visão psiquiátrica do crack

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    Editorial a convite

    Rev Psiquiatr RS. 2008;30(2):96-98

    Uma viso psiquitrica sobre ofenmeno do crackna atualidadeA psychiatric view on the crack phenomenon nowadays

    Felix Kessler1, Flavio Pechansky2

    1Psiquiatra. Vice-diretor, Centro de Pesquisa em lcool e Drogas, Hospital de Clnicas de Porto Alegre (HCPA), Universidade Federal do RioGrande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. 2Psiquiatra. Diretor, Centro de Pesquisa em lcool e Drogas, HCPA, UFRGS.

    No inc io da dcada de 80, socioetngrafosamericanos descreveram na literatura cientfica uma novae potente forma de uso de cocana a inalao do vaporexpelido da queima de pedras, manufaturadas a partir docozimento da pasta bsica combinada com bicarbonatode sdio. Quando queimada em um cachimbo de vidroou outro recipiente, produzia um rudo tpico de estalo,tendo sido, por isso, chamada de crack. O seu uso nesseformato permitia uma disseminao macia da substnciapara o crebro, obtendo efeitos mais estimulantes emuitssimo prazerosos. O incio de ao da droga tambm

    era rpido, porm mais fugaz, e os usurios descreviamuma fissura (craving, em ingls) quase incontrolvelquando a estavam utilizando. Os relatos iniciais sobre osindivduos que ousavam experiment-la descreviam-noscomo escravos dos seus efeitos; muitos terminavamsucumbindo devido aos danos causados ao organismo.Na poca, as pedras eram vendidas por aproximadamente25 dlares, segundo reportagens divulgadas nos jornaisde Los Angeles e de Nova Iorque. Entretanto, mesmoaps 1 ano de bombardeamento pela mdia leiga sobreesse tema, a Drug Enforcement Agency dos EUA ainda

    considerava essa forma de uso de cocana como umproblema menor, quando comparada cocana inalada1.Alguns desses dados e relatos anedticos foram

    sendo confirmados, como o grande potencialdependgeno da droga, e outros no, como a sualetalidade. De qualquer modo, no incio da dcada de90, vrias revises sobre o tema foram publicadas nointuito de contrapor os mitos e as evidncias cientficasrelacionadas a essa droga, alm de alertar as autoridadessobre a possibilidade de uma epidemia e sugerir formasde preveno e tratamento da dependncia e dosproblemas associados a ela2,3. Contudo, de formasurpreendente, as publicaes americanas foramescasseando na ltima dcada, sendo que vrias dessasquestes se encontram em aberto at o momento particularmente no que se refere ao tratamento dessadependncia.

    A histria do crackno Brasil seguiu uma trajetriasemelhante, porm com um atraso de aproximadamente10 anos em relao ao hemisfrio norte. Depois davirada do milnio, vrios relatos sobre esse tema foramproduzidos, denotando uma preocupao cada vez maiordos profissionais da sade e pesquisadores com o usodo crackpela populao e suas conseqncias. Estudosquantitativos e qualitativos foram desenvolvidos edemonstraram, por exemplo, que o preo de uma pedrade crack no Brasil era muito menor, custandoaproximadamente 2 dlares. Notou-se tambm que

    muitos dos antigos usurios de cocana decidiramsubstituir o formato injetvel pela via fumada. Emfuno do maior custo e da dificuldade de portabilidadedos cachimbos, os usurios brasileiros engenhosamentedesenvolveram uma maneira de fumar atravs do usode latas de alumnio furadas e com o auxlio de cinzasde cigarro, que aumentam a combusto. Alm do riscocontinuado de queimaduras labiais, recentementeaventou-se a possibilidade de elevao dos nveis dealumnio no sangue desses usurios, o que poderia trazermais danos ao sistema nervoso central. No que compete

    ao risco de exposio para o HIV, um estudo publicadoem 2006 por Pechansky et al.4, analisando umpoolde1.449 usurios de drogas de Porto Alegre, demonstrouque o perfil dos usurios de crack muito parecido como dos usurios de cocana injetvel, por apresentarembaixo nvel socioeconmico e maior tendncia a trocarsexo por droga, o que termina se expressando por umaaltssima taxa de soroprevalncia quando comparadacom a de usurios de cocana inalada.

