sob um aspecto dial ógico,n ós podemos verific á -la sem recorrer a exemplos liter á rios, mas nos reportandoa nossa pr ópria experi ência, ao nosso di á rio íntimo, a nossas notas de usoprivado, etc.

E, para que nos conven çamos, é suficiente considerar que quando n ósnos pomos a refletir sobre um tema qualquer, quando n ós o examinamosatentamente, nosso discurso interior – que, se estamos s ós, pode ser pronunciado em alta voz -, toma imediatamente a forma de um debate comperguntas e respostas, feito de afirma ções seguidas de obje ções; em suma,nosso discurso se auto-analisa por meio de r éplicas nitidamente separadas emais ou menos desenvolvidas; ele é pronunciado sob a forma de um di á logo .

Esta forma dial ógica aparece claramente quando n ós temos que tomar uma decis ã o. N ós estamos cheios de hesita çã o e n ã o sabemos que partido

6 4 este res'e to& % d !ert do obser!ar o embaraço com'#eto de conferenc stas ou de atores eB'er entesue se a'resentam 'e#a 'r me ra !e d ante de um 'Ab# co tota#mente n! s !e#& m'oss !e# de ser sent do&como % o caso das em ssCes de rKd o.

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tomar. N ós iniciamos uma discuss ã o conosco mesmos, n ós tentamos nosconvencer a n ós mesmos da justeza de tal ou tal decis ã o. Nossa consci ência parece, desta forma, nos falar por meio de duas vozes independentes uma da outra, e cujas propostas s ã o contr á rias.

E, a cada vez, independentemente de nossa vontade e de nossa consci ê ncia, uma dessas vozes se confunde com a que exprime o ponto de vista da classe à qual n ó s pertencemos, suas opini õ es, suas avalia çõ es . Ela se torna sempre a voz que seria a representante mais t ípica do ideal de sua classe.

“Esta a çã o, se eu a pratico, ser á uma m á a çã o” – mas, segundo qualponto de vista? Segundo meu ponto de vista pessoal? Mas, de onde me vemeste “ponto de vista pessoal”, sen ã o da opini ã o daqueles que me educaram, demeus colegas de escola, dos autores dos livros e dos jornais que eu li, dosoradores que eu escutei em confer ências e em salas de aula? Se eu renuncio a esta vis ã o de mundo pr ópria do grupo social ao qual eu pertencia at é ent ã o, éunicamente porque a ideologia de um outro grupo social ter á investido na minha consci ência, a ter á invadido e obrigado ao reconhecimento da legitimidade da realidade social que a produziu.

“Esta a çã o, se eu a pratico, ser á uma m á a çã o” – esta “voz da minha consci ência” deveria, na realidade, fazer compreender o seguinte: “Esta a çã o,se voc ê a pratica, ser á uma m á a çã o do ponto de vista de outras pessoas, ques ã o os mais eminentes representantes da classe social à qual voc ê pertence”.

Pode parecer que este ponto de vista n ã o é percebido como imperativo edefinitivo: n ós podemos, de fato, conceber que a í exista uma discuss ã o, at émesmo pol êmica com este ouvinte-interlocutor invis í vel. Tomemos comoexemplo o caso-limite de uma individualidade em conflito com a sociedade:tanto mais seja grande sua avers ã o, mais suas tentativas de impor seu “eu”individual, sua “vontade pr ópria” – segundo a express ã o de um dos her óis deDosto ïevsky – ser ã o violentas, e mais evidente ser á a forma dial ógica de seudiscurso interior, mais manifesto o ódio em um s ó e mesmo fluxo verbal deduas ideologias, dois pontos de vista de classes que se op õem.

Assim, a avers ã o violenta que qualquer “sabotador” sente em rela çã o à classe prolet á ria, assim como a hostilidade surda por quem é “cidad ã omecanicamente” n ã o exprimem de forma alguma a independ ência ou a auto-afirma çã o livre de suas individualidades. Seus mon ólogos, pronunciados a alta

voz ou in petto , s ã o necessariamente sustentados pela simpatia de supostosouvintes – o p ú blico invis í vel que forma os restos de uma classe totalmentedestru ída. É exatamente segundo o ponto de vista pr óprio deste resto que seconstituem todos os enunciados de suas individualidades: s ã o suas opini õespresumidas, suas avalia ções, que v ã o determinar a entona çã o da voz, seja interior ou n ã o; e v ã o determinar tamb ém a escolha das palavras e sua distribui çã o na organiza çã o de um enunciado concreto. As exclama ções asmais banais pronunciadas mentalmente – por exemplo, para marcar indigna çã o: “Veja s ó voc ê...”; ou para exprimir raiva: “N ã o, saiba voc ê que...” – s ã o endere çadas a um ouvinte virtual – aliado, testemunha simpatizante ou

juiz reconhecido.

Existem, logicamente, casos mais complexos nos quais o discursointerior se exprime por dois caminhos contradit órios, mas sem que um dentre

eles seja dominante; isto se d á quando a individualidade est á dividida e n ã osabe que escolha realizar.

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Situa ções desse tipo, caracter ísticas de certas épocas, testemunham a exist ência de um conflito entre duas classes sociais de igual for ça, e que lutampara ser, cada uma delas, a figura dominante no interior da hist ória futura.Um tal conflito encontra-se, ent ã o, transferido para a arena da consci ência individual.

Resta, ainda, um ú ltimo caso, que é aquele de uma individualidade queperdeu seu ouvinte interior; assiste-se, ent ã o, à dissolu çã o, no interior da consci ência, de todo ponto de vista s ólido e est á vel. O sujeito n ã o possui maisrefer ências e sua conduta social n ã o é sen ã o o efeito de impulsos e detend ências absolutamente contingentes, irrespons á veis e arbitr á rias. Assiste- se, assim, a um fen ô meno de cis ã o de natureza ideol ó gica, da individualidade com o seu meio social; este é o resultado habitual de uma “des-classiliza çã o” do indiv í duo. Em certas condi çõ es sociais particularmente desfavor á veis, quando a individualidade é , desta forma arrancada, do meio social que a nutriu, isto pode a m é dio ou longo prazos conduzir a uma desagrega çã o total da consci ê ncia, à loucura ou à idiotia.

E é a í que se pode observar os conflitos mais violentos entre discursointerior e discurso exterior.

