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1 Você já deixou de bater no seu filho? Maria Amélia Azevedo Pedagoga/FEUSP Advogada/FDUSP Doutora em Educação/FEUSP Livre Docente e Titular/IPUSP Fonte: Azevedo, M.A. e Guerra, V. N. de A. [2005] – Palmada já era! S. Paulo: Ed. dos Autores Bater em um animal se chama crueldade. Bater em um adulto se chama agressão. Bater em uma criança se chama ‘educação’? Anônimo Fonte: Maurel, O. – La Fessée, France, La Plage, 2001

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Você já deixou de bater no seu filho?

Maria Amélia Azevedo Pedagoga/FEUSP Advogada/FDUSP

Doutora em Educação/FEUSP Livre Docente e Titular/IPUSP

Fonte: Azevedo, M.A. e Guerra, V. N. de A. [2005] – Palmada já era! S. Paulo: Ed. dos Autores

Bater em um animal se chama crueldade.

Bater em um adulto se chama agressão.

Bater em uma criança se chama ‘educação’?

Anônimo

Fonte: Maurel, O. – La Fessée, France, La Plage, 2001

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Em 2001, coordenando com a Dra. Viviane Nogueira de Azevedo Guerra uma ampla

Campanha (nacional e internacional) pela abolição da punição corporal de crianças e

adolescentes, escrevi o que se segue.

“No ano 2000 comemoramos 500 anos da descoberta do Brasil. Foi um momento

oportuno para fazermos algumas perguntas sobre assuntos a respeito dos quais você sempre

teve tempo para parar e pensar.

Por exemplo, sobre a questão de bater nos filhos.

Você sabia que nossos índios não costumavam bater nos filhos?

Diferentes relatos de padres comprovam isso. Grã (1554) afirmou que não tem pai que

jamais acoite o filho e Cardim (1591) reafirmou que os índios nenhum gênero de castigo têm

para os filhos; nem há pai nem mãe que em toda vida castigue nem toque em filho...

Segundo estudiosos concluíram, os índios brasileiros não tinham o costume de castigar

fisicamente os filhos. Foram os padres jesuítas e capuchinhos que introduziram o castigo

físico como forma de disciplinamento das crianças no Brasil.

Ao longo dos cinco séculos de nossa História, as crianças vêm sendo disciplinadas em

casa através de:

a) SURRAS aplicadas com varas (de marmelo, açaí, etc), rabo de tatu, chicote, cinturão,

tamancos, chinelos, etc;

b) PALMATÓRIAS;

c) COCRES na cabeça;

d) PUXÕES de orelha;

e) PALMADAS etc. etc.

Você duvida? Então, leia este relato autobiográfico deixado pelo escritor Humberto de

Campos Veras, nascido em Miritiba, Maranhão, no ano de 1886:

Outra cena remota que me ficou na memória deve a sua duração e fixidez à surra que a

assinalou. Era ainda em nossa casa antiga, devendo eu ter, por isso, uns quatro anos. Eu tinha

ouvido dizer, nas conversas de cozinha a que assistia, que a urina humana era excelente remédio

não sei para quais enfermidades. Eu resolvi aplicar a receita enchendo uma cuia e forçando

minha irmã pequenina a ingerir tão repugnante medicamento. Surpreendido no exercício ilegal

da Medicina, fui multado em uma dúzia de chineladas – fato que me intrigou por muito tempo,

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contribuindo para aumentar a revolta surda que já fermentava no meu entendimento. Então, o

que as pessoas grandes recomendavam umas às outras, as crianças não podiam fazer?

Fonte: Jackson, W.M. (1947). Memórias: primeira parte: 1886-1900. Rio de Janeiro.

Hoje, passados cerca de 100 anos, ainda continua sendo verdade que inúmeras

crianças costumam apanhar em suas casas.

É bem verdade que castigos imoderados e cruéis estão proibidos pelo ECA (Estatuto da

Criança e do Adolescente, promulgado em 1990), mas é igualmente verdade que os castigos

considerados “leves” como a palmada, o tapa limitador (o tapinha no bumbum) continuam a

ser praticados e defendidos por muitos.”

(Cf Azevedo, Maria Amélia e Guerra, Viviane N. de A. [2001] Mania de Bater / A Punição

Corporal Doméstica de Crianças e Adolescentes no Brasil. S. Paulo: Iglu Editora, p. 392-393).

...

É preciso lembrar que, quase 15 anos do ECA, tramitou na Câmara Federal o Projeto de

Lei 2654/2003 (redigido por advogados de direitos humanos e pelas Dras. Maria Amélia

Azevedo e Viviane Nogueira de Azevedo Guerra, que coibia o uso de punição corporal nas

relações pais e filhos). Tal Projeto foi aprovado em todas as Comissões da Câmara e em

dezembro de 2005, quando se preparava para ir ao Senado, foi barrado por dois deputados

que pretendiam submetê-lo a uma ampla discussão no Plenário. Esta discussão não ocorreu.

Muito tempo depois, foi sancionada a 27/06/2014, pela Presidência da República, a Lei

13.010/2014, apelidada de Lei da Palmada (apesar de esta sequer ser mencionada). Trata-se

de um texto diverso do que fora preparado anteriormente e, bastante EMPOBRECIDO, em

termos conceituais.

A comparação entre o Projeto de Lei de 2003 e a Lei de 2014 pode ser feita,

consultando-se os ANEXOS a seguir.

