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O príncipe bezerro (Ana de Castro Osório): tentame de abordagem psicanalítica

Autor(es): Marques, António Soares

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23857

Accessed : 26-Apr-2020 16:41:09

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE LETRAS

VISE 7

MÁTHESIS 6 1997 135-150

o PRÍNCIPE BEZERRO (Ana d~ Castro Osório) (Tentame de abordagem psicanalítica)

ANTÓNIO SOARES MARQUES

Uma análise estrutural-dinâmica configura-se como um dos multí­modos instrumentos operatórios na abordagem do texto literário. É, com efeito, o que a seguir se pretende com esta ténue, incipiente e pre­sunçosa incursão ao universo simbólico, genesicamente subjacente a um texto que tem, como imediato destinatário, o mundo infanto-juvenil.

o PRÍNCIPE BEZERRO

Havia, em tempos muito remotos, um Rei e uma Rainha senhores dum grande reino, mas que viviam muito tristes, muito tristes, por não terem filhos. Principalmente a Rainha chorava muito a sua desgraça e não se cansava de os pedir a Deus e a todos os Santos. Um dia, já muito desesperada, exclamou:

- Quem me dera um filho, ainda que fosse um bezerro!

Passado tempo, deram parte à corte que a Rainha estava para dar um herdeiro à Coroa. Fizeram-se muitas festas; houve alegria geral desde o palácio dos reis até à mais humilde choupana. Mas qual não foi o espanto de todos quando viram que, em lugar do menino tão ansio­samente esperado, nascia um bezerrinho!

Os pais ficaram muito aflitos, mas eram pais e resignaram-se. O Príncipe foi crescendo e mostrava muita inteligência e bondade. Os pais -coitados! - apesar da forma extravagante do filho, gostavam dele como se fosse um homem perfeito, achavam-no até muito lindo e não podiam tolerar que as raparigas fugissem dele e não o quisessem para marido.

Ora o Príncipe Bezerro queria por força casar e então os reis deram reuniões sobre reuniões, a ver se alguma mulher se agradava dele. Mas

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era trabalho baldado, porque as raparigas de quem gostava faziam troça dele e não o queriam nem por quanto havia.

Aconteceu vir aos bailes da corte uma menina muito linda e sobretudo muito boa. Viu o Príncipe Bezerro e teve muita pena dele. Enquanto as outras se riam de o verem fazer-se amável com as damas, lambendo-lhes as mãos com toda a delicadeza, ela pegou no seu fino lenço de rendas e limpou-lhe a baba.

Ficou o Príncipe Bezerro tão encantado com aquela prova de bondade da menina que se dirigiu logo aos pais para a pedirem em casamento.

Assim fizeram, e a menina, como era muito boa, teve dó do pobre rapaz que todos desprezavam e disse que sim, que aceitava ser sua mulher para que ele fosse menos infeliz.

Fez-se o casamento com grande pompa, e, quando à noite se reco­lheram ao quarto, viu a menina, com grande admiração, que o Príncipe despia a pele de bezerro como se fosse uma camisa e ficava um belo rapaz - o mais belo que jamais tinha visto.

Abraçaram-se cheios de contentamento, e ele disse-lhe então: - Não vás dar parte a ninguém disto que vês, porque é um

encanto que não acabará se tu o fores dizer, ainda que seja a uma só pessoa!

Ao outro dia foi a menina visitar a mãe e, doida de alegria, não teve mão em si que lhe não contasse, debaixo de grande segredo, o que lhe tinha acontecido. E a mãe aconselhou-a a queimar a pele de bezerro que à noite o Príncipe despia, quando ele estivessse a dormir.

Assim foi. À noite aconteceu o mesmo da véspera, e a menina, quando o marido adormeceu, foi queimar-lhe a pele, imaginando que assim acabaria o encanto.

Mal a pele começou a arder, acordou o Príncipe em sobressalto, exclamando:

- Ai, desgraçada mulher, que dobraste o meu fadário! Agora não me tornarás a ver sem romperes sete pares de sapatos de ferro, e nin­guém encontrarás que te dê notícias de mim!

E, dizendo isto, desapareceu o Príncipe, o palácio, e tudo que a rodeava, e ela viu-se abandonada numa terra desconhecida.

Cheia de desgosto e de remorso, não se entregou, porém, ao desespero. Resolveu fazer tudo para desencantar o Príncipe. Comprou sete pares de sapatos de ferro e pôs-se a caminho. Andou, andou, e por toda a parte perguntava pela morada do Príncipe Bezerro, mas ninguém lhe dava notícias dele nem do seu reino.

Assim foi andando até que o último par de sapatos de ferro estava quase a findar. Uma noite viu uma luzinha muito ao longe, muito ao

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-.~

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longe, e dirigiu-se para lá. Chegou a uma grande casa e bateu à porta. Veio uma velha abrir e perguntou:

- Que vem aqui fazer a minha menina? Não sabe que esta é a casa do meu filho Sol? Se ele aqui a vê, é capaz de a matar.

