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    As revoltas de junho no Brasil e o anarquismo 5Artigo retirado do blog da Revista Espao Acadmico:http://espocoilcademico.wordpress.com/201J/07/17 / as-reyo tas-de-junho-no-brasil-e-o-anarquismo/

    Violncia, Democracia e black blocs 13Retirado da Revista ALEGRAR n 12 dez/2013 ISSN 18085148 www.alegrar.com.br

    Nildo Avelino doutor em Cincias Sociais pela PontifciaUniversidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), professor noDepartamento de Cincias Sociais e no Progtama de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal da Paraba(UFPB),campus Joo Pessoa.

    2014 - (C) CopyleftEditora Artesanal Monstro dos Mares

    Grupo Autnomx de Estudos Filosficos

    rnonstrodosrnaresriseup.net fb.com/ gaefpinda

    http://espocoilcademico.wordpress.com/201J/07/17http://www.alegrar.com.br/http://www.alegrar.com.br/http://espocoilcademico.wordpress.com/201J/07/17
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    As revoltas de junho noBrasil e o anarquismoAs foras

    Os fatos tornaram-se mundialmente conhecidos: aps oaumento da tarifa de nibus de R$ 3,00 para R$ 3,20 a cidadede So Paulo foi palco de uma srie de manifestaes. Aprimeira delas ocorrida no dia 6 de junho, quatro dias aps oaumento, reuniu 2.000 manifestantes (dados oficiais); a polciaresponde com a violncia que lhe peculiar. No dia seguinte,mais uma manifestao reuniu 5.000 pessoas e novas cenas deviolncia se repetem nas ruas e avenidas mais importantes dacidade. Frente ao aumento vertiginoso de manifestantes, oprefeito, que inicialmente havia justificado a ao da polcia,silencia-se; o governador, entretanto, continua defendendo aao da sua polcia e a rotular os manifestantes de vndalos ebaderneiros. No dia 10 e 11 de junho ser a vez da cidade doRio de Janeiro presenciar manifestaes e a violncia da policia.

    Na terceira manifestao ocorrida em So Paulo, em 11de junho, calcula-se que mais de 5.000 pessoas saram s ruasdeixando um saldo de 19 pessoas presas, a maioria delasacusadas de crime inafianvel (formao de quadrilha), asdemais com fianas estipuladas entre R$ 6.000,00 a R$20.000,00. Na quarta manifestao do dia 13 de junho outras5.000 pessoas saram s ruas, mas dessa vez a violncia dapolcia ganhou uma visibilidade inesperada: imagens demanifestantes, jornalistas e simples cidados desavisadosforam exibidas juntamente com as feridas produzidas por balasde borrachas, bombas de efeito moral, de gs lacrimognio e de

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    pimenta, e pelos golpes de cassetete. As cenas inundaram aspginas dos principais jamais do pas e das redes sociais comimagens de rostos ensanguentados, olhos perfurados, cabeasrompidas, corpos rasgados; alm de infinitas cenas dehumilhao, truculncia e arbitrariedade policial.Imediatamente produz-se uma vasta onda de indignaoconferindo s manifestaes um novo mpeto.

    Tudo indica que a manifestao do dia 13 tenha criado oclima de adeso e simpatia que atraiu para as ruas de SoPaulo, e de outras cidades, dezenas de milhares demanifestantes para seu quinto ato. Na pgina do Facebook doMPL (Movimento Passe Livre) as confirmaes de presena jultrapassavam a casa dos 200.000apenas para a cidade de SoPaulo. Sabia-se que era um nmero improvvel; porm, jamaisse imaginou possvel que 65.000pessoas lotassem as ruas deSo Paulo no dia 17 de junho, alm dos 100.000manifestantesda cidade do Rio de Janeiro e mais centenas de milhares emoutras 10 diferentes cidades brasileiras. Calcula-se que cerca de215.000pessoas saram s ruas em todo pas. O acontecimentofazia sua entrada na histria: h dcadas o cenrio polticobrasileiro no conhecia manifestaes de tamanha envergaduracujo registro remontava aos anos 1970 nas lutas contra aditadura. Em todo caso, no dia seguinte, outras 50.000pessoasinvadiram novamente as ruas de So Paulo e desta vezinvestindo contra o maior smbolo de poder da cidade: a sededa prefeitura - na manifestao anterior o alvo tinha sido aAssernbleia Legislativa. Era o que faltava para colocar dejoelhos as duas maiores autoridades do Estado: prefeito egovernador anunciam a suspenso do aumento no dia 19 dejunho, e o mesmo foi feito por autoridades de outras seiscidades.