Apesar do marco legal agora em vigor creio poder continuar repetindo aos pais de hoje

e de amanhã a pergunta que fiz aos pais de ontem:

VOCÊ JÁ DEIXOU DE BATER NO SEU FILHO?

...

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ANEXO 1

O Projeto de Lei de 2003

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PROJETO DE REFORMA LEGAL NA ÁREA DA ABOLIÇÃO DA

PUNIÇÃO CORPORAL DOMÉSTICA DE CRIANÇAS E

ADOLESCENTES REDIGIDO E APRESENTADO PELO LACRI –

LABORATÓRIO DE ESTUDOS DA CRIANÇA/IP-USP A 2/12/2003.

Proponente na Câmara Federal: Deputada Maria do Rosário – PT/RS.

Este projeto, quando foi entregue à Deputada, foi também acompanhado de 243.817

assinaturas de brasileiros(as) a ele favoráveis. Tais assinaturas foram colhidas pelo LACRI

em território nacional e com a colaboração de alunos do Telecurso de Especialização na área

da VDCA.

Este projeto nunca foi a Plenário, sendo posteriormente substituído pela Lei Menino

Bernardo que foi aprovada.

AUTORES:

Dra. Maria Amélia Azevedo

Advogada

Pedagoga

Livre Docente em Psicologia

Professora Titular de Psicologia da USP/IPUSP

Dra. Viviane Nogueira de Azevedo Guerra

Assistente Social

Mestre e Doutora em Serviço Social

Pesquisadora do LACRI/IPUSP

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APOIO:

SAVE the CHILDREN Sweden

“ A verdadeira viagem de descoberta não consiste em procurar novas paisagens mas em possuir novos olhos”

PROUST

“ O uso da punição corporal doméstica por adultos reflete uma ausência de reconhecimento do que preconiza a Convenção sobre os Direitos da Criança enquanto um sujeito de Direitos Humanos. Se desejamos nos manter fiéis ao espírito desta Convenção – fortemente ancorada na dignidade da criança como detentora de direitos – então, qualquer ato de violência contra ela deve ser banido, de acordo com os artigos 19 e 28.2 desta Convenção.”

Sra. MARY ROBINSON

EX-COMISSÁRIA DO ALTO COMISSARIADO DOS DIREITOS HUMANOS

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Por que abolir no Brasil a punição corporal doméstica

de crianças e adolescentes?

Dra. Maria Amélia Azevedo

Dra. Viviane N. de A. Guerra

Que criança ousará, e em que excepcionais condições, empurrar um adulto, puxá-lo, bater nele? Ora, bater numa criança é coisa corriqueira e inocente, como também puxá-la com força pela mão, ou apertá-la duramente num abraço carinhoso.

Janusz Korczak

O direito da criança ao respeito

”O reconhecimento e a proteção dos direitos do homem são as bases das constituições democráticas modernas”.

“Apenas teremos paz estável quando as pessoas forem consideradas cidadãs do mundo e não cidadãs de um Estado”.

“Os direitos naturais são direitos históricos, porque nasceram em circunstâncias particulares, marcadas por lutas para a defesa de novas liberdades contra os velhos poderes, gradativamente. Nasceram no início da Idade Moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade, tornando-se um dos principais indicadores do progresso histórico. São os direitos da primeira geração.”

“Temos também os direitos da segunda geração. A educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e a infância, a assistência médica aos desamparados.”

“Na terceira geração, os direitos apresentam ainda características muito heterogêneas para que se possa agrupá-los com clareza, sendo um dos mais importantes o direito de se viver num ambiente não poluído.”

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“Mas novas experiências já são apontadas pela atualidade, os chamados direitos de quarta geração, que dizem respeito aos efeitos cada vez mais assombrosos da manipulação do patrimônio genético de cada indivíduo. Quais serão os limites dessa possibilidade?”

“Mais uma vez percebemos que os direitos não nascem todos de uma vez, mas nascem quando devem e podem nascer”

(Bobbio, Norberto – A IDADE DOS DIREITOS. In CONDEPE – Municipalização - Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, Imprensa Oficial, SP, s/d).

A pergunta título do presente texto pode ter várias respostas, visto tratar-se de questão extremamente polêmica.

De maneira sucinta podemos arrolar algumas delas.

1º. – Porque punição corporal de crianças e adolescentes é VIOLÊNCIA e toda VIOLÊNCIA implica num padrão assimétrico de relações de poder em que o mais forte (adulto) acaba objetalizando os mais fracos (crianças e adolescentes).

A literatura científica mais moderna, sobretudo a do final dos anos 80, vem enfatizando com veemência que “toda ação que causa dor física numa criança, desde um simples tapa até o espancamento fatal representam um só continuum de violência” (Newell, P. – Children are people too – The case against physical punishment, London, Bedford Square Press, 1989).

2º. – Porque toda e qualquer punição corporal – para ter o caráter de castigo – “deve necessariamente implicar o conceito de DOR FÍSICA” (Guerra, V.N.A. – Violência de pais contra filhos: a tragédia revisitada, SP, Cortez, 2001, 4ª edição). Como diz Newson (Newson, C; Flavell, J.E; Rincover, A – The side effects of punishment in: Axelrod, S; Apsche, J. (eds). The effects of punishment on human behaviour, N.Y., Academic Press, 1983) “a dor não é um efeito colateral simplesmente. A dor é tratamento”. A própria palavra PUNIÇÃO tem a mesma origem etimológica que as palavras PENALIDADE e DOR: todas derivam do latim POENA, podendo, pois assumir que, em termos semânticos, é bem antigo o parentesco entre elas (Maurer, A – Corporal punishment, American Psychologist, USA, vol. 29, 1974).

