violência para todos

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993 65 ARTIGO / ARTICLE Violência para Todos Violence for All Maria Cecília de S. Minayo 1 Edinilsa R. de Souza 2 MINAYO, M. C. S. & SOUZA, E. R. Violence for All. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993. This paper investigates the problem of social violence based on the situation for mortality from external causes in Brazil, particularly in the city of Rio de Janeiro. Mortality data from the Brazilian Ministry of Health (consolidated by the Department of Epidemiology of the National School of Public Health in the period 1980-1988) are used in this study. Proportional mortality and mortality rates from external causes are given according to sex, age, specific groups of external causes, types of homicides, and traffic accidents. Despite being basically a descriptive study, this paper also studies homicides as the most significant cause of death in the configuration of violence in Brazil today. Keywords: Violence; Mortality; Epidemiology; Sociology INTRODUÇÃO Ao longo da década de 80, ocorreram mudan- ças importantes no perfil de mortalidade do país. As chamadas “doenças do desenvolvimen- to” assumiram o papel das principais causas de óbito. Realizou-se uma transição epidemiológica onde as doenças do aparelho circulatório, as neoplasias e as causas externas são, nesta ordem, responsáveis pela maioria dos óbitos da população brasileira (Szwarcwald, 1987). Nesta década, por um lado, ressurgem epide- mias de doenças anteriormente controladas. Por outro, observa-se o crescimento de outras tantas endemias, refletindo a deterioração das con- dições de vida e de saúde associada à precária atuação da combalida rede de serviços públicos de saúde. A violência apresenta-se, nesta década, como fenômeno cujas facetas são objeto de apre- ensão no cotidiano, pelo desencadeamento de temor generalizado aos assaltos, seqüestros e assassinatos. Ela também passa a ser objeto de reflexão por parte de várias áreas do saber, entre elas a Saúde Pública, pelo papel que assume diante da morbi-mortalidade, vitimizan- do crianças, jovens, adultos e idosos indiscrimi- nadamente (Minayo, 1990a). Tendo como característica essencial o fato de ser fenômeno social, travado a nível das re- lações sociais, a violência é também responsá- vel, em suas manifestações específicas, por uma série de agravos à saúde (como maus-tratos a crianças, espancamento de mulheres e outros) (Assis, 1991; Claves/Cepeba/ESS da UFRJ, 1990). Sua pior consequência vem a ser a morte, especialmente pelos crimes cometidos no trânsito e pelos assassinatos, estes últimos ceifando sobretudo jovens brasileiros. As formas específicas de violência estão presentes, em maior ou menor intensidade, em todas as regiões do país e nos diversos grupos sociais (Dados, 1985; 1990). Perpassam as várias fases da vida e se instauram nas mais variadas relações humanas. Juntos, os diversos tipos de violência constituem uma rede intricada e complexa, na qual todos (cada um a seu modo) são vítimas e autores a um só tempo (Boulding, 1981; Domenach, 1981). Tal como 1 Coordenação de Pós-Graduação da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 3º andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 2 Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8º andar, 21041- 210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993 65

ARTIGO / ARTICLE

Violência para TodosViolence for All

Maria Cecília de S. Minayo 1

Edinilsa R. de Souza 2

MINAYO, M. C. S. & SOUZA, E. R. Violence for All. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1):65-78, jan/mar, 1993.This paper investigates the problem of social violence based on the situation for mortality fromexternal causes in Brazil, particularly in the city of Rio de Janeiro. Mortality data from theBrazilian Ministry of Health (consolidated by the Department of Epidemiology of the NationalSchool of Public Health in the period 1980-1988) are used in this study. Proportional mortalityand mortality rates from external causes are given according to sex, age, specific groups ofexternal causes, types of homicides, and traffic accidents. Despite being basically a descriptivestudy, this paper also studies homicides as the most significant cause of death in theconfiguration of violence in Brazil today.Keywords: Violence; Mortality; Epidemiology; Sociology

INTRODUÇÃO

Ao longo da década de 80, ocorreram mudan-ças importantes no perfil de mortalidade dopaís. As chamadas “doenças do desenvolvimen-to” assumiram o papel das principais causas deóbito. Realizou-se uma transição epidemiológicaonde as doenças do aparelho circulatório, asneoplasias e as causas externas são, nestaordem, responsáveis pela maioria dos óbitos dapopulação brasileira (Szwarcwald, 1987).

Nesta década, por um lado, ressurgem epide-mias de doenças anteriormente controladas. Poroutro, observa-se o crescimento de outras tantasendemias, refletindo a deterioração das con-dições de vida e de saúde associada à precáriaatuação da combalida rede de serviços públicosde saúde.

A violência apresenta-se, nesta década, comofenômeno cujas facetas são objeto de apre-ensão no cotidiano, pelo desencadeamento de

temor generalizado aos assaltos, seqüestros eassassinatos. Ela também passa a ser objeto dereflexão por parte de várias áreas do saber,entre elas a Saúde Pública, pelo papel queassume diante da morbi-mortalidade, vitimizan-do crianças, jovens, adultos e idosos indiscrimi-nadamente (Minayo, 1990a).

Tendo como característica essencial o fato deser fenômeno social, travado a nível das re-lações sociais, a violência é também responsá-vel, em suas manifestações específicas, por umasérie de agravos à saúde (como maus-tratos acrianças, espancamento de mulheres e outros)(Assis, 1991; Claves/Cepeba/ESS da UFRJ,1990). Sua pior consequência vem a ser amorte, especialmente pelos crimes cometidos notrânsito e pelos assassinatos, estes últimosceifando sobretudo jovens brasileiros.