Tão aflita estava a infeliz, que lhe respondeu: - Olhe, tiazinha, eu estou tão cansada que só desejo um canto onde

me deite, e, se vier o seu filho e me quiser matar, deixá-lo! E talvez ele me saiba dizer onde mora o Príncipe Bezerro.

A velha teve muito dó da pobre menina, deixou-a entrar, deu-lhe ceia e cama, dizendo-lhe que descansasse até vir o filho. Daí a pouco chegou o Sol, iluminando a casa - que toda ela parecia um brazeiro de luz - e, dirigindo-se à velha, gritou:

Minha mãe, cheira-me aqui a carne humana! Respondeu ela: - Olha, filho, é uma menina muito bonita que está ali a dormir. Vem

perguntar se tu sabes onde é o reino do Príncipe Bezerro. Eu não sei (disse o Sol) mas a Lua, como anda de noite, talvez

saiba. Depois chamou a menina, e, dando-lhe uma noz, recomendou-lhe

que a não abrisse senão quando de todo em todo não pudesse suportar a fome.

Foi ela até a casa da Lua, bateu à porta, e veio também uma velhita que era a mãe. Deixou-a entrar e descansar, até que chegasse a filha. Então a menina perguntou à Lua: se sabia onde era o reino do Príncipe Bezerro.

- Não, eu não sei (respondeu a Lua), nunca o vi nem ouvi falar nele. Melhor é ires perguntar ao Vento, que esse, como anda de noite e de dia, talvez te dê melhores notícias. Mas toma cautela com ele, porque é uma pessoa de muito mau génio, anda sempre arrenegado.

Depois deu-lhe também uma noz, fazendo a mesma recomen­dação que lhe tinha feito o Sol - de só a abrir quando a fome fosse de todo insuportável.

Foi dali a menina a casa do Vento, e bateu à porta. Veio abrir-lha uma mulher ainda nova, que lhe perguntou a que vinha. Ela respondeu o mesmo que já tinha dito à mãe do sol e à da Lua, e a mulher respondeu:

- O meu marido só chega à tardinha - hora em que abranda o vento - vem cear, e depois volta logo à sua obrigação. Se a menina lhe quer falar há-de ser à hora da ceia, mas tenho que a esconder quando ele chegar, porque entra sempre com tal espalhafato que despedaça tudo quanto encontra diante de si.

A menina agradeceu à mulher do Vento, entrou, e esperou até ao lusco-fusco. Então meteu-se atrás da porta e viu chegar o

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Vento, derribando tudo e gritando arrogante que lhe dessem a ceia depressa.

Quando ela o viu sossegado, saiu do esconderijo e disse-lhe a que vinha, contando-lhe toda a sua história.

O Vento respondeu que sim, que sabia muito bem onde era o reino do Príncipe Bezerro, mas que ele ia casar-se daí a três dias, e então que fosse depressa - a não chegar lá essa manhã já não iria a tempo.

Ensinou-lhe o caminho e deu-lhe outra noz, recomendando o mesmo que a Lua e o Sol, isto é: que só a partisse quando de todo não pudesse tolerar a fome.

Foi a menina andando pelo caminho por ele indicado, mas em certa altura sentiu uma tal fome que se tentou a partir uma das nozes. Qual não foi, porém, o seu espanto encontrando dentro, em vez da amêndoa que desejava comer, uma dobadoura muito linda toda de ouro e brilhantes.

Mais adiante, deu-lhe outra vez uma tão grande fome que se resol­veu a partir a segunda noz, e dentro, em lugar de fruto que comesse, encontrou um sarilho de ouro e pedras preciosas tão bonito que ficou deslumbrada.

Ainda foi suportando a fome até mais adiante, e, quando inteira­mente já não podia, partiu a terceira noz, e então mais admirada ficou quando de dentro lhe saiu uma galinha com sua ninhada de pintos, tudo de ouro, com as penas de brilhantes, rubis, esmeraldas e safiras. Mexiam­-se, piavam, corriam - que era mesmo um encanto.

A menina foi andando, até que de manhã chegou a uma grande cidade. Entrou e perguntou se vivia ali o Príncipe Bezerro. Disseram-lhe que sim, que era ele o rei daquele País e que daí a três dias viria a noiva para se casar.

A menina foi sentar-se defronte do palácio real com a dobadoura. Viu-a uma criada da Rainha mãe, que lhe perguntou se queria vender aquela tão linda prenda.

- Não, - respondeu ela - não a vendo, mas dá-Ia-ei à Senhora Rainha, se ela me deixar ficar esta noite no quarto do Príncipe Bezerro.

A criada foi dizer aquilo à Rainha. Combinaram deitar dorrnideiras na água que, ao deitar, o Príncipe bebia. Assim a mulher ficaria no quarto sem ele dar por isso.