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3º. – Porque ao contrário do que apregoam provérbios atribuídos a Salomão, a punição corporal – seja ela “leve” ou “pesada” – deseduca crianças e adolescentes ensinando-lhes que a solução de conflitos pode e deve ser conseguida recorrendo à força física e, portanto à violência.

Provérbios atribuídos a Salomão (Antigo Testamento)

Corrige teu filho e ele te dará repouso

e será as delícias de tua vida (29:17)

Vara e correção dão a sabedoria

menino abandonado à sua vontade se torna a vergonha da mãe (29:15)

Corrige teu filho enquanto há esperança

mas não te enfureças até fazê-lo perecer (19:18)

Quem poupa a vara, odeia seu filho

quem o ama, castiga-o na hora precisa (13:24)

A loucura apega-se ao coração da criança

a vara da disciplina afastá-la-a dela (22:15)

A ferida sangrenta cura o mal

também os golpes, no mais íntimo do corpo (20:30)

Não poupes ao menino a correção,

se tu o castigares com a vara, ele não morrerá (23:13)

Castigando-o com a vara,

salvarás sua vida da morada dos mortos (23:14)

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4º. – Por que é uma estratégia de mera contenção e controle do comportamento dos filhos, pelos pais, no aqui agora, sem garantia de não reincidência do mesmo comportamento no futuro, além de poder gerar uma espiral de violência. É uma forma de colonização das novas gerações.

Penelope Leach (in: Newell, P – Children are people too – The case against physical punishment, London, Bedford Square Press, 1989) afirma:

“O grande perigo na utilização da punição corporal é que pelo fato de ela ser ineficaz quanto a ensinar as crianças a se comportarem, ela pode atingir níveis mais violentos... hoje você bate na criança... amanhã ela faz a mesma coisa... logicamente você vai bater nela de novo – e mais forte...”

5º. – Por que é um recurso que convém aos pais, mas não aos filhos. Em pesquisa realizada em São Paulo (Azevedo, M.A e Guerra, V.N.A – Mania de Bater – A punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil, SP, Iglu, 2001), intitulada VOZES da INFÂNCIA foram ouvidas 894 crianças/adolescentes de 7-15 anos, de ambos os gêneros (49% meninos e 51% de meninas) pertencentes a grupos sócio econômicos de maior e menor poder aquisitivo. Esses sujeitos nos contaram que: a) bater nos filhos continua sendo visto pelos pais como remédio infalível contra desobediência, malcriação...; b) chinelada e palmada são os meios mais populares pelos quais se exerce a MANIA DE BATER dos pais; c) os filhos costumam apanhar de ambos os pais, mas sobretudo da MAMÃEZINHA QUERIDA, especialmente se forem meninas e bem pequeninos. O mais impressionante nesta pesquisa é o fato de os filhos mostrarem que não gostam de apanhar dos pais: sentem dor física e psicológica (“dor no peito”) e revolta “como se os pais tivessem esquecido o que é ser criança”.

6º. – Por que alguns países já aboliram essa prática, como por exemplo Suécia (1979), Dinamarca (1985), Letônia (1998) e mais recentemente Alemanha e Israel (2000) e Islândia (2003). Já existem, portanto, no planeta Terra, gerações de jovens educados sem apanhar e que provavelmente irão um dia engrossar o movimento internacional por uma pedagogia não violenta em todas as instituições sociais. Trata-se de uma longa luta, pois inclusive na Suécia, os primeiros escritos da escritora e educadora Ellen Key (1849-1926)*[1] já apontavam para a importância da abolição corporal doméstica e escolar de

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crianças e adolescentes. Ellen Key havia vivenciado a punição corporal doméstica em sua família de origem, enquanto uma questão rotineira.

7º. – Porque, ao contrário de argumentos adultocêntricos, a abolição de toda e qualquer forma de punição corporal contra crianças e adolescentes é um assunto considerado por estas como sendo de seu mais alto interesse. O argumento de que bater é sempre “para o próprio bem de crianças e adolescentes” não passa de uma “bela mentira” sem qualquer base científica.

8º. Porque a abolição da punição corporal é uma salvaguarda do direito da infância e adolescência à proteção contra toda e qualquer violência.

Conseqüentemente é uma promoção dos Direitos Humanos, na medida em que os Direitos das Crianças são Direitos Humanos.

9º. – Porque no Brasil, a mania de bater tem mais de 500 anos, atribuindo-se sua introdução aos jesuítas já que nossos índios não batiam em seus filhos (Azevedo, M.A e Guerra, V.N.A –Mania de Bater – A punição corporal doméstica de crianças e adolescentes no Brasil, SP, Iglu, 2001). Em decorrência desse lastro histórico só estão legalmente proibidos entre nós os castigos imoderados e cruéis. Portanto os pais teem licença para bater de forma “moderada” (aqui se incluindo o uso generalizado da palmada e do famoso tapa no bumbum).

10º. – Por que educar batendo – além de ser uma contradição em termos – é uma prática não defendida hoje nem mesmo para animais.

Portanto, a pergunta que fica para ser respondida, por você, leitor (a) é a seguinte:

Até quando vamos tolerar que as crianças brasileiras sejam criadas à luz da mania de bater dos pais?

[1] Consulte-se a respeito: Prospects: The Quarterly Review of Comparative Education – Paris, UNESCO, vol. XXIII, nº. 3 / 4, 1993, pgs. 825-837.