As formas específicas de violência estãopresentes, em maior ou menor intensidade, emtodas as regiões do país e nos diversos grupossociais (Dados, 1985; 1990). Perpassam asvárias fases da vida e se instauram nas maisvariadas relações humanas. Juntos, os diversostipos de violência constituem uma rede intricadae complexa, na qual todos (cada um a seumodo) são vítimas e autores a um só tempo(Boulding, 1981; Domenach, 1981). Tal como

1 Coordenação de Pós-Graduação da Escola Nacionalde Saúde Pública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 3ºandar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.2 Departamento de Epidemiologia e MétodosQuantitativos em Saúde da Escola Nacional de SaúdePública. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, 8º andar, 21041-210, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

numa epidemia, todos são afetados pela fontecomum de uma estrutura social desigual einjusta, que alimenta e mantém ativos os focosespecíficos de violência, os quais se expressamnas relações domésticas, de gênero, de classese no interior das instituições.

Neste artigo, focalizam-se, particularmente,dados sobre a realidade urbana. A violência,que atinge a todos enquanto sujeitos e vítimas,atinge também a população do campo, sobretu-do os trabalhadores, seja nas suas formas fatais,seja em manifestações tais como lesões físicas,psíquicas e simbólicas (Almeida, 1988). Mas ofenômeno assume maiores proporções nasrelações sociais das grandes regiões metropoli-tanas e urbanas, onde se concentra, hoje, amaioria da população (75%, segundo dadosrecentes do IBGE) (FIBGE, 1991).

Por outro lado, do ponto de vista explicativo,não se pode separar o que ocorre nas cidadessem referenciá-lo à política industrial e agrícolaque, a partir da década de 50 (e configurando--se de formas diferenciadas até o presente mo-mento), tem sido responsável pela expulsão depopulações rurais para os centros urbanos, sejacomo forma de se criar mão-de-obra industrial,em um primeiro momento, ou como forma deracionalizar a produção agrícola. Portanto, aviolência social urbana resulta de relações quenão se dissociam em termos de urbano-rural,mais que se completam, embora haja diferen-ciações profundas na configuração de ambas,tendo em vista as estruturas, os sujeitos e osinteresses envolvidos nas suas formas particula-res de expressão.

METODOLOGIA

O objeto deste estudo é a violência social, apartir dos dados de mortalidade por causasexternas (acidentes e violências), cuja codifi-cação na Classificação Internacional de Doenças(CID), nona revisão, compreende as categoriasE800 e E999.

Objetiva-se efetuar uma análise descritivadesta mortalidade nas capitais das principaisregiões metropolitanas do país, com destaquepara o município do Rio de Janeiro.

São utilizados dados de mortalidade do Mi-nistério da Saúde, consolidados pelo Departa-

mento de Epidemiologia e Métodos Quantitati-vos em Saúde, da Escola Nacional de SaúdePública, no período de 1980 a 1988.

São apresentadas a mortalidade proporcionale as taxas de mortalidade por causas externas,segundo sexo, idade, grupos específicos decausas externas, tipos de homicídios e acidentesde trânsito. Busca-se aprofundar uma reflexãoanalítica sobre a problemática dos homicídios.

APRESENTAÇÃO DOS DADOS

Mortalidade nas Capitais dasRegiões Metropolitanas

Nas capitais das principais Regiões Metropo-litanas do país, a mortalidade por causas exter-nas (acidentes, suicídios e homicídios) represen-ta, entre 1980 e 1988, mais de 10% de todos osóbitos ocorridos. Este percentual tende a crescerlentamente no período: em 1980 corresponde a10,5% e em 1988, a 12,3%.

Entre algumas capitais, o crescimento daimportância das causas externas no obituáriogeral foi mais intenso, como pode-se ver naTabela 1.

Em 1988, as causas externas situam-se pelomenos entre as quatro principais causas de óbitonas capitais brasileiras. No período estudado,Curitiba e Goiânia aparecem com os maiorespercentuais. Em Recife e Salvador observam-seos maiores crescimentos (4,1%), passando de 6ªcausa, em 1980, para 2ª e 3ª, respectivamente,no final da série histórica. Em seguida vemGoiânia, com os maiores percentuais no perío-do, e São Paulo, com 2,7 pontos percentuais decrescimento da proporção de mortes por causasexternas, passando da quarta para a terceiraposição.

Dados ainda não publicados da SecretariaEstadual de Saúde do Rio de Janeiro informamque, em 1989, as causas externas assumem asegunda posição no obituário geral da capital,com a proporção 13,8% de óbitos, equivalentea um crescimento de 1,4% em relação a 1988.

O sexo masculino responde por 81,8% dosóbitos por causas externas, sendo que cerca de65% deles compreendidos entre 15 e 39 anos.Entre as mulheres, estas proporções diminuembastante: são, respectivamente, de 18,2% e36,3% (Tabela 2).

66 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993

Minayo, M. C. S. & Souza, E. R.

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993 67

Violência para Todos

TABELA 1. Distribuição Proporcional por Causas Externas nas Capitais das Principais RegiõesMetropolitanas. Brasil, 1980 e 1988

* Dados para 1987.Fonte: Ministério da Saúde.

Entre os homens existe uma mortalidadeproporcionalmente maior entre 15 e 39 anos deidade.

Por outro lado, os percentuais de óbito entreas mulheres nas faixas mais extremas da vidasão maiores que os observados no sexo mascu-lino.

