vírus, mosquitos e modernidade- a febre amarela no brasil- entre ciência e política- ilana lowe

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HIstoriografia , Brasil,

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  • Vrus, mosquitos e modernidade

    a febre amarela no Brasil entre cincia e poltica

    Ilana Lwy

    Irene Ernest Dias

    (trad.)

    Flavio Edler

    (rev.)

    SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

    LWY, I. Vrus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasil entre cincia e poltica [online].Traduo de Irene Ernest Dias. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2006. Histria e Sade collection.ISBN 978-85-7541-239-8. Available from SciELO Books .

    All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

    Todo o contedo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, publicado sob a licena Creative Commons Atribuio - Uso NoComercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 No adaptada.

    Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, est bajo licencia de la licencia Creative CommonsReconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

  • Vrus, mosquitos e modernidade: a febre amarela no Brasilentre cincia e poltica

    FUNDAO OSWALDO CRUZ

    Presidente

    Paulo Marchiori Buss

    Vice-Presidente de Ensino, Informao e Comunicao

    Maria do Carmo Leal

    EDITORA FIOCRUZ

    Diretora

    Maria do Carmo Leal

    Editor Executivo

    Joo Carlos Canossa Pereira Mendes

    Editores Cientficos

    Nsia Trindade Lima e Ricardo Ventura Santos

    Conselho Editorial

    Carlos E. A. Coimbra Jr.

    Gerson Oliveira Penna

    Gilberto Hochman

    Lgia Vieira da Silva

    Maria Ceclia de Souza Minayo

    Maria Elizabeth Lopes Moreira

    Pedro Lagerblad de Oliveira

  • Ricardo Loureno de Oliveira

    Coleo Histria e Sade

    Editores Responsveis:

    Jaime L. Benchimol

    Flavio C. Edler

    Gilberto Hochman

    Vrus, Mosquitos e Modernidade: a febre amarela no Brasil entre cincia e poltica

    Ilana Lwy

    Traduo: Irene Ernest Dias

    Reviso tcnica: Flavio Edler

    Copyright 2005 da autora

    Originalmente publicado em francs sob o ttulo Virus,Moustiques et Modernit: la fivre jaune auBrsil entre science et politique (ditions des Archives Contemporaines, 2001)

    Direitos para a lngua portuguesa reservados com exclusividade para o Brasil FUNDAOOSWALDO CRUZ / EDITORA

    ISBN: 978-85-7541-239-8

    Capa e projeto grfico

    Anglica Mello, Guilherme Ashton e Daniel Pose

    Ilustrao da capa

    Turma do Servio de Profilaxia da Febre Amarela preparando-se para fumigao com gs Clayton,usado no combate ao Aedes aegypti em sua forma alada. Rio de Janeiro, entre 1903 e 1906. Fotografia.Acervo da Casa de Oswaldo Cruz.

  • Editorao eletrnica

    Guilherme Ashton

    Reviso tcnica

    Flavio Edler

    Superviso editorial

    Irene Ernest Dias

    Catalogao na fonte

    Centro de Informao Cientfica e Tecnolgica

    Biblioteca da Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca

    L922v

    Lwy, Ilana

    Vrus, mosquitos e modernidade [livro eletrnico] : a febre amarela noBrasil entre cincia e poltica. / Ilana Lwy; [traduo, Irene Ernest Dias]. -Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.

    2760 Kb ; ePUB . il. (Coleo Histria e Sade)

    Traduo de: Virus, moustiques et modernit: la fivre jaune au Brsil entrescience et politique.

    1. Vetores de doenas. 2. Febre amarela-histria. 3. Sade pblica-histria. I.Ttulo. Brasil.

    CDD - 20.ed. - 614.541

    2006

    EDITORA FIOCRUZ

    Av. Brasil, 4036 -1 andar - sala 112 - Manguinhos

    21040-361 - Rio de Janeiro - RJ

    Tel.: (21) 3882-9039 e 3882-9041

  • Telefax: (21) 3882-9006

    e-mail: [email protected]

    http://www.fiocruz.br/editora

  • Prefcio edio original

    Hoje, mal podemos imaginar a devastao que a febre amarela podia provocar nas aglomeraes dafrica e da Amrica tropical, ou quando de suas irrupes nos portos da Europa ou da Amrica doNorte. A mortalidade era assustadora em certas epidemias. Entre pessoas recm-chegadas zonaendmica, sobretudo, todos concordavam em observar particular sensibilidade doena. Durantemuitos sculos, todos esses lugares tm uma histria tragicamente entremeada de terrveisdevastaes do "typhus amaril". A ignorncia que, at os anos 1880, reinava quanto s causas dadoena e ao seu modo de propagao s podia agravar a situao, provocando os mais fantasiososrumores e alimentando terrveis polmicas. Isolando ainda mais as populaes, interrompendo todo ocomrcio, as quarentenas e os cordes sanitrios asfixiavam as cidades e aumentavam a angstia.

    A histria da febre amarela se inscreve facilmente na histria da teoria dos germes de Louis Pasteur.Entretanto, o que Ilana Lwy nos prope no uma histria da febre amarela no Brasil, mas antes umareflexo sobre uma fase crucial da histria desta doena. Inicialmente, era de fato importanteexaminar as relaes entre o saber cientfico universal e a percepo da doena tanto pelos pacientesquanto pelos mdicos. Esta uma reflexo epistemolgica essencial. Na poca a transferncia deconhecimentos e a circulao dos saberes no ocorriam automaticamente. isso ainda acontece nosdias de hoje. Em segundo lugar, trabalhando no Brasil e nos Estados Unidos, Ilana Lwy conseguiuobter em primeira mo informaes preciosas, at ento adormecidas em relatrios de arquivos e emdocumentos de acesso freqentemente difcil. Isso permite abrir um grande espao para as percepes,pelas populaes e pelos meios polticos, das medidas de preveno preconizadas e aplicadas peloscientistas da Fundao Rockefeller e, naturalmente, para as oposies a essas aes desenvolvidas noseio dessa sociedade brasileira multitnica, que acolhia grande nmero de imigrantes. , de fato,essencial que se esteja em condies de recolocar o assunto no contexto poltico e social da poca.

    em 1914, aps os sucessos alcanados na luta contra a ancilostomase, que a Fundao Rockefellerentra em cena combatendo a febre amarela no Brasil, baseando-se, para isso, no famoso artigo deWickliffe Ross que prope a "teoria do foco-chave".

    No Brasil, como em outros lugares, "os especialistas da Fundao Rockefeller vieram, portanto, comuma cincia de sade pblica pronta, que no se modificou no contato com seus colegas brasileiros".Tudo isso mostra bem que, em sade pblica, no se trata apenas de problemas de pura tcnicamdica, mas h muito mais em jogo.

    Hoje, sabemos que essa "teoria do foco-chave" estava equivocada, como j pensavam os pasteurianose muitos outros; esta certeza absoluta exibida pelos especialistas da fundao deveria, alis, incitar aprudncia de todos aqueles que, ainda hoje, se apiam unicamente, em matria de doenastransmissveis, em consideraes tericas e modelos matemticos para explicar as situaesepidemiolgicas e prever as emergncias futuras, sem se preocupar em levar em conta tambm oimpacto de vrios fatores, to difceis de quantificar, ligados ecologia humana. A natureza se recusaa se deixar encerrar em categorias e em frmulas matemticas.

    Assim, as dificuldades encontradas na prtica do controle do Aedes gypti so bem clssicas; elaspersistem ainda hoje onde quer que se queira desenvolver esse tipo de ao.

  • Todavia, ainda que os avanos obtidos especialmente graas intuio e energia de Soper, e quelevaram inevitavelmente ao abandono da teoria do foco-chave, tenham desencadeado uma mudanamarcante da poltica sanitria, observa-se que em nenhum momento fala-se da possibilidade de umapermanncia do vrus amarlico nas populaes de mosquitos por meio de uma transmisso vertical,fenmeno no entanto demostrado desde 1905 pelos cientistas franceses em misso no Rio de Janeiro.

    Graas a seus talentos de historiadora, Ilana Lwy soube recolocar a ao mdica no Brasil de ento. assim que, ao ler esta obra, tomamos conscincia dos fatos de que a instaurao do regime autoritriode Getlio Vargas, num pas onde a cultura da violncia onipresente, sem dvida alteroucompletamente a situao em matria de sade pblica e de que a "campanha contra a febre amarelaempreendida pela Fundao Rockefeller inseria-se perfeitamente naquele novo contexto". Esse fatopoltico teria sido decisivo para o sucesso de Soper? Este teve, em todos os casos, a maior liberdade deao para acionar seu dispositivo de controle dos Aedes. Por mais que tenham aflorado os bons e osmaus aspectos dessa ao, nunca se ter dito o bastante sobre os controles incessantes, o rigor apesarda rotina, sobre a extraordinria organizao quase militar da administrao que pode, alis, ser vistacomo um "fanatismo quase religioso" no seio daquele "exrcito permanente em campo", segundo aexpresso de Fred Soper. foi mesmo graas a esse "esprito missionrio" que mais de duas mil casaspuderam ser visitadas em 1930 e 1942.

    Porm, mais tarde, outros dados vieram mudar a situao: o surgimento do DDT, a evidncia daexistncia de um reservatrio animal silvestre que tornava a erradicao da febre amarela totalmenteirrealista, o desenvolvimento de vacinas.

    De todo modo, o fato de que o Aedes gypti tenha sido quase erradicado da Amrica Latina graas aosnorte-americanos, mas que estes mesmos norte-americanos no tenham conseguido retir-lo doprprio territrio dos Estados Unidos, no o menor dos paradoxos. Como no retomar aqui a frase deSoper: "O erradicador sabe que seu trabalho no se mede pelo que foi feito, mas que o grau de seufracasso se mede por aquilo que ainda resta a fazer".

    Ilana Lwy pde reconstituir com muito cuidado a histria das pesquisas sobre a preparao da vacinaantiamarlica. Os testes em humanos eram praticados em condies que, hoje, dariam arrepios; elascertamente no esto afinadas com nosso atual "princpio de precauo". Ainda aqui, imperativo serecolocar no contexto da poca para apreciar a determinao dos pesquisadores. preciso tambmlevar em conta os riscos que os prprios pesquisadores corriam.

    O desenrolar do fio da histria, com seu cortejo de glrias e de misrias, de perseverana e dereviravoltas, leva, pouco a pouco, situao hoje prevalecente. que situao essa? Sabemos como,no plano tcnico, possvel eliminar o mosquito vetor Aedes gypti, mas, aps os sucessos alcanadosna primeira metade do sculo XX, este voltou a invadir, progressivamente, a partir dos anos 1970, amaior parte da Amrica tropical; ele continua presente, especialmente no Brasil, que se declara prontopara relanar um amplo programa nacional de eliminao; de fato, aos olhos de muitosepidemiologistas, a Amrica Latina est de novo gravemente ameaada. Dispe-se de uma vacinaextremamente eficaz e bem tolerada e, no entanto, cerca de duzentos mil casos de febre amarela (emmdia) teriam surgido atualmente, segundo as estimativas da OMS; h aproximadamente 15 anos,epidemias importantes se manifestam no continente africano. A OMS mudou sua poltica: seusprogramas horizontais, baseados nos famosos cuidados primrios de sade, visam no mais "erradicao", mas ao "controle" das endemias, num contexto marcado pela falta de recursosfinanceiros, falta de competncias, falta de vontade poltica.