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Projeto de Lei n. 2654/2003

Dispõe sobre a alteração da Lei 8069, de 13/07/1990, o Estatuto da Criança e do

Adolescente, e da Lei 10406, de 10/01/2002,o Novo Código Civil, estabelecendo o direito da criança e do adolescente a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal,mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados,sob a alegação de quaisquer propósitos,ainda que pedagógicos, e dá outras providências.

O Congresso Nacional decreta:

Art. 1o – Serão acrescentados à Lei 8069, de 13/07/1990, os seguintes artigos:

Art. 18A – A criança e o adolescente têm direito a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, no lar, na escola, em instituição de atendimento público ou privado ou em locais públicos.

Parágrafo único – Para efeito deste artigo será conferida especial proteção à situação de vulnerabilidade à violência que a criança e o adolescente possam sofrer em conseqüência, entre outras, de sua raça, etnia, gênero ou situação sócio-econômica.

Art. 18B – Verificada a hipótese de punição corporal em face de criança ou adolescente, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos, os pais, professores ou responsáveis ficarão sujeitos às medidas previstas no artigo 129, incisos I, III, IV e VI desta lei, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Art. 18 D – Cabe ao Estado, com a participação da sociedade:

I. Estimular ações educativas continuadas destinadas a conscientizar o público sobre a ilicitude do uso da violência contra criança e adolescente, ainda que sob a alegação de propósitos pedagógicos;

II. Divulgar instrumentos nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente;

III. Promover reformas curriculares, com vistas a introduzir disciplinas voltadas à proteção dos direitos da criança e do adolescente, nos termos dos artigos 27 e 35, da Lei 9394, de 20/12/1996 e do artigo 1º da Lei 5692, de 11/08/1971, ou a introduzir no currículo do ensino básico e médio um tema transversal referente aos direitos da criança, nos moldes dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

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Art. 2o – O artigo 1634 da Lei 10.406, de 10/01/2002 (novo Código Civil), passa a ter seguinte redação:

“Art. 1634 – Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

VII. Exigir, sem o uso de força física, moderada ou imoderada, que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”.

Art. 3o – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação.

JUSTIFICATIVA

A Constituição Brasileira de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (ratificada pelo Brasil em 24.09.90) introduzem, na cultura jurídica brasileira, um novo paradigma inspirado pela concepção da criança e do adolescente como verdadeiros sujeitos de direito, em condição peculiar de desenvolvimento. Este novo paradigma fomenta a doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente e consagra uma lógica e uma principiologia próprias voltadas a assegurar a prevalência e a primazia do interesse superior da criança e do adolescente. Na qualidade de sujeitos de direito em condição peculiar de desenvolvimento, à criança e ao adolescente é garantido o direito à proteção especial.

Sob esta perspectiva, a Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 227, estabelece que: “ É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança a ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Por sua vez, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ao regulamentar o comando constitucional, prescreve, em seu artigo 5º, que:“ Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Acrescenta o artigo 18 do mesmo Estatuto: “ É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

Não obstante os avanços decorrentes da Constituição e do Estatuto, no sentido de garantir o direito da criança e do adolescente ao respeito, à dignidade, à integridade física, psíquica e moral, bem como de colocá-los a salvo de qualquer tratamento

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desumano ou violento, constata-se que tais avanços não tem sido capazes de romper com uma cultura que admite o uso da violência contra criança e adolescente (a chamada “mania de bater”[1]), sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos.

Sob o prisma jurídico, a remanescência desta cultura, por vezes, ainda é admitida e tolerada sob o argumento de que se trata do uso da violência “moderada”. Vale dizer, a ordem jurídica tece, de forma implícita, a tênue distinção entre a violência “moderada” e “imoderada”, dispondo censura explícita tão somente quando da ocorrência dessa última modalidade de violência. Destaca-se, neste sentido, o Código Civil de 1916 que, em seu artigo 395, determina que “perderá por ato judicial o pátrio poder o pai, ou a mãe que castigar imoderadamente o filho (...)”. Observe-se, como conseqüência, que o castigo “moderado” é, deste modo, aceitável, tolerável e admissível, não implicando qualquer sanção. No Código Penal de 1940, o crime de maus tratos, tipificado no artigo 136, na mesma direção, vem a punir o ato de expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quando do abuso dos meios de correção ou disciplina. Uma vez mais, há que se diferenciar a prática abusiva e não abusiva dos meios de correção ou disciplina, posto que apenas a primeira é punível. Estes dispositivos legais, na prática, têm sido utilizados para o fim de contribuir para a cultura que ainda aceita e tolera o uso da violência “moderada” contra criança e adolescente, sob a alegação de propósitos pedagógicos, na medida em que se pune apenas o uso imoderado da força física. Além disso, há dificuldade em se traçar limites entre um castigo moderado e um castigo imoderado, o que tem propiciado abusos.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a permissão do uso moderado da violência contra crianças e adolescentes faz parte de uma cultura da violência baseada em três classes de fatores: ligados à infância, ligados à família e ligados à violência propriamente dita. Quanto aos primeiros, persiste no Brasil a percepção da criança e do adolescente como grupos menorizados, isto é, como grupos inferiorizados da população, frente aos quais é tolerado o uso da violência. Quanto aos segundos, vigora ainda um modelo familiar pautado na valorização do espaço privado e da estrutura patriarcal, que, por estar muitas vezes submerso em dificuldades sócio-econômicas, propicia a eclosão da violência. Quanto aos terceiros, prevalece no Brasil o costume de se recorrer a alternativas violentas de solução de conflitos, inclusive no que toca a conflitos domésticos. Essa cultura, contudo, pode e deve ser enfrentada por diversas vias, dentre elas, a valorização da infância e da adolescência, a percepção da criança como um ser político, sujeito de direitos e deveres, e, ainda, a elucidação de métodos pacíficos de resolução de conflitos, que abarcarão a vedação do castigo infantil, ainda que moderado e para fins pretensamente pedagógicos.[2]