Estes diferenciais na distribuição dos óbitospor sexo e faixas de idade também aparecemnas causas específicas que compõem o grupodas externas.

De acordo com a Tabela 3, mais da metadedos óbitos por causas externas nas capitaisbrasileiras, em 1985, são devidos aos acidentesde trânsito (27,9%) e aos homicídios (25,7%).

Enquanto a maior parte dos acidentes, em

TABELA 2. Distribuição da Mortalidade Proporcional por Causas Externas segundo Sexo e Faixa Etária.Brasil - 1988

Fonte: Ministério da Saúde

geral, concentra-se nas faixas etárias maisjovens ou mais velhas, os suicídios e, especial-mente, os homicídios incidem mais entre os 15e os 49 anos.

Os acidentes de trânsito conseguem ter eleva-dos percentuais ao longo de toda a vida, maschama a atenção sua contribuição em 43,8%dos óbitos ocorridos entre crianças dos 5 aos 14anos.

A seguir, serão analisados os dados da Tabela4, porém, antes de fazê-lo, é necessário esclare-cer que as taxas nela apresentadas foram calcu-ladas utilizando-se como denominador as infor-mações populacionais do Censo de 1991. Estaspopulações, de acordo com este censo, tiveramuma taxa de crescimento inferior àquela que

Capitais

1980 1988

% Posição % Posição Rio de Janeiro São Paulo Belo Horizonte Curitiba Proto Alegre Recife Salvador Fortaleza Belém Goiânia

11,9 10,3 10,1 12,9

9,2 8,0 8,2 9,3

10,5 14,5

4º 4º

3º 2º

12,4 13,0 10,4

13,3* 10,1 12,1 12,3 10,7 11,3

17,5*

3º 4º

3º 2º

Total 10,5 3º 12,3 3º

Faixas Etárias Masculino Feminino Total 0-14 15-19 20-29 30-39 40-64 64 e +

7,0 12,6 32,1 19,9 21,6 6,2

16,4 4,7

17,3 14,3 23,1 20,8

8,7 11,7 29,4 18,9 21,9 8,9

Total 81,8 18,2 100,0

68 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993

Minayo, M. C. S. & Souza, E. R.

TABELA 3. Distribuição da Mortalidade Proporcional por Causas Externas, segundo Faixas Etárias e Gruposde Causas Externas Específicas, nas Capitais das Regiões Metropolitanas, Brasil - 1985.

vinha sendo empregada anteriormente paraestimá-las. É por isso que as taxas mostradasnesta tabela são superiores às encontradas emoutros estudos, como, por exemplo, na revistaDados (Dados/Radis, 1990). Por este motivo, astaxas observadas posteriormente para o Rio deJaneiro serão diferentes das encontradas nestatabela.

As taxas de mortalidades por causas externasnas principais capitais brasileiras oscilam aolongo do período, embora em algumas delassejam observadas certas tendências. É crescentea mortalidade no Rio de Janeiro, São Paulo,Porto Alegre, Goiânia e Recife, esta últimaapresentando o maior crescimento no período.

TABELA 4. Taxas * de Mortalidade por Causas Externas, segundo Capitais das Grandes Regiões.

Decrescem as taxas de Belém e Fortaleza, en-quanto permanecem estáveis as de Salvador,Belo Horizonte e Curitiba.

O Rio de Janeiro e Goiânia são as capitaisque detêm, respectivamente, as primeiras esegundas maiores taxas ao longo de todo operíodo.

Destaca-se, ainda, o incremento significativodas taxas, nos últimos três anos, em Recife, Riode Janeiro e São Paulo, passando para patama-res bem mais elevados que os observados noinício do período.

A partir dos dados já colocados e a despeitodo que é reiteradamente anunciado, o Brasil nãoé o campeão de atos fatais de violência, como

Causas Externas 0-4 5-14 15-29 30-49 50 e + Total Acidentes de Trânsito 22,2 43,8 21,6 28,7 36,5 27,9 Quedas Acidentais Acidentes Causados por Fogo Afogamentos Aspiração de Alimentos / Objetos que Provocam Sufocação Outros Acidentes

2,3 9,7 15,3

14,6 20,2

2,4 2,0 15,1

2,9 15,2

0,8 0,7 8,1

0,6 9,1

2,0 0,9 4,0

0,7 5,1

12,2 1,2 2,0

0,7 17,9

3,5 1,2 6,5

1,3 12,8

Suicídios Homicídios

— 2,5

1,1 7,2

3,4 36,9

13,2 27,0

5,2 9,7

3,9 25,7

Outras Violências 13,2 9,6 18,8 18,4 14,6 17,2

Fonte: Szwarcwald, 1989.

Fonte: Ministério da Saúde. * Taxas por 100.000 habitantes.

Capitais 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 Belém Fortaleza Recife Salvador Belo Horizonte Rio de Janeiro São Paulo Curitiba Porto Alegre Goiânia

79,72 71,58 66,40 64,27 75,08 98,32 69,83 85,95 63,44 93,81

71,70 69,16 68,53 62,10 62,85 87,45 69,83 79,50 69,20 97,02

68,31 72,83 79,26 61,27 65,53 84,53 68,79 83,84 72,92

104,97

71,68 70,97 79,88 65,65 63,13 93,01 81,02 84,77 71,04 88,34

68,85 66,54 86,42 63,95 62,44 98,40 88,61 76,19 66,04 95,65

60,30 66,44 85,61 60,32 64,02 99,44 87,36 81,30 66,96 95,84

66,96 63,31

100,50 67,76 77,00

109,20 94,34 87,62 72,35

103,78

67,27 55,17 91,33 65,19 69,50

105,85 96,17 86,40 79,95 98,56

60,49 62,64

— 65,96 68,52

113,94 91,07

— 77,81 99,46

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993 69

Violência para Todos

TABELA 5. Taxas * de Mortalidade por Causas Externas em Alguns Países do Mundo

pode-se observar na Tabela 5. Por outro la-do, não temos uma série histórica suficiente-mente abrangente e consistente para fazermosum prognóstico sobre a situação futura do país,nem do presente em relação ao passado.