Quando a individualidade vacila fora da vida social, quando o sistema de valores e os pontos de vista familiares s ã o destru ídos, nada mais resta na consci ência que possa representar a express ã o de uma conduta socialprodutiva e ideologicamente justificada por uma inst â ncia superior cuja autoridade seja reconhecida. O mundo de novas palavras e de novassignifica ções, este mundo nascido “das chamas e da luz” revolucion á rias, n ã omenos que o novo modo de ser social, tudo isto restou aqu ém da consci ência,fora do seu campo, e ela n ã o pode assimil á -lo. Quanto à s palavras antigas, elas

deixaram de corresponder à realidade, de constitu írem signos e s ímbolos: a personalidade é deixada à deriva de seus estados de alma, de suas impress õesque s ã o, a esta altura, em sua maioria, estranhas à s express ões ling üí sticasem uso na sociedade. Na medida em que esses estados de alma e essasimpress ões n ã o s ã o mais definidas por um modo de forma çã o e de express ã ode natureza ideol ógica – eles se voltam para as camadas mais baixas da consci ência vivida, as quais fazem fronteira com o estado fisiol ógico doorganismo – eles tendem a se reagruparem em torno de um ú nico centro.

A individualidade é, pois, perdida no mundo social; mas ela sereencontra, ent ã o, no mundo de suas puls ões sensuais, de sua natureza emestado bruto. Tudo se organiza, desta forma, n ã o em torno da vida social e dosseus centros de interesse ditos espirituais, mas em torno da via sexual e doscentros de interesses er óticos. Os per íodos de crise e de decad ência, que s ã oacompanhados de mudan ças profundas no interior das rela ções econ ômicas epol íticas, conhecem este triunfo do “homem animal” sobre o “homem social”.

Tanto mais se penetra profundamente na ideologia da classe condenada, maiseste motivo se refor ça. O sexual torna-se um suced â neo – a contrafa çã o, a falsifica çã o – do social. O amor sob sua forma mais elementar, fisiol ógica, édeclarado valor supremo e seus representantes liter á rios, a consci ência empodrecida da intelig ência burguesa da Europa Ocidental, se esfor ça por promover um “novo” Evangelho: “No in ício era o sexo” (Przibyzewski).

A literatura russa j á deu exemplos perfeitos deste tipo de homem social,onde a individualidade torna-se a presa de uma puls ã o sexual exclusiva edevorante. Estes exemplos, n ós os encontramos, sobretudo, em Dosto é vski (em

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um diferente contexto de classe, evidentemente); n ós os analisaremosfuturamente, quando do estudo da estrutura do mon ólogo e do di á logo na obra liter á ria. Entretanto, n ós consideramos ter sido oportuno nos deter por tantotempo na quest ã o do fundamento dial ógico de todo discurso da vida quotidiana e das suas rela ções com um ouvinte interior virtual ou realmente presente,

porque n ós quisemos dar ao escritor iniciante um esclarecimentorigorosamente materialista e marxista sobre os problemas que s ã ofreq ü entemente abordados sob um â ngulo excessivamente psicologista, talvezabertamente idealista, que falseia a abordagem. O escritor deve compreender as causas e as condi ções sociais que suscitam na vida real as caracter ísticas eas a ções que s ã o de seu interesse. O escritor n ã o deve jamais esquecer, nomomento em que ele elabora seu personagem, que a for ça expressiva da obra liter á ria depende, em larga medida, do que existe de verdade sobre a vida dentro dela.

A impiedosa dial ética dos eventos sociais, o implac á vel encadeamentode causa e efeito, devem ser, tanto na vida como no romance, id ênticos.

4. A Orienta çã o Social do Enunciado

Voltemos, agora, ao nosso objetivo espec ífico.

Nós sabemos que todo discurso é um discurso dial ógico orientado emdire çã o a algu ém que seja capaz de compreend ê-lo e dar-lhe uma resposta, realou virtual. Esta orienta çã o em dire çã o ao “outro”, em dire çã o ao ouvinte,conduz necessariamente a se levar em conta a rela çã o social e hier á rquica queexiste entre os interlocutores. N ós j á mostramos, em nosso artigo precedente,as modifica ções que se produzem na forma do enunciado de acordo com a situa çã o do locutor e do ouvinte, e de acordo com o todo do contexto social doenunciado. N ós propomos chamar de “ orienta çã o social ” do enunciado, esta depend ê ncia do enunciado face ao peso hier á rquico e social do audit ó rio (isto é,tendo em vista a(s) classe(s) social(is) a qual pertence(m) os interlocutores, sua situa çã o financeira, sua profiss ã o, sua fun çã o; ou ainda, como era o caso da R ú ssia anterior à reforma de 1861, em face do n ú mero de camponeses que elespossu íam, seu capital, etc.).

Esta orienta çã o social estar á presente em todo enunciado verbal ougestual – a m ímica, por exemplo -, qualquer que seja a forma que ele adote: omon ólogo – um homem falando para si mesmo – ou o di á logo – duas ou maispessoas participando de uma conversa. A orienta çã o social é precisamenteuma das for ças vivas e constitutivas que, ao mesmo tempo em que organizam ocontexto do enunciado – a situa çã o -, determinam tamb ém a sua forma estil ística e sua estrutura estritamente gramatical. 7

E é justamente na orienta çã o social que se encontra refletido o audit óriodo enunciado, seja ele realmente presente ou simplesmente pressuposto, fora do qual nenhum ato de comunica çã o verbal se desenvolve nem pode sedesenvolver.

O escritor que n ã o cria unicamente os enunciados de seus personagens,mas cria igualmente o seu aspecto exterior, tem interesse em observar queaquilo a que se chama de “boas maneiras” – o modo de comportar-se emsociedade – nada mais realiza do que “ a express ã o gestual da orienta çã o social do enunciado”.

7 N@s teremos a o'ortun dade de conf rmar esta d% a um 'ouco ad ante& ao ana# sarmos um eBtrato de"4mes mortes5 de <o,o#.

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Esta manifesta çã o exterior e f ísica da conduta social – o movimento dasm ã os, a pose, o tom da voz -, que acompanham habitualmente o discurso, é,antes de mais nada, determinado pela considera çã o do audit ório e pela sua avalia çã o. O que significam as “boas maneiras” de Tchitchkov – maneiras que,inclusive, tomam diferentes formas se ele se encontra com Korobotchka, com

Pliouchkine ou com o general Betrichtchev -, sen ã o que elas s ã o a impress ã ogestual de uma constante considera çã o do audit ório, de uma avalia çã o sutil da situa çã o social do seu interlocutor, que s ã o a pr ópria ess ência do seu car á ter erepresentam a condi çã o necess á ria ao sucesso de suas iniciativas?

A palavra, o gesto da m ã o, a express ã o do rosto e a postura do corpos ã o igualmente submissas à orienta çã o e por ela estruturadas; as “m á smaneiras” refletem o fato de que n ã o se leva em conta o interlocutor, refletem a ignor â ncia acerca do la ço social e hier á rquico existente entre o locutor e oouvinte 8, e o h á bito, quase sempre inconsciente, de n ã o se modificar a orienta çã o social dos seus enunciados – sejam expressos em palavra ou emgesto – enquanto as condi ções sociais e o audit ório se encontram modificados.