    Mais do que um dano especfico ao organismo doindivduo, est claro para a comunidade cientfica e leigabrasileira que o crack uma droga de grande impacto.No momento atual, uma das questes centrais discutidasno pas a prevalncia de seu consumo. Os principaisestudos nessa rea foram realizados pelo CentroBrasileiro de Informaes sobre Drogas Psicotrpicas,sendo que apenas nos ltimos levantamentos o uso de

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    crack foi relacionado, corroborando estudos pontuaisque sugerem haver realmente um aumento no seuconsumo. O quinto levantamento, realizado entre alunosdo ensino mdio e fundamental das escolas pblicas doBrasil, constatou que 2% dos estudantes at 18 anosusaram cocana pelo menos uma vez na vida, e 0,7%usaram crack5. Entretanto, importante salientar queestudos de natureza epidemiolgica obtidos em escolastm como natural vis a obteno de dados sobre alunosque estejam matriculados, cursando e presentes em salade aula no dia da coleta. Por suas caractersticaspeculiares, o crack no uma droga que permita aconvivncia em um ambiente de ensino, eprovavelmente os dados obtidos dessa forma encontram-se subestimados. Do mesmo modo, o segundolevantamento domiciliar realizado em indivduos de 12

    a 65 anos nas 108 maiores cidades brasileiras e publicadoem 2007 tambm chegou a essa mesma mdia depercentagem de experimentao de crack, exceto nasregies sul e sudeste, que costumeiramente apresentamtaxas mais altas de consumo de cocana6. Recentemente,um estudo coordenado pelo Centro de Pesquisa emlcool e Drogas da UFRGS em cinco centros detratamento ambulatorial e hospitalar de quatro capitaisbras ilei ras encontrou que 39,4 % dos pacientesprocuraram o atendimento devido ao uso de crack.Entretanto, a avaliao do nmero de dependentes dessa

    droga na populao brasileira ainda no foi estudada eexigiria mtodos de aferio mais complexos.A mdia brasileira tem relatado casos de uso de

    cracktambm nas classes mdia e alta, mas ainda faltamevidncias cientficas de que esse ndice seja alarmante.Hartman & Gollub, em 1999, analisaram reportagenspublicadas em jornais americanos sobre a epidemiado crack e concluram que estas eram sensacionalistas,pois no tinham embasamento cientfico e ter iamocasionado um desvio de foco das autoridades sobreoutros problemas sociais mais relevantes7. Demonstrou-se que, com a melhora da economia americana na dcada

    de 90 e a entrada de outras drogas, como opiides dealta potncia e as chamadas designer drugs, houve umadiminuio de 60% no consumo de crack. Resta saberse no Brasil o fenmeno se repetir ou se ocorrer umaepidemia de maiores propores. Em 2008, foipublicada uma reviso sobre o perfil dos usurios decrack brasileiro, confirmando que realmente a maiorparte dos usurios ainda jovem, de baixa renda e dosexo masculino8. O uso de cracknas classes mais altas,muitas vezes, poderia estar associado a comorbidadespsiquitricas, como os transtornos de personalidade e

    os de humor. Independente dos nmeros, o que nossensibiliza na expanso do uso de crack a velocidadedo deterioro da vida mental, orgnica e social doindivduo. No se pode deixar de citar o fenmeno dascrianas (crack babies) intoxicadas por essa droga

    durante a gravidez. Sabe-se que o uso de crackdurantea gestao pode desencadear abortos espontneos,prematuridade, diminuio no crescimento do feto eoutras alteraes perinatais. Alm disso, aqueles quenascem vivos podem apresentar retardo mental ou outrostranstornos mentais e comportamentais que traro sriasconseqncias para suas vidas9,10.

    A relao entre uso de cracke mortalidade no direta. inegvel que o ndice de mortalidade entreusurios de crack seja grande, mas importantecompreender que os bitos so mais comumenteassociados a elementos de trfico, disputa entre pontosde venda/uso ou enfrentamentos com a polcia do quepropriamente pelo dano causado diretamente pela drogaem si. Uma coorte realizada em So Paulo por 5 anos,com 131 usurios, demonstrou em que as maiores causas

    de morte eram por homicdio e AIDS11. Vrios estudoscorrelacionam o uso de crack a um aumento daagressividade, especialmente nos perodos deabstinncia, e a relao entre essa agressividade e amortalidade descrita acima forte. As regies onde hgrande consumo dessa droga costumam apresentarndices mais altos de violncia e crimes em geral.

    O crack uma droga de difcil tratamento particularmente se levarmos em considerao osmodelos atualmente propostos para atendimento dedrogas no Brasil. A maioria dos autores afirma que a

    abordagem deve ser multidisciplinar e dividida emdiversas etapas atravs de um modelo complexo decaracterstica biopsicossocial, enfocando especialmenteas estratgias de preveno de recada. O uso depsicofrmacos costuma auxiliar, apesar de ainda nohaver uma medicao considerada eficaz para o uso decrack. Na maioria das vezes, essa abordagem incluiaspectos individuais, familiares e sociais, dirigidos aosproblemas mais graves associados aos dependentes,como problemas psiquitricos, legais e de emprego.Cabe considerar aqui que modelos preventivos deabordagem, do tipo reduo de danos, parecem

    apresentar pouco resultado nessa populao de usurios.Medidas como cachimbos descartveis ou outrasestratgias que se baseiam predominantemente namanuteno de uso seguro bastante aceitveis emoutras modalidades de uso de substncia noapresentam eficcia comprovada em usurios de crack.Dessa forma, a estratgia que pareceria demonstrarmaior resultado passa por uma estrutura de tratamentode longo prazo, que contempla uma internao inicialem ambiente psiquitrico localizado em hospital gerale se estende para um modelo de atendimento baseado

    em comunidades teraputicas fechadas ou com alto graude intensidade de tratamento, tambm por longosperodos freqentemente de 6 meses a 1 ano. Cabesalientar que a rede familiar e social tem um papelpreponderante na aderncia ao tratamento, devido