Comparativamente a outros países da Américae da Europa, ele ocupa uma posição intermediá-ria, porém preocupante, devido à forma comose constitui no país este grupo de mortes (Sou-za & Assis, 1989). Enquanto em alguns paíseseuropeus os fenômenos violentos se expressam,terminalmente, em primeiro lugar nos suicídiose em segundo, nos acidentes de trânsito, nosEstados Unidos e no Canadá, as estatísticasrevelam que os acidentes de trânsito e os suicí-dios constituem as principais explicações paraas mortes violentas. No Brasil, este perfil édiferenciado. Ocupando hoje o terceiro lugar namortalidade geral, a violência se apresentaconfigurada pela primazia dos acidentes detrânsito, seguida pelos homicídios e, com índi-ces pouco expressivos, pelos os suicídios.

Na década de 80, a tendência de crescimentodas taxas de mortalidade por causas externas édada, sobretudo, pelo aumento proporcional doshomicídios no conjunto destas causas, já pare-ando-se com os acidentes de trânsito ou, por

* Taxas por 100.000 habitantesFonte: Souza & Assis, 1989.

vezes, ultrapassando-os nas regiões metropolita-nas. É importante ressaltar que as maiores fre-qüência e gravidade dos homicídios ocorremnas faixas etárias de 15 a 39 anos, isto é emidade produtiva. Portanto, é a nível dos homicí-dios que reside o sentido da gravidade dasituação da violência no Brasil.

Mortalidade no Município do Rio de Janeiro

Para se aprofundar o fenômeno da violênciageradora de morte, toma-se aqui o conjunto dedados sobre o município do Rio de Janeirocomo um “caso” não para ser extrapolado, mascapaz de trazer maior complexidade para odebate sobre o tema em questão.

As principais causas de óbito no Rio deJaneiro, na década de 80, são as mesmas obser-vadas no conjunto das capitais das regiõesmetropolitanas do país. As doenças cardiovas-culares, as neoplasias e as causas externas sãoos três primeiros grandes grupos de morte(Tabela 6).

Em 1988, cada uma destas causas correspon-de, respectivamente, a 40,2%, 13,1% e 12,4%dos óbitos gerais do município, como se podever na Figura 1.

Países Todas as Causas Externas

Todos os Acidentes

Suicídios Homicídios Outras Violências

Hungria/85 El Salvador/84 Colômbia França Áustria/84 Tchecoslováquia/84 Bélgica/84 Brasil/85 Estados Unidos/85 Suécia/83 Canadá/85 Argentina/85 Japão/85 Israel/84 Inglaterra/84 Peru/83

124,8 124,6 97,0 91,5 88,7 78,0 74,8 63,3 61,2 61,0 52,9 47,9 46,9 40,8 37,8 30,7

77,2 45,5 48,7 64,3 59,1 55,2 48,0 35,6 39,3 34,7 36,5 32,0 24,6 31,5 24,3 24,2

44,4 11,8 3,5

22,0 26,9 18,5 23,8 3,1

12,4 19,0 12,9 6,6

19,4 5,4 8,7 0,5

2,7 40,4 38,1 1,3 1,8 1,1 1,7 14,6 8,2 1,2 2,1 4,9 0,8 1,4 0,7 2,2

0,5 26,9 6,4 3,9 0,9 3,2 1,3

10,1 1,3 6,1 1,4 4,4 2,0 2,5 3,2 3,8

No sexo masculino, a mortalidade por causasexternas é a segunda causa de morte, correspon-dendo a 18,2%. No sexo feminino, este percen-tual cai para 4,7% e as externas passam a ser asexta causa de óbito. As diferenças desta morta-lidade em relação aos sexos são mais claramen-te vistas na Figura 2.

A partir dos 15 até os 49 anos de vida, amortalidade masculina é significativamente maiselevada do que a feminina, sobretudo entre os20 e os 29 anos.

Em relação aos grupos específicos de causasexternas, observa-se na Figura 3 que 71,3% dasmortes devem-se aos homicídios (45,3%) e aosacidentes de trânsito (26%).

Faz-se aqui um parêntese para assinalar quea categoria homicídios considerada nesta análiseinclui os homicídios propriamente ditos ( E 960— E 966) e agressões por arma de fogo asquais se ignora se acidental ou intencionalmente

70 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993

Minayo, M. C. S. & Souza, E. R.

TABELA 6. Taxas* de Mortalidade pelas Principais Causas de Óbito. Município do Rio de Janeiro, 1980-1988

* Taxas por 100.000 habitantes.Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia.