A menina deu a dobadoura e à noite ficou no quarto do Princípe. Mas, por mais que ela o chamasse e abanasse, ele não deu por coisa alguma. Chorou muito, disse mal da sua triste vida e do mau costume de falar demais, pois se não tivesse contado à mãe o segredo do Príncipe nenhuns trabalhos daqueles lhe teriam sucedido! De manhã teve de sair, sem ter podido acordar o marido.

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Por toda a parte ouvia falar no próximo casamento do Príncipe, e na formosura da noiva, que ninguém tinha visto, mas todos afirmavam ser a mais formosa do Mundo.

Muito desanimada, foi sentar-se defronte do palácio real com o sarilho de ouro. Viu-a a mesma criada e foi a correr dizer à Rainha que a mulher trazia ali um sarilho, mil vezes mais belo do que a dobadoura. A Rainha, como na véspera, mandou perguntar se o vendia e ela respondeu a mesma coisa: - que não o vendia, mas o daria à senhora Rainha se a deixasse ficar essa noite no quarto do Príncipe Bezerro. A Rainha não queria, mas a criada convenceu-a a fazer o mesmo que tinha feito na véspera, porque ele nunca o saberia. Assim aconteceu: deram as dor­mideiras ao Princípe, e à noite, quando a mulher veio, por mais que chamasse e chorasse, nada! - não acordou com coisa nenhuma.

De manhã saiu do palácio, mais triste do que a noite, e foi sentar-se defronte das janelas com a galinha de ouro e os pintainhos. Tocava-os com uma vara de ouro e começavam todos a correr, a piar, a abrir as asas, que era mesmo uma coisa nunca vista de linda e engraçada.

Foi a mesma criada, a correr, dizer à Rainha o que a mulher trazia e voltou logo a perguntar: - se vendia aquela tão linda prenda, que a Rainha daria tudo quanto lhe pedisse.

Ela respondeu o mesmo das outras vezes: - que não vendia, mas que daria à Senhora Rainha a galinha e os pintos, se a deixasse ficar essa noite no quarto do Príncipe Bezerro.

Disseram-lhe que sim, e ela ficou esperando a noite, que era a sua única esperança de salvação.

Ora o criado particular do Príncipe fora dizer-lhe que havia duas noites que ficava no quarto dele uma mulher que chorava e se lamentava tanto que cortava o coração ouvi-la.

O Príncipe, que nada tinha ouvido, ficou a desconfiar que lhe tives­sem dado alguma coisa para dormir, e, à noite, em lugar de beber o copo com a água do costume, foi disfarçadamente deitá-la fora. Depois meteu­-se na cama, e, fingindo que dormia, esperou que entrasse a mulher.

Veio ela a chorar, chamou-o por marido, e, por entre soluços e lamentos, contou-lhe todas as suas desgraças.

O Príncipe ouviu, ouviu, fingindo sempre que dormia, até que por fim teve dó dela e abraçou-a, dizendo que pela sua constância e arre­pendimento, o encanto mau acabara; e que ficavam casados como dantes, porque não queria outra esposa senão ela.

No outro dia apresentou-a à mãe e a todo o povo, que a recebeu como Rainha, ficando todos muito satisfeitos por ser tão boa e tão amiga do seu Príncipe.

(Recolha de Ana de Castro Osório)

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INTRODUÇÃO

Ao pretendermos analisar numa perspectiva psicanalítica o conto, "O PRÍNCIPE BEZERRO", recolhido por Ana de Castro Osório, partimos do princípio de que toda a obra de arte, todo o texto literário não passa de uma grande metáfora, susceptível, portanto, de realizar uma transposição.

Com efeito, como brilhantemente observou Jean Bellemin-Noel (1983:19) ler uma obra literária, com os olhos de Freud "é ler o que ela cala através do que mostra e porque o mostra por este discurso mais do que por outro. Nada é gratuito, tudo é significante. O texto é um criptograma que pode e deve ser decifrado".

Sendo o texto psiquismo materializado, na medida em que toda a obra literária se estrutura em tomo de um complexo, não é de admirar que a linguagem se plasme através de uma forte carga simbólica tradu­tora de um mundo fantasmático, com as suas cargas e tensões emocio­nais (libidinais, sexuais). Nesta conformidade, abordar um texto segundo os cânones psicanalíticos implica ir ao outro lado do texto, ou seja, passar do seu conteúdo manifesto para o mundo das latências e das significâncias e tentar descobrir as suas correlações. É, em suma, dar o salto do literal para o literário. Ademais, quando se está na presença (como é ocaso) de um conto tradicional, o terreno é particularmente propício para este tipo de investidas. É que um texto não-autoral configura-se como o tipo de manifestação literária susceptível do mais vasto leque de interpretações e de leituras como refere Eric Donald Hirsch, o eminente hermeneuta norte-americano, que propugna por uma leitora unívoca do texto literário autoral.