    Apesar da vitria manifestaes continuaramocorrendo por todo Brasil e com mais vigor: no dia 20 de junhocerca de 1 milho de pessoas tomaram as ruas de vrias

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    cidades. Em Braslia, o palcio do Itamaraty (sede doMinistrio das Relaes Exteriores) atacado e incendiadodurante manifestao que reuniu 30.000.No Rio de Janeiro oimpressionante nmero de 300.000 manifestantestransformaram as ruas do centro da cidade num campo debatalha; em So Paulo 110.000tomaram as ruas. Autoridades,mdia e intelectuais de todas as tendncias polticas assistiramatnitos o pas ser engolido por um. furor at entodesconhecido. Na vertigem dos acontecimentos, a autoridademxima do Estado rene seus ministros decidindo pronunciarem cadeia nacional um pattico e evasivo apelo ordem e paz social.

    Os sentidosAlm da impressionante e surpreendente manifestao

    de fora que dobrou a autoridade das principais capitaisbrasileiras, outro aspecto extraordinrio das revoltas de junhofoi sua lgica do sentido. As manifestaes retomaram umsentido poltico desde muito tempo banido do cenrio polticobrasileiro: o anarquismo. preciso ser tolo ou malintencionado para no admitir que o modus operandi acionadonas manifestaes possua forte analogia com aquele utilizadohistoricamente pelos movimentos anarquistas. O prprio MPL,grupo responsvel pela convocao das manifestaes, umaorganizao horizontal e apartidria; adota o princpio darotatividade para evitar a cristalizao de estruturas de poder,e pratica a autogesto de seus trabalhos internos. Alm disso, oque mais importante, no possui chefe, nem lder, nem porta-vozes. O MPL rejeita, portanto, o princpio da representaopoltica e, consequentemente, recusa o jogo da democracialiberal que, ao contrrio do que se pensa, no foi nem a nica

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    modalidade de democracia possvel na histria, Agrade ouno, um fato que na histria das sociedades modernas foiprecisamente essa postura poltica a adotada pelo movimentoanarquista, em mbito internacional, desde o sculo XIX.

    No poucos analistas tm se referido ao movimentofrancs de maio de 1968 para traar paralelos que permitamtonar inteligvel as revoltas brasileiras de junho. Mas talvez noseja um bom exemplo. Um sentimento que atravessou asmanifestaes no Brasil foi a forte averso s instituies de'maneira geral. No somente partidos polticos, mas tambmsindicatos e grupos da esquerda com forte grau de_institucionalizao, como o MST; alm da Assembleia'Legislativa de So Paulo e do Rio de Janeiro, Prefeitura de SoPaulo, Banco Central e Palcio do Itamaraty em Braslia, Nasrevoltas de junho o alvo foram as instituies. As instituiesso responsveis por conectar os indivduos lgica do poder:tomado no interior de uma instituio o indivduo deve sedobrar as regras da sua organizao e dominado por suasfinalidades em nome das quais decises so tomadas emconformidade com a ordem do Estado. As instituies,portanto, articulam a existncia do indivduo com a ordem dopoder. Atacar as instituies colocar em questo o prprioregime de legalidades.

    Ao que parece nas jornadas de maio de 1968 osentimento presente era diferente: o il est interdit d'interdire [proibido proibir] no passava por uma rejeio das instituiese assumia IlLUitO mais a forma do intolervel quanto aopatrulhamento ideolgico de partidos e universidades. Emuma lcida anlise daqueles acontecimentos, Maurice Joyeuxdizia que, terminada a festa , os principais atores foram ~recuperados pelos partidos ou assimilados em cargosimportantes. Aps terem atirado sua clera na cara do papai,do professor e da sociedade, [...] foram reconverter-se nos

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    partidos e nas organizaes do Estado nas quais haviamvomitado . [1]

    Neste aspecto, as revoltas brasileiras de junho parecemestabelecer maior grau de exterioridade em relao ao Estadodo que as jornadas de maio, o que nos levaria a sugerir outraanalogia na histria. Na histria das lutas sociais brasileirasexiste um acontecimento que poderia servir como ponto deinteligibilidade: so as jornadas de julho de 1917 em SoPaulo. A greve geral anarquista que mobilizou 100.000 nacapital paulista foi provoca da pelo custo de vida e agravadapela violncia policial e a estupidez governamental: a palavrade ordem dos grevistas era parar a cidade e a do governoreprimir. Contra a truculncia da polcia e governo, osoperrios ergueram barricadas, destruram fbricas, saquearamarmazns, depredaram a iluminao pblica, apedrejarambondes. O governo tenta sem xito atribuir a violncia dosgrevistas a uma minoria de anarquistas. Porm, estava claroque a revolta da multido no era impulsionada por nenhumagrande utopia, mas pelo sentimento do intolervel queresultava da rmsena econmica combinada com oautoritarismo governamental. Aps uma semana de conflitosabertos, a repulsa dos grevistas em relao legalidade eratamanha que se recusam negociar com governo e patresquando esses decidem ceder. Foi somente graas aintermediao de uma comisso de jornalistas que foi possvelo acordo que ps fim greve.[2]

    O mesmo pode ser observado nas revoltas de junho: desimples ato de protesto contra o aumento do transporte pblico

    [1] Maurice Ioyeux, Mai 68 par eux-mrnes , Paris, Le Monde Iibertaire, n. 707,12/05/1988. Ver tambm: L'anarchie et Ia socit rnoderne, Paris: ditions Le MondeLibertaire, 1969.[2] Cf. Yara Aun Khoury, As greves de 1917 em So Paulo. So Paulo: Cortez, 1981;Christna Roquette Lopreato, O esprito da revolta: a greve geral anarquista de 1917. SoPaulo: Annablume, 2000.