FIGURA 1. Mortalidade Proporcional pelos Principais Grupos de Causas. Município do Rio de Janeiro, 1988

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia

FIGURA 2. Distribuição Percentual dos Óbitos porCausas Externas segundo Sexo e Idade.Município do Rio de Janeiro, 1988

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia

1980 1982 1984 1986 1988 1989 Doenças do Aparelho Circulatório Neoplasias Causas Externas

334,65 114,94 98,32

331,39 113,02 82,44

319,07 114,77 92,70

322,85 11,51 83,20

324,66 105,63 99,91

311,81 105,33 108,01

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993 71

Violência para Todos

infligidas, classificadas na lista BR na categoriaoutras violências (E 970 — E 999). Esta estra-tégia certamente introduz um erro no númerode homicídios, uma vez que nem todas asagressões por arma de fogo caracterizam-secomo assassinato.

Da mesma forma, outro tipo de lesões ignora-das — praticadas por arma branca, envenena-mento, enforcamento — podem ser homicídiose, no entanto, não foram consideradas aquicomo tal.

Apesar disso, considera-se que o erro cometi-do ao se ssumir esta estratégia é mínimo emrelação ao que a classificação oficial estáproduzindo. Tal afirmação fundamenta-se,primeiro, no fato de que, a partir de 1984, maisde 60% da categoria “outras violências” éconstituída por agressões com arma de fogo.Segundo, o desconhecimento quanto à intencio-nalidade da morte e a sua conseqüente classifi-cação entre as outras violências são dados quenão se sustentam diante das informações dasdelegacias de polícia. Nos registros de ocorrên-cia policial, observa-se que a quase totalidadedas agressões com arma de fogo são, indiscuti-velmente, homicídios.

Estudos feitos por Souza (1991a, 1992) emDuque de Caxias e na Baixada Fluminensemostram que, em geral, os homicídios informa-dos oficialmente na declaração de óbito estãosubestimados quando comparados à informaçãopolicial. Mello Jorge (1988, 1990) e Swarcwald(1986) também discutem esta inadequaçãoquanto à classificação da causa básica de óbitospor acidentes e violências, em São Paulo e no

FIGURA 3. Mortalidade Proporcional por Grupos Específicos de Causas Externas. Município do Rio deJaneiro, 1988.

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia

Rio de Janeiro. Vicente (s.d.) analisa a dificul-dade na classificação dos óbitos por homicídiosem Campinas, São Paulo.

Apenas a título de exemplificação, no municí-pio do Rio de Janeiro, em 1988, dos 3.139óbitos classificados como outras violências(categoria constituída por lesões as quais igno-ra-se a intencionalidade e lesões atribuídas àintervenção policial), 2.133 (68%) eram agres-sões por arma de fogo. Este grupo “outrasviolências” correspondia a 52,7% dos óbitos porcausas externas. Enquanto isso, os homicídiossomavam apenas 560 óbitos. Quando adiciona-dos às agressões com arma de fogo do tipoignoradas quando à intencionalidade, passarama ser 2.693 óbitos. Este último dado parecemais confiável que os 560 óbitos informadosanteriormente. Daí a opção de se trabalhar coma soma deles.

As tendências das taxas de homicídios com esem a categoria agressão com arma de fogo,que se ignora se acidental ou intencionalmenteinfligida, podem ser bem visualizadas na Figura4.

A tendência da curva que exclui as agressõescom arma de fogo cuja intencionalidade seignora é claramente descendente. Já a outracurva, que soma este grupo aos homicídios,cresce a partir de 1984, quando o primeiro,sozinho, representava mais de 60% dos óbitospor outras violências.

Na Tabela 7 encontram-se as taxas de mor-talidade por grupos de causas externas específi-cas, no período investigado, para o municípiodo Rio de Janeiro.

72 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993

Minayo, M. C. S. & Souza, E. R.

Os homicídios e os acidentes, sobretudo os detrânsito, destacam-se como as principais causasde óbito. As outras violências também aparecemcom expressivas taxas.

Os acidentes de trânsito representam, em média,75% dos acidentes em geral no período.

As taxas dos acidentes oscilam, sendo menoresem 1982 (17,19) e maiores em 1983 (31,21 óbitosem 100.000 habitantes).

No ano de 1982 os homicídios detêm a menortaxa (21,63). Em 1988, estas elevam-seconsideravelmente, passando de 33,73 (em 1986)para 45,19 óbitos em 100.000 habitantes.

Os suicídios apresentam baixas taxas, comtendência estável. No início do período têm amaior taxa (2,61) e em 1982, a menor (0,87).

Em relação às faixas etárias, os homicídiosconcentram-se, de 73% a 80%, entre os 15 e os39 anos de idade durante os anos investigados(Tabela 8).

FIGURA 4. Taxas de Homicídios com e Sem aInclusão das Agressões com Armasde Fogo cuja Intencionalidade. SeIgnora

TABELA 8. Distribuição Proporcional dos Óbitos por Homicídios segundo Faixas Etárias. Município do Riode Janeiro, 1980-1988

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia

* Taxas por 100.000 habitantes.** Inclui agressão por arma de fogo com intencionalidade ignorada.Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia.

TABELA 7. Taxas * de Mortalidade por Grupos Específicos de Causas Externas. Município do Rio de Janeiro,1980-1988

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia.