  • Decepcionante? Sem dvida. Desesperador? Certamente no, mesmo que, por vezes, possamos ter aimpresso de que a Histria um eterno recomeo.

    Franois Rodhain

    Professor do Instituto Pasteur

    Setembro de 2000

  • Agradecimentos

    Este livro se origina de um acordo de cooperao entre o Inserm (Institut National de la Sant et de laRecherche Mdicale) e a Fiocruz, que me ps em contato com pesquisadores brasileiros da Casa deOswaldo Cruz (Rio de Janeiro) e me familiarizou com as pesquisas sobre a histria da biologia, damedicina e da sade pblica no Brasil. Este trabalho contou com o apoio e a ajuda de meus colegas daex-unidade 158 do Inserm que participaram do intercmbio com o Brasil: Franois Delaporte, Anne-Marie Moulin e Patrice Pinei. Ele no teria sido possvel sem o generoso apoio de grande nmero depesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz. Sou especialmente grata aos pesquisadores brasileiros quecolocaram a minha disposio suas pesquisas no publicadas e que pacientemente me ajudaram a mefamiliarizar com a histria e a sociedade brasileiras: Jaime Benchimol, Paulo Gadelha, GilbertoHochman, Nsia Trindade Lima e Vera Portocarrero. Beneficiei-me tambm das discusses e trocascom colegas que estudam a cincia e a medicina fora do Ocidente, o papel da Fundao Rockefeller ea circulao dos saberes e das prticas cientficas, mdicas e tcnicas. Sua lista, muito seguramenteincompleta, inclui: Warwick Anderson, Bridie Andrews, William Bynum, Marie-Nolle Bourguet,Anne-Emanuelle Birn, Marcos Cueto, Andrew Cunningham, Annick Gunel, Catherine Jami, LionMurard, Michael Osborde, Dominique Pestre, Patrick Petitjean, Jean-Franois Picard, BarbaraRosenkrantz, Nancy Stepan, Lynette Schumaker, Paul Weindling, Michael Worboys e PatrickZylberman.

    O trabalho no poderia ter se realizado sem a ajuda preciosa dos arquivistas na Frana, no Brasil, nosEstados Unidos e na Gr-Bretanha. Minha gratido a Denise Ogilvie e seus colaboradores no Arquivodo Institut Pasteur em Paris, a Julia Sheppard e seus colaboradores no Arquivo de MedicinaContempornea da Wellcome Library em Londres, a Darwin Stapleton, Thmas Rosenbaum e seuscolaboradores no Rockefeller Archive Center em Tarrytown (Nova York) e a Fernando Pires Alves eseus colaboradores no Departamento de Arquivo e Documentao da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz,no Rio de Janeiro. As viagens e as temporadas de trabalho necessrias coleta de material de arquivoforam financiadas pelo acordo Inserm-Fiocruz, por uma bolsa-viagem do Rockefeller Archive Centere uma bolsa do Wellcome Trust. Annick Perrot e Hlne Versavel no Muse Pasteur, Maria TeresaBandeira de Mello e Paulo Elian no Servio de Iconografia da Casa de Oswaldo Cruz e MichelleHiltzik no Rockefeller Archive Center me ajudaram a reunir as imagens que ilustram esta obra.

    Olga Amsterdamska, Christophe Bonneuil, Jean-Paul Gaudillire, Flavio Edler, John Krige e KapilRaj leram pacientemente e comentaram o manuscrito deste livro e me ajudaram a clarificar minhasidias e a tornar meu texto mais inteligvel. Ocioso dizer que eles no tm nenhuma responsabilidadepelas falhas e lacunas desta obra. Gostaria tambm de agradecer a Nathalie e Norbert Tingeot por seutrabalho na forma do texto. Na Editions des Archives Contemporaines, John Krige encorajou e apoioueste projeto, e Nathalie Fournier o levou a cabo.

    A edio original deste volume contou com o apoio da Fondation Maison des Sciences de l'Homme,por intermdio de um programa da Comisso Europia (DGXII), "Cincia, polticas pblicas e sadena Europa do ps-guerra", no mbito do Frum Europeu da Cincia e da Tecnologia.

    Finalmente, meu reconhecimento a Michael, que me iniciou na cultura brasileira, a Woody, que mefez conhecer a dos Estados Unidos, e a Tmara, Daniel, Naomi e Rachel, por seu vigor hbrido e suacapacidade de me fazer rir.

  • 1 - Uma Cincia que crcula, a medicina tropical

    Uma cincia que circula

    No outono de 1901, trs pesquisadores do Instituto Pasteur, os doutores A. Taurelli Salimbeni, E.Marchoux e P.-L. Simond - estes dois eram, ento, membros do corpo mdico das colnias - partempara o Brasil. So incumbidos pelo Ministrio das Colnias de verificar a concluso dos trabalhosdesenvolvidos em Cuba pela Comisso Reed (1900-1901), composta por mdicos militaresamericanos. Sua hiptese, segundo a qual a febre amarela, exatamente como a malria, seriatransmitida por um mosquito no deixaria, uma vez confirmada, de ter importantes repercussesprticas. A febre amarela havia sido considerada at ento como uma doena contagiosa clssica,propagada fosse por contato direto com um doente, fosse por contato com suas roupas, alimentos eroupa de cama, ou ainda com qualquer outro objeto contaminado. O surgimento repentino da doenanos portos europeus que recebiam navios provenientes de pases tropicais havia reforado a idia deque a febre amarela era uma doena contagiosa; as epidemias ocorridas fora dos trpicos - em Saint-Nazaire (1866) ou Swansea (1865) - tiveram, verdade, curta durao, mas o desaparecimento do focoepidmico foi atribudo fragilidade do agente (suspeitavase fortemente, no fim do sculo XIX, deque este era um microrganismo patognico) e sua incapacidade de sobreviver num climatemperado.1

    Apoiando-se nas observaes anteriores do mdico cubano Carlos Finlay,2 as pesquisas dos mdicosmilitares norte-americanos modificaram radicalmente a percepo da febre amarela, acrescentandoum elo suplementar sua cadeia de transmisso. Segundo a expresso figurada de GeorgesCanguilhem, tal descoberta acrescentou uma nova representao s figuraes da Morte: a Morte quetem asas.3 A descoberta dessa nova forma de transmisso podia ser percebida como algo ao mesmotempo inquietante e tranqilizador; com efeito, mais fcil evitar o contato com pessoas atingidas doque com mosquitos, onipresentes nos climas quentes, mas os especialistas esperavam que o mosquitose revelasse o elo fraco da cadeia, e que sua eliminao levasse erradicao da patologia cujosagentes ele veicula.

    As pesquisas dos especialistas norte-americanos sobre a transmisso da febre amarela interessaramvivamente os colonos franceses. Se bastava atacar os mosquitos para extirpar a doena, a quarentena,muito onerosa, dos navios provenientes de portos em que a doena grassava deixava de ser necessria.Tratava-se, no entanto, de convencer os servios militares da confiabilidade desses trabalhos, segundoos quais o agente da febre amarela no se podia transmitir por contato com mercadorias contaminadas.A associao dos comerciantes franceses do Senegal, pas duramente atingido por epidemiasrecorrentes, dirigiu-se em 1900 ao governo francs para solicitar a criao de uma comisso deespecialistas encarregada de confirmar ou invalidar os resultados obtidos pelos mdicos americanosem Cuba. O parlamento francs, aps subscrever o requerimento, encaminhou-o ao Instituto Pasteur e,em 1901, trs de seus especialistas partem para o Rio de Janeiro, levando na bagagem o equipamentocompleto de um laboratrio de bacteriologia: microscpios, pipetas, corantes, meios de cultura eestufas.

    Apesar de a cincia bacteriolgica ser ainda embrionria em 1901 (suas bases foram estabelecidas aolongo dos anos 1870-1880), seu conhecimento j estava, ento, relativamente bem codificado, e isto

  • graas s trocas realizadas nos congressos internacionais, atividade das publicaes especializadas,ao seu ensino e circulao dos especialistas - propcia comparao dos diferentes mtodos detrabalho. A circulao dos especialistas e dos laudos dos peritos no se limitava, de resto, aos pasesocidentais; estendia-se, igualmente, aos pases tropicais. Na aurora do desenvolvimento dabacteriologia, as colnias constituram, para os mdicos europeus e ocasionalmente norte-americanos,uma das regies privilegiadas para a elaborao da nova disciplina, a observao das doenasinfecciosas e de seus agentes, assim como para a experimentao de tratamentos preventivos ecurativos. Desse ponto de vista, a misso do Instituto Pasteur no Rio de Janeiro diferia muito pouco damisso das demais expedies de especialistas enviadas para estudar uma patologia local -a no serpelo fato de o Brasil no ser, poca, uma colnia, ms um pas independente, dotado de infra-estruturas mdicas e cientficas autnomas, como hospitais, faculdades de medicina ou instituies depesquisa, ainda que incipientes.

    A transferncia para o Brasil de um laboratrio bacteriolgico muito aperfeioado para a poca e cujoequipamento e funcionamento foram rigorosamente copiados de um centro de excelncia europeucontribuiu para o desenvolvimento de uma tradio brasileira de pesquisa em medicina tropical e paraa fundao, no Rio de Janeiro, de um centro de estudos mundialmente reconhecido na rea. Essecentro deve muito personalidade de seu fundador, Oswaldo Cruz, mdico brasileiro que fez cursos debacteriologia no Instituto Pasteur. De volta ao Brasil em 1900, ele foi nomeado diretor do InstitutoSoroterpico de Manguinhos, instituio dedicada fabricao de anti-soro e vacinas. Como diretordo Servio de Sade do Rio de Janeiro em 1902, Cruz realizou no ano seguinte uma campanha degrande envergadura, cujo objetivo era a erradicao da febre amarela. O sucesso dessa campanhareforou sua posio poltica e lhe permitiu obter os recursos necessrios transformao do Institutode Manguinhos (rebatizado, em 1908, como Instituto Oswaldo Cruz) em um instituto de pesquisa emmedicina tropical, que muito rapidamente conquistou notoriedade internacional.

    Os xitos aleatrios do Instituto Oswaldo Cruz, seus triunfos precoces e suas dificuldades ulterioresforam analisados nos anos 1960 - perodo marcado pela confiana na capacidade da cincia e datecnologia ocidentais de melhorar o futuro das populaes - como experincia bem-sucedida detransferncia da cincia dos pases industrializados para a periferia.4 Estudos recentes sublinham aausncia de ligaes evidentes e lineares entre a presena, num pas em desenvolvimento, depesquisadores que dominam conhecimentos cientficos de ponta e o sucesso local de operaesprticas baseadas nesse saber, nos campos da indstria, da comunicao, da defesa ou, ainda, da sade.A histria da luta contra a febre amarela no Brasil ilustra bem a complexidade das relaes entreconhecimentos e prticas. Por volta de 1910, os especialistas brasileiros haviam adquirido os mesmosconhecimentos em matria de transmisso da febre amarela que os melhores especialistas da Frana,Inglaterra, Alemanha ou Estados Unidos, prevalecendo-se de uma longa experincia prtica nessadoena. Alm disso, contavam em seu ativo com uma campanha de erradicao bem-sucedida. Osbrasileiros dispunham, portanto, do saber necessrio para extirpar a febre amarela do seu pas; naprtica, contudo, a execuo desse programa revelou-se mais difcil do que esperavam.