Esta a raz ã o pela qual o escritor, quando decide dotar um de seuspersonagens de “boas” ou “m á s” maneiras, deve sempre considerar que estasmaneiras n ã o s ã o explic á veis como mero resultado de “algumasparticularidades inatas” ou como express ã o do seu “car á ter”. Pode-se afirmar que, a rigor, o personagem é devedor de sua educa çã o, mas n ã o se podeesquecer que a educa çã o corresponde ao esfor ço por habituar a pessoa a sempre levar em conta seu audit ório – d á -se a isto o nome de “saber secomportar socialmente” -, a exprimir pelo gesto ou pela m ímica, mas de modoconforme e prudente, a orienta çã o social dos seus enunciados.

5. O Lado Extra-Verbal (Subentendido) do Enunciado

Todo enunciado, al ém da sua orienta çã o social, comporta um sentido,um conte ú do . Se é privado deste conte ú do, o enunciado transforma-se em umarranjo de sons que nada significam, e ele passa a n ã o mais caracterizar uma intera çã o verbal. O “outro”, o ouvinte, nada pode fazer: o enunciado permaneceinacess í vel à compreens ã o e deixa de constituir a condi çã o e o meio decomunica çã o ling üí stica. O “poema” de Kroutch ënyck, citado no nosso artigoprecedente, é exatamente o exemplo desse tipo de “enunciado” purificado detodo sentido: “Go osneg ka ïd Mr batul’ba...”, etc. Enunciados deste g ênero s ã o,sem d ú vida, interessantes em raz ã o de sua sonoridade, mas eles nada t êm a

ver com a linguagem stricto sensu , e por tal raz ã o, eles n ã o fazem parte denosso estudo.

Todo enunciado real, verdadeiro, possui um sentido. Mas, se n óstomarmos um enunciado qualquer, dentre os mais freq ü entes – dentre as“frases j á feitas”, por exemplo -, n ós veremos que nem sempre é poss í velcompreender o seu sentido. A maior parte de nossos leitores ter á , certamente,ouvido, e mesmo pronunciado frases tais como: “Que hist ória!”; e, no entanto,ainda que n ós “quebremos a cabe ça”, o sentido de tal enunciado permanecer á obscuro se n ós n ã o conhecermos o conjunto das circunst â ncias nas quais elefoi pronunciado. Pois é de acordo com as circunst â ncias, de acordo com ocontexto, que este enunciado ter á um sentido, a cada vez, diferente.

Deixemos a nossos leitores a miss ã o de buscar, eles pr óprios, exemplos

onde a mesma express ã o verbal – a nossa “Que hist ória!” – possa ter sentidos 8 m'ortante #embrar ue& a u & trata7se de 'ersona,ens de obras # terKr as.

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radicalmente diferentes – significando em um momento estupefa çã o, em outromomento indigna çã o, ou ainda alegria ou mesmo tristeza. Isto significa dizer,em outras palavras, que tal express ã o representar á nossa resposta, nossa r éplica, a situa ções e a eventos totalmente diversos. Quase todas as palavrasde nossa l íngua t êm in ú meras significa ções em fun çã o do sentido do

enunciado por inteiro; sentido que depende, ao mesmo tempo, dascircunst â ncias imediatas que suscitaram o enunciado, e das causas sociaismediatas que est ã o na origem do ato de comunica çã o verbal considerado.

Todo enunciado parece, conseq ü entemente, ser constitu ído de duaspartes: uma parte verbal e uma parte extraverbal.

Nã o esque çamos que o que n ós aqui examinamos s ã o os enunciados da vida quotidiana, fixados – ou em processo de fixa çã o – em g ênerosdeterminados aos quais correspondem.

É apenas ali, nos enunciados mais simples, que n ós encontraremos a chave da estrutura ling üí stica dos enunciados liter á rios.

O que é, ent ã o, a parte extraverbal do enunciado?

Nós a compreenderemos facilmente se considerarmos o seguinteexemplo: “O homem de barbicha grisalha, que se encontrava sentado em uma mesa, disse, depois de um momento de sil êncio: “Pois sim!” O adolescente quese mantinha de p é a sua frente, enrubesceu violentamente, virou-se e deixou olocal”.

O que pode significar este “Pois sim!” ? enunciado lac ônico mas, ao queparece, altamente expressivo. N ós podemos realizar, sob todos os seusaspectos, uma an á lise gramatical; n ós podemos procurar nos dicion á rios todosos sentidos poss í veis desta palavra e, ainda assim, nos ser á imposs í vel

compreender esta conversa çã o.Entretanto, ela foi entabulada de forma plena de sentido; trata-se de

um verdadeiro e completo di á logo, ainda que breve: sua primeira r éplica (verbal) é constitu ída por “Pois sim!”; quanto à segunda parte (extraverbal) doenunciado, ela constitui-se na rea çã o org â nica (o rosto do adolescente que setorna rubro) e no gesto (a sua retirada sem qualquer palavra).

Ent ã o, por que nossa dificuldade?

Porque n ós ignoramos tudo o que constitui a segunda parte(extraverbal) do enunciado, enquanto que é esta que determina o sentido da sua primeira parte (verbal). N ós ignoramos, antes de mais nada, onde e quandose processa tal conversa çã o; em seguida, n ós desconhecemos o seu objeto; e,finalmente, n ós nada sabemos da posi çã o de cada um dos interlocutores emrela çã o a este objeto nem das respectivas avalia ções que eles portam sobre talobjeto.

Suponhamos que estes tr ês componentes da parte extraverbal doenunciado deixem de nos ser desconhecidos; n ós sabemos que o fato ocorreudurante uma prova; o candidato n ã o respondeu a nenhuma das quest ões,ainda que simples, que o examinador lhe prop ôs; este ú ltimo, instalado em seu

bureau, diz “Pois sim!”, com um ar de reprova çã o e uma ponta de compaix ã o;o candidato compreende que o examinador o reprovou, ele sente vergonha, eele deixa a sala.

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Agora, todos os aspectos dissimulados do enunciado – mas que oslocutores conhecem, ainda que se trate de subentendidos – nos s ã o revelados.Este pequeno “Pois sim!”, inicialmente vazio e desprovido de significa çã o,ganha sentido. Ele adquire uma significa çã o perfeitamente determinada pass í vel de – se se deseja -, ser decifrada sob a forma de uma frase

determinada, clara e completa; assim por exemplo, “Voc ê foi mal, muito malmeu camarada! Eu sinto muito, mas eu n ã o posso lhe dar a nota necess á ria”.É exatamente assim que o candidato compreende o enunciado “Pois sim!”, e eleest á de acordo com o que ele significa.