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    logo a brutalidade e a estupidez governamental transformaramno intolervel que fez suspender a eficcia da legitimidade daordem das leis. E a suspenso da legalidade que, a meu ver,constitui o elemento original e decisivamente anarquista desteacontecimento. Sob esse aspecto, o ganho econmico irrelevante: ser sempre prefervel qualquer reduo arrancada fora, mesmo de R$ 0,01 centavo, que a grahdade da tarifasob a forma de concesso governamental. Apenas uma reduoforada e imposta pela fora, ou por medo dela, s autoridades capaz de produzir uma transformao tico-poltic:-liberdade e justia se adquirem apenas lutando contra opressoe injustia. Quem no paga o transporte por concesso _governamental obedece uma ordem do governo; mas quempaga menos em virtude de uma reduo arrancada do governocom o esprito de quem retoma do inimigo o terreno ocupadopara proceder sempre mais adiante, est desfrutando de umdireito conquistado. E em toda histria poltica de nossassociedades a uruca garantia contra a arbitrariedadegovernamental sempre foi a firme percepo dos governadosquanto aos direitos conquistados.

    o slogan R$ 3,20 roubo foi suficiente para mostrar oquanto frgil a autoridade do Estado ao coloc-Ia face a face indisciplina e ao guestionamento da hierarquia: ocupar a rua eparar a cidade contra o movimento controlado e o imobilismodo laissez-passer atingiu a prpria lgica estatal. o Estadoquem controla e produz o movimento, inspeciona as estradas epolicia as ruas. Sua mobilidade confinamento: define ostrajetos, fixa os pontos a serem percorridos, limita a velocidade,determina direes, distribui homens e coisas num espaofechado e territorializado, sedentariza os indivduos. Por isso,torna-se vital para o Estado vencer o nomadismo. A prtica.nmade quebra sua mobilidade disciplinada produzindo umadinmica de ocupao do espao exterior ao Estado. Ao liberaros espaos, o nomadismo torna-se um ato transgressor

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    fundamental, uma mquina de guerra contra o aparelho deEstado. [3] As revoltas de junho foram capazes de produzirmuitos nomadismos,

    Do que foi exposto ainda precisoabordar dois pontos

    1 a violncia: preciso rejeitar o moralismo liberal eadmitir que no apenas a democracia como tambm a prprialetra da lei no passam de formas objetivadas da dominaopoltica, e que a nica violncia que o assim chamado Estadode direito no suporta a que funda um sentido oposto suadominao. Violento sempre o Estado: aumentar a tarifa violncia, do mesmo modo como so violncias a cura gay eo estatuto do nascituro. Manifestar-se contra eles autodefesa.

    2) sem partidos: engana-se quem v liberdade deexpresso sob a bandeira de partidos polticos. So soldadosobedecendo palavras de ordem. Partidos e instituies ou soestruturas oligrquicas ou devero tornar-se para se instalaremno poder. No h exemplo na histria que diga o contrrio. Eno existe tolice maior supor, como fez o presidente do PT deSP, que a negao dos partidos leve manifestaesautoritrias. Nenhum dos Estados totalitrios conhecidos nahistria foi apartidrio: foram hiperpartidrios no sentido depretenderem o partido nico sob a forma do superpartido(PNF italiano, NSDAP alemo, PCUS sovitico, ARENAbrasileiro). Assim, ao rejeitarem os partidos os manifestantesmostraram no querer ser confundidos com eles; mostraramter conscincia do lugar que ocupam na prtica poltica, de sua[3] Cf. Gilles Deleuze; Flix Guattari, Tratado de nomadologia: a mquina de guerra .Mil Plats, \'01. 5. So Paulo: Ed. 34, 2002

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    dignidade e de seusingularidade e, comocapacidade poltica.[4]

    valor prprio; expressaram suadiria Proudhon, sustentaram sua

    Conta ser possvel defender as energias liberadoras queforam desencadeadas pelas grandes manifestaes do ms dejunho? Como garantir que essas energias escapem aosprocessos de sedentarizao e de imobilismo de partidos,sindicatos, instituies e do Estado? Arriscando uma resposta,diria que para continuar nornadizando os espaos, }3-revoltosos de junho devero saber fazer duas coisas: de umlado, devero saber parar sem perder a velocidade, isto , _transformar o movimento em intensidade para que sua .prxima reapario em cena seja mais uma vez turbilhonar. E,de outro lado, devero saber continuar suas lutas pontuais semincorrer nas estruturas olgrquicas e burocrticas dos partidose das instituies do Estado. Em outras palavras, deverocontinuar sendo como os seres imprevisveis de que falaNietzsche: aqueles que vm como o destino, sem motivo,razo, considerao, pretexto, [que] surgem como o raio, demaneira demasiado terrvel, repentina, persuasiva, demasiadooutra , para serem sequer odiados. [5]