Nesta consonância, aqui se comunga da opinião expressa por MICHEL COLLOT (1985:81) quando afirma que: "a eficácia de um texto decorre, em parte, da sua natureza trans-narcísica, da sua capacidade em mobilizar os inconscientes mais diversos, em direcções, por vezes, diferentes".

Assim, a direcção que nos propomos seguir com o conto "O PRÍNCIPE BEZERRO" não pode deixar de se incluir numa multi­plicidade de rumos possíveis.

1. TENTAME DE ANÁLISE ESTRUTURAL-DINÂMICA

É nosso entendimento que o modelo operatório utilizado na abordagem de um texto, segundo os ditames da técnica estruturalista, se plastifica num conjunto de estereótipos, de nível puramente formal, sem

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nunca atingir o seu domínio conteudístico. Traduz, afinal, a velha noção aristotélica de forma e fundo, como sendo duas entidades dicotómicas e separáveis.

Não concordando com este maniqueísmo vesgo e redutor, consi­deramos que a metodologia proposta por alguns "textanalistas", defendendo uma análise estrutural-dinâmica do texto literário, se configura muito mais aliciante e muito mais enriquecedora.

Nesta conformidade, ao tentarmos analisar, segundo a óptica psicanalítica, o conto "O PRÍNCIPE BEZERRO", começámos por segmentâ-Io em vários módulos, para de seguida procedermos à sua articulação com o conteúdo latente subjacente a cada um desses seg­mentes, correspondentes a uns tantos enigmas textuais.

Assim, o conto em questão é susceptível de poder ser micro­estruturado nos seguintes momentos:

1° AUTO-FECUNDAÇÃO DA RAINHA, VERBALMENTE DESEJADA; 2° CASAMENTO DO PRÍNCIPE POR COMISERAÇÃO; 3° QUEIMA DA PELE DO BEZERRO E DESAPARECIMENTO DO

PRINCÍPE; 4° PROVAS A QUE A MENINA É SUBMETIDA; 5° RECUSA DA RAINHA NO ACESSO DA MENINA AO PRÍNCIPE; 6° A FELICIDADE (RE)ENCONTRADA

2. AUTO-FECUNDAÇÃO DA RAINHA, VERBALMENTE DESEJADA

O "PRÍNCIPE BEZERRO" contradiz a poslçao defendida por Bruno Bettelheim (1976:408) quando afirma que o nascimento de um príncipe, sob a forma de animal, é obra de uma bruxa má. Neste caso, estamos perante um nascimento, fruto de um incessante desejo da Rainha, manifestado num momento de desespero, cuja insolência e desobediência às leis da natureza é assim castigada. A semelhança da heroína grega, também aqui a sua "hybris" é severamente alvo de punição.

Refira-se, a propósito, e por paralelismo que o Bezerro de Oiro de que fala a Bíblia, mandado construir por Aarão, também nasce sob o signo do desespero e da desobediência.

Neste texto, estamos, pois, perante um verdadeiro enigma, na medida em que a Rainha engravida sem qualquer tipo de relação sexual manifesta.

Numa perspectiva moralista e pedagógica não seria de todo desarrazoado vislumbrar aqui uma certa carga de cariz simbólico,

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tradutora da ideia de que os desejos irreflectidos podem trazer ao su­jeito da enunciação consequências verdadeiramente trágicas. Assim, não há nada melhor do que saber aguardar o normal desenrolar dos acontecimentos. Por outro lado, aqui se insinua ainda que os filhos devem ser concebidos como um acto de amor, onde não haverá lugar para a impaciência e para a cólera.

3. CASAMENTO DO PRÍNCIPE POR COMISERAÇÃO

Afirmava Bruno Bettelheim (op. Cit.) que era o pai que favorecia o encontro entre a heroína e o animal e que ela se juntava a este ou por amor ou para obedecer ao pai.

Ora, no caso vertente, nenhuma destas situações se verifica. Com efeito, não só o pai da menina se encontra ausente ao longo de todo o conto, como o casamento entre a donzela e o animal decorre unicamente da forte compaixão que aquela nutre por este: " ... a menina como era muito boa, teve dó do pobre rapaz que todos desprezavam e disse que sim, que aceitava ser sua mulher para que ele fosse menos infeliz".

Ora, um casamento alicerçado nestes pressupostos não poderia, como veremos, alcançar de imediato, grande sucesso. É que o Príncipe Bezerro, sendo por definição, um novilho, ou seja um ser ainda muito novo, mal acabado de nascer, não tinha, obviamente atingido a maturidade suficiente para dar aquele passo (casamento). Assim, o Bezerro é um ser ainda em devir, a caminho da adultidade e da sua realização. O Bezerro ainda não tinha assumido a totalidade do seu eu. É que o Príncipe encontrar-se-ia ainda fixado na fase da oralidade (Bezerro é aquele que ainda mama) e portanto ainda teria um longo período a percorrer até à sua plena realização no casamento. Com efeito, constatamos no texto que o prazer do príncipe está ligado à excitação da sua cavidade bucal, para além de ser visível uma forte angústia de desamparo psíquico (querer casar) e cujos principais traços de carácter são a avidez, a inveja ( dos outros rapazes), o optimismo/pessimismo e a sociabilidade/reserva.