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    baixa motivao dos pacientes, e no monitoramento porlongo prazo durante o perodo de manuteno daabstinncia. Os casos que no tm fcil acesso ao sistemade sade ou no tm apoio externo costumam ter baixosndices de recuperao. Para esses casos, indica-se quea equipe de sade procure-os ativamente, utilizandotcnicas focadas na adeso ao tratamento e fornecimentode incentivos12.

    Infelizmente, no Brasil, a escalada do crackcoincidiu com a poltica de fechamento de leitospsiquitricos, e a rede pblica no tem tido capacidadede absorver toda a demanda. De acordo com JooAlberto Carvalho, presidente da Associao Brasileirade Psiquiatria, o pas conta com apenas 1.800 leitospsiquitricos em hospital geral13. O grande desafio ode instituir polticas preventivas para a populao sob

    maior risco de contato com essa droga, que deveriamincluir programas sociais e alternativas ocupacionaisrecompensadoras. No que compete ao tratamento doscasos identificados, mister que as orientaesprovenientes do Ministrio da Sade contemplem omodelo mdico de assistncia, devido gravidade doscasos. tambm necessrio que os programas deatendimento e as polticas desenvolvidas sejam maisembasados nas evidncias cientficas j disponveissobre o tratamento das dependncias qumicas.Certamente que, para serem mais efetivos, esses

    modelos exigem uma disponibilizao maior de recursosdo poder pblico do que os tratamentos utilizados paraoutras doenas crnicas, o que muitas vezes gera certaresistncia. Contudo, caso essas medidas no sejamimplementadas brevemente, continuaremos a ver nosjornais um aumento do nmero de notcias e imagensestampadas sobre o descaso com o impacto dessa droga seja sob a forma de usurios amarrados nos leitos

    domiciliares pelos seus familiares por pura falta deestrutura do Estado, seja nas pginas policiais.

    Referncias1. Inciardi JA. Cocaine, crack and other masquerados for mama coca. In:

    Inciardi JA, ed. The war on drugs III the continuing saga of themysteries and miseries of intoxication, addiction, crime, and public

    policy. Boston: Allyn and Bacon; 2002. p. 129-66.2. Cornish JW, OBrien CP. Crack cocaine abuse: an epidemic with many

    public health consequences. Annu Rev Public Health. 1996;17:259-73.3. Haasen C, Krausz M. Myths versus evidence with respect to cocaine and

    crack: learning from the US experience. Eur Addict Res. 2001;7(4):159-60.

    4. Pechansky F, Woody G, Inciardi J, Surratt H, Kessler F, Von Diemen L,et al. HIV seroprevalence among drug users: an analysis of selectedvariables based on 10 years of data collection in Porto Alegre, Brazil.Drug Alcohol Depend. 2006;82(suppl 1):S109-13.

    5. Galdurz JC, Noto AR, Fonseca AM, Carlini EA. V LevantamentoNacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrpicas entre Estudantes doEnsino Fundamental e Mdio da Rede Pblica de Ensino nas 27 CapitaisBrasileiras. So Paulo: CEBRID/UNIFESP; 2004.

    6. Carlini EA, Galdurz JC, Noto AR, Carlini CM, Oliveira LG, Nappo SA,et al. II Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrpicas noBrasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do pas, 2005. SoPaulo: CEBRID/UNIFESP; 2007.

    7. Hartman DM, Golub A. The social construction of the crack epidemic inthe print media. J Psychoactive Drugs. 1999;31(4):423-33.

    8. Duailib LB, Ribeiro M, Laranjeira R. Profile of cocaine and crack users inBrazil. Cad Saude Publica. 2008;24(supl 4):545-57.

    9. Litt J, McNeil M. Biological markers and social differentiation: crackbabies and the construction of the dangerous mother. Health Care WomenInt. 1997;18(1):31-41.

    10. Lyons P, Rittner B. The construction of the crack babies phenomenon asa social problem. Am J Orthopsychiatry. 1998;68(2):313-20.

    11. Ribeiro M, Dunn J, Sesso R, Dias AC, Laranjeira R. Causes of deathamong crack cocaine users. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(3):196-202.

    12. Henskens R, Garretsen H, Bongers I, Van Dijk A, Sturmans F.Effectiveness of an outreach treatment program for inner city crackabusers: compliance, outcome, and client satisfaction. Subst Use Misuse.2008;43(10):1464-75.

    13. Carvalho JA. Pela incluso dos pacientes mentais na rede geral de sade[editorial]. Psiquiatria Hoje. 2008;3(4):3.