    [4] Cf. Pierre-joseph Proudhon, La capacidad poltica de Ia c1aseobrera. Buenos Aires:Proyeccin, 1974,[5] Pricdrich Nietzschc, Genealogia da moral, So Paulo: Brasiliensc, '1988, p. 92

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    Violncia, Democracia eblack blocsPara o grego da era clssica, as cidades possuam funo

    tica: o bem do indivduo era idealmente o bem da cidade, avirtude de um era a inspirao do outro. Corno associaotica, a cidade no existia apenas para o viver juntos, mas parao bem viver juntos - dizia Aristteles (2006, p. 53). significativo que a modernidade tenha substitudo o problematico da cidade antiga por um modelo urbano que estabelece amobilidade como paradigma. Obstinado em regulamentar acirculao a partir do espao aberto pelo mercado, omercantilismo colocou em operao, nas cidades comerciais dosculo 17, controles sociais infinitos sobre os fluxosmigratrios, de mendicantes, vagabundos, criminosos etc. Oviver juntos torna-se objeto de polcia.

    Desde ento, a expanso comercial passou a produzir adissoluo do espao urbano enquanto lugar do bem viver:relaes pessoais do lugar a transaes monetrias, rios sotransformados em esgotos, vegetaes so destrudas,construes histricas demolidas para a abertura de grandesavenidas; o trfego torna-se rastejante, o ar pestilento evenenoso, as habitaes superlotadas e favelizadas, a vidasocial atravessada por violncias. Segundo Munford, aindustrializao, saudada como a principal fora criadora dosculo 19, produziu o mais degradado ambiente urbano que omundo jamais vira; na verdade, at mesmo os bairros dasclasses dominantes eram imundos e congestionados(Munford, 1998,p. 484).Alm do escuro vmito das chaminsnos cus e das correntes de dejetos lquidos nos rios, as cidades

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    industriais tambm instauraram enormes chiqueiros humanos.Um relatrio de 1845 sobre a condio urbana da cidadeinglesa de Manchester dizia que' as necessidades de 7.000habitantes eram atendidas por apenas 33 latrinas - uma latrinapara cada 212pessoas.

    N esses novos galinheiros, criou-se um a raa de indivduosdefectivos. A pobreza e o am bien te d e po breza p ro du ziramm odificaes orgnicas; raquitism o nas crianas, por causa daausncia de sol, deform aes da estrutura ssea e dos r g ofuncionam ento defeituoso das glndulas endcrinas. por causa dC Fum a dieta m esquinha; doenas epidm icas por falta de hig ieneelem en tar da gua ; varo la , febre tifo id e, escarla tina , sep ticem iada garganta, por causa da sujeira e dos excrem enios; tuberculose, -estimulada por uma combinao de dieta pobre, falta de sol econgestionam ento habitacional, para no fa lar das doenasocupacionaie, tam bm parcia lm ente am bientaie. (M unford , 1998,p.505 .

    Estas foram algumas consequncias provocadas pelaaventura comercial moderna ao sacralizar nas cidades acirculao, renunciando a outras funes urbanas essenciais coexistncia social. Tais consequncias foram, no entanto,imediatamente percebidas pela economia poltica comoliobstculo positivo ao crescimento da populao . Malthus,por exemplo, sustentou lique a presso da misria sobre umaparcela da comunidade [os pobres] um mal toprofundamente arraigado que nenhuma habilidade humanapode atingi-Ia (Malthus, 1983,p. 297). Impedir a misria entreos pobres estava, portanto, alm do poder do homem(Malthus, 1983, p. 297). Mas o que a economia apresentava emtermos de fatalidade, os anarquistas logo denunciaram como aorganizao do homicdio . Proudhon chamou o princpioeconmico de Malthus de teoria do assassinato poltico : paraele a condenao morte de quem nada possui deveria ser aconcluso necessria e fatal, no da misria, mas dos princpiostericos da economia poltica (Proudhon, 1996, p. 118).Ao ser

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    investida do direito de deixar morrer uma parte da populaopara aumentar no conjunto o nmero de pessoas felizes [1], aeconomia poltica produziu a inverso do antigo direitosoberano de fazer morrer (Foucault, 1993, p. 127-149).