Homicídios

Grupos de Causas 1980 1982 1984 1986 1988 Homicídios** Acidentes Suicídios Outras Violências

33,04 30,45 2,61

24,69

21,63 17,19 0,87

33,64

35,11 30,82 2,33

13,82

33,73 22,86 1,52

11,41

45,19 31,21 2,00

16,88

Faixas Etárias (em anos)

1980 1982 1984 1986 1988

Menores de 1 1-4 5-14 15-19 20-29 30-39 40-49 50-64 65 ou mais Idade Ignorada

0,1 0,3 1,8 13,4 44,2 18,3 11,0 7,3 3,2 0,4

0,0 0,1 1,6 13,2 46,3 20,4 9,3 7,0 1,8 0,3

0,5 0,0 2,5 11,2 39,0 23,0 12,3 7,7 3,0 0,8

0,0 0,3 1,6 12,7 38,8 21,7 13,3 7,3 2,7 1,6

0,0 0,2 1,4 17,0 40,9 21,6 9,5 6,3 2,9 0,4

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993 73

Violência para Todos

TABELA 9. Distribuição Proporcional dos Óbitos por Acidentes de Trânsito segundo Faixas Etárias.Município do Rio de Janeiro, 1980 — 1988

Na década em estudo, aproximadamente 94%destes óbitos ocorrem no sexo masculino, sendoque em ambos os sexos prepondera o uso daarma de fogo (em média 92,3%) como meioempregado para impetrar o crime. Segue-se aeste meio o estrangulamento e o uso de armabranca (Figura 5).

Os acidentes de trânsito distribuem-se maisdispersamente que os homicídios nas diversasfaixas etárias (Tabela 9).

É na faixa de 20 a 29 anos de idade que seencontram as maiores proporções de óbitos,sem, contudo, se destacarem significativamentedas demais idades.

Para o sexo masculino, a mortalidade poracidentes de trânsito também é proporcional-mente maior que no feminino: cerca de 75% noprimeiro e 25% no último, (Figura 6). Estespercentuais permanecem estáveis ao longo dosanos investigados.

Dentre os tipos de acidentes de trânsito(Figura 7), observa-se que o grande componentesão os atropelamentos. Seus percentuais passamde 59,8%, em 1980, para 70,2%, em 1988.Enquanto isso, os outros acidentes caem de40,1% para 15,8% no mesmo período. Ascolisões apresentam os menores percentuais,porém atingem patamares mais elevados (emtorno de 14%) a partir de 1984.

Os dados da Tabela 10 mostram que a mor-talidade por causas externas é um fenômenopreponderantemente urbano.

FIGURA 5. Distribuição Percentual dos Óbitos porTipos de Homicídios. Município do Riode Janeiro, 1980-1988

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia.

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia

FIGURA 6. Distribuição Percentual dos Acidentesde Trânsito por Sexo, Rio de Janeiro,1980-1988

Faixas Etárias (em anos)

1980 1982 1984 1986 1988

Menores de 1 1-4 5-14 15-19 20-29 30-39 40-49 50-64 65 ou mais Idade Ignorada

0,4 1,6 9,4 7,7 19,6 16,4 15,5 16,8 12,4 0,2

1,4 2,9 7,6 8,4 18,6 15,5 11,2 19,2 15,1 0,2

0,2 1,2 8,1 5,6 21,4 17,6 14,9 17,1 13,4 0,4

0,2 1,1 7,8 6,2 19,4 18,5 14,7 17,3 14,4 0,4

0,7 1,9 7,4 6,7 20,2 18,1 13,2 16,7 14,5 0,5

74 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993

Minayo, M. C. S. & Souza, E. R.

TABELA 10. Distribuição Proporcional dos Óbitos por Causas Externas no Estado do Rio de Janeiro, 1984

FIGURA 7. Distribuição Percentual dos Óbitos porTipos de Acidentes de Trânsito. Rio deJaneiro, 1980-1988

Segundo Pinto (s.d.), na Capital ocorre quasemetade das mortes por causas externas (48,6%).Nela concentram-se cerca de 60% dos acidentesde trânsito fatais, 47% dos suicídios e quase50% das outras causas externas. Curiosamente,na Capital, onde se esperaria melhores preen-chimento e classificação da declaração de óbito,é onde mais de 50% deles não têm esclarecidaa natureza da causa básica, sendo incluídosentre as lesões as quais ignora-se se foramacidental ou intencionalmente inflingidas (lesõesignoradas).

Chama-se a atenção para a maior proporçãode homicídios na Região Metropolitana, de-monstrando que este tipo de violência é maisintenso em áreas periféricas da Capital, como a

Baixada Fluminense, por exemplo, onde asegurança é mais precária e onde atuam osgrupos de extermínio (Assis, Souza & CruzNeto, 1991).

RESUMO DOS DADOS

As taxas de mortalidade por causas externasno país, durante a década passada, situam-se emníveis intermediários quando comparadas às deoutros países.

As principais causas específicas dentre asexternas são os acidentes de trânsito e os homi-cídios. Contudo, diferentemente de outros paísesonde as colisões são o tipo de acidente detrânsito mais freqüente, no Brasil, os pedestressão as maiores vítimas dos atropelamentos. Oshomicídios, com baixas taxas em países europ-eus e na América do Norte, representam acausa que mais cresceu nos últimos anos, dentreas externas, em nossa realidade.

No Brasil, o fenômeno da mortalidade porcausas externas também segue a tendênciamundial em termos de maior incidência sobre osexo masculino e em faixas etárias jovens.

Em relação às capitais de regiões metropolita-nas do país, observa-se que o maior crescimen-to proporcional da mortalidade por causasexternas ocorreu em Recife e Salvador, capitaissituadas no Nordeste. A análise destaca omunicípio do Rio de Janeiro, com suas elevadastaxas em relação à região Sudeste e às demaisregiões metropolitanas brasileiras.

As maiores vítimas das causas externas são aspessoas do sexo masculino, cujas taxas en-

Fonte: Pinto, s.d.