    Com efeito, a eliminao da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro no foi suficiente para livrar oBrasil desse flagelo. Apesar das tentativas de interveno do Departamento Nacional de Sade Pblicabrasileiro, a doena perdurou nas cidades porturias do nordeste do pas. Foi ento que um segundogrupo de cientistas estrangeiros interveio: os pesquisadores norte-americanos da FundaoRockefeller, cuja contribuio combinava a importao de instrumentos e tcnicas de laboratrio e atransferncia de savoir-faire organizacional e administrativo, considerado por eles um componente

  • indispensvel na luta contra as doenas transmissveis. A primeira tentativa de erradicar a febreamarela no Brasil (1923-1928) resultou num fracasso. A ocorrncia inesperada de uma importanteepidemia no Rio de Janeiro (1928-1929), seguida da reapario da doena em vrias localidadesbrasileiras, levou-os a repensar os princpios de base de sua campanha e a prestar maior ateno aosconhecimentos epidemiolgicos e patolgicos acumulados pelos mdicos brasileiros.

    Por volta de 1930, a identificao do agente da febre amarela, a elaborao dos modelos animais dadoena e a perfeio dos mtodos diagnsticos levaram a um questionamento radical dosconhecimentos at ento considerados como adquiridos. A febre amarela, que os especialistas daFundao Rockefeller s esperavam encontrar em algumas cidades porturias do Nordeste brasileiro,era a partir de ento reconhecida como uma afeco endmica - uma doena permanentementepresente - que atingia regies muito extensas. A hiptese segundo a qual tratava-se de uma doena queacometia os animais da floresta, acidentalmente transmitida ao homem por mosquitos, substituiuparalelamente a convico precedente de que a febre amarela era uma doena exclusivamente humana.Desistindo da erradicao da febre amarela, por ser esta patologia indissoluvelmente ligada subsistncia da floresta no Brasil, os especialistas decidiram, ento, privilegiar sua conteno por doismeios: o controle dos mosquitos que a propagam nas zonas de alta densidade habitacional e aproduo de uma vacina capaz de proteger as pessoas em contato com os insetos da floresta. Osespecialistas da Fundao Rockefeller importaram, assim, para o Brasil o savoir-faire administrativocapaz de orquestrar uma campanha antimosquitos de grande envergadura e o savoir-faire cientficocapaz de identificar os focos de doena e produzir a vacina; depois, modificaram e adaptaram seusavoir-faire no trabalho de campo. O resultado foi o desaparecimento, nos anos 1930, da ameaa deepidemias de febre amarela no Brasil - triunfalmente alardeado pelos especialistas da FundaoRockfeller como a "vitria contra a febre amarela". Mas houve, realmente, "transferncia deconhecimentos" do centro para a periferia, ou aclimatao das prticas cientficas ocidentais a um pasem desenvolvimento? Qual foi o objeto da transferncia, em que direo ela se deu, e de acordo comque modalidades?

    Aqui, trata-se de clarificar essa noo de "transferncia dos conhecimentos e das prticas cientficas"e, em termos mais gerais, o conceito de uma cincia que circula entre pases desenvolvidos e emdesenvolvimento, combinando mtodos emprestados da histria geral, da histria da medicinatropical, dos estudos sociais e culturais da cincia, e da antropologia.

    Os trabalhos dedicados medicina tropical - e, em termos mais gerais, propagao da cincia forado Ocidente na poca moderna e contempornea - centraram o foco, na maioria dos casos, nosaspectos polticos e administrativos dessa difuso da cincia, ou nas condies tcnicas da produode conhecimentos postos em circulao; muito raramente nos dois aspectos ao mesmo tempo. Estetrabalho pretende demonstrar que as diferentes dimenses da transferncia dos conhecimentos eprticas cientficos esto indissoluvelmente ligadas. Para acompanhar uma cincia que se desloca, necessrio retraar as aes que se desenvolvem em mltiplos espaos: no laboratrio e em campo,nos debates parlamentares e deliberaes municipais, nas publicaes especializadas e na grandeimprensa. Esses espaos no tm uma hierarquia predeterminada. Uma mudana de orientao podeocorrer aps uma deciso poltica, sob a presso popular ou com a introduo de uma nova tcnicalaboratorial, de uma modificao na organizao das instncias profissionais, ou ainda pelodesenvolvimento de ferramentas administrativas mais aperfeioadas. O estudo da transferncia dacincia implica, portanto, a necessidade de circular permanentemente entre os mltiplos lugares emque ela se efetuou e entre as culturas nela envolvidas.

  • "Febre amarela" ou "febres amarelas"?

    Em voga entre os historiadores e os socilogos da cincia nos anos 1960-1970, o conceito detransferncia unidirecional dos saberes e das tecnologias do centro para a periferia se viu nuanadopor estudos de casos concretos que constatavam que no se tratava, em regra geral, de umatransmisso passiva, mas antes de uma verdadeira interao.5

    Poderamos reformular um dos temas centrais deste livro da seguinte maneira: "Estudo da circulaodos saberes entre o centro e a periferia, por meio do estudo de tentativas visando a controlar a febreamarela no Brasil". Esta frase pode, de incio, parecer meramente descritiva. Vista mais de perto,percebe-se que ela engloba, na realidade, um grande nmero de noes problemticas.

    Em primeiro lugar, a dialtica "centro" e "periferia". Os problemas ligados significao dos termos"cincia do centro" e "cincia da periferia" esto no cerne dos debates sobre a cincia fora doOcidente. Aps ter constatado que as fronteiras entre "centro" e "periferia" esto longe de seremestveis ou bem definidas, os pesquisadores se questionaram sobre a validade heurstica destadistino e sobre os riscos ligados definio de um lugar identificado como "centro" ou "periferia".Tal debate ultrapassa largamente o escopo deste trabalho. Convm, entretanto, observar que ospesquisadores franceses (do Instituto Pasteur) e norte-americanos (da Fundao Rockefeller) queatuaram no Brasil consideraram, de modo geral, seu pas de origem como o "centro", o Brasil como a"periferia", e a maior parte de sua atividade como um movimento unidirecional de transferncia dossaberes do centro para a periferia. Em compensao, os mdicos brasileiros que estudaram a febreamarela tiveram freqentemente uma percepo mais complexa das relaes cientficas entre seu pase os pases industrializados. Eles hesitaram entre a vontade de "civilizar" o Brasil pela transposiodos novos conhecimentos cientficos e tecnolgicos ocidentais e a vontade de desenvolver umaaproximao cientfica original, e entre o reconhecimento da existncia de uma cincia do "centro", anica capaz de legitimar seus esforos (s se reconhecido como cientista pela comunidade cientficainternacional, ou seja, na prtica, a dos pases ocidentais) e a aspirao a relativizar sua importncia.6

    O termo "Brasil" tambm coloca um problema. Alguns pesquisadores brasileiros acharam que seriamais exato falar dos "Brasis", para levar em conta as mltiplas entidades que compem esse vastopas. Pode-se, com efeito, dividir o Brasil segundo critrios geogrficos e, desse modo, fazer distinoentre a Amaznia, o Serto (as regies semi-ridas do Nordeste), o interior, a costa, o Sul; ou emvirtude de critrios econmicos: o pas da cana-de-acar, o pas da borracha, o do caf, da pecuria,ou da indstria; pode-se igualmente enfatizar o antagonismo entre o Norte, pobre e subdesenvolvido, eo Sul, mais rico e industrializado. Visto que uma parte deste livro se prope a estudar um servio desade pblica que depende do governo federal brasileiro, legitimado pelas leis do pas e que aplicou(ou pelo menos se esforou em aplicar) em todo o territrio os mesmos mtodos sanitrios, a opopelo termo "Brasil" reflete a importncia atribuda ao papel do Estado brasileiro na rea da sadepblica, enquanto que as diferenas locais e regionais aparecem atravs dos estudos de casoespecficos.

    A terceira dupla de noes problemticas constituda por "saberes" e "febre amarela", ou antes pelasrelaes que eles mantm. Esses conceitos esto no prprio cerne de nossa pesquisa, que, apoiando-seem noes desenvolvidas pela tradio dos estudos sociais e culturais da cincia (science studies), temcomo objeto a gnese, o desenvolvimento, a multiplicao e a circulao das entidades produzidaspelos cientistas, tais como a "febre amarela" e suas conseqncias sociais, culturais e polticas. Essas

  • entidades so moldadas atravs das interaes entre conhecimentos considerados como adquiridos(por exemplo, a definio da febre amarela, de seu agente causal, o vetor que a transmite), asatividades concretas dos pesquisadores e dos mdicos (notadamente os exames utilizados paraestabelecer o diagnstico desta doena, os estudos de campo sobre a disseminao, o isolamento e acultura de seu agente etiolgico, o tratamento das doenas, a produo de uma vacina) e a ao dasadministraes e dos poderes pblicos (como, por exemplo, as reaes das autoridades sanitriasdiante de uma epidemia de febre amarela, as aes empreendidas para prevenir futuras epidemias).

    Aqui, impe-se um esclarecimento. A afirmao de que a "febre amarela" tal como ela percebidahoje em dia , em grande medida, resultado da atividade de cientistas no significa que a doena noexista ou que ela seja mera "construo de especialistas". A doena, o sofrimento e a morte sofenmenos que pertencem experincia comum do gnero humano e que, por isso, tm umaexistncia prpria, fora de qualquer contexto cientfico. No entanto, se todas as sociedades humanas seconfrontaram com a experincia da doena e todas elaboraram ferramentas prticas e simblicas parareagir a ela, tais ferramentas no so idnticas. Os trabalhos dos antroplogos, dos historiadores e dossocilogos colocaram em evidncia a enorme variabilidade nas interpretaes do sofrimento e damorte, as diferentes percepes dos sintomas mrbidos produzidos por sociedades diferentes, assimcomo a riqueza das prticas individuais e coletivas desenvolvidas para se proteger das doenas. Pararetomar a definio do historiador da medicina Charles Rosenberg,

    a doena ao mesmo tempo um acontecimento biolgico, um repertrio de construes verbaisque refletem a histria intelectual e institucional da medicina numa dada gerao, um aspecto dapoltica e uma legitimao desta poltica, uma entidade que potencialmente define um papelsocial, um componente das normas culturais e um elemento que estrutura as relaesmdico/doente.7

    A doena pode, portanto, ser descrita como um "fenmeno biocultural", uma mistura de elementosindependentes da vontade humana e de elementos elaborados pelos homens. Essa interpenetrao eessa interdependncia de elementos materiais e culturais na percepo e na compreenso das doenastornam problemtica qualquer dissociao entre a noo de doena e seu contexto histrico. No sculoXX, se perfeitamente legtimo estudar os esqueletos de homens pr-histricos ou as mmiasegpcias para tentar decifrar, utilizando a terminologia contempornea, de que males eles sofreram,tais estudos no dizem muito sobre a maneira como um homem de Cro-Magnon percebeu seu"raquitismo", ou um sacerdote egpcio o seu "cncer nos ossos".8