    No apenas a economia, mas a urbanizao e o direitoproduziram uma reorganizao e, em certa medida, umaintensificao da violncia poltica na modernidade. Processode remanejamento do regime normativo e no, como se crfrequentemente, de pacificao. Na modernidade, se oencarceramento e o policiamento substituram amplamente aspossibilidades de confronto aberto e armado entre osindivduos (Giddens, 2008, p. 205), foi tambm para inauguraresse grande internamente que colocou 1 da populaoparisiense no interior do Hospital Geral, poucos anos aps suafundao, e atingiu bruscamente seu limiar de manifestaona segunda metade do sculo XVII sob a forma da exclusopelo internamente como fato macio (Foucault, 1999, p. 55). sob essa perspectiva que preciso compreender as revoltasocorridas recentemente no Brasil: foram respostas diretas intensificao da violncia produzida pelo assalto privado doslugares pblicos. Respostas capitalizao dos lugares e aopoder de polcia sobre o espao urbano. As revoltas brasileirasindicam uma situao intolervel, um ponto de saturao.Muitas anlises as descreveram em termos de crise darepresentao . Ora, a palavra crise induz a considerar comofalha aquilo que, no fundo, deveria ser visto como aemergncia e a culminncia da dominao poltica. Crise umtermo inadequado na medida em que simplifica a anlise e nosimpede de perceber a efetiva eficcia das relaes de poder.

    As manifestaes que tm ocorrido no Brasil no so osintoma da crise da democracia, mas de seu excesso. Sustentar[lJ Se os princpios da economia tivessem sido praticados, diz Malthus, embora pudesseter havido vrios momentos de cruel misria, o conjunto de pessoas felizes na populao,entretanto, teri, sido muito maior do que atualmente. (Malthus, 1983, p. 302)

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    o contrrio seria supor que na demokratia o kratos, isto , opoder do demos, desarma sua violncia apenas por estar aservio do povo. Tal suposio foi uma quimera que as ltimasmanifestaes de rua desfizeram dolorosamente. Que aviolncia do poder na democracia seja a mesma que a dequalquer regime, basta lembrar-se do que diz Hobbes aos queidentificaram seu deus mortal de poder ilimitado, o Leviat,apenas com o Estado Monrquico: ... o poder sempre omesmo, sob todas as formas de governo, se estas foremsuficientemente perfeitas para proteger os sditos. (Hobbes,2003, p. 157, grifo meu). E o grande Locke confirmaria a tese hobbesiana ao definir o poder poltico como o direito de fazerleis com pena de morte [...] e de empregar a fora dacomunidade na execuo de tais leis (Locke, 1973, p. 40Poder-se-ia insistir e dizer que mesmo teorias corno as deBenjamin Constant e de Thomas Paine confirmam a sentenade Hobbes sob pretexto de contest-Ia. Em se tratando desegurana pblica, diz Constant, a autoridade poltica segueilimitada tanto na punio das transgresses quanto na resistncia agresso . Ou seja, dentro dos limites ofensivos edefensivos, o poder da autoridade poltica segue ilimitado: investido de fora policial para impor leis penais contra osinimigos internos, de fora armada contra os inimigos externose de fora fiscal para exigir dos indivduos o sacrifico de suasriquezas individuais para financiar as despesas (Constant,2007, p. 92).

    Teve razo Proudhon ao dizer que os pacficos EstadosConstitucionais organizaram a letra de suas constituies sob aforma de uma aliana ofensiva e defensiva , isto , comopacto de raiva e sermo de guerra social (Proudhon, 1979, Ip. 95). que a letra da lei e a linguagem do direito so tambmformas de violncia. Sabemos, desde os sofistas, que alinguagem no foi feita para ser acreditada, mas obedecida. Alinguagem no comunica, emite ordens, ela performativa.

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    Durante as manifestaes de junho, a professora da Faculdadede Direito da Universidade de So Paulo e conselheira daOrdem dos Advogados do Brasil, [anana Paschoal, fez aseguinte declarao ao jornal Folha de So Paulo: Resistnciae manifestao devem ser feitos atravs da palavra. Noacredito no direito de pegar em armas. Crime poltico serperseguido pelo que se fala e pensa. O argumento kelseniano: na medida em que as sociedades modernas novivem mais sob o domnio de pessoas, mas sob o domnio deconstituies dotadas de poderes que so intelectuais eimpessoais; e visto que o Direito no nem fora nemviolncia, mas letra, ento, conclui Paschoal, a nica resistnciacabvel atravs da palavra, jamais por meio da violncia.