Fonte: MS/ENSP/Departamento de Epidemiologia

Grupos de Causas Capital Região Metropolitana

Interior Total

Acidentes de Trânsito Homicídios Suicídios Outras Lesões Ignoradas

59,4 30,2 47,2 49,6 52,2

17,4 48,7 17,7 23,8 37,1

23,2 21,2 35,1 26,7 10,7

19,4 19,9 2,3

20,3 38,2

Total 48,6 32,4 19,0 100,0

contram-se bastante elevadas (em torno de 140óbitos em 100.000 habitantes), ao passo que nasmulheres as taxas situam-se próximas a 30.

As faixas etárias mais atingidas são as de 20a 29 e 30 a 39 anos, com taxas crescentes noperíodo. As idades de 15 a 19 anos, em 1988,ultrapassam os 100 óbitos em cada 100.000habitantes, e, surpreendentemente, a faixa dos65 ou mais anos apresenta taxas elevadas,merecendo ser objeto de reflexão mais deta-lhada.

Dentre as causas específicas, os homicídioscorrespondem a 45,3%, os acidentes de trânsito,a 26% e a outras violências, a 16,7% dos óbitospor causas externas. No período investigado, oshomicídios foram a causa de maior crescimento(12,15%).

Os principais tipos de homicídios foramaqueles com o uso da arma de fogo (mais de80%), e os de acidentes de trânsito, os atropela-mentos (70% em 1988).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, falar sobre violência no Brasil éum exercício de reflexão que requer algunsquestionamentos. O primeiro deles é indagarsobre o que aconteceu com a sociedade brasilei-ra, que, no início dos anos 60, mobilizava-sepela maior participação e integração social dosseus jovens (e para os quais acenava com aconstrução de um projeto político nacional) e,na década de 80, adota como prática social aeliminação de crianças e adolescentes. Ou seja,o que terá levado as elites econômicas, sociais,políticas e culturais do país, a partir do golpemilitar de 1964, a abandonar seu projeto deconstrução de identidade e integração e a seencastelar no pragmatismo individualista do“salve-se quem puder”? De onde terá brotadoesta “razão cínica”, cada vez mais explícita nadécada de 80, que leva os privilegiados aproteger ferrenhamente seus patrimônios (inclu-sive as universidades), seus privilégios e suavida, atrás das grades e sob armas de seguran-ças, como se fosse possível esconder a com-plexa cumplicidade entre a fonte dos eternosprivilégios e a situação dos excluídos queparece não ter fim?

Não se pode responder simplistamente a estas

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993 75

Violência para Todos

questões fundamentais, mas é importante re-conhecer que elas estão na raiz da guerra surdacujos reflexos se projetam no quadro de mor-talidade por violência, com destaque para oshomicídios.

Pelos dados aqui analisados, observa-se que,ao longo da década de 80, cresceu a mor-talidade por homicídios, sendo estes uma ex-pressão particular de violência interpessoal.

Este fenômeno parece refletir o aprofun-damento ou a intensificação da violência estru-tural. Concretamente, esta forma de violênciano país tem como determinantes o crescimentoda desigualdade sócio-econômica e os baixossalários e renda familiar para a maioria dapopulação associados à inflação e, conseqüen-temente, à perda do poder aquisitivo (Sabóia,1991). Esta forma de violência se faz acom-panhar da descrença e do afastamento da popu-lação em relação às instituições sociais, que nãorealizam as funções às quais se destinam e,quando o fazem, atuam de modo violento,discriminatório; da ausência de políticas públi-cas integradas e condizentes com as neces-sidades da população, na conjuntura atual, emrelação às áreas de assistência, educação, saúde,moradia e segurança; da priorização do desen-volvimento econômico (frustrado na década) eendividamento externo, em detrimento dodesenvolvimento social e às custas do sacrifícioda população em geral, mas, sobretudo, commaior ônus para os pobres; do intenso apelo aoconsumo, conflitando com o empobrecimentodo país.

Em termos de conjuntura social na década de80, três fatos podem ser relacionados ao aumen-to das taxas de homicídio nas grandes regiõesmetropolitanas:

(a) a consolidação do crime organizado emtorno do tráfico de drogas, criando uma econo-mia e um poder paralelos, assumindo o papeldo estado na assistência e na segurança, e seconfrontando, no imaginário social e na realida-de das classes populares, com a segurançapública;(b) a consolidação dos grupos de extermínio;(c) o aumento da população que vive e trabalhanas ruas, sobretudo uma população infantil ejuvenil, compelida ao trabalho pelo aumento dapobreza absoluta em todas as regiões metropoli-

tanas do país na década (Sabóia, 1991) e pelafalência das instituições “totais” de assistênciae recuperação de “menores”.

Estes três fatores se inter-relacionam siner-geticamente com a violência estrutural dasextremas desigualdades e com as mudanças devalores e visão das novas gerações em relaçãoàs elites, à pobreza, à riqueza, aos bens deconsumo e à própria felicidade.

O mais problemático em relação à or-ganização do crime é que ela se constitui emuma rede cuja trama principal se articula comas instituições mais “respeitáveis” da sociedade,conforme tem sido estudado por autores comoPinheiro et al. (1983), Zaluar (1986) e Batista(1990) e também divulgado pela imprensa(Motta, 1992; O Globo, 1992). Na medida emque nela estão envolvidos juízes, policiais,empresários e membros do governo, este tipode criminalidade apresenta-se difícil de sercombatido na sociedade. Ou seja, há profundosinteresses econômicos e de poder que tornaminstituições legítimas cúmplices da organizaçãoda ilegalidade.