Estes tr ês aspectos subentendidos formam a parte extra-verbal doenunciado - a saber, o espa ç o e o tempo do evento, o objeto ou o tema doenunciado (aquilo de que se fala), e a posi çã o dos interlocutores diante do fato(a “avalia çã o”); n ós convencionamos designar o conjunto assim formado, pelotermo j á familiar de situa çã o .

Nós vemos agora, claramente, que é precisamente a diferen ç a das situa çõ es que determina a diferen ç a de sentidos de uma ú nica e mesma express ã o verbal. A express ã o verbal – o enunciado – n ã o se limita a refletir passivamente a situa çã o; ela constitui, de fato, sua resolu çã o , ela completa a avalia çã o, e ela representa, ao mesmo tempo, a condi çã o necess á ria ao seuposterior desenvolvimento ideol ógico.

Nós propusemos aos nossos leitores operar mudan ças no sentido da express ã o “Que hist ória!”, o que significaria localizar situa ções nas quais talexpress ã o teria, a cada vez, um diferente sentido. Para maior clareza, n ós

vamos mostrar, agora, as mudan ças de sentido que podem ocorrer com a express ã o “Pois sim!”.

Modifiquemos, de in ício, a situa çã o: no lugar de uma sala de aula,consideremos o guichet de um banco. O caixa est á atando, em um pacote,diversas c édulas de dinheiro, provenientes de lucros obtidos por uma pessoa,e, em voz quase inaud í vel, ele pronuncia “Pois sim!”. Nesta nova situa çã o, osentido geral do enunciado n ã o é mais a express ã o de uma reprova çã o, é maisa de uma admira çã o misturada a inveja: “Tem gente que tem sorte! N ã o é todosos dias que se pode ganhar tal import â ncia!”.

Tudo isto nos mostra que a situa çã o tem um papel predominante na forma çã o de um enunciado. Sem o liame que a situa çã o cria entre os locutores,sem uma proximidade do evento que lhes é comum, e sem a posi çã o de cada um face a este evento, as palavras pronunciadas por um seriam inintelig í veispara o outro, destitu ídas de sentidos, desprez á veis. É unicamente porqueexiste alguma coisa de “subentendida” que a comunica çã o e a intera çã o verbalse tornam poss í veis.

Nós voltaremos, posteriormente, ao papel desempenhado pela dimens ã odo subentendido no enunciado liter á rio. Por enquanto, observemos que n ã oexiste enunciado – seja de natureza cient ífica, filos ófica ou liter á ria – que possa abrir m ã o de uma certa parcela de subentendido.

6. Situa çã o e Forma do Enunciado: Entona çã o, Escolha e Disposi çã o dasPalavras.

Nós estabelecemos que o sentido de todo enunciado quotidiano depende

da situa çã o e esta determina, por sua vez, a orienta çã o social em dire çã o aoouvinte que participa da situa çã o. N ós iremos proceder, agora, ao exame da

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forma do enunciado. É evidente que o conte ú do e o sentido de um enunciadon ã o podem se realizar e se concretizar sen ã o dentro de uma forma, sem a qualeles n ã o existiriam. Mesmo nos casos onde o enunciado se apresentassedestitu ído de palavras, restaria, no m ínimo, o som da voz (a entona çã o) ou at émesmo um ú nico gesto. Fora da express ã o material, n ã o existe enunciado e n ã o

existe afeto.Na medida em que n ós nos ocupamos de enunciados verbais , nosso

problema ser á , primeiramente, definir os liames existentes entre a forma verbaldo enunciado, sua situa çã o e seu audit ório. N ós n ã o abordaremos, nomomento, a quest ã o da forma art í stica .

Os elementos fundamentais que organizam a forma do enunciado s ã o a entona çã o (o timbre expressivo da palavra), em seguida a escolha lexical e,finalmente, sua disposi çã o no interior do enunciado como um todo.

Estes tr ês elementos, que servem à constru çã o de todo enunciadointelig í vel – que possui um conte ú do e é socialmente orientado -, ser ã o aqui

examinados de forma sucinta e preliminar; n ós os retomaremos adiante,quando da an á lise, central em nosso estudo, da estrutura do enunciadoliter á rio.

Existe um prov érbio muito comum de que “ é o tom que faz a m ú sica”.Pois bem, é o tom – aqui tomado como entona çã o – que “faz a m ú sica” de todoenunciado – isto é, seu sentido geral, sua significa çã o global. Uma ú nica palavra, uma ú nica express ã o apresenta diferentes significa ções de acordo coma entona çã o que lhe é dada. Uma palavra agressiva pode se transformar emuma palavra gentil e vice-versa: (a) “Espere um pouco, meu querido , e voc ê vai

ver com quantos paus se faz uma jangada”; a afirmativa pode se transformar em uma interrogativa ou em uma exclamativa: (b) “Sim?” e “Sim!”; e a concess ã o pode se tornar reclama çã o: (c) “Desculpe, voc ê est á pisando no meup é!” 9

A situa çã o e seu respectivo audit ório determinam a entona çã o atrav ésda qual se realizam a escolha e a ordena çã o das palavras, fazendo com que oenunciado ganhe sentido pr óprio. A entona çã o desempenha o papel de um guia particularmente sutil e sens í vel no interior das rela ções sociais que, em uma determinada situa çã o, se estabelecem entre o locutor e o ouvinte. N ós j á mostramos, anteriormente, que o enunciado é a resolu çã o da situa çã o e queele completa a avalia çã o; quando n ós assim o dissemos, n ós est á vamospensando, sobretudo, na entona çã o do enunciado. Sem estender excessivamente nossa linha de pensamento, n ós afirmamos que a entona çã o éa express ã o f ônica da avalia çã o social. N ós teremos a chance, no momentooportuno, de demonstrar a import â ncia primordial desta assertiva. Limitemo-nos, no momento, a citar um exemplo que ilustra bem nossa id éia.

“É necess á rio notar que na R ú ssia, se n ós nos encontramos ainda, emcertas coisas, atrasados em rela çã o aos estrangeiros, n ós os ultrapassamos emmuito na arte da formula çã o. É imposs í vel enumerar as nuan ças, as sutilezasde nossa conversa çã o. O franc ês e o alem ã o n ã o compreenderiam jamais todasessas diferen ças e particularidades; se bem que no fundo de seus cora ções elesse curvem diante de um milion á rio, eles lhe falam usando o mesmo tom de voz

9 N.T. Os eBem'#os foram ada'tados 'ara a # n,ua 'ortu,uesa& sendo seus or , na s em franc-sF (a)4ttends um 'eu , $on petit, tu !as !o r de ue# bo s e me c/auffeM56 (b) "Ou M5 et "Ou 856 (c) " ardon&c$est mon manteau5.