    A partir do sculo XIX, a "materialidade" da doena, ou seja, seus aspectos biolgicos e clnicos,destaca-se gradualmente da experincia direta dos doentes; ela percebida principalmente por meiodas observaes feitas pelos pesquisadores e pelos clnicos.9 Tais observaes dependem, por sua vez,do estgio dos conhecimentos e do savoir-faire num perodo e num espao determinados: o aspecto"bio" do fenmeno biocultural a que chamamos "a doena" tambm reflete uma histria bemprecisa.10 Alm disso, no sculo XX, a definio cientfica das doenas orgnicas baseava-se muitasvezes nos fenmenos estudados nos laboratrios e/ou observados com a ajuda de instrumentos e detcnicas especficas (o eletrocardiograma torna visvel uma doena cardaca, a tuberculose reveladapor uma sombra em uma radiografia do pulmo, a imagem tpica de uma bactria se observa com ummicroscpio, o diabetes lido pela medida do nvel de acar no sangue e na urina, o diagnsticodefinitivo do cncer depende de um exame citolgico). Tais fenmenos so, segundo o pioneiro dasociologia da cincia Ludwik Fleck, "tecno-fenmenos" que dependem dos saberes e das prticas dos

  • cientistas e das tcnicas e instrumentos que eles utilizam.11 Assim, a Aids era identificada, numprimeiro momento, pela presena de numerosas infeces oportunistas, ou seja, principalmente combase no sofrimento fsico do paciente. A definio de "Aids comprovada" baseou-se, em seguida, naenumerao do nmero de linfcitos do tipo CD4+, mtodo que demanda o emprego de instrumentosmuito complicados (os separadores de clulas) e de reativos especficos (anticorpos monoclonais) e, apartir de meados dos anos 1990, na quantificao - por tcnicas oriundas da biologia molecular - dacarga viral no sangue dos indivduos infectados. A definio "tecnocientfica" da "Aids comprovada"dissociou, dessa forma, a doena da experincia subjetiva do indivduo.12

    A redefinio da doena na linguagem da cincia no anula, no entanto, a formulao advinda daexperincia individual.13 Um paciente gravemente atingido no precisa, em regra, de um profissionalpara disso se conscientizar, e os doentes de hoje podem ocasionalmente reconhecer elementos de suaexperincia nas descries dos textos antigos. A definio cientfica da doena pode, entretanto,modificar a percepo dos estados assintomticos; assim, uma pessoa que se imagina em perfeitasade e a quem se anuncia que ela est sofrendo de um cncer ou uma pessoa que descobre suasoropositividade num exame de rotina passaro, na maioria dos casos, a perceber seus corpos demaneira radicalmente diferente. Ela pode tambm modificar a significao dos sintomas: hoje, umamulher grvida provavelmente dar pouca importncia aos casos dos "temores" ou dos sonhos ruinsque atormentaram as mulheres grvidas do sculo XVIII, mas em compensao ela estar atentssimaao surgimento de contraes uterinas.14 Essa redefinio pode tambm se integrar experinciasubjetiva dos doentes. Por exemplo, uma pessoa que recebe a notcia de que sofre de hipertenso ir,por vezes, reinterpretar suas sensaes corporais em funo das flutuaes de sua presso arterial eprovar sintomas adicionais provocados pelas "taxas ruins".

    A integrao das informaes produzidas pela tecnologia mdica s sensaes subjetivas dos doentesno , no entanto, simples, no se faz automaticamente. Um doente de leucemia relata a confuso deseus sentimentos diante da avalanche dos resultados de laboratrio que supostamente descrevem odesenrolar de sua doena:

    Nunca consegui sincronizar meus sentimentos com a informao mdica que eu acabava dereceber. Cada fragmento de informao era potencialmente capaz de bagunar meus sentimentossobre minha sobrevivncia, e modificar minha posio em relao a meu futuro, e mesmo emrelao ao presente [...]. Tive medo.15

    Nos pases ocidentais, os doentes podem ou dar extrema importncia aos resultados de seus examesmdicos, ou decidir ignor-los totalmente e fiar-se unicamente nas sensaes de seu corpo, ou aindaoscilar entre as duas atitudes. Os doentes dos pases em desenvolvimento s dispem do segundoparmetro; a quase totalidade dos doentes de Aids na frica sofre, assim, de "definhamento", e no daqueda do nmero de seus linfcitos CD4+ ou de um aumento do nmero de partculas virais em seusangue. Alm disso, em certos casos patolgicos, tais como a enxaqueca ou as dores crnicas, nenhummtodo confivel permite estudar essa condio por meio de medidas objetivas, desligadas doindivduo. O mdico deve, portanto - s vezes a contragosto - se fiar nas descries subjetivas dodoente para delas fazer o principal guia de sua interveno teraputica. Essa impossibilidade dedissociar os sintomas e a pessoa ainda mais patente no campo das doenas mentais, apesar doarsenal de medidas pretensamente "objetivas" desenvolvidas pelos psiquiatras.16 Mas a maioria daspatologias humanas percebida por meio dos mtodos utilizados para torn-las mais visveis, e suahistria no pode ser dissociada da histria do desenvolvimento destes mtodos. A febre amarela

  • pertence a essa categoria.

    Hoje, basta abrir uma enciclopdia mdica, um livro de medicina tropical ou mesmo percorrer umaobra no especializada para saber que a febre amarela uma doena viral induzida por um vrus bemdefinido e transmitida ao homem pela picada de um mosquito. A definio cientfica da doenabaseia-se, antes de tudo, na identificao de seu agente. Para atestar que uma pessoa que apresentasintomas que sugerem a febre amarela est efetivamente atingida por esta doena, preciso fornecer aprova de que ele foi infectado pelo vrus em questo. A partir de 1930, testes de laboratriopermitiram um diagnstico baseado na presena desse vrus; testes indiretos procuram anticorposespecficos no sangue do doente, ao passo que testes mais diretos demonstram a presena do vrus pelainduo de uma doena tpica numa cobaia na qual se injeta o sangue do doente. A partir de meadosdos anos 1930, tambm se torna possvel cultivar o vrus da febre amarela em ovos embrionados.Mesmo que a confiabilidade dos testes tenha aumentado com o tempo, ela continua no sendoabsoluta. Alm disso, as amostras - sejam elas de sangue ou de soro - devem chegar em bom estado aum laboratrio corretamente equipado e dotado de pessoal competente, condio nada bvia namaioria dos pases em que a febre amarela est presente hoje. Todavia, na ausncia de identificaoformal do vrus, o diagnstico da febre amarela fica incompleto; ser, na melhor das hipteses, umaforte conjectura.

    Antes de 1930, em compensao, a identificao da febre amarela baseava-se exclusivamente nossinais clnicos da doena (ocasionalmente enriquecidos, a partir dos anos 1920, pela observao postmortem das transformaes patolgicas das clulas do fgado de pacientes falecidos) e nos indciosepidemiolgicos.17 Alexandre Humboldt descreveu em 1799 a freqncia da febre amarela emHavana, e os mdicos que haviam participado da expedio de Bonaparte ao Egito relataram apresena de casos de "febre amarela"; mas todos estes observadores falam de uma "febre amarelaclnica", e no se pode excluir a possibilidade de que a patologia que observaram fosse diferente da"febre amarela dos virlogos", ou seja, uma doena definida pela identificao de seu agente.

    A questo da identidade da doena chamada "febre amarela" nos sculos XVIII e XIX no de modoalgum terica, pois, segundo os especialistas, a febre amarela foi muitas vezes confundida com outrasdoenas. Alm disso, como veremos mais adiante, duas doenas que apresentam sintomas clnicossemelhantes, a febre amarela (hoje definida como uma doena induzida por um vrus) e a leptospirose(hoje definida como uma doena induzida por uma bactria), s foram definitivamente dissociadaspelos especialistas em fins dos anos 1920. Antes disso, uma pessoa que tivesse sintomas de "febreamarela" poderia ter (segundo os critrios posteriores a 1930) sofrido ou da "verdadeira febreamarela" ou de leptospirose, ou ainda de uma outra doena acompanhada de febre, de albumina naurina, e de ictercia. Os sintomas da febre amarela, sejam eles uma febre alta, ictercia - sinal decomprometimento severo do fgado -, ou mesmo vmito de sangue chamado "vmito-negro", no sode modo algum especficos. Tal dificuldade no escapou aos mdicos que estudaram essa doena antesdo advento das tcnicas virolgicas e imunolgicas baseadas na identificao de seus agentesetiolgicos. Os especialistas ingleses que tentaram, em 1913, atestar a presena da febre amarela nafrica Ocidental inventariaram um nmero impressionante de doenas freqentemente confundidascom a febre amarela com base nos sinais clnicos; entre elas encontram-se a malria, a dengue, a febrepapataci, a febre tifide, a paratifide, a febre ondulante. Em seguida eles propuseram testes delaboratrio capazes de discriminar algumas - mas no todas - dentre elas. Estavam plenamenteconscientes do fato de que suas pesquisas, conduzidas por especialistas e financiadas por umoramento especial, tinham carter absolutamente excepcional; nas condies habituais de trabalho de

  • um mdico nas regies tropicais, a probabilidade de se estabelecer um diagnstico errneo era,segundo eles, muito alta.18 Alm disso, a doena induzida pelo vrus da febre amarela muitas vezes"atpica" e pode assumir formas menos severas. Com base apenas nas observaes clnicas dessasformas, muitas vezes desprovidas de ictercia pronunciada, no se podem distinguir outras doenasfebris.

    Portanto, se estamos falando de pessoas acometidas de "febre amarela", convm datar e situar estaconstatao e explicitar a base sobre a qual a afeco foi, assim, definida: afirmaes de no-especialistas, opinio dos mdicos ou anlises de laboratrio. Na falta de amostras de sangue, corteshistolgicos de rgos ou outros elementos que hoje sustentam um diagnstico de febre amarela, impossvel fazer com segurana um diagnstico retroativo. A questo no tem grande importnciaquando o objeto de estudo no a prpria febre amarela; quando se l numa descrio feita pelosmdicos das colnias que as tropas foram atingidas por uma epidemia de febre amarela, ou quando umrelato de viagem menciona que uma pessoa foi afetada por esta patologia, pouco importa que ela tenhasofrido de leptospirose, de malria, de febre tifide ou de hepatite aguda. O mesmo no ocorre quandoa pesquisa sobre a "febre amarela" propriamente dita; neste caso, a definio e a delimitao daentidade "febre amarela" pelas prticas dos mdicos e dos pesquisadores no so estranhas ao objetoda pesquisa.