Neste contexto, é fundamental e necessário tornar inequivocadamente claro e explícito que a punição corporal de criança e adolescente, ainda que sob pretensos

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propósitos pedagógicos, é absolutamente inaceitável. Daí a apresentação do presente projeto de lei, que objetiva assegurar à criança e ao adolescente o direito a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos, no lar, na escola ou em instituição de atendimento público ou privado. O escopo principal é ressaltar que a vedação genérica da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto ao uso da violência abrange a punição corporal mesmo quando moderada e mesmo quando perpetrada por pais ou outros responsáveis.

A escolha pela inclusão desse direito específico no Estatuto da Criança e do Adolescente atende a esse escopo sem calcar dúvidas quanto à ilicitude do uso da violência de modo geral, nos termos do artigo 18 desse diploma. A inclusão alcança, ademais disso, duas outras metas. Primeiro, assegurará uma maior coerência ao sistema de proteção da criança e do adolescente. Segundo, ressaltará a relevância desse direito específico, na medida em que esse passará a fazer parte de uma lei paradigmática tanto interna quanto internacionalmente.

Não se trata, todavia, da criminalização da violência moderada, mas da explicitação de que essa conduta não condiz com o direito. É nesse sentido, ademais disso, que se coloca o Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança. No parágrafo 17 de sua Discussão sobre Violência contra Crianças na Família e na Escola, o Comitê ressaltou que a “ênfase deve ser na educação e no apoio aos pais, e não na punição. Esforços preventivos e protetivos devem enfatizar a necessidade de se considerar a separação da família como uma medida excepcional”.[3]

Orientado pela vertente preventiva e pedagógica, o projeto estabelece que, na hipótese do uso da violência contra criança ou adolescente, ainda que sob a alegação de propósitos educativos, os pais, professores ou responsáveis ficarão sujeitos às medidas previstas no artigo 129, incisos I, III, IV e VI do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tais medidas compreendem: o encaminhamento dos pais ou responsável a programa oficial ou comunitário de proteção à família; o encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; o encaminhamento a cursos ou programas de orientação; bem como a obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado.

Conforme revela a experiência de outros países, como a Suécia [4], a plena efetivação e observância do direito a uma pedagogia não violenta requer do Poder Público o desenvolvimento de campanhas educativas destinadas a conscientizar o público sobre a ilicitude do uso da violência contra criança e adolescente, ainda que sob a alegação de propósitos pedagógicos. Daí a inclusão do artigo 18 – D do projeto de lei, visando justamente impor ao Poder Público o dever de estimular ações educativas continuadas de conscientização, bem como o de divulgar os instrumentos nacionais e internacionais de proteção dos direitos da criança e do adolescente e de promover

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reformas curriculares, com vistas a introduzir disciplinas voltadas à proteção dos direitos da criança e do adolescente.

Considerando o novo Código Civil, que entrou em vigor em janeiro de 2003, o presente projeto ainda torna explícita a proibição do uso da violência, seja moderada ou imoderada, no que tange à exigência dos pais em face da pessoa dos filhos menores “de que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”. Assim, fica afastada a perversa conseqüência de legitimar ou autorizar o eventual uso da violência física, mesmo quando moderada, para “educar” e exigir dos filhos que prestem a obediência necessária.

Observe-se que no Direito Comparado, a tendência contemporânea é a de punir expressa e explicitamente o uso da violência contra criança e adolescente, ainda quando alegada para pretensos propósitos pedagógicos. A título exemplificativo, destacam-se: a experiência pioneira da Suécia, que desde 1979 adotou a chamada “Anti-spanking law”, proibindo a punição corporal ou qualquer outro tratamento humilhante em face de crianças; a decisão da Comissão Européia de Direitos Humanos de que a punição corporal de crianças constitui violação aos direitos humanos; a lei da Família e da Juventude (Family Law and the Youth and Welfare Act), aprovada na Áustria em 1989, com o fim de evitar que fosse a punição corporal usada como instrumento de educação de crianças; a lei sobre Custódia e Cuidados dos Pais (Parenthal Custody and Care Act), aprovada na Dinamarca em 1997, a lei de pais e filhos (Parent and ChildAct), adotada na Noruega em 1987; a lei da proteção dos direitos da criança (Protection of the Rights of the Child Law), adotada na Letônia em 1998; as alterações no artigo 1631 do Código Civil, aprovadas na Alemanha em 2000; a decisão da Suprema Corte de Israel, de 2000, que sustentou ser inadmissível a punição corporal de crianças, por seus pais ou responsáveis; a lei adotada em Chipre em 2000 (Law which provides for the prevention of Violence in the Family and Protection of Victims), voltada à prevenção da violência no núcleo familiar e da Islândia (2003). Além destas experiências, acrescente-se que países como a Itália, Canadá, Reino Unido, México e Nova Zelândia tem se orientado na mesma direção, no sentido de prevenir e proibir o uso da punição corporal de crianças, sob a alegação de propósitos educativos, particularmente mediante relevantes precedentes judiciais e reformas legislativas em curso. Cite-se, ainda, decisão proferida pela Corte Européia de Direitos Humanos, em face do Reino Unido, considerando ilegal a punição corporal de crianças.