    A questo , em todo caso, mais complexa. Se verdadeque a instaurao da lei no responde violncia de umadominao, isso se deve ao fato de que sua instaurao em si j uma forma de violncia sem fundamento. preciso serwittgensteiniano e admitir que a fala no mera comunicao: ordem, afirmao, interrogao. A linguagem possui umafora que perfonna, que constri seu objeto; no jamaismeramente representao do objeto. Uma linguagem violentafaz mais do que representar a violncia: ela uma forma deviolncia. Do mesmo modo que os discursos da dominao noso apenas o reflexo de relaes de dominao: so e realizamuma forma de dominao. Discursos de poder no sosimplesmente significaes verbais do poder, so modos de serdo poder. Judith Butler enfatizou a dimenso somtica dalinguagem em relao aos discursos de dio: so discursos queproduzem feridas corporais. Certas palavras, como as racistasou sexistas, produzem feridas fsicas, atingem o bem-estarcorporal contra quem so dirigidas. como a ameaa deagresso que sempre prefigura um ato corporal e estabelecesobre o corpo ameaado um ato que vir: a ameaa afirma aiminncia do ato (Butler, 2004). Assim o Direito: sua violncia

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    deve ser procurada na prpria letra da lei, na prpria palavrada lei como fora performativa, como potncia do agir. Umahistria do Direito faria ver que sua lei no foi destinada aapaziguar; ao contrrio, como diria Foucault, o Direito osangue prometido , permite relanar ininterruptamente ojogo da dominao; ... encena uma violncia minuciosamenterepetida (Foucault, 1993, p. 24). Como resistir pela. palavra se precisamente a palavra o que domina? Como protestar pelapalavra se a palavra ela mesma o suporte por meio do qual oDireito exerce violncia?

    Ainda que varivel em relao ao seu objeto, a violncia endmica ao poder governamental. E a democracia pode serto ou mais letal que a ditadura. Uma crtica meramente moralda violncia, alm de ingnua, justificadora do Estado. Comoobservou Benjamin (2011), no a violncia em si que condenvel pelo Estado, mas apenas aquela orientada contraseu Direito. J a violncia conforme o Direito, ao contrrio, sancionada como meio justificado. Derrida (2007) retomou aproposio de Benjamim para afirmar a existncia de urnaessncia jurdica em toda violncia. Mas para perceb-Ia seriapreciso distinguir entre o que seria uma violncia fundadora eoutra violncia conservadora: a primeira instaura um sentido,um direito; a segunda conserva o direito anteriormenteinstaurado [2]. A violncia do Estado da ordem desta ltima.Se o Estado separou cuidadosamente violncia e direito foi porsaber que a violncia fora do Direito tende a portar com ela umsentido poltico' oposto ao seu. Aquilo que o Estado temeefetivamente no a violncia, mas o fato da violncia fundaruma viso de mundo no estatal ou antiestatal. O que ameaa oEstado a violncia revolucionria, fundadora de outro direito:violncia efetivamente incompatvel com a existncia doEstado que no tem outra escolha a no ser elimin-Ia, pura e[21Urna distino que aparece tambm em Ren Girard, para quem a violnciaFundadora invisvel (Girard, 1990).

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    simplesmente, por meio de sua violncia conservadora.o fato. de ainda no possuirmos instrumentos tericos

    para pensar a coimplicao entre Direito e violncia atesta oquanto pensamos conforme o Estado. Em todo caso, precisorejeitar o moralismo liberal e admitir que no apenas ademocracia como tambm a prpria letra da lei no passam deformas objetivadas da dominao poltica, e que a nicaviolncia que o assim chamado Estado de Direito no suporta. a que funda um sentido oposto sua dominao. Em ltimaanlise, violento sempre o Estado. Hannah Arendtmencionou o abismo entre os meios de violncia do Estado e oque o povo consegue juntar por si mesmo - de garrafas decerveja a coquetis Molotov e revlveres (Arendt, 2006, p.126). Um abismo que, segundo ela, sempre foi to grande quemelhorias tcnicas no fazem quase nenhuma diferena. [...]Num confronto de violncia com violncia a superioridade dogoverno sempre foi absoluta (Arendt, 2006, p. 126).

    Pior ainda: na violncia estatal se encontram unidas asduas violncias. No Estado desaparece a fronteira entreviolncia fundadora e conservadora. A violncia estatal , nestesentido, ilimitada, pois os limites que a separa soindeterminveis. o que faz sua ignomnia, segundo Derrida.

    Essa ausncia de fronteira entre as duas vio lncias, essacontam inao entre fundao e conservao ignbil, aignom nia (das Schmackolle) da polcia. Antes de eer ignbil emseus procedim entos, na in qu isi o in om in o el qual se entrega,sem nenhum respeito, a violncia policial, a polcia moderna estru turalmente repugnante, imunda por essncia , em razo des ua h ip oc ris ia consiituiiua. Sua ausncia de lim ite no lhe vemapenas de uma tecnologia de vig ilncia e de represso [... ]. E laprovm igualm ente do fato de que a polcia o Estado, oespectro do Estado, e que no se pode, rigorosamente, atac-Iasem declarar guerra ordem da res p ub lica . (D err id a, 2007 p.98 99 grifo do au tor).