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que usam quando se dirigem a um pequeno comerciante de uma lojinha decigarros. Isto n ã o se passa da mesma forma entre n ós. A um dono de 200“â mes” 10 nossos inescrupulosos recitam uma ladainha diversa daquela reservada a um dono de 300 “ â mes”; eles n ã o mant êm a mesma linguagempara um dono de 500 “ â mes” e o acento varia ainda para o portador de 800

“â mes”; avancemos para os milh ões e eles encontrar ã o ainda novas nuan ças.Suponhamos que exista uma empresa – n ã o aqui, mas em outro ponto extremodo mundo. Peguemos um chefe desta empresa; olhemos-no reinar em meio aosseus subordinados: o medo nos deixar á mudos. Seu semblante transmitenobreza e orgulho. Sabe Deus mais o qu ê! Ele poderia posar como umPrometeu! Que exterior majestoso, que postura imponente! Dir-se-ia uma á guia. Mas apenas sa ído de sua sala, com pap éis debaixo do bra ço, para ir aogabinete do diretor, a á guia se faz perdiz. Em sociedade, se as pessoaspresentes lhe s ã o hierarquicamente inferiores, Prometeu permanece Prometeu.Mas basta que ele se encontre diante de um extrato ligeiramente superior, meuPrometeu sofre uma metamorfose que o pr óprio Ov ídio jamais criou: ele setorna uma mosca, menos que uma mosca, um gr ã o de areia! “N ã o pode ser Ivan P étrovitch! - diria voc ê olhando para ele. Ivan P étrovitch n ã o ri nunca, eletem um porte imponente e a voz sempre alta, enquanto que esse franzino ri otempo todo e grasna como um p á ssaro”. Aproxime-se, e voc ê reconhecer á IvanPétrovitch. “Eh, eh!!” sonharia voc ê...”

Neste extrato de “ Ames mortes ”, Gogol mostrou, com precis ã o, a mudan ça brutal de entona çã o que se produz no momento em que a situa çã o eo audit ório do enunciado se modificam. Na R ú ssia da subservi ência, da

burocracia e do poder policial, enquanto tudo o que havia de honestidade, dehonra e de liberdade estava sufocado, a desigualdade social dos homens sefazia sentir de modo particularmente agudo. Esta desigualdade encontrava sua

mais direta express ã o na infinita variedade de nuan ças de entona çã o, indo da arrog â ncia est ú pida ao servilismo degradante. N ã o era apenas a voz, mas todoo corpo do homem que se revestia desta entona çã o – seus movimentos, seusgestos, sua m ímica. Na realidade, “a á guia se tornava perdiz”.

A modifica çã o do audit ório – rela ções de trabalho e rela ções privadas,n ã o mais com subordinados, mas com superiores hier á rquicos – provocou uma mudan ça na orienta çã o social do enunciado. E, como n ós o vemos, isto éimediatamente traduzido na entona çã o (a forma de falar) e na gesticula çã o (omodo de se conduzir). 11 Se, no extrato citado, Gogol houvesse igualmenteintroduzido a express ã o verbal dos enunciados de Ivan P étrovitch, n óster íamos podido constatar que a mudan ça de orienta çã o social, que éconseq üê ncia da mudan ça de situa çã o e de audit ório, n ã o estaria simplesmente refletida na entona çã o, mas tamb ém, atrav és desta, na escolha das palavras e na sua disposi çã o no interior das frases. N ã o esque çamos que a entona çã o representa, antes de tudo, uma avalia çã o da situa çã o e do audit ório.Esta a raz ã o pela qual cada entona çã o exige a palavra que lhe corresponde,que lhe “conv ém”, e ela atribui a esta palavra esse ou aquele lugar no interior da proposi çã o, e à proposi çã o este ou aquele lugar no interior da frase, e à frase este ou aquele lugar dentro do enunciado como um todo.

Em uma outra passagem de “ Ames mortes ”, o da cena na qual Tchitchikov conhece Pliouchkine, n ós encontramos representado, de forma

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N.T. " mes5 'ode ser tradu do 'or a#mas& no sent do de ser!os ou escra!os.11 Lembremos ue as "mane ras5 são a eB'ressão ,estua# da or entação soc a# do enunc ado. eBatamente sto o ue 'ode ser obser!ado no eBem'#o c tado.

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bastante precisa, o processo que conduz à escolha de uma palavra, da palavra que seja a mais apta a descrever as rela ções sociais do locutor e do ouvinte, eque ret ém com grande sutileza todos os detalhes que comp õem o perfil socialdo interlocutor – sua riqueza, seu status, sua posi çã o social, etc. Assim:

“Durante alguns minutos, Tchitchikov permaneceu plantado diante dePliouchkine, silencioso; desconcertado pelo aspecto heter óclito do alojamentodo mestre, ele permanecia incapaz de entabular uma conversa çã o, n ã osabendo em que termos explicar o motivo da sua visita. Ele ia dizer a Pliouchkine que a fama de sua virtude o havia incitado a pagar-lhe,pessoalmente, um tributo sob a forma de homenagens, mas uma ú ltima olhadela no bric- à -brac o convenceu que a palavra virtude seria

vantajosamente substitu ída por ordem e economia . Ele se recomp ôsrapidamente e declarou que tendo ouvido falar do seu esp írito de economia eda sua habilidade em gerir seus bens, ele havia julgado ser bom vir em pessoa assegur á -lo acerca do respeito que lhe tinha. Ele teria podido, sem d ú vida,invocar um melhor pretexto, mas ele n ã o encontrou nenhum outro naquele

momento”. Assiste-se aqui, na consci ência de Tchitchikov, a um debate que diz

respeito à escolha da palavra mais apropriada. Foi-lhe necess á rio avaliar a rela çã o entre, de um lado, a desordem abomin á vel, a sujeira que reinava na casa de Pliouchkine, os trapos repugnantes com os quais ele estava vestido, e,de outro lado, sua posi çã o de propriet á rio de terras imensamente rico,possuindo mais de mil “ â mes”.

Na realidade, Tchitchikov terminou por se restabelecer frente à situa çã o.Compreendendo-a, avaliando-a corretamente, ele conseguiu encontrar uma entona çã o justa e as palavras que lhe correspondem. Dispor estas palavras no

interior de uma frase acabada n ã o passa, ent ã o, de um jogo de crian ça. Dadasa situa çã o e o ouvinte, n ã o se faz nem um pouco necess á rio proceder a uma elabora çã o estil ística particular; é poss í vel se contentar com uma forma deexpress ã o j á feita, generalizante e estereotipada: “tendo ouvido falar de seuesp írito de economia e da sua habilidade em gerir seus bens, ele havia julgadoser bom vir em pessoa assegur á -lo acerca do respeito que lhe tinha”.