    A cincia, ocioso dizer, pode ser estudada de diversas maneiras. O estudo de Franois Delaportesobre as origens da descoberta do papel do mosquito na transmisso da febre amarela utiliza o termo"febre amarela" para descrever ao mesmo tempo a entidade assim designada por volta de 1900 (edefinida com base nos sinais clnicos) e a doena a que hoje este nome se refere (definida com baseem testes que revelam a presena de um vrus especfico).19 A utilizao no problematizada do termo"febre amarela" pode se explicar pelo objetivo perseguido pelo autor, que investiga as condies quedefinem a possibilidade de emergncia de um novo campo conceitual - o surgimento dos vetoresartrpodes na medicina tropical. "A histria da febre amarela" representa uma abordagem enraizadana tradio epistemolgica francesa, que define a histria das cincias como "a anlise das estruturastericas e enunciados cientficos, do material conceitual e dos campos de aplicao dos conceitos".Uma abordagem desse tipo facilita os estudos focalizados no desenvolvimento das idias cientficas.20

    O estudo da cincia pode tambm ser considerado de uma outra maneira, que veria a cincia no comoum sistema coerente de enunciados sobre a estrutura do mundo natural, mas como o conjuntoindivisvel das prticas materiais, sociais e discursivas dos cientistas. A histria do controle da febreamarela descrita neste trabalho apia-se em uma abordagem que apreende os objetos da cincia pormeio dos instrumentos do savoir-faire, das maneiras de ver prprias de uma comunidade deespecialistas, objetos que mudam com a evoluo desses instrumentos, desse savoir-faire e dessasmaneiras de ver. Tal viso do mundo natural atravs das "lentes das prticas cientficas" (observao,anlise, experimentao e interveno) gera "fatos cientficos" (conceitos, objetos, tcnicas,classificaes) que dependem do lugar e do tempo de sua produo, assim como das redes nas quaisesto inseridas e nas quais circulam.21 Em tal tica, as mudanas de definio da febre amarela entre1900 e 1950 constituem para o historiador um objeto essencial de investigao.22

    A definio atual da febre amarela tem suas origens no fim do sculo XIX, com o advento damicrobiologia e a afirmao do postulado segundo o qual cada doena infecciosa induzida por ummicrorganismo especfico. No princpio do sculo XIX, prevalecia uma viso fisiolgica quesublinhava a unicidade das diversas patologias, igualmente percebidas como perturbaes dos mesmos

  • sistemas fisiolgicos de base. Foi por volta de meados do sculo XIX que emergiu a idia de umaentidade "febres" composta de unidades mrbidas muitos distintas, e desse modo diferenciou-se afebre tifide da difteria, da tuberculose ou ainda da pneumonia. Tratavase, de fato, da extenso sdoenas endmicas de hipteses h muito consideradas vlidas para numerosas epidemias.23 Osmdicos no encontravam mais dificuldades em reconhecer que a pestilncia que atinge umalocalidade aps outra era uma unidade mrbida distinta ou que um navio proveniente dos trpicos eraportador de uma afeco bem determinada.24Se, paralelamente, reconheceram a especificidade decertas doenas transmissveis como a varola, eles tiveram, em compensao, mais dificuldade emadmitir, por exemplo, que as chamadas febres "sazonais" (tais como a gripe, a pneumonia, a febretifide, antes classificadas como subtipos: febres "intermitentes", "estacionrias" etc.) no erammodalidades de expresso diferentes da ao do mesmo agente causal em indivduos de constituiodessemelhante ou cujas condies de vida diferiam.

    A convico de que as doenas infecciosas so distintas nasceu de sua observao apurada ao longo dosculo XIX. A transformao do hospital em espao importante para a pesquisa mdica, seu rpidoflorescimento, tendo por corolrio o aumento do nmero de doenas (e de cadveres) que serviram aosmdicos como material de estudo e favoreceram o desenvolvimento da anatomopatologia e dasobservaes clnicas comparativas.25 As doenas foram inicialmente repertoriadas a partir dadescrio fina dos sintomas das quais eram acompanhadas (a nosologia); depois, logo que possvel, apartir da presena de leses tpicas dos tecidos (a patologia, e mais tarde a histologia). Aps sehaverem apoiado em uma categoria geral "febres", os mdicos apuraram a distino entre as diferentesfebres, diagnosticadas com base nos sintomas - sendo que os da pneumonia no eram idnticos aos dafebre tifide. A patologia permitiu, depois, que se criassem classificaes diferentes. Afeces muitodistintas que atingiam os pulmes, os ossos, os intestinos foram, desse modo, reconhecidas, muitoantes do advento da bacteriologia, como oriundas da mesma doena -a tuberculose -, com base nasemelhana de estrutura histolgica dos tubrculos, leses patolgicas tpicas desta doena.

    O reconhecimento progressivo das doenas infecciosas como entidades distintas levou ospesquisadores a supor que cada doena era induzida por um agente causal especfico. Assim, abacteriologia estendeu a noo de especificidade das doenas a seus agentes: cada doena infecciosadistinta induzida por um microrganismo especfico. Essa idia foi combatida por alguns mdicos ebilogos que sugeriram que os microrganismos no formam espcies verdadeiras, e que todas astransformaes morfolgicas representam apenas a adaptao de um nico organismo (ou um nmeromuito reduzido de organismos primitivos) a condies de crescimento diferentes. A credibilidade danova disciplina bacteriolgica dependia, portanto, da capacidade dos especialistas de isolarmicrorganismos patognicos e da possibilidade de demonstrar suas diferenas; donde a importncia detcnicas tais como as diluies seqenciais, as culturas em meio slido, as coloraes diferenciais e ocrescimento em meios de cultura seletivos no desenvolvimento e na difuso da bacteriologia.26 Talresultado foi obtido graas homogeneizao das condies de isolamento e de cultura dos micrbios,com o objetivo de limitar ao mximo sua variabilidade natural: "as espcies bacterianas tornaram-seinteiramente fixas, pois foram utilizados mtodos de investigao muito rgidos".27 A uniformizaodas tcnicas bacteriolgicas permitiu a homogeneizao dos mtodos de estudo dos micrbios e,portanto, in fine, a aceitao da existncia de espcies estveis de microrganismos. O reconhecimentoda existncia de espcies microbianas estveis, por sua vez, reforou a idia de que cada doenainfecciosa tem seu agente especfico.28 A partir de ento, a unidade das doenas infecciosas se formouatravs da unidade dos agentes etiolgicos: a sfilis e a gonorria foram definitivamente separadas,posto que induzidas por microrganismos diferentes, ao passo que a tabe (manifestaes neurolgicas

  • de sfilis terciria) foi, acertadamente, associada entidade "sfilis" com base na presena da mesmabactria.

    Uma vez assumido o princpio da especificidade dos microrganismos patognicos, a identidade doagente indutor de uma doena transmissvel serviu como princpio unificador dos sintomas. Odesenvolvimento da bacteriologia inverteu, assim, a ordem da prova: a etiologia tem, doravante,primazia sobre os sintomas clnicos. A identificao do agente causal das doenas transmissveisassume grande importncia para o pesquisador, mas tambm para a epidemiologia, que ordena seusaber em funo da identificao desses agentes; para o clnico, que aspira a aplicar em seus doentesremdios especficos; e, enfim, para o especialista em sade pblica, que baseia sua poltica emtentativas de impedir a difuso dos microrganismos patognicos. Mas tal identificao - quepressupe a "domesticao" de um agente patognico em laboratrio, ou seja, sua cultura em tubo deensaio e/ ou sua implantao em animais - nem sempre fcil. As tentativas de manuteno do agenteda febre amarela em laboratrio s chegaram a um resultado inconteste aps 50 anos de esforos(1880-1930). Ao longo desse tempo, os epidemiologistas e os clnicos multiplicaram as tentativas deabordagem prtica dessa doena, baseados em conhecimentos incompletos.

    Uma vez reconhecido, por volta de 1930, de maneira consensual que o agente da febre amarela era umvrus, a questo da identidade da febre amarela na frica e na Amrica pde ser resolvida. At entofortemente suspeita, a despeito das vozes dissidentes que se elevavam entre os especialistas, essaidentidade no pudera ser evidenciada antes do desenvolvimento dos mtodos de estudo do agente emlaboratrio. Foi ao longo dos anos 1930-194 0 que os pesquisadores aperfeioaram os modelosanimais da febre amarela e desenvolveram o estudo imunolgico desta doena (a pesquisa dosanticorpos especficos contra o vrus), antes de ajustar os mtodos de cultura de seu vrus emlaboratrio. A definio cientfica da febre amarela como uma doena induzida por um vrusespecfico se estabilizou, antes de ser elevada condio de "fato cientfico estabelecido". Talestabilizao, hoje apresentada como evidente e resumida em uma frase nos manuais de bacteriologia("Em 1928, Stokes e Bauer evidenciaram a presena do vrus da febre amarela no macaco"), requereu,no entanto, esforos permanentes de muitas pessoas em diferentes regies - na frica, na AmricaLatina, na Frana, na Inglaterra, nos Estados Unidos; ela se consolidou com a circulao dosespecialistas, dos reagentes, dos instrumentos e das tcnicas, assim como com a elaborao daspolticas de sade pblica que incorporavam sua nova definio aos esforos de preveno da febreamarela.

    Os socilogos da cincia forjaram a expresso "co-construo da cincia e da sociedade".29 Estaexpresso, em voga h aproximadamente 20 anos, esbarrou na resistncia de alguns pesquisadores emcincias, filsofos e historiadores da cincia interessados acima de tudo no desenvolvimento dasidias cientficas, e que vem a cincia como o estudo da natureza inanimada, independente davontade humana. interessante constatar, a esse respeito, que o conceito de existncia de uma"natureza" separada e distinta da "sociedade" foi, recentemente, mais uma vez posto em xeque pelospesquisadores que poderiam, no entanto, estar particularmente interessados em defend-lo, ou seja, oshistoriadores da ecologia. Assim, o historiador norte-americano William Cronon estudou a moldagemmtua da natureza (paisagens, plantas, animais, ecossistemas) pela sociedade e da sociedade pelascondies naturais, e a interdependncia entre os elementos naturais e a organizao econmica esocial das sociedades humanas.30 A presena de terras frteis estimula o desenvolvimento dassociedades agrcolas; a de florestas, das sociedades fundadas sobre a explorao da madeira; e a derios navegveis, de cidades que centralizam o comrcio. As mudanas sociais e econmicas, por sua

  • vez, afetam a natureza: os campos podem ser transformados em terrenos de construo ou em parques,ou entregues aos agricultores; o leito dos rios pode ser modificado, eles podem ser secados,transformados em canais de irrigao, em estradas fluviais ou. em espaos de navegao esportiva; asflorestas podem ser queimadas, desbastadas ou replantadas. Cada uma dessas mudanas, por sua vez,afeta as atividades humanas, enquanto que o resultado a longo prazo da interao complexa entre"meio ambiente" e "sociedade" difcil de prever. Alm disso, tal interao afeta tambmprofundamente nossa compreenso das entidades "floresta", "campo" ou "rio".31

    A assero segundo a qual as florestas de hoje (com exceo de certas partes das florestas tropicais)so resultado de uma longa coabitao entre as plantas, os animais e os humanos, ou o fato deobservar que os habitantes do norte do Canad tm uma relao com a floresta completamentediferente da que tm os parisienses que passeiam na floresta de Fontainebleau podem parecer muitodiferentes da afirmao de que a atividade humana molda entidades naturais como o "vrus da febreamarela", sendo afetado pela maneira como se representa e se manipula o mundo natural. A diferena,que efetivamente no teramos como negar, entre "floresta" e "vrus" se situa, contudo, num niconvel: o da espessura das mediaes necessrias para tornar uma entidade visvel e manipulvel. Aentidade "floresta" pode ser apreendida diretamente por todos; em compensao, so necessriasmltiplas mediaes para se apreender a entidade "vrus". Tais mediaes - aparelhos como aultracentrfuga, o microscpio eletrnico ou o seqenciador de nucleotdeos, reagentes qumicos,animais e clulas, enfim, o saber especializado dos virologistas - tornam difcil a percepo daimportncia da interveno humana na formao dos "vrus". Determinar a medida dessa intervenono quer em absoluto dizer que o vrus da febre amarela "no existe"; significa apenas que este vrus,como a floresta de Fontainebleau, no pode ser entendido como uma entidade independente daatividade dos homens. A co-construo da natureza e da sociedade se situa nesse nvel.