Para o Príncipe, o casamento, seria o ponto culminante de uma sexualidade amadurecida, que aliás, começa por ser egoísta, imatura (fálico-agressivo-destrutiva). O Príncipe, ao pretender casar, estava a tentar resolver o seu problema edipiano, mas como veremos no módulo seguinte, esse ainda não era o momento azado.

A este respeito, não poderá ser considerado anódino ou despi­ciendo o sintagma do texto onde se faz referência à atitude da menina,

o PRÍNCIPE BEZERRO 143

quando ela se dispõe a limpar a baba ao Príncipe Bezerro. Simbo­licamente aquela excrescência poderá ser interpretada como signifi­cante do líquido seminal, deixando subentender uma relação amorosa instaurada num acto de perversão, se considerarmos que "há perversão naqueles que se entregam aos actos preliminares da união sexual" (Vocabulário de Psicanálise).

Assim, o Príncipe e a menina encontrar-se-iam, ainda, numa fase algo precoce e incipiente de uma plena realização amorosa.

Salienta-se, por último, que neste momento, o Príncipe Bezerro apresenta uma fisionomia dupla deveras curiosa: ele é animal de dia e é homem à noite, o que poderá significar que o Príncipe desejará ter uma vida sexual à noite, despojada de qualquer tipo de preocupações, angústias ou "voyeurismos".

4. QUEIMA DA PELE DO BEZERRO E DESAPARECIMENTO DO PRÍNCIPE

Um outro enigma textual é o que se relaciona com o queimar da pele do Príncipe e o seu automático desaparecimento.

Para assumir em plenitude a sua masculinidade era imperioso que o Príncipe passasse por este ritual. É que a pele corresponde à parte feminina do rapaz, de que ele deveria ser necessariamente despojado. Com efeito, se tal não ocorresse, o Príncipe Bezerro seria andrógino, ou seja, teria os dois sexos. Recorde-se a propósito que o no seu início também a divindade era bissexual, como o demonstram as antigas teogonias gregas.

Na concepção de Mircea Eliade, este acto inserir-se-ia nos cha­mados ritos iniciáticos, ainda hoje em vigor nalgumas sociedades. Na verdade, a entrada dos adolescentes no mundo dos adultos é precedida de um conjunto de provas, que se traduz num autêntico ritual. Assim, o Príncipe Bezerro, ao ser-lhe queimada a pele, estaria, a partir daí, em condições de poder ser admitido na adultidade.

Numa perspectiva simbólica, o queimar da pele corresponde ao corte do prepúcio no rito da circuncisão, que é considerado na tradição judaico-cristã como a sobrevivência feminina do indíviduo. Tal ritual é tradutor de um novo nascimento e do acesso a uma nova fase da vida. Não deixa de ser curioso constatar que segundo as concepções em vigor nalguns povos, cada ser nasce com duas almas de sexo oposto. O prepúcio seria a materialização da alma fêmea do homem. Assim, a circuncisão seria necessária para erradicar a ambivalência original e confirmar o homem na sua polarização sexual.

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o queimar da pele do Príncipe Bezerro decorreria, nesta conso­nância, da chamada angústia de castração, que marca a crise terminal do seu Édipo, inaugura o seu período de latência e precipita a formação do seu super-ego. Tal angústia de castração, materializada no ataque à integridade corporal do Príncipe (queimar da pele) situa-se, assim, na experiência, sempre traumatizante, da perda e da separação do objecto, o que, naturalmente lhe causa um certo desprazer. Todavia, como vimos, o Príncipe não poderia ultrapassar o Édipo se não se verificasse a crise da castração.

Com o queimar da pele, o Príncipe desaparece, o que vai marcar um longo intervalo na evolução da sua sexualidade. Entra numa fase em que há uma diminuição de actividades sexuais. Estamos perante o seu período de latência, que vai do declínio da sexualidade infantil até ao início da puberdade. Constatamos, deste modo, que o casa­mento tinha sido prematuro e que o castigo, materializado no encanto, deixa subentender a necessidade de um maior amadurecimento até estarem reunidas as condições para a plena consumação do casamento.

Por outro lado, realce-se o facto de a pele do Príncipe ser queimada a pedido da mãe da menina. É que ela, obviamente, não pretendia para a sua filha um ser caracterizadamente andrógino. Todavia, poderá ainda admitir-se a hipótese de a mãe, como mais velha, estar a ser relegada para um plano secundário em detrimento da filha. É o fantasma do incesto a pairar naquela sua atitude.