7. Estil ística do Enunciado Quotidiano

Em uma outra passagem, Tchitchikov deve resolver um problema quen ã o é apenas da escolha de palavras, mas, sobretudo, o da sua disposi çã o e da constru çã o global de seu enunciado. Seu interlocutor n ã o é mais Pliouchkine,mas o general Betrichtchev. A import â ncia social de Betrichtchev, sua patentede general, seu aspecto imponente, for çam Tchitchikov a construir umenunciado extremamente elaborado. Sem falar da entona çã o de suas frases,provavelmente muito respeitosas e um pouco solenes, a escolha das palavrasque Tchitchikov faz indica a sua vontade de compor um discurso feito determos livrescos, arcaicos, “nobres”.

Em uma tal situa çã o, a determina çã o da escolha das palavras procede,para Tchitchikov, de um princ ípio muito simples: a posi çã o social eminente deseu interlocutor exige o emprego de um vocabul á rio elevado, de palavrasescolhidas, de um estilo igualmente “elevado”, nobre. As palavras que elefreq ü entemente utilizava quando de suas conversas com propriet á rios de

terras de m édia import â ncia e com funcion á rios subalternos lhe parecem,neste momento, inadmiss í veis. E n ã o se trata unicamente das palavras. A

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disposi çã o destas deve ser particular, ele deve procurar no discurso umencadeamento regular, ritmado, ou seja, dar-lhe um car á ter musical e po ético.Nã o é suficiente expor de forma clara e simples seu pensamento: é necess á rioorn á -lo com compara ções, flore á -lo com express ões escolhidas, elaborar uma esp écie de obra de arte, como se fossem versos.

“Com a cabe ça respeitosamente inclinada... ele profere: Pleno derespeito pela virtude dos bravos que salvaram a p á tria nos campos de batalha,foi-me um dever apresentar-me a Vossa Excel ência”.

Esse pre â mbulo pareceu satisfazer ao general. Ap ós uma inclina çã o decabe ça das mais indulgentes, ele diz:

“Encantado por conhec ê-lo. Venha sentar-se. Onde o senhor serviu?

- Minha carreira come ça nas finan ças, respondeu Tchitchikov,sentando-se em uma poltrona, n ã o no seu interior, mas atravessado, com o

bra ço apoiado sobre o bra ço da poltrona. Ela se seguiu por in ú meros lugares:em tribunais, alf â ndegas, at é mesmo numa empresa de constru çã o. Minha

vida, Excel ência, pode ser comparada a um navio vagando sobre ondas.Envolto, encoura çado de paci ência, por assim dizer, a encarna çã o da paci ência. Quanto aos inimigos que atentaram contra minha vida, nem aspalavras, nem as cores, nem mesmo os pinc éis poderiam dela dar uma id éia,de modo que no decl ínio de meus dias, se ouso assim me exprimir, tudo o queeu procuro é um recanto onde possa passar os dias que de vida me restam”.

Quais s ã o os tra ços mais caracter ísticos na constru çã o de taisenunciados? N ós deixamos de lado a subst â ncia do discurso de Tchitchikov,que se destaca do conjunto da obra; n ós n ã o consideramos sen ã o a forma, semesquecer nossa suposi çã o que faz dele, n ã o uma obra liter á ria – cuja estil ística ser á estudada posteriormente - mas um enunciado real, emitido por umpersonagem real, em circunst â ncias reais.

O procedimento que consiste em analisar um enunciado liter á rio comose se tratasse de um enunciado quotidiano e atestado na hist ória é,evidentemente, perigoso de um ponto de vista cient ífico, e ele n ã o pode ser utilizado sen ã o excepcionalmente. Mas face à aus ência de um registro gravado,que nos teria fornecido um documento aut êntico sobre a conversa çã o depersonagens vivos, é necess á rio recorrer ao material liter á rio, levando emconta, naturalmente, sua natureza espec ífica.

Consideremos, portanto, no momento, que a fic çã o que reflete a vida é a vida ela pr ópria, sem nos ocuparmos da quest ã o de saber se existemsemelhan ças entre a realidade art ística de Ames mortes e a realidade hist órica da vida na R ú ssia nos anos 1820-1830. Admitamos que tenha chegado a nossas m ã os, um s éculo depois, a conversa çã o entre um personagemextremamente digno, consider á vel e imponente, o general Betrichtchev, e umoutro personagem, menos importante, o conselheiro do Col égio Tchitchikov.

Para ser fiel a este esquema, n ós dever íamos, inicialmente, verificar a rela çã o de depend ência existente entre o conjunto da situa çã o econ ômica epol ítica na R ú ssia à quela época e o tipo de comunica çã o social que n óssubmetemos à an á lise. Mas, n ós n ã o podemos proceder assim, pois istoimplicaria passar da economia e da pol ítica reais a um tipo de comunica çã osocial tal como ela é representada em uma obra liter á ria . N ós podemos,entretanto, sem risco de errar, supor que a rela çã o de depend ência que existeentre a “infra-estrutura” econ ômica - a base econ ômica da sociedade e o tipo

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de comunica çã o quotidiana reproduzida no “poema” de Gogol, é medida segundo a import â ncia que ela teria tido na vida real; n ós diremos a mesma coisa da rela çã o de depend ência existente entre um tipo de comunica çã oquotidiana e o modo de intera çã o verbal ali inscrito.

Resta-nos, pois, demonstrar como uma situa çã o e um audit ório dadosencontram sua express ã o na constru çã o de um g ênero quotidiano j á determinado e acabado: o di á logo entre dois personagens situados emdiferentes escalas da hierarquia social que s ã o apresentados um ao outro.

A situa çã o e o audit ório determinam, n ós j á o dissemos acima, a orienta çã o social do enunciado e, obviamente, o sujeito da conversa çã o. A orienta çã o social, por sua vez, determina a entona çã o da voz e a gesticula çã o,que dependem, por seu turno, do sujeito da conversa çã o, e onde encontramsua express ã o tanto a rela çã o do locutor com a situa çã o dada e com o ouvinte,como a avalia çã o que o locutor faz destes dois ú ltimos termos.

Mas qual é o conte ú do, a subst â ncia tem á tica dos enunciados de

Tchitchikov? O extrato citado comporta dois temas: primeiro tema, “a exposi çã o dos motivos de minha visita”; segundo tema, “a descri çã o de minha vida”.

Esses dois temas s ã o modulados segundo entona ções de respeito ehumildade extremas. É verdade que n ós apenas podemos supor as entona çõesde Tchitchikov: elas n ã o s ã o dadas com o “discurso do autor”, que interv émnas proposi ções de seus personagens. Entretanto, se n ós consideramos asindica ções presentes no “discurso do autor” sobre o que exprime de modogestual a orienta çã o social dos enunciados de Tchitchikov (“a cabe ça respeitosamente inclinada... sentando-se em uma poltrona, n ã o no seuinterior, mas atravessado, com o bra ço apoiado sobre o bra ço da poltrona”),

n ós podemos assegurar que a entona çã o de Tchitchikov correspondeperfeitamente a esta “ á guia que se faz perdiz”.