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    A polcia para o Estado o que o corpo para a alma, o. Estado em ao. Mas com uma particularidade: o Estado emsua face ignbil, agindo fora de toda justia e impondo-secomo necessidade para alm de qualquer ordem legaL a aoestatal no momento em que a alterao da normalidade fizer aeficcia da lei escapar ao judicirio para ser garantida comexclusividade pela tropa de choque. A manifestao do poderde polcia ser sempre a suspenso da legalidade, do direitocivil, dos direitos fundamentais. A polcia esse momento emque o Estado age extraordinariamente e.contra todo o direitocomum para a salvao da ordem estatal e em nome dasegurana pblica. Como o cirurgio que amputa braos epernas para salvar o doente, a polcia deve atua:permanentemente para decepar do corpo do Estado c5membros enfermos a fim de conservar o todo saudve..excessus juris communis propter bonum commune, coe edefiniu Gabriel Naud no sculo 17 [3]. A polcia , em UITc.palavra, o golpe de Estado permanente. O que Maquiave.havia pensado como resposta extraordinria do Prncipe acsacasos da fortuna - mentir, dissimular, enganar, praticar toei:tipo de maldade - o Estado das democracias modernas tornei;ordinrio pelo poder de polcia.

    preciso saber distinguir a violncia conservadora eignbil do Estado e do Direito das mltiplas formas deviolncia fundadoras de direitos. Recentemente, a professoraAlba Zaluar, reagindo ao meu artigo sobre as revoltas de junl-c[4], afirmou na sua pgina pessoal do facebook ser umaperspectiva que pode acabar com o pouco que temos uedemocracia [5). Ora, no seria precisamente o contrrio? Se[3] Suspenso do direito comum para o bem comum . CL Thuau, 2000, p. 324.[4] Nildo Avelino. As revoltas de junho no Brasil e o anarquismo , Blog da RevistaEspao Acadmico, Ano Xl. Disponvel em:. Consultado em outubro/2013.[5] Disponfvel em

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    por democracia entendermos o regime no qual os cidadosparticipam da poltica, para que essa participao no seja umamentira ou um devaneio no h outra garantia fora dofortalecimento tico de seus partcipes. E por mais que seestremea de vertigem, fato que em toda luta poltica, emtodo conflito social, h sempre uma dimenso irredutvel deimpulso e estmulo para ao que em seguida transforma-sesem desaparecer. Trata-se daquele momento, como enfatizouGuyau, em que a luta passa do domnio das coisas fsicasparao domnio intelectual, sem nada perder do seu ardor e da suaembriaguez (Guyau, 1919, p. 125). Na luta se adquireconscincia da sublimidade da prpria vontade e seexperimenta o prazer do perigo e do risco. Essa intrepidez quese apodera do mais humilde e do mais mdio dos indivduosquando colocado face ao perigo, exigir dele quase sempre atossublimes. Da Guyau afirmar que dever-se-ia oferecer sempreum certo nmero de empresas perigosas queles que estodesalentados de viver (Guyau, 1919,p. 133-134).

    Pode-se dizer o mesmo a respeito das recentesmanifestaes no Brasil: quando jovens aceitam o perigo deoporem seus corpos plidos s balas e s bombas da polcia, seest diante de uma transformao tica de grandes propores,capaz de inaugurar um novo movimento da histria queescapa s determinaes da poltica. Trata-se de ummovimento irredutvel no qual os indivduos passam a aceitaros riscos das ruas em vez do conforto e da tranquilidade deuma obedincia segura. Camus tinha razo ao falar daexistncia de uma ascese na revolta (Camus, 1999). quenela se encontram implicadas duas formas de recusa:

    [... ] recusa-se um estado de coisas, uma explorao etc.; masrecusa-se igualmente e ao mesmo tempo papis, funes,percepes e a fetos que orga niza m o estado de coisas. A Ilscese,portanto, provoca urna dobra, abre uma fenda na subjetividadedos mdiuiduoe suspendendo no si aquilo que habitual e j