Ressalte-se, além disso, que o Brasil é parte da Convenção sobre os Direitos da Criança, desde 24 de setembro de 1990. Ao ratificar a Convenção, no livre e pleno exercício de sua soberania, o Estado Brasileiro assumiu a obrigação de assegurar à criança o direito a uma educação não violenta, contraindo para si a obrigação de não apenas respeitar, mas também de promover este direito. A respeito, merece menção o artigo 19 (1), cominado com o artigo 5o, da Convenção. De acordo com o artigo 19 (1): “

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Os Estados Partes tomarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela ”. Por sua vez, o artigo 5º estabelece: “Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades, os direitos e os deveres dos pais ou, conforme o caso, dos familiares ou da comunidade, conforme os costumes locais, dos tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis pela criança, de orientar e instruir apropriadamente a criança de modo consistente com a evolução de sua capacidade, no exercício dos direitos reconhecidos pela presente Convenção”.

Deste modo, o artigo 19, conjugado com o artigo 5º, da CDC, veda claramente a utilização de qualquer forma de violência contra a criança, seja ela moderada ou imoderada, mesmo que para fins pretensamente educativos ou pedagógicos, considerando ilícitas, nessa linha, práticas “corretivas” empregadas por pais ou responsáveis que abarquem punições físicas em qualquer grau. Adicione-se que o artigo 29 da Convenção estipula ainda um direito complementar ao da educação não violenta: o direito a uma educação de qualidade. A respeito, importa frisar que a própria Declaração Universal, em seu artigo 26, já estabelecia que a instrução deveria ser orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento e do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais [5].

Considerando a efetiva implementação de avanços introduzidos pela Constituição Brasileira de 1988 e pelo Estatuto da Criança e Adolescente, bem como as obrigações internacionais assumidas pelo Estado Brasileiro, com a ratificação da Convenção sobre os Direitos da Criança e tendo em vista ainda a tendência do Direito Comparado contemporâneo, refletida nas experiências de diversos países, é urgente e necessária a aprovação do presente projeto de lei, ao consagrar expressamente o direito da criança e do adolescente a uma pedagogia não violenta.

O reconhecimento da dignidade da criança e do adolescente consolida a idéia de que, se não se admite a violação à integridade física de um adulto por outro adulto, em qualquer grau, não se pode admitir a violação à integridade física de uma criança ou adolescente por um adulto. Há de se assegurar, por conseguinte, o direito da criança e do adolescente a uma educação não violenta, por meio do reconhecimento explícito do direito específico da criança e do adolescente a não serem submetidos a qualquer violência, seja ela moderada ou imoderada, ainda que cometida por pais ou responsáveis, com finalidades pretensamente pedagógicas.

Enfim, o presente projeto visa a combater, em definitivo, a punição corporal que ainda alcança tantas crianças e adolescentes, violando seu direito fundamental ao respeito e à dignidade.

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[1]

Sobre o tema, ver “Por que abolir no Brasil a punição corporal doméstica de crianças e adolescentes?” , de Maria Amélia Azevedo e Viviane N. de A. Guerra (mimeo).

[2] Maria Amélia Azevedo e Viviane N. de A. Guerra. A Violência Doméstica na Infância e na Adolescência.

São Paulo: Robe, 1995, p. 77-85

[3] Nações Unidas - Comitê dos Direitos da Criança, “Discussão sobre Violência contra Crianças dentro da

Família e nas Escolas,” CRC/C/111, 28 th Session, 28 de setembro de 2001.

[4] É interessante notar que a própria lei, que torna ilícito o uso da violência, ainda que moderada, para fins

educativos, pode trazer mudanças sociais. Foi o que ocorreu, ilustrativamente, na Suécia (1979) e na Dinamarca (1997). Na Suécia, em 1968, 42% da população entendia que o castigo corporal era, por vezes, necessário. Em 1994, apenas 11% da população apoiava o uso do castigo na educação. Na Dinamarca, uma pesquisa de opinião realizada em 1984 indicou que 68% dos dinamarqueses eram contrários à abolição da punição corporal. Em 1997, 57% da população era contrária ao uso dessa punição. A mudança se deu não pela lei de 1997, mas por outra anterior, de 1985, menos explícita. Em todos esses casos, contudo, os efeitos sociais da lei foram efetivos apenas porque essas leis foram acompanhadas por campanhas de educação pública. Na Suécia, por exemplo, em dois anos da promulgação da lei, que proibiu todas as formas de punição corporal, 99% da população tinha ciência de seu conteúdo. Fonte: Durrant, J. The Swedish Ban on Corporal Punishment: Its History and Effects. In: Family Violence Against Children: a Challenge for Society, Berlin, New York, Walter de Gruyter and Co., 1996.

[5] Estabeleceu o Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu Comentário Geral N. 13,

adotado em 1999, que “a educação é, ao mesmo tempo, um direito humano em si e um meio indispensável para realização de outros direitos humanos”.

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ANEXO 2

A Lei de 2014

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Altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o

direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante, e altera a Lei n

o 9.394, de 20 de dezembro de 1996.

LEI 13.010 DE 26 DE JUNHO DE 2014

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 18-A, 18-B e 70-A:

“Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los.

Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se:

I - castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em:

a) sofrimento físico; ou

b) lesão;

II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que:

a) humilhe; ou

b) ameace gravemente; ou

c) ridicularize.”

“Art. 18-B. Os pais, os integrantes da família ampliada, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou qualquer pessoa encarregada de cuidar de crianças e de adolescentes, tratá-los, educá-los ou protegê-los que utilizarem castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como

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formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto estarão sujeitos, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, às seguintes medidas, que serão aplicadas de acordo com a gravidade do caso:

I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família;

II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico;

III - encaminhamento a cursos ou programas de orientação;

IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado;

V - advertência.

Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão aplicadas pelo Conselho Tutelar, sem prejuízo de outras providências legais.”

“Art. 70-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão atuar de forma articulada na elaboração de políticas públicas e na execução de ações destinadas a coibir o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e difundir formas não violentas de educação de crianças e de adolescentes, tendo como principais ações:

I - a promoção de campanhas educativas permanentes para a divulgação do direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos;

II - a integração com os órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Defensoria Pública, com o Conselho Tutelar, com os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente e com as entidades não governamentais que atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente;

III - a formação continuada e a capacitação dos profissionais de saúde, educação e assistência social e dos demais agentes que atuam na promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente para o desenvolvimento das competências necessárias à prevenção, à identificação de evidências, ao diagnóstico e ao enfrentamento de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente;

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IV - o apoio e o incentivo às práticas de resolução pacífica de conflitos que envolvam violência contra a criança e o adolescente;

V - a inclusão, nas políticas públicas, de ações que visem a garantir os direitos da criança e do adolescente, desde a atenção pré-natal, e de atividades junto aos pais e responsáveis com o objetivo de promover a informação, a reflexão, o debate e a orientação sobre alternativas ao uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante no processo educativo;

VI - a promoção de espaços intersetoriais locais para a articulação de ações e a elaboração de planos de atuação conjunta focados nas famílias em situação de violência, com participação de profissionais de saúde, de assistência social e de educação e de órgãos de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.

Parágrafo único. As famílias com crianças e adolescentes com deficiência terão prioridade de atendimento nas ações e políticas públicas de prevenção e proteção.”

Art. 2o Os arts. 13 e 245 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, passam a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 13. Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

...................................................................................” (NR)

“Art. 245. (VETADO)”.

Art. 3o O art. 26 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), passa a vigorar acrescido do seguinte § 9o:

“Art. 26. ........................................................................

.............................................................................................

§ 9o Conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente serão incluídos, como temas transversais, nos currículos escolares de que trata o caput deste artigo, tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do

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Adolescente), observada a produção e distribuição de material didático adequado.” (NR)

Art. 4o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 26 de junho de 2014; 193o da Independência e 126o da República.

DILMA ROUSSEFF José Eduardo Cardozo Ideli Salvatti Luís Inácio Lucena Adams

Este texto não substitui o publicado no DOU de 27.6.2014 e retificado em 3.7.2014

Fonte: www.planalto.gov.br (acessado a 21/10/2014).

A Lei do Menino Bernardo refere-se à lei brasileira que visa proibir o uso de castigos físicos ou tratamentos cruéis ou

degradantes na educação de crianças e adolescentes. O nome foi adotado pelos deputados quando ainda da

tramitação do então projeto de lei 7672/2010, da Presidência da República brasileira, proposto ao Congresso Nacional

Brasileiro. Já a imprensa brasileira apelidou a lei de Lei da Palmada.

Relatado pela deputada Teresa Surita (PMDB-RR), o projeto prevê que pais que maltratarem os filhos sejam

encaminhados ao programa oficial de proteção à família e a cursos de orientação, tratamento psicológico ou

psiquiátrico, além de receberem advertência. A criança que sofrer a agressão, por sua vez, deverá ser encaminhada a

tratamento especializado. A proposta prevê ainda multa de três a 20 salários mínimos para médicos, professores e

agentes públicos que tiverem conhecimento de agressões a crianças e adolescentes e não denunciarem às

autoridades . A lei gerou polêmica e muitas discussões desde que foi proposta, em 2003. Esta lei foi aprovada pela

Câmara dos Deputados no dia 21 de maio de 2014 e foi aprovada no Senado no dia 4 de junho.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_Menino_Bernardo

O Plenário do Senado aprovou, na noite desta quarta-feira (4), em votação simbólica, o Projeto de Lei da

Câmara (PLC) 58/2014. O projeto foi aprovado mais cedo na Comissão de Direitos Humanos e Legislação

Participativa (CDH) e foi encaminhado direto ao Plenário. Agora, o texto segue para sanção presidencial.

A proposta, que vinha sendo chamada de Lei da Palmada desde que iniciou a sua tramitação, foi rebatizada

para “Lei Menino Bernardo”. O novo nome foi escolhido em homenagem ao garoto gaúcho Bernardo Boldrini,

de 11 anos, cujo corpo foi encontrado no mês de abril, enterrado às margens de uma estrada em Frederico

Westphalen (RS). O pai e a madrasta são suspeitos de terem participação na morte do garoto.

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O presidente do Senado, Renan Calheiros, disse que o projeto é importante e destacou que a data de 4 de

junho é destinada a comemorar o Dia Internacional das Crianças Vítimas de Agressão. Para Renan, o Senado

votou uma lei de interesse de toda a sociedade brasileira, pois o texto poderá ajudar na harmonização da

relação de pais e filhos. A apresentadora Xuxa Meneghel, defensora da lei, a ministra da Secretaria de Direitos

Humanos da Presidência da República, Ideli Salvatti, e a ministra da Cultura, Marta Suplicy, acompanharam a

votação. Mais cedo, em visita ao presidente Renan Calheiros, Xuxa pediu que as crianças sejam educadas sem

violência.