A escolha das palavras é feita em harmonia com tal entona çã o.Inicialmente, n ós j á o remarcamos, s ã o palavras livrescas e “nobres” quedominam. Notar-se- á , em seguida, a freq üê ncia de palavras e express ões com“valor descritivo” que substituem os termos usualmente utilizados para designar esse ou aquele objeto. Finalmente, pode-se remarcar a aus ência quase total do pronome “eu”.

A primeira troca de r éplicas entre Tchitchikov e o general Betrichtchev desvela por si mesma as verdadeiras rela ções sociais que existem entre os

interlocutores e que determinam o estilo das suas proposi ções. É verdade que Tchitchikov n ã o tem muita possibilidade de proceder, em sua r éplica, a uma escolha extensa e original de palavras. Um g ênero de comunica çã o quotidiana deste tipo – g ênero historicamente constitu ído e acabado – n ã o deixa, de fato,sen ã o um pequeno espa ço para varia ções livres. Tchitchikov consegueintroduzir nuan ças nas f órmulas tradicionais de apresenta çã o - verdadeirosclich ês -, e transform á -las n ã o apenas sob o plano sem â ntico, mas tamb émgramatical, de tal modo, que a dist â ncia social entre os interlocutores é ainda mais sublinhada pela ú nica express ã o verbal ali formulada.

A inten çã o estil ística de Tchitchikov consiste, portanto, em, sobretudo,construir seu enunciado de modo que a sua pessoa apare ça o menos poss í vel e

se torne apenas percept í vel. O sentido literal de sua primeira frase é, por

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exemplo: “Vossa Excel ência! Eu acreditei ser meu dever me apresentar, uma vez que eu sinto um profundo respeito... etc.”

O que se torna esta frase em Tchitchikov? Ele omite o pronome pessoal,emprega o verbo no passado e encurta a frase substituindo o ap óstrofo por umcomplemento de objeto indireto: “ Ce m’a é t é un devoir de me presenter à votre Excelence.. .” (“foi-me um dever apresentar-me a Vossa Excel ência...”).

O resultado é uma curiosa marca sem â ntica que sublinha a insignific â ncia de Tchitchikov e a import â ncia consider á vel de seu interlocutor;a frase adquire, assim, um sentido ligeiramente diferente, o qual poderia ser expresso da seguinte maneira: “Acreditou-se ser seu dever apresentar-se...”.Por que o uso da part ícula “se”? simplesmente porque Tchitchikov é ainda desconhecido do general e n ã o tem porque se fazer conhecido: “ É necess á rioque sejam conhecidos o nome e o sobrenome de um homem que n ã o sedistinguiu por grandes virtudes?”, pergunta o mesmo Tchitchikov um poucoadiante. E por que Tchitchikov diz ainda “me foi um dever” em lugar de dizer “eu acreditei ser meu dever”? Simplesmente porque à fraca luz da consci ência que se tem de um tal dever sup õe que se pense nele como algo j á cumprido. Eeis que o feliz evento se realiza, n ã o mais apenas em pensamento, mas na realidade: ele, um desconhecido, encontra-se ali, diante de um personagem da mais alta import â ncia, e ele espera respeitosamente o resultado de sua ousada iniciativa.

Tamb ém a f órmula verbal estereotipada de apresenta çã o, utilizada por Tchitchikov, adquire um sentido novo; ela adquire novas cores estil ísticas e ela reflete, com em um espelho, as rela ções sociais hierarquizadas que existementre os interlocutores. E se n ós conseguimos perceber todas estas novasnuan ças de seu pensamento, se n ós pudemos compreend ê-las e p ô-las em

evid ência, foi gra ças ao conhecimento da parte extra-verbal do enunciado. Vamos, ent ã o, ainda mais longe. Pode parecer que a empreitada levada

a cabo por Tchitchikov seja mesmo excessivamente audaciosa. Parece,portanto, indispens á vel dar-lhe de imediato um fundamento e uma

justifica çã o. Este é exatamente o objeto da frase seguinte, onde n ã o seencontra qualquer alus ã o gramatical à pessoa do locutor; seria, realmente fora de lugar por em evid ência sua pr ópria exist ência pelo emprego intempestivo dopronome pessoal, sobretudo numa frase prolixa como: “Pleno de respeito pela

virtude dos bravos que salvaram a p á tria... me foi um dever apresentar-me...”Dada a posi çã o social ocupada por Tchitchikov em rela çã o ao seu interlocutor,seus enunciados devem ser igualmente marcados pela discri çã o, brevidade e

eleva çã o de estilo, e n ã o podem deixar de suscitar a consci ência de estar na presen ça do general Betrichtchev em pessoa! Tchitchikov é um penetra, umaventureiro enganador e inteligente: ele n ã o sabe sen ã o bem se equilibrar sobre a corda da sensibilidade de seus interlocutores. A frase que elepreparara, longa e relativamente desenvolta, encurta-se rapidamente: ospronomes pessoais desaparecem, a designa çã o precisa dos objetos ésubstitu ída por express ões descritivas: “Cheio de respeito...”, por que? Pela coragem? N ã o, é claro, pela “virtude”. A virtude de quem? Dos generais? N ã o,dos “bravos”. Que bravos? Aqueles que defenderam a R ú ssia? N ã o, aqueles“que salvaram a p á tria”. Onde? Nas batalhas? N ã o, “nos campos de batalha”,

Estas raz ões podem parecer, assim, suficientes para justificar a a çã oaudaciosa de Tchitchikov, tanto mais que elas s ã o formuladas com gra ça econvic çã o – do ponto de vista de Tchitchikov e do general, exclusivamente, é

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claro. E porque a proposi çã o que fecha este fragmento renasce sob um novodia, por meio da repeti çã o a primeira frase de Tchitchikov “me foi um dever...”alcan ça um novo grau com a introdu çã o da palavra “pessoalmente”. Esta palavra “pessoalmente”, cuja apari çã o é cuidadosamente preparada pela exposi çã o de todos as raz ões que tem Tchitchikov para se apresentar desse

modo, sugere a possibilidade de uma passagem, ou de uma transfer ência, doconjunto do enunciado para um outro plano que seria aquele das rela çõesmais pessoais e mais diretas. A resposta do general, com efeito, apesar de seucar á ter lac ônico, breve e estereotipado – dada a orienta çã o social em dire çã o a um interlocutor de status menos elevado – indica, entretanto, por sua entona çã o amig á vel que a manobra verbal de Tchitchikov surtiu efeito. O tema “exposi çã o dos motivos de minha visita” pode, assim, ceder lugar ao tema “hist ória de minha vida”. No enunciado que se segue, Tchitchikov pode, a partir desse momento, dirigir-se diretamente ao general, fazendo do seu t ítuloum complemento de objeto indireto, e introduzindo no seu discurso um certon ú mero de pronomes possessivos: minha carreira, minha vida, etc.