    Ainda que a aceitao da participao humana na formao de entidades como os vrus tenha setornado difcil pela importncia e complexidade das mediaes entre o "vrus" e a "sociedade", osmais ardorosos defensores de uma cincia neutra e objetiva provavelmente hesitaro em estender talpercepo sade pblica, disciplina que alia diretamente as habilidades tcnicas da cincia e aspolticas de sade. pouco provvel que os especialistas nessa rea se recusem a admitir que seutrabalho produz ao mesmo tempo conhecimentos cientficos fundamentais e prticas sociais fundadassobre a aplicao deste saber. A frmula "co-construo da cincia e da sociedade", longe de ser umanoo extica que os atrapalha, pode, assim, ser vista por eles como mera descrio de sua atividadecotidiana. No , provavelmente, por acaso que a idia de co-dependncia entre o desenvolvimentodos conceitos e dos fatos cientficos e o desenvolvimento das prticas sociais tenha figurado pelaprimeira vez num estudo de 1935 centrado na histria de um teste de deteco da sfilis - problema desade pblica por excelncia - e voltado a emergir em 1958, ou seja, bem antes do desenvolvimentodas tendncias recentes da histria social da cincia, por meio das propostas sustentadas pelosocilogo Peter Winch sobre a bacteriologia:

    A introduo do conceito de germe na linguagem da medicina foi [...] a adoo, por pessoas queeram todas, direta ou indiretamente, ligadas prtica da medicina, de uma maneira inteiramentenova de fazer as coisas. Uma tentativa de dar conta da influncia desse novo conceito sobre aprofisso mdica no pode, portanto, ser separado de uma explicao de sua natureza e,inversamente, o conceito de germe torna-se inteiramente incompreensvel se for dissociado desuas relaes com a prtica mdica.32

  • A insero do saber sobre o germe na prtica dos mdicos e dos profissionais da sade tem umsignificado bem preciso: o controle dos micrbios inseparvel do controle dos humanos que osportam e os transmitem. A coexistncia estreita de fatores cientficos e poltico-administrativos noseio da especialidade chamada "sade pblica" coloca, entretanto, um problema: como se articulam asprticas de campo, que so necessariamente atividades localizadas, e as investigaes de laboratrio,tidas como universalmente vlidas e independentes do lugar e do tempo de sua produo? A histriada luta contra a febre amarela no Brasil ilustra as tenses entre o ideal de uma cincia mdicauniversal e as prticas de sade pblica elaboradas localmente. Para seguir essas tenses, ser precisodebruar-se inicialmente sobre as origens da idia - nascida no sculo XIX- de que o saber sobre asdoenas universal, e pode ser facilmente transportado de uma regio para outra.

    As doenas transmissveis e a universalidade da cincia

    O saber sobre as doenas sempre oscilou entre dois plos: a unicidade e a diversidade dasmanifestaes mrbidas. Primeiro, a unicidade: a constatao de que todos os seres humanospartilham da mesma estrutura anatmica, tm os mesmos "humores" e, constatao muito mais tardia,de que tm os mesmos mecanismos fisiolgicos e bioqumicos de base assim como a observao dasgrandes epidemias que atravessaram os continentes, advogou a universalidade de certas patologiashumanas. Agora, a diversidade: numerosas afeces estiveram ligadas a stios geogrficos precisose/ou tiveram reputao de estarem limitados a determinadas subpopulaes. No se trata,evidentemente, de distines absolutas: os mdicos sempre reconheceram a existncia de traoscomuns s afeces humanas que permitem classificaes genricas ("febres", "indigestes","inflamaes"), assim como a grande diversidade das manifestaes mrbidas ligadas s diferenas de"campo" individual, ou seja, constituio nica do indivduo doente, assim como variabilidade domeio. Entretanto, conforme as pocas e os lugares, a nfase podia estar na unicidade ou nadiversidade. Os "sistemas mdicos" do sculo XVIII - que se prolongaram no sculo XIX - seinclinaram para a unicidade, propondo explicaes monocausais ao conjunto de estados patolgicos (aoposio estenia/astenia, o excesso de sangue, a irritao do sistema digestivo). Essas causas nicasdemandaram remdios uniformes; a sangria foi, assim, prescrita por Broussais e seus alunos comotratamento universal para todas as doenas.

    Enquanto os partidrios dos "sistemas mdicos" defenderam uma causalidade nica com expressesdistintas em funo da "constituio" do doente, os "tericos climticos" e raciais da doena, em voganos sculos XVIII e XIX, ressaltaram as profundas diferenas entre os grupos humanos. Aemergncia, em meados do sculo XIX, da noo de "doenas especficas" deu mais peso tese dauniformidade; as leses tuberculosas sero essencialmente as mesmas em doentes de constituiodiferente e entre aqueles que moram em lugares diferentes. Alm disso, no sculo XIX as doenastransmissveis foram, muitas vezes, divididas em dois grupos principais: as doenas infecciosas(ligadas aos miasmas, portanto s condies climticas, s estaes e aos lugares, cujo exemplo maisconhecido continua a ser malria) e as doenas contagiosas, que se transmitem ou por contato diretocom o doente, ou com os objetos (roupas de cama, loua, roupas) contaminados por suas secrees; avarola um modelo incontestvel deste ltimo. Contrariamente s doenas infecciosas, as doenascontagiosas podem ser transmitidas artificialmente, por inoculao. A prtica da "variolizao"(inoculao das pstulas varilicas humanas) pleiteou uma certa universalidade para as doenas, postoque a inoculao de uma matria contagiosa especfica se revelara capaz de introduzir uma proteoespecfica contra a doena determinada.33 A vacinao jenneriana (inoculao de matria infecciosa

  • de pstulas de vaca), praticada com sucesso num grande nmero de pases, pde evidenciar auniversalidade do princpio do contgio.

    O movimento em direo separao entre o indivduo e a doena se acelerou, no fim do sculo XIX,com o advento da teoria microbiana das doenas, que afirmou uma causalidade nica nas doenasinfecciosas e as conseqncias (relativamente) homogneas do encontro entre um indivduo e umpatgeno especfico. O papel da "localidade" no foi, entretanto, minorado. A descoberta do fenmenodos "portadores sos", pessoas que portam e so capazes de disseminar microrganismos patognicossem serem atingidas pela doena (a thyphoid Mary, cozinheira norte-americana acusada de provocarepidemias de febre tifide pela contaminao da comida proveniente dos lugares onde ela trabalhara,tornou-se um emblema dessa situao) de fato reativou a questo das relaes entre o patgeno e sua"localidade".34 A frmula, atribuda a Claude Bernard, segundo a qual "o micrbio no nada, oterreno tudo", nunca perdeu sua pertinncia para um grupo de clnicos, e a abordagem centrada maisno doente do que na "doena" readquiriu, em certa medida, sua popularidade no entre-guerras.35Tratava-se, de um lado, de um movimento holstico, em voga entre os clnicos, e, de outro, de umatendncia representada pelos epidemiologistas, estatsticos ou biometristas, que se interessavam peladoena como fenmeno das populaes. Em compensao, a rpida difuso das "cinciaspasteurianas" (bacteriologia, imunologia, parasitologia) no fim do sculo XIX e incio do XX e suatransferncia dos centros de produo do saber para a periferia reforaram a idia de que as doenastransmissveis repousam sobre uma base biolgica partilhada, contribuindo, assim, para aconsolidao do conceito de saber mdico universal. Esse desenvolvimento foi paralelo aoflorescimento do movimento pela universalidade da cincia e ao grande crescimento do papel dastrocas internacionais na elaborao das modalidades de interveno no campo da sade pblica.

    O movimento pela internacionalizao da cincia desenvolveu-se por volta de 1880 em reao fragmentao e atomizao da atividade cientfica consecutivas potencial ascenso dosnacionalismos no sculo XIX. A partir de fins do sculo XVIII, cientistas e mdicos se identificaram,cada vez mais, simultaneamente com sua especialidade e sua nao. Os especialistas estrangeiros emuma mesma disciplina passaram, ento, a ser vistos como colegas e como rivais em potencial. Essaatomizao levou perda da linguagem comum da cincia - que at o sculo XVIII foi o latim - e aodesaparecimento da comunidade internacional dos cientistas da "repblica das letras". Ainda que ograu de cooperao entre os cientistas nos sculos XVII e XVIII tenha sido, mais tarde, exagerado aponto de provocar a nostalgia de uma "idade de ouro" mtica da cincia, o sculo XIX viu sedesenvolver uma tenso permanente entre os particularismos nacionais e o universalismo cientficoalimentado por tradies profissionais e consideraes ideolgicas.36 O movimento deinternacionalismo cientfico tentou trazer respostas a tais tenses, centrando seus esforos naunificao das nomenclaturas cientficas e na concentrao das bibliografias, destinadas a criar umalngua universal da cincia. Antes de tudo um movimento de idias, ele tentou criar de cima parabaixo uma cincia internacional unificada. Animado por estudiosos militantes, proslitos everdadeiros "profissionais" do internacionalismo cientfico, esse movimento de universalizao dacincia desenvolveu-se principalmente por meio da organizao de congressos, de grupos de trabalho,e dos esforos que visavam a melhorar a circulao da informao cientfica.37

    O movimento pela investigao da sade pblica tem origem no temor, muito concreto, dasepidemias; tal apreenso suscitou tentativas de implementao de polticas sanitrias comuns. Maistarde, com o advento da teoria microbiana da doena, esse movimento promoveu um esforo dehomogeneizao das prticas de laboratrio utilizadas para reconhecer os agentes das doenas

  • transmissveis. Ele se estruturou atravs das conferncias sanitrias internacionais. A primeiraaconteceu em Paris em 1851. Nove outras conferncias se realizaram ao longo do sculo XIX (1859,1866, 1874, 1881, 1885, 1892, 1893, 1894 e 1897), quatro balizaram o sculo XX (1903, 1911-1912,1926 e 1938). A acelerao do ritmo das conferncias a partir de 1881 e sua freqncia nos anos 1890correspondem ao rpido desenvolvimento da bacteriologia e importncia que esta disciplina ganhouna luta contra as doenas infecciosas.38

    As conferncias sanitrias internacionais constituram inicialmente uma resposta ao temor de ver oclera se difundir. O clera asitico atinge a fronteira da Europa pela primeira vez em 1829, chegandoa Oranenburg, na extremidade sudeste do imprio russo. Em 1830, a epidemia que irrompeu durante afeira de Nizny-Novogrod chega a Moscou e, ao longo dos anos seguintes, graves epidemias invadem amaioria das grandes cidades europias. Como a forma de propagao do clera era entodesconhecida, os poderes pblicos tentaram estancar as epidemias com os meios tradicionais, ou, ditode outra maneira, com a quarentena imposta aos navios, pessoas e mercadorias provenientes de pasesonde a epidemia grassava.39Essas quarentenas entravaram severamente o comrcio internacional ereduziram os proventos dos comerciantes, sem que sua eficcia tenha sido atestada. O objetivo dasprimeiras conferncias sanitrias foi estudar em que medida era concebvel suprimir a quarentena semcolocar em risco a sade das populaes. A Primeira Conferncia Sanitria Internacional (Paris, 1851)reuniu representantes de 11 Estados europeus (quatro dos quais se tornaro, mais tarde, provncias daItlia unificada). Cada pas foi representado por um mdico e um diplomata, dupla que representava asade pblica internacional, nascida do encontro da prtica mdica com a poltica. Apesar da vontadedeclarada dos participantes de agir eficazmente contra as epidemias, as primeiras confernciassanitrias tiveram um papel meramente consultivo, sem que os pases participantes estivessemcomprometidos com suas decises. Alm disso, nas trs primeiras conferncias os votos foramindividuais e no por pases, de modo que no era raro que dois delegados de um mesmo pasvotassem diferentemente. O estatuto das conferncias sanitrias internacionais mudou a partir da sextadelas (Veneza, 1892), que elaborou o texto da primeira conveno sanitria internacional que os pasesparticipantes se comprometeram a respeitar (esse texto foi modificado vrias vezes pelas confernciasseguintes).