- A lei vai impedir que usem violência, é só isso. Pode educar de qualquer maneira, sem o uso da violência. A

pessoa que deu uma palmada vai ser presa? Não! Nós queremos mostrar que as pessoas podem e devem

ensinar uma criança sem usar violência. É só isso que estamos pedindo. É isto que a lei faz: que a criança seja

vista com os mesmos direitos que nós, adultos – pediu Xuxa.

Sociedade de paz

Para a senadora Ana Rita (PT-ES), relatora da matéria na CDH, a razão primordial do projeto é proteger crianças

e adolescentes do tratamento degradante. Segundo a senadora, o projeto não busca penalizar, mas sim

encaminhar os pais, quando for o caso, a cumprirem determinados procedimentos, como cursos ou orientação

psicológica. Ela acrescentou que o Conselho Tutelar está respaldado para agir. Dependendo da situação, o

conselho poderá inclusive acionar a polícia.

A senadora reconheceu que o projeto é polêmico, e lembrou que o ato de bater é cultural e frequente em

muitas tradições. Ana Rita, no entanto, enfatizou que essa cultura precisa ser enfrentada. Ela fez questão de

destacar que a lei não é punitiva, mas um texto que procura educar as pessoas e garantir que as crianças não

sejam educadas de forma agressiva. Na visão de Ana Rita, o projeto propõe repensar valores que não

combinam com uma sociedade justa e solidária.

- Esta lei contribui para que tenhamos cidadãos mais preparados para o futuro. Se queremos uma sociedade

melhor e de paz, precisamos formar essa nova geração com novos princípios e valores, com cidadãos mais

tolerantes e que suportem melhor uns aos outros – declarou.

Na opinião do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), o projeto tem inspiração científica e contempla a “triste

realidade” da violência contra as crianças. Ele informou que os dados do Brasil apontam 130 mil casos de

violação de direitos humanos de crianças só em 2012. O senador Mário Couto (PSDB-PA) disse que a aprovação

do texto é um “passo à frente” e pediu uma gestão mais eficiente para cuidar das crianças carentes.

A senadora Lídice da Mata (PSB-BA) pediu uma nova cultura na educação de filhos, sem violência física ou

psíquica. Os senadores Eduardo Suplicy (PT-SP), Cristovam Buarque (PDT-DF), Rodrigo Rollemberg (PSB-DF) e

Antônio Carlos Valadares (PSB-SE) também elogiaram o texto. Para o senador Humberto Costa (PT-PE), a lei é

necessária para que se mude a mentalidade do uso da violência na educação de crianças.

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- Esta lei vai mudar os costumes e a cultura. Vamos avançar. Queremos construir uma sociedade em que todos

tenham direitos e que esses direitos sejam praticados desde muito cedo – disse Humberto.

Tempo

De acordo com o senador Magno Malta (PR-ES), cerca de 80% do projeto já estão contemplados no Estatuto da

Criança e do Adolescente (ECA). O senador criticou a subjetividade do projeto e pediu clareza no texto para

separar “educação de filhos” da “violência”. Malta lembrou que uma de suas batalhas de vida é lutar contra a

pedofilia e pela recuperação de dependentes químicos, assim, teria legitimidade para tratar do assunto. O

parlamentar leu um artigo do jornalista Ricardo Kostcho, com críticas à Lei Menino Bernardo. Segundo o artigo,

as pessoas vêm diminuindo o uso da palmada, mas nem por isso a violência deixou de crescer.

Magno Malta ainda afirmou que a Justiça precisa agir, em casos de denúncias de abusos, no tempo máximo de

24 horas – para evitar que muitos agressores escapem. Ele reclamou que o texto do projeto “dormiu quatro

anos na Câmara”, mas não foi debatido de forma profunda no Senado. Ele fez questão de dizer que “não

desaprova” a iniciativa, mas registrou que teve apenas “uma hora” para examinar o texto.

- O que o Senado está fazendo é um crime contra ele mesmo – declarou.

Medidas

O projeto inclui dispositivos no ECA (Lei 8.069/90), para garantir o direito da criança e do adolescente de serem

educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. O texto define

castigo como a “ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em sofrimento

físico ou lesão à criança ou ao adolescente”. O tratamento cruel ou degradante é definido como “conduta ou

forma cruel de tratamento que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente”.

Segundo a proposta, os pais ou responsáveis que usarem castigo físico ou tratamento cruel e degradante

contra criança ou adolescente ficam sujeitos a advertência, encaminhamento para tratamento psicológico e

cursos de orientação, independentemente de outras sanções. As medidas serão aplicadas pelo conselho tutelar

da região onde reside a criança. Além disso, o profissional de saúde, de educação ou assistência social que não

notificar o conselho sobre casos suspeitos ou confirmados de castigos físicos poderá pagar multa de três a 20

salários mínimos, valor que é dobrado na reincidência.

O projeto ainda prevê que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deverão atuar em conjunto na

organização de políticas públicas e campanhas de conscientização sobre o assunto.

Agência Senado (Reprodução autorizada mediante citação da Agência Senado)

Fonte: www12.senado.gov.br/noticias/.../senado-aprova-lei-menino-bernardo (acessado a 21/10/2014).