O desenvolvimento do segundo tema faz igualmente uso de um l é xicolivresco e envelhecido ( techenie ono ï ), de express ões descritivas carregadas, decompara ções – por exemplo, “Minha vida... pode ser comparada a um navio

vagando sobre ondas...” – e de met á foras – “no decl ínio de meus dias”, para referir à velhice.

Mas se estas met á foras e estas compara ções s ã o excessivamente vivas,elas correm o risco de marcar a singularidade individual do estilo de

Tchitchikov, de parecerem um pouco adocicadas, e, desta forma, chamar excessivamente a aten çã o sobre a pr ópria pessoa do locutor. Raz ã o pela qual

Tchitchikov as atenua atrav és de f órmulas restritivas, como se ele buscassedesculpar-se junto a seu interlocutor: “Envolto, encoura çado de paci ência, por assim dizer , a encarna çã o da paci ência... de modo que no decl ínio de meusdias, se ouso assim me exprimir...”

Todos estes procedimentos n ã o s ã o, obviamente, para construir uma frase. A entona çã o que exprime a orienta çã o social contribui apenas na determina çã o de crit érios estil ísticos segundo os quais palavras e express õess ã o escolhidas, mas elas n ã o se limitam a lhe atribuir um ou outro sentido, ela indica igualmente o seu lugar no conjunto do enunciado e os distribui.

Nesta perspectiva, um papel particularmente interessante é dado aot ítulo do general, isto é, à s palavras “Vossa Excel ência”. Em um primeirosentido, trata-se da forma de tratamento utilizada para dirigir-se a uma pessoa

portadora do t ítulo de general e ela deveria estar situada no in ício da frase.Entretanto, seguindo um h á bito fortemente presente na conversa çã oquotidiana, tem-se a tend ência a coloc á -la seja no fim da frase, seja no meiodela, ou, o que é mais comum, depois da primeira proposi çã o. Ora, Tchitchikov coloca estas palavras sempre ao fim da frase; por conseguinte, como elasrecortam a massa verbal em seq üê ncias distintas, estas palavrasdesempenham um certo papel na composi çã o do enunciado: elas constituemcomo que acordes finais das seq üê ncias de enunciados. Elas v êm inicialmenteterminar uma frase breve: “me foi um dever...”; em seguida, uma frase maislonga: “respeitando...”; enfim, na passagem narrativa, a dist â ncia entre taispalavras se torna cada vez maior.

O recurso a tal procedimento é, para n ós, inteiramente explic á vel em Tchitchikov. As palavras “Vossa Excel ência” sublinham, antes de mais nada, a

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significa çã o social e hier á rquica da parte extra-verbal do enunciado. Tantomais a situa çã o se desenvolve, mais estas palavras se encontram acentuadase, progressivamente, a massas verbais destinadas à percep çã o avaliativa dogeneral ganham amplitude.

Essas massas verbais fluem com uma grande regularidade, uma grandequalidade r ítmica, excluindo qualquer monotonia. O discurso de Tchitchikov searticula em v á rias partes desiguais que acabam, cada uma delas, pelaspalavras “Vossa Excel ência”. Elas exigem, desta forma, por meio do lugar queocupam na composi çã o do conjunto, esta esp écie de parada do fluxo orat ório, a que se d á usualmente o nome de pausa.

Nós n ã o temos ainda o direito de nos deter nos problemas da r ítmica dodiscurso prosaico; entretanto, n ós examinaremos uma particularidadeestil ística que caracteriza o modo pr óprio a Tchitchikov de “arrumar” aspalavras em seu discurso.

A acentua çã o do ritmo no movimento de cada frase – no tema

“exposi çã o dos motivos de minha visita” – ou de cada grupo de frases queparticipam de um mesmo desenvolvimento sem â ntico – no tema “hist ória da minha vida” – encontra um tipo de acabamento e de repouso nas palavras“Vossa Excel ência”, que constituem o que n ós chamaremos, daqui por diante,de retomada verbal ou “refr ã o”.

A fun çã o deste refr ã o é sublinhar o fato de que o discurso éconstantemente orientado em dire çã o ao interlocutor – um interlocutor que,por sua fun çã o hier á rquica, é um superior. Mas esta orienta çã o leva em conta a situa çã o e, ao mesmo tempo, o tipo de intera çã o verbal, o g ênero desta conversa çã o; n ã o se trata de um relat ório, nem de uma presta çã o de contas,nem de uma peti çã o dirigida a um general, mas de uma situa çã o que consisteno seguinte: Sua Excel ência, o general Betrichtchev, consentiu em estabelecer uma conversa çã o com um simples mortal, uma pessoa insignificante, umqualquer chamado Tchitchikov. Uma situa çã o diferente teria suscitado umgênero diferente e a frase em seu conjunto teria sido composta de outra maneira; as palavras “Vossa Excel ência”, n ã o seriam presentes no fim da frase,marcando, desta forma o acabamento de seu movimento r ítmico, mas no seuin ício, como um pre â mbulo e n ã o mais como um refr ã o. O g ênero, assimdeterminado por uma situa çã o diferente – aquela, por exemplo, pr ópria a uma presta çã o de contas ou a um relat ório – teria exigido uma entona çã o diversa,mais seca e mais oficial. Esta situa çã o teria igualmente motivado a presen ça deoutros crit érios na escolha e na distribui çã o das palavras; em s íntese, a

colora çã o estil í stica de toda a frase se encontraria modificada, pois o g ênero da presta çã o de contas ou do relat ório, que é determinado por um outro tipo derela çã o de comunica çã o social, n ã o teria tornado poss í vel uma distribui çã or ítmica de palavras similares à quelas que n ós encontramos nos enunciados de

Tchitchikov.

Na situa çã o presente, em revanche, esta r ítmica, um pouco sublinhada e artificial, é inteiramente cab í vel. Recebido privativamente pelo general,

Tchitchikov deve se esfor çar em seduzi-lo pelo refinamento de suas maneiras,por sua intelig ência, por seu dom ínio da arte de falar – o que ele consegue

brilhantemente. *

Nós tentamos mostrar o mais claramente poss í vel a originalidade estil í stica do enunciado quotidiano de Tchitchikov, com sua entona çã o elogiosa

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e insinuante, com seu vocabul á rio cuidadosamente escolhido a fim de agradar seu interlocutor.

Esta originalidade estil í stica é inteiramente determinada por momentospuramente sociais: a situa çã o e o audit ório do enunciado.

Nós devemos permanecer aqui por enquanto.

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N@s om t mos a u uma 'K, na do or , na#& consa,rado anK# se do r tmo de duas frases no d scurso deTc/ tc/ =o!.

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