5. PROVAS A QUE A MENINA É SUBMETIDA

Como referimos anteriormente, se o Príncipe ainda não tinha atingido a maturidade para a consumação do casamento, outro tanto se verificava com a menina. Com efeito, há que ter em linha de conta que a pele do Príncipe é queimada após a donzela ter relatado à mãe as suas vivências aquando da noite de núpcias. Tal comportamento deixa subentender uma relação homo-erótica feminina, porquanto as coisas do sexo não se discutem com pessoas do mesmo género. Aliás, mais adiante, encontraremos o mesmo tipo de relação entre o Príncipe e o seu criado de quarto, sinal de que a clivagem sexual de ambos ainda não se tinha totalmente verificado.

Que a menina se precipitou ao aceitar o casamento, isso é facil­mente comprovável pelo facto de ela ter aceite o Príncipe Bezerro mais por comiseração do que por amor. E estes erros, frutos da imaturidade e da precocidade, são geralmente pagos bem caros.

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Dotada de uma sexualidade algo amedrontada, pouco segura das suas convicções, emocionalmente instável, a menina revela ainda a sua imaturidade ao deixar-se levar por sua mãe quando esta lhe impõe a queima da pele do Príncipe, o que ela faz sem tergiversar.

Deste acto de leviandade lhe advirão terríveis consequências, que ela terá de suportar, a fim de amadurecer como mulher. Com efeito, acaba por ser alvo de um severo castigo imposto pelo Príncipe Bezerro: "-Ai, desgraçada mulher, que dobraste o meu fadário! Agora não me tomarás a ver sem romperes sete pares de sapatos de ferro, e ninguém encontrarás que te dê notícias de mim!".

E este anátema lançado sobre a jovem será, obviamente, cumprido. É que a luz no fundo do túnel só começará a coruscar quando o último par de sapatos se tiver inteiramente rompido. Ou seja, só após o cumprimento de uma tão árdua e espinhosa tarefa é que ela estaria preparada para readquirir a almejada felicidade. Ademais, também este castigo é pleno de simbologia. É que não é aleatório o número (7) de par de sapatos que a donzela terá que gastar. Na verdade, o sete é o símbolo da perfeição e da compreensão, ao designar a plenitude, o cumprimento de um tempo, de uma era e de uma fase (atente-se no seu significado bíblico). Deste modo, se infere de que após este ciclo a donzela estaria já preparada para assumir em pleno as suas responsa­bilidades de esposa. Tenha-se em consideração, que sendo o n° 7 um número mágico, indicador da cópula, só depois de gasto o 7° sapato é que a menina estaria em condições de se realizar sexualmente. Também não é despiciendo o significado implícito ao romper desse último par de sapatos. Com efeito, a expressão idiomática portuguesa "ter os pés bem assentes no chão", reveladora de uma certa estabilidade e segu­rança, tem aqui pleno cabimento.

Por outro lado, saliente-se, que se partirmos do· pressuposto de que os sapatos são o símbolo da viagem e o ferro o significante da robustez e do rigor excessivo, daí se concluirá que a rapariga já terá expiado devidamente o seu precipitado comportamento.

Há que referir ainda o facto de as duras provas por que a dOhzela terá de passar serem, mutatis mutandis, equivalentes aos rituais de iniciação em vigor nos grupos arcaicos, provas essas, que, como no caso vertente, terão atingido as raias do estoicismo.

Numa perspectiva pedagógica, inculca-se no leitor (geralmente jovem) a noção de que para se alcariçar o sucesso é imperioso travar duras batalhas e de que o prazer alcançado sem esforço é muito mais fugaz do que aquele que é conseguido à custa de algumas frustrações.

Todavia, em "O PRÍNCIPE BEZERRO", para além das terríveis provas a que a menina se submeteu, como foi o de ter de calcorrear Seca

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e Meca, a medida ainda não estava cogulada. Com efeito, ainda teve de andar a bater às portas do Sol, da Lua e do Vento, sujeitando-se à antropofagia do primeiro e ao mau génio do último. Esta peregrinação e esta odisseia vai assim colidir com o fantasma narcísico da criança, que pretende satisfazer sempre os seus desejos sem qualquer tipo de esforço. Por outro lado, a criança fica a saber que sozinha nunca conseguirá nada na sua vida.

Todavia, a menina a tudo se sujeita, uma vez que está em causa o objecto do seu desejo, o Príncipe Bezerro, que só será reencontrado definitivamente quando o amor de ambos estiver bem sedimentado e amadurecido.

Nesta sua deambulação, a menina é recebida pela mãe do Sol (uma velha), pela mãe da Lua (uma velha) e por uma jovem (mulher do Vento), situações que deixam antever a solução final do conto. As velhas poderão simbolizar o fantasma oponente da rainha (a mãe do Príncipe) enquanto a relação Vento + jovem parece perspectivar um final feliz para a menina. Dos três elementos (Sol, Lua, Vento) é curioso verificar que só o último conseguiu orientar a jovem na sua incessante procura. É que o Vento simboliza o filho "voyeurista" da cena primi­tiva, que vê tudo e que sabe tudo. Neste caso, prenuncia a plena satis­fação dos desejos da menina. Ademais, sendo o Sol o símbolo da Ressureição, da vida, do calor e da luz, ele pode configurar no texto a perspectiva iminente de uma nova vida para a donzela, de uma nova ressurreição (reencontro). Por seu turno, a Lua, simbolizando a passagem da vida à morte e da morte à vida, evocando a luz no meio das trevas, também ela deixa antever e entrever uma nesga de felicidade.