    Durante as primeiras conferncias, os debates se concentraram na noo do contgio do clera,freqentemente contestado poca. A maioria dos participantes da primeira conferncia era favorvel idia de que se tratava de uma doena contagiosa, e a quarentena foi recomendada para combat-la.A febre amarela, mesmo que no tenha sido vista como um perigo para a sade pblica nos paseseuropeus, foi, contudo, mencionada ao longo dos debates como exemplo de uma doena sobre a qualficara firmemente estabelecido - com base em observaes epidemiolgicas - que pode se transmitirde uma pessoa doente a indivduos em bom estado de sade. A contagiosidade do clera foi aceita pelagrande maioria dos profissionais presentes Terceira Conferncia Sanitria Internacional(Constantinopla, 1866), mas os especialistas tiveram dificuldade em chegar a um acordo quanto smedidas necessrias para conter sua propagao, dada a ausncia de prova convincente da eficcia dasquarentenas. Alguns participantes insistiram na importncia das prticas sanitrias, tais como afiscalizao da gua, a limpeza dos espaos de habitao, a canalizao nas cidades e a higienepessoal. Essa sensibilizao para os benefcios da higiene no era necessariamente acompanhada daadeso s teorias microbianas da doena ou da importncia conferida aos novos dadosepidemiolgicos. Os higienistas britnicos - especialmente lentos na adoo das concluses daspesquisas epidemiolgicas nas rotas de difuso do clera, e por muito tempo cticos quanto ao papeldo micrbio na induo desta doena - foram, contudo, os primeiros a livrar um pas europeu da

  • ameaa das epidemias de clera, e isso graas distribuio racional de gua pura e evacuaosanitria das secrees humanas.40

    A revoluo bacteriolgica mudou a natureza das pesquisas sobre o clera, mas sua influncia sobre asmodalidades de luta contra esta doena foi muito limitada. A descoberta do micrbio do clera e desuas vias de transmisso (o Vibrio cholerae foi descrito pelo bacteriologista alemo Robert Koch em1888) no modificou essas prticas. Os trabalhos dos bacteriologistas puderam, no mximo, legitimara posteriori as medidas sanitrias que decorreram de observaes empricas por parte dos higienistas,reforadas pelo sucesso das primeiras campanhas de controle da insalubridade nas cidades. A lutacontra a peste foi, desse ponto de vista, semelhante que se travou contra o clera: o isolamento dobacilo da peste e a elucidao do papel da pulga do rato na transmisso da doena no alteraramgrande coisa na elaborao das medidas preventivas. Tais medidas, estabelecidas antes da descobertado micrbio, tinham por objetivo a destruio dos roedores, de realizao mais prtica do que aeliminao aleatria de seus parasitas. O destino da febre amarela foi completamente outro. Osesforos para erradic-la estiveram, desde o fim do sculo XIX, estreitamente ligados aos esforos decompreenso da etiologia e da difuso da doena. As quarentenas e as campanhas sanitrias noespecficas no interromperam sua difuso. A luta eficaz comeou com a descrio do papel domosquito como vetor incontornvel da doena. A partir do comeo do sculo XX, a febre amarela foi,portanto, apresentada como a patologia que evidenciou a importncia da cincia mdica para a sadepblica. Donde o papel simblico, e no apenas prtico, das campanhas contra essa doena.

    A febre amarela foi mencionada ao longo das primeiras conferncias sanitrias internacionais, semque no entanto tenha sido objeto de debates. Ao longo da Quinta Conferncia (Washington, 1881), omdico cubano Carlos Finlay apresentou, pela primeira vez, uma teoria sobre a propagao da febreamarela fundamentada na presena de um "agente cuja existncia completamente independente dadoena e do doente", e que necessrio para transmitir a infeco de um doente a um homemsaudvel. Seis meses depois, Finlay confirmava, com base em suas observaes epidemiolgicas, queo mosquito Stegomyia fasciata (depois batizado Aedes gypti) era o vetor intermedirio da doena. Ainterveno de Finlay no teve desdobramentos. Os delegados exprimiram um vago desejo de que asnaes mais diretamente interessadas criassem uma comisso sanitria cientfica temporria, mas essevoto no gerou nenhum resultado prtico. A febre amarela foi novamente abordada na 11 ConfernciaSanitria (Paris, 1903), em funo da presena, na delegao dos Estados Unidos, do general Gorgas,responsvel pela campanha que venceu a resistncia da febre amarela em Havana em 1901 (Cuba),graas destruio dos mosquitos e ao isolamento dos doentes sob mosquiteiros. mile Roux, entodiretor adjunto do Instituto Pasteur, resumiu - na qualidade de relator da subcomisso tcnica daconferncia - os resultados dos trabalhos da Comisso Reed, e depois pediu a Gorgas que completasseseu relatrio. Este sublinhou que a certeza recm-obtida de que a febre amarela s se propaga porintermdio dos mosquitos Stegomyia tornava totalmente obsoletas as medidas de quarentena prescritascontra esta doena.

    A Conveno Sanitria Internacional que resultou da conferncia inclui pela primeira vez instruessobre a febre amarela:

    Recomenda-se aos pases interessados que modifiquem seus regulamentos sanitrios de maneiraa relacion-los com os dados atuais da cincia sobre o modo de transmisso da febre amarela, esobretudo sobre o papel dos mosquitos como veculos dos germes da doena.41

  • O papel reservado cincia no estabelecimento das polticas que visavam a erradicar a febre amarelaainda constituiu um elemento maior nos debates durante toda a primeira metade do sculo XX. Autilizao de um argumento baseado na cincia na elaborao das prticas dos mdicos e doshigienistas no era de modo algum evidente. O advento da bacteriologia legitimou os argumentosdesenvolvidos pelos higienistas e reforou seu status: o desenvolvimento do soro antidiftrico foivisto por muitos mdicos como a prova potencial da capacidade que tinha a nova cincia de contribuirpara a soluo de problemas mdicos.42

    Mas, com exceo do tratamento da difteria, as abordagens bacteriolgicas s foram integradas prtica dos mdicos muito gradualmente, e os laboratrios de bacteriologia s se uniram aos hospitaisnos anos 1910-1920.

    Do mesmo modo, s bem tardiamente os higienistas se converteram prtica da microbiologia.43 Alentido na adoo das tcnicas das "cincias pasteurianas" pelos clnicos, notadamente na Frana,contrastou com o desenvolvimento muito rpido da cincia bacteriolgica. A prtica da pesquisa nessarea foi codificada e difundida em escala internacional nos anos 1880-1890, ou seja, quaseimediatamente aps o surgimento dessa nova especialidade, e os pesquisadores em bacteriologiativeram muito rapidamente sua disposio jornais profissionais, manuais e fruns para a troca deidias, como as conferncias internacionais.44

    Vimos que uma das condies importantes para a rpida difuso da nova disciplina foi ahomogeneizao das condies de isolamento e de cultura de micrbios. A homogeneizao dosmtodos de investigao bacteriolgica incluiu a padronizao da organizao espacial de umlaboratrio de bacteriologia e a uniformizao do material e das tcnicas utilizadas pelosbacteriologistas. A partir dos anos 1880, firmas comerciais produziram vidraria, corantes e meios decultura para uso dos bacteriologistas, e publicaram catlogos nos quais ofereceram grande variedadede produtos destinados especificamente identificao e cultura dos micrbios. Tal homogeneizaocompreendia igualmente a padronizao dos gestos praticados pelos bacteriologistas.45 Como um dosmaiores problemas da investigao bacteriolgica est na contaminao, s uma tcnica corporal bemapurada permite evitar tal risco. Os futuros bacteriologistas tiveram que aprender como abrir um tubode ensaio perto de uma chama de um bico Bunsen, como sustentar o tubo e o algodo que o fechanuma mo e a pipeta Pasteur na outra, como inocular o tubo com uma amostra testada e fech-loimediatamente, tudo isso com gestos precisos e rpidos a fim de evitar que as bactrias do arpenetrassem no tubo. Foi, portanto, indispensvel o aprendizado sob a superviso de especialistasreconhecidos para se adquirir o saber especializado do bacteriologista. A partir dos anos 1880, talensino foi ministrado nos templos sagrados do desenvolvimento da bacteriologia, o Instituto Pasteurem Paris e o Instituto de Higiene de Berlim, dirigido por Robert Koch.

    O ensino sistemtico da bacteriologia no Instituto de Higiene de Berlim comeou em 1885. O curso,centrado nas tcnicas de laboratrio, durava um ms. Os alunos, em grande parte mdicos vindos doestrangeiro, preparavam seus prprios meios de cultura e, aps um ms de trabalho duro, dominavamperfeitamente as tcnicas de isolamento das bactrias, de colorao e de observaes microscpicas.Muitas vezes os alunos estrangeiros compraram na Alemanha o equipamento necessrio para construirum laboratrio de microbiologia em seu pas. O principal obstculo reproduo dos resultados forade Berlim foi a dificuldade de obter meios de cultura homogneos e de construir incubadores quemantivessem a temperatura constante. Por volta de 1900, tais dificuldades puderam ser resolvidas naEuropa Ocidental e nos Estados Unidos graas maior difuso dos meios de cultura comerciais e ao

  • desenvolvimento de incubadoras mais estveis.46 O "curso de microbiologia tcnica" do InstitutoPasteur (tambm chamado "o grande curso" ou "o curso de Monsieur Roux") comeou em 1889, anoseguinte ao da fundao do instituto. As sesses foram mais longas do que as do curso do Instituto deHigiene; no incio, o instituto organizou trs sesses anuais, depois duas, e finalmente uma nicasesso, que durava todo o ano escolar. O ensino tinha um importante componente prtico: em Paris, osalunos tambm aprenderam o conjunto das tcnicas bacteriolgicas de base, inclusive a preparao demeios de cultura, da vidraria, e a experimentao em animais, mas receberam, alm disso, um ensinoterico avanado, ministrado por pesquisadores do Instituto Pasteur que apresentavam os ltimosdesenvolvimentos cientficos em sua rea de especializao. Os alunos do "grande curso", entre osquais vrios estrangeiros, eram em sua maioria mdicos, mas tambm veterinrios e farmacuticos47Entre eles, Oswaldo Cruz, responsvel pela eliminao da febre amarela do Rio de Janeiro entre 1903e 1907, que o seguiu em 1896. Sua carreira ilustra, assim, a importncia da circulao dospesquisadores e do savoir-faire incorporado na transmisso dos novos conhecimentos cientficos.Cruz no transferiu passivamente para o Rio de Janeiro o saber bacteriolgico adquirido em Paris: eleo adaptou ao estudo das doenas dos pases quentes e o integrou a uma disciplina bem definida: amedicina tropical.48

    A medicina tropical entre a especificidade das prticas e aespecificidade das polticas