A vítima mais expressiva do crime or-ganizado é a juventude, enquanto consumidorae força de trabalho neste mercado paralelo, mastambém como alvo do extermínio. Esta vitimi-zação, entretanto, não se distribui de formahomogênea. Estudos mais aprofundados dosdados de mortalidade por violência entre osjovens evidenciam um perfil em que predomi-nam a baixa escolaridade, a baixa renda, apouca qualificação profissional, o sexo mas-culino e a cor negra, (Souza, 1991b; MelloJorge, 1988; Minayo, 1990b).

Estes achados demonstram que são os jovenspobres as malhas frágeis desta rede de violên-cia. São eles que, na ânsia de viverem numasociedade que muito pouco tem para lhesoferecer, buscam na alternativa do crime oprazer imediato e efêmero (na forma de a-quisição de bens através de roubos e no portede armas como forma de ostentar poder).

Embora exista, entre eles, a consciência dorisco que tais atividades envolvem, assimmesmo, na falta de um modelo legítimo, ado-tam como herói o bandido. Este último sim-boliza a encarnação do protetor e do assisten-cialista, mas, sobretudo, a do rebelde social,

que vai de encontro e despreza os valoresestabelecidos, mas que, contraditoriamente,obtém certo sucesso. É este o modelo e a viamais próximos com os quais estes jovensprocuram se identificar e assumir como possibi-lidades de participação e sobrevivência social.

Por outro lado, criam-se, na década, os gru-pos organizados e, muitas vezes, profis-sionalizados de extermínio para servir a interes-ses diversos ligados ao tráfico e a comerciantesou para outros fins. Estes grupos, remanescen-tes dos esquadrões da morte e dos extermíniospolíticos das décadas de 60 e 70, possuem umalógica implícita: a de eliminar hoje o provávelbandido de amanhã.

No acirramento dos conflitos, legitima-se, eaté se justifica, um modo de matar que, antesde ocorrer concretamente no ato do extermínio,já havia sido decretado social e politicamente,(Minayo, 1992).

Muitos jovens cujas mortes estão representa-das nos dados aqui mostrados, quando não sãoassassinados por briga entre as gangs, comoqueima de arquivo ou mesmo como uma medi-da “preventiva”, acabam caindo nas malhas dosistema carcerário e superlotando os presídiosdo país. Para eles, as alternativas são a anomia,a criminalidade, a reclusão ou a morte.

No Brasil, hoje, os alarmantes índices dehomicídios são superiores aos de alguns confli-tos bélicos travados em outras áreas e épocas.Esta “guerra civil” não-declarada tem, entretan-to, um alvo bem preciso, e os dados mostramonde ela está fazendo baixas. Seus princípiosparecem se fundamentar numa ética perversaem que a sociedade, para se preservar, necessitapromover a morte do novo (na figura de seusjovens). De um novo cujas relações real esimbólica com a propriedade, com as insti-tuições, com a religião, com o consumo, enfimcom os valores tradicionais, não repetem pa-drões anteriores. Pelo contrário, constituem-seem ameaça efetiva para a sociedade dominante,que não possui, por seu turno, nenhuma respos-ta, modelo ou projeto capaz de satisfazer aesses jovens. Neste sentido, a exclusão socialque gera, em algum momento, a escolha pelailegalidade produz, em primeiro lugar, a mortepolítica, para depois eliminar fisicamente o“novo” que se teme e que se quer banir à custado extermínio, em sentido amplo.

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Minayo, M. C. S. & Souza, E. R.

Somente nesses termos é o que se conseguecompreender a ocorrência e a impunidade detantos assassinatos. É preciso também denunciara hipocrisia da pseudodiscussão sobre a legali-zação da pena de morte no país. Na verdade,ela já vem sendo decretada socialmente eexecutada na ilegalidade em relação aos jovensceifados tão precocemente. Por fim, é precisoarticular essa segunda seleção social, que é oextermínio de crianças e adolescentes porviolência física, ao momento em que a primeiraseleção social se realiza e que é traduzida pelosíndices de mortalidade infantil, cujas causassão, principalmente, a desnutrição, a diarréia eas doenças imunopreveníveis. Em ambas se-leções, o grupo condenado à morte é exata-mente o mesmo, sobretudo nas regiões metro-politanas.

RESUMO

MINAYO, M. C. S. & SOUZA, E. R.Violência Para Todos. Cad. Saúde Públ., Riode Janeiro, 9 (1): 65-78, jan/mar, 1993.

Este artigo trata a problemática da violênciasocial através do quadro de mortalidade porcausas externas no Brasil, com ênfase nasituação do município do Rio de Janeiro. Sãoutilizados dados de mortalidade do Ministérioda Saúde, consolidados pelo Departamento deEpidemiologia e Métodos Quantitativos emSaúde, da Escola Nacional de Saúde Pública,no período de 1980 a 1988. São apresentadasa mortalidade proporcional e as taxas demortalidade por causas externas segundo sexo,idade, grupos específicos de causas externas,tipos de homicídios e acidentes de trânsito.Apesar de se tratar, basicamente, de umtrabalho descritivo, faz-se aqui também umareflexão sobre os homicídios, considerando-oscomo o fenômeno gerador de morte maissignificativo na configuração da violênciabrasileira hoje.

Palavras-Chave: Violência; Mortalidade;Epidemiologia; Sociologia

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