Também não é por acaso que Sol, Vento e Lua tenham oferecido à menina o mesmo fruto, uma noz, produto que na tradição grega está ligado ao dom da perfeição, da clarividência e da fecundidade, prolepticamente perspectivando uma solução verdadeiramente eufó­rica, corroborada pelo conteúdo daquele fruto: o ouro, também ele o símbolo da perfeição e da felicidade. A iminência do retomo é ainda subentendida na configuração circular dos objectos inseridos na noz: uma dobadoura e um sarilho.

Não se deve também desconsiderar o tipo de pedras preciosas a que o texto faz referência: esmeraldas, safiras e rubis, todas elas generi­camente simbolizando a transmutação, a passagem do opaco ao translúcido, das trevas à luz, da imperfeição à perfeição, situações que envolvem a donzela na busca do seu Príncipe.

Individualmente considerados, a esmeralda, a safira e o rubi tam­bém eles estão imbuídas de uma carga simbólica verdadeiramente pertinente ao conteúdo e ao momento do conto em questão. Com efeito,

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a esmeralda em Roma dedicada a Vénus, era tida como o mais poderoso dos talismãs, para além de simbolizar a Primavera e de ser a pedra da clarividência. A safira, considerada como o melhor talismã contra o mau olhado, era ainda a pedra da esperança. Finalmente, o rubi era tido como a pedra dos amorosos, emblematicamente representando a felicidade e anunciava a reconcialiação.

Nesta conformidade, as pedras preciosas auguravam, na sua linguagem simbólica, um verdadeiro "happy end" para as duas perso­nagens principais do conto.

Que as provas a que a menina é submetida se inserem no ritual característico de sociedades onde a iniciação assume um pendor fortemente marcante, tal facto facilmente se evidencia no animal que se encontra no interior da última noz: uma galinha. É que este animal era utilizado nalgumas sociedades arcaicas, no âmbito das cerimónias iniciáticas e advinhatórias, onde desempenhava um papel psicopónipo. Nesta conformidade, todo o tipo de provas que envolveram a menina, quer a angústia da castração do Príncipe Bezerro, acabam por dar razão a Mircea Eliade, quando refere que os contos tradicionais são sempre de cariz fortemente iniciático.

Sintomático é ainda o facto de a donzela, mau grado a noz lhe ter sido oferecida para matar a fome, ela conseguir superar estoicamente tal necessidade, reservando o seu conteúdo para salvar o seu Príncipe. Todavia, também não seria desarrozoado descortinar aqui, no momento em que a menina abre a noz (quem deveria abrir seria o homem) o fantasma de um acto de teor masturbatório. Aliás, este tabu da virgindade encontra-se ainda presente ao longo do conto, não apenas neste momento mas também no enigma do gastar dos sapatos e do aguentar heroicamente a fome.

6. RECUSA DA RAINHA NO ACESSO DA MENINA AO PRÍNCIPE

A mãe do Príncipe Bezerro, tenta por todos os meios, não obs­tante a oferta do dote (ouro da noz) por parte da menina, obstaculizar o acesso da jovem ao filho. Assim, estaremos perante uma mãe fá­lica, agressiva, fazendo todos os possíveis por impedir a plena erup­ção da sexualidade ao seu filho. É ela uma mãe má, que sendo a primeira educadora, será totalmente responsável pelos seus tabus sexuais. Ademais, neste momento, após um maior amadurecimento, a menina estava já em condições de se ligar eternamente ao seu Prín­cipe.

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Todavia, como mãe fortemente edipiana, ela tenta opor-se à plena realização e satisfação sexual do filho, não hesitando em deitar dormideiras na água, que o Principe bebia todas as noites, com a finalidade de ele esquecer a rapariga. O produto fora adrede esco­lhido, porquanto a dormideira era comummente utilizada nos mistérios de Elêusis, simbolizando a força do sono e do esquecimento que se apodera dos homens após a sua morte (encanto do Príncipe) e antes do renascimento (reencontro). Contudo, mau grado, todos os obstáculos intentados pela mãe, tendentes a servir de travão à livre explosão sexual do Príncipe, esta acabará, fatalmente, por concretizar-se. A este pro­pósito, convém notar a existência das constantes referências, no conto, ao número 3. Com efeito, foram 3 os interlocutores da menina (Sol, Lua e Vento), foram 3 as nozes concedidas, foram 3 as tentativas de (re)aproximação da donzela ao Príncipe. É que o n° 3 liga-se ao sexo (não ao acto sexual "tout court" - entenda-se). Este número relaciona-se a algo que deve preceder, de longe, a maturidade sexual. É a desco­berta de que se está maduro no plano biológico.