    A medicina tropical nasceu no fim do sculo XIX da adaptao das "cincias pasteurianas" s doenasdos pases do Sul. O nascimento da medicina tropical propriamente dita geralmente associado descrio das doenas transmitidas por vetores intermedirios (os insetos, os moluscos ou os vermes).Essa especialidade tem um "pai fundador" oficial: o mdico ingls Patrick Mason, que descreveu aimportncia dos vermes na filariose (elefantase) e que, mais tarde, estimulou os trabalhos de Rosssobre o papel do mosquito na transmisso da malria. O elo existente entre as doenas transmitidaspor vetores invertebrados e a "medicina tropical" nunca foi simples (a malria no se limita, de modoalgum, aos trpicos, e at a Segunda Guerra Mundial esta doena foi um grave problema de sadepblica na Itlia e nos Estados Unidos; vrias doenas hoje classificadas como "tropicais", como oclera, por exemplo, no tm hospedeiros intermedirios). O lao entre o estudo dos vetores e amedicina tropical se teceu principalmente atravs dos desenvolvimentos institucionais. A fundao deinstitutos de pesquisa em medicina tropical e o estabelecimento de um ensino universitrio dedicado matria - vejam-se os institutos de medicina tropical de Londres (1899), de Liverpool (1899), deHamburgo (1900), de Bruxelas (1906) - coincidem com a descrio (em fins do sculo XIX e incio doXX) de numerosas doenas das regies quentes transmitidas por vetores. Essa especificidade dasdoenas dos pases quentes legitimou o desenvolvimento de uma subespecialidade mdica focalizadano controle de tais doenas por meio do controle de seus vetores e que alia pesquisas emmicrobiologia, em parasitologia e em entomologia a pesquisas de campo concentradas nas interaesdos organismos em seu ambiente natural.49

    O advento da medicina tropical, que pode ser descrita como a adaptao das regras da "cinciapasteuriana" aos climas quentes, est estreitamente ligado ao colonialismo, mas no deve ser reduzidoa ele. A expanso colonial bem anterior ao desenvolvimento das teorias microbianas da doena.Antes do desenvolvimento de uma medicina tropical enraizada nos estudos de laboratrio, aabordagem mdica dominante nas colnias foi a da "medicina dos climas quentes". Tal abordagem

  • acentuou a importncia da aclimatao gradual dos no-autctones aos trpicos, os elementos da vidaque favoreciam tal aclimatao, como uma alimentao apropriada, o afastamento de fontes decontgio e a temperana, assim como o valor da mestiagem na adaptao dos colonos a seu novoambiente.50 O historiador Philip Courtin explica que a introduo sistemtica das regras de higiene,em particular o afastamento dos europeus dos lugares de contgio conhecidos, a observncia dasregras de limpeza pessoal e de limpeza das moradias, a fiscalizao da gua e dos alimentos, assimcomo a utilizao sistemtica de mosquiteiros, levaram entre 1840 e 1860 - bem antes, portanto, dodesenvolvimento das teorias microbianas e de sua integrao prtica dos mdicos -a uma diminuioimportante da mortalidade dos soldados dos exrcitos coloniais. Essa mortalidade estabilizou-se maistarde e s teve reduo importante por volta do fim do sculo XIX; as estatsticas no revelam, assim,de modo algum um efeito marcado da "revoluo pasteuriana" na diminuio do custo humano ligadoao deslocamento das tropas.51

    O desenvolvimento da microbiologia no teve efeitos imediatos sobre a morbidade e a mortalidadenos pases tropicais, mas afetou o progresso das cincias mdicas neles verificado. Tais pases foramvistos como lugares particularmente favorveis ao trabalho dos "caadores de micrbios", dadas aprofuso de doenas transmissveis, endmicas e epidmicas, e a colaborao ativa das administraeslocais. Nas colnias, os poderes pblicos viram as doenas tropicais como um obstculo maior colonizao, enquanto nos pases independentes elas constituam um entrave ao comrciointernacional e imigrao. Alm disso, as epidemias que atingiam a populao nativadesorganizavam o trabalho, especialmente nas plantaes. Bacteriologistas de grande renomeviajaram nos trpicos, ao passo que os poderes pblicos neles estimularam a experimentao em largaescala dos novos saberes adquiridos pela cincia. Os pases tropicais foram tambm um lugarprivilegiado para testar as novas formas de preveno e tratamento das doenas infecciosas. Vriasvacinas e anti-soros foram testados nas colnias antes de serem empregados na metrpole, e asprimeiras campanhas de vacinao em massa aconteceram nos pases coloniais, para proteger astropas coloniais ou os trabalhadores nativos52 Instituies dedicadas ao desenvolvimento da medicinatropical foram construdas nas colnias: a importante rede dos institutos Pasteur de Ultramar foidesenvolvida nas colnias francesas, enquanto os britnicos construram em suas colnias institutosque respondiam a necessidades precisas, como o Instituto de Pesquisa Mdica de Kuala Lumpur ou oInstituto Bacteriolgico de Bombaim.53 Tais instituies permitiram a circulao das pessoas, doequipamento e dos conhecimentos e sua adaptao s condies locais. As doenas tropicais e asinstituies em que foram estudadas constituram objeto de debates nos congressos internacionais. OInstituto de Soroterapia de Manguinhos (fundado por Oswaldo Cruz) foi, assim, premiado com aMedalha de Ouro da Higiene no 14 Congresso Internacional de Higiene e de Demografia (Berlim,1907).54

    Alm de seu interesse intrnseco (os trpicos eram tidos como um lugar propcio inovao no estudodas doenas transmissveis) e do interesse prtico (a medicina tropical tinha como objetivo declaradotornar os trpicos habitveis - e rentveis - para os europeus e norte-americanos), o desenvolvimentoda medicina tropical foi descrito como um meio, para os ocidentais, de se apropriar dos trpicos (eno apenas neles assegurar sua presena fsica). Essa apropriao passou pelo domnio dos corposnativos propriamente dito (disciplinar os corpos dos habitantes por meio da limpeza e o controle de siinculcando as virtudes da civilizao ocidental) e pela vigilncia mdica de seu meio ambiente. Amedicina, e em particular a sade pblica, tornaram-se, assim, um meio de conhecer as pessoas e seumeio ambiente, e depois control-las. As viagens, a coleta de materiais biolgicos, a investigao dolocal e a utilizao, indispensvel, das tcnicas de laboratrio servem para descrever os nativos e

  • inscrev-los nos roteiros desenvolvidos pelos cientistas ocidentais. Os mtodos utilizados para talapropriao e a linguagem em que foram formulados mudaram com o tempo. O intervencionismomoderado da "medicina dos climas quentes" supunha uma "resistncia racial" que s pode seradquirida pelos homens brancos lentamente, custa de uma aclimatao gradual, de um modo de vidasaudvel (nutrio apropriada, repouso, eliminao de excessos), e antes de tudo da miscigenao comos nativos, que permitiria a criao de "raas resistentes". Essa percepo foi substituda, no comeodo sculo XX, por um "otimismo higienista" enraizado nos novos desenvolvimentos cientficos. Anova abordagem da medicina dos climas quentes sublinhou a importncia dos princpios cientficos naluta contra os agentes das doenas transmissveis e seus vetores. A adeso aos princpiosrelativamente simples com vistas a impedir o contato com os agentes e os vetores das doenas podetornar os trpicos habitveis para os europeus, sem que eles precisem de uma longa aclimatao, daadeso a um modo de vida predeterminado e, menos ainda, do desenvolvimento de uma "raaresistente" por meio da mestiagem. Se a abordagem antiga pregou a adaptao "positiva" aostrpicos, por meio da modificao gradual das condies de vida, o elemento crucial da novaabordagem foi a adaptao "negativa": a vigilncia dos corpos, especialmente dos corpos nativos.55

    Nas colnias, a medicina tornou-se muitas vezes o lugar privilegiado para os contatos entre a culturaocidental e as culturas autctones. Ainda que dominados pelo sentimento de superioridade dosmdicos e pesquisadores ocidentais, os contatos com as populaes locais no eram necessariamenteunilaterais; a resistncia dos habitantes das regies quentes, mas tambm as prticas de sade locaisinfluenciaram, ocasionalmente, as prticas ocidentais. Alm disso, as classes dominantes nos pasesdo Sul por vezes se apropriaram, em seu prprio interesse, das prticas e da imagem de distino damedicina ocidental - ou, em outras circunstncias, das resistncias populares medicina ocidental. Amedicina e, mais largamente, a ao sanitria, pode portanto ser descrita como "uma zona de trocas"(desiguais, verdade) entre as culturas, e como um espao de debates sobre objetivos polticos eprticas sociais56 Este papel de espao de troca, assim como a apropriao das aes sanitrias pelaselites locais para realizar seus prprios objetivos, so particularmente perceptveis nos pases que, nofim do sculo XIX, no estiveram submetidos a um regime colonial, como o Brasil.

    Duas escolas de medicina (ou, antes, duas abordagens do estudo das doenas tropicais) coexistiram noBrasil no sculo XIX: a do Rio de Janeiro e a de Salvador, na Bahia. Mdicos ligados a esta ltimadesenvolveram, na segunda metade do sculo XIX, reflexes originais sobre as doenas tropicais. Oponto de partida dessas reflexes foram as pesquisas de um mdico alemo instalado no Brasil, o Dr.Otto Wucherer, sobre a origem parasitria de algumas afeces tropicais. Em 1866-1868, Wuchererpublica, na Gazeta Mdica da Bahia, os primeiros resultados de suas investigaes sobre o papel doverme Anchylostomum duodenale na produo da anemia. Seus trabalhos insistem na causalidadenica da anemia, destacando dessa forma uma doena tropical particular do contexto geral dasreflexes sobre as afeces tropicais, que associaram tais patologias s condies climticas e constituio dos indivduos afetados. Era o incio do desenvolvimento da "Escola Tropicalista Baiana"(nome proposto ulteriormente pelos historiadores que estudaram esta escola), ativa entre 1866 e 1890,e que publicou seus trabalhos na Gazeta Mdica da Bahia. A originalidade dessa escola est no fato deque seus membros - Otto Wucherer, Julio de Moura, Pedro Severiano de Magalhes, Silva Arajo -centraram suas investigaes sobre as doenas tropicais, algumas induzidas pelos parasitas (filariose,ancilostomase), e outras, tais como o beribri, por uma causa ento desconhecida (outros mdicosbrasileiros preferiram estudar as doenas freqentes nos climas temperados). Suas pesquisas tiverampor objeto as causas diretas das doenas tpicas do Brasil, mas tambm a adaptabilidade das pessoas sdiversas condies climticas. Os mdicos da Escola Tropicalista opuseram-se simultaneamente ao

  • determinismo climtico, freqente no pensamento mdico europeu da poca, que viu os trpicos comoum lugar de inevitvel degenerescncia dos seres humanos, e a qualquer determinismo racial. Sobreeste ltimo ponto, convm notar que a sociedade da Bahia era mestia, e que muitos mdicos dacidade eram negros ou mulatos. A resistncia dos membros da Escola Tropicalista a qualquerdeterminismo biolgico lhes permitiu manter uma viso da flexibilidade e da maleabilidade dos sereshumanos. Tal viso sublinhou o papel da medicina no fortalecimento das tendncias positivas, e naneutralizao eficaz dos efeitos nefastos do clima e da mistura de raas. Ela permitiu, assim, aosmdicos da Bahia afirmar sua f na possibilidade de transformar o Brasil em uma nao civilizada, esublinhar o lugar da profisso mdica em tal transformao. Inc