7. A FELICIDADE (RE)ENCONTRADA

Tendo como adjuvante o seu criado, (relação homo-erótica masculina a que atrás fizemos referência), o Príncipe não ousa beber a água com as dormideiras na terceira noite e "foi disfarçadamente deitá-la fora. Depois meteu-se na cama, e, fingindo que dormia, esperou que entrasse a mulher".

Nesta conformidade, nada mais restou ao Príncipe do que abra­çar a mulher dizendo que pela sua constância e arrependimento, o encanto mau acabara e que ficavam casados como dantes. Constatamos, assim, que após um tempo de amadurecimento absolutamente neces­sário aos dois "esposos" a sexualidade tinha de irromper na sua máxima pujança e sem qualquer tipo de freios.

Numa perspectiva pedagógico-moralista, insinua-se na parte final do conto, que apesar da donzela ter averbado duas derrotas antes de alcançar o seu objectivo e apesar das duras provas a que teve de sujei­tar-se, não se deve desistir logo à primeira contrariedade ou ao primeiro insucesso. É que, tudo na vida se alcança com muito trabalho e muita perseverança. Aliás, esta é uma mensagem implícita na maior parte dos contos infantis. É necessário sempre muita coragem e determinação para vencer obstáculos e contrariedades. Como afirmava Freud, o homem estrutura a sua personalidade e encontra um sentido para a sua existên­cia quando é capaz de superar ao menos algumas dessas dificuldades.

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Sob o ponto de vista psicanalítico, poderemos encontrar neste texto os dois princípios que regulam a nossa vida psíquica: o princípio do prazer e o princípio da realidade. Com efeito, muitas vezes teremos de ceder ao princípio do prazer, que nos leva a obter a imediata satis­fação de todos os nossos desejos e adoptar o princípio da realidade, segundo o qual temos de aceitar muitas frustrações até à obtenção de recompensas duradouras. Com efeito, com o desparecimento do Prín­cipe Bezerro, o princípio do prazer vai ficar suspenso para dar lugar ao princípio da realidade. Na verdade, em função de uma série de condições expostas pelo mundo exterior, o prazer acaba por ser simplesmente adiado, até estarem reunidas as condições (maturidade sexual) para a sua plena satisfação.

No conto em apreço, o princípio da realidade instaura-se no lapso de tempo que medeia entre o desaparecimento do Príncipe e o final reencontro dos dois esposos, "que ficaram casados como dantes, porque (o Príncipe Bezerro) não queria outra esposa senão ela". Num plano meramente filosófico, o objectivo perdido e reencontrado pode ser considerado como a ilustração da teoria platónica da reminiscência.

8. CONCLUSÃO

Embora este texto se insira no ciclo dos contos da Bela e do Monstro, cuja tradição ocidental se costuma situar na história de Cupido e Psique da autoria de Apuleio (II Séc. A.c.), ele apresenta particu­laridades, cujo significado tentámos explicitar anteriormente. De qualquer modo, poderíamos detectar neste conto as duas naturezas inerentes a todo o ser humano: uma natureza animal, simbolicamente materializada no Príncipe Bezerro e uma outra de teor espiritual tipifi­cada na menina.

Por outro lado, não deixa de ser interessante a adesão infantil a este tipo de contos, que nos surgem sempre imbuídos de uma forte carga de fantasia, a qual acaba por manipular e aliviar as tensões dos leitores, impressionando-os, encantando-os e dando-lhes conforto. Ainda que o público infantil saiba perfeitamente fazer a destrinça entre bezerros e homens, eles são particularmente sensíveis a esta modalidade. Se assim não fosse, não teriam surgido contos sobre príncipes-bezerros.

Com efeito, em TOTEM E TABU (Pag. 148) Freud realça o facto de "as crianças não terem escrúpulos em permitir que os animais se classifiquem como seus plenos iguais ... sentem-se mais aparentados com os animais do que com os seus semelhantes mais velhos, que bem podem constituir um mistério para elas".

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Como em todos os contos deste jaez, verificamos aqui a ausência da onomástica nas personagens, o que traduz a ideia de que a Raínha, o Príncipe, a Menina, etc. se configuram como arquétipos intemporais da sabedoria humana, não situáveis, portanto nem espacial nem historicamente. Deste modo mais facilmente se permitirão as projecções e as identificações. A sua não localização (em tempos muito remotos) acaba por conotar, numa perspectiva psicanalítica, o nosso inconsciente, ao remeter para os tempos mais recuados da nossa existência.

É que como dizia Bruno Bettelheim (Op. cit. pago 61) "os contos dirigem-se a nós numa linguagem simbólica que traduz um material inconsciente" .

BIBLIOGRAFIA

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