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    ora chamando os black blocs de fascistas ora vendo nelesapenas uma ttica de destruio. Foi o caso do clebre cientistapoltico Wanderley Guilherme dos Santos ao afirmar, em artigopublicado no jornal Valor Econmico, que as aes dos blackblocs - ou as crises de identidade mencionadas por Colson -estabelecem urna atrao fatal anomia, ao niilismo, aonegativismo militante propugnados por minorias insidiosasde sempre: um nazismo renascente, protofascistas que tminfestado as manifestaes. Essa informal coalizao decelerados , diz Santos, so os defensores de urna semnticapoltica que . niilista, reacionria, antdemocrtica . Aconjuntura fascistoide , alardeia o prestigioso politlogo(Santos, Valor econmico, 26/07/2013). O juzo de MarilenaChaui no foi menos implacvel. Falando para urna audinciade cadetes e oficiais da Academia da Polcia Militar do Rio deJaneiro, a clebre filsofa de esquerda no se constrangeu emapresentar os black blocs corno fascistas. Ternos trs formas dese colocar. Coloco os 'blacks' na fascista. No anarquismo,embora se apresentem assim. Porque, no caso do anarquismo,o outro [indivduo] nunca seu alvo. Com os 'blacks', as outraspessoas so o alvo, tanto quanto as coisas (Chaui, Folha deSo Paulo, 27/08/2013). Alm disso, diz Chaui, tampouco suaviolncia seria uma violncia revolucionria, ou fundadora nosentido que empreguei aqui. Ela *a violncia revolucionria]s se realiza se h um agente revolucionrio que tem umavisao do que inaceitvel no presente e qual ainstitucionalidade futura que se pretende construir (Chaui,Folha de So Paulo, 27/08/2013). Conhece-se bem a imagemdo revolucionrio de Chaui: o velho missionrio do Partidoempenhado em divulgar a promessa de esperana do novoevangelho da Revoluo. Trata-se da retomada do sloganleninista, segundo o qual sem estratgia revolucionria no hRevoluo. O problema que toda estratgia necessita de umestrategos, um general, que no leninismo ser a vanguarda,responsvel por .elaborar a teoria revolucionria mais eficaz na

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    tomada do Estado para a construo da institucionalidadefutura . Conhece-se o final dessa histria... No h maiorinsensatez e irresponsabilidade poltica do que apresentar osblack blocs como fascistas. Faz-lo, alm de ir contra todo rigoranaltico, tambm legitimar a fria repressiva e judicial quetem se abatido sobre centenas de jovens. Que um jovem casalde manifestantes tenha sido enquadrado recentemente na Leide Segurana Nacional pela polcia paulista, este um fato quedeveria sensibilizar a racionalidade de ao dos nossos doutosilustres. Em todo caso, quero argumentar que as prticas blackblocs no sendo obviamente fascistas, tampouco so simplestticas de violncia. Trata-se de uma atitude, de um gesto cujahistria seria possvel retraar a partir de um tipo de ao quefoi muito praticada pelos anarquistas nas ltimas dcadas dosculo 19: a chamada propaganda pelo fato. Uma modalidadede ao que surge para suprir certa insuficincia dapropaganda oral e escrita num contexto em que a prticaeleitoral ganhava cada vez mais influncia e atraia at mesmovelhos militantes socialistas e anarquistas. A propaganda pelofato respondeu a um processo de colonizao da linguagem:naquela ocasio, propagar pelo fato no era uma mensagemideolgica, no era a linguagem presa no interior de umarepresentao; era uma multiplicidade macia de atos queapresentavam a fala bruta sem mediao e representao dascoisas. A propaganda pelo fato foi a realizao de um gesto namaioria das vezes extremamente dramtico, como o praticadopelo anarquista francs Auguste Vaillant ao atirar umamarmita cheia de plvora e pregos durante uma sesso daCmera dos Deputados de Paris em 1893.Nenhum deputadose feriu, mas Vaillant foi decapitado. No dia 18 de janeiro de1894, sua jovem filha, Sidonie, envia para a primeira damafrancesa, Sra. Carnot, uma carta suplicando pela vida do pai.Mas o presidente da repblica, Sr. Sadi Carnot, recusaclemncia, e Vaillant guilhotinado em 5 de fevereiro de 1894,aos 33 anos, e sob o grito de Viva a anarquia Minha morte

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    ser vingada [6]. O gesto de Vaillant inaugurou o que ficouconhecido pelos historiadores como a era da dinamite doanarquismo, quando a espiral dos atentados atinge o prpriovrtice da pirmide poltica pelas mos de um jovemanarquista italiano de vinte anos, Sante Geronimo Caserio.Padeiro em Sete, no sul de Montpellier, na manh do dia 23 dejunho de 1894, Caserio provoca inexplicavelmente suademisso e recebe do seu patro o pagamento de 20 francos.Pouco depois, compra um punhal pelo valor de 5 francos e sedirige a Lyon. O pouco dinheiro que lhe resta no erasuficiente para alimentar-se e pagar a viagem, decide entofazer parte do trajeto a p, de Vie1U1ea Lyon, cerca de 27quilmetros. Alcana finalmente Lyon na noite de 24 de junho.A cidade est em festa por ocasio da visita do presidente daRepblica, Sadi Carnot, Exposio Universal de Lyon.Caserio mistura-se na multido portando no bolso o punhalenvolvido por um jornal. O presidente, que tinha dado ordemexpressa para deixar a populao aproximar-se, estava briocom o entusiasmo popular. No seu depoimento polcia, dizCaserio:

    [...] no momento em . que os ltim os hom ens da escolta passarampor mim desabotoei a jaqueta, o punhal estava com cabo paracim a no bolso d ire ito . O agarrei com a m o esquerda; nU 1Il nicom ovim ento desloquei os dois jovens que estavam i m in ha fren tee, num salto , co locando a mo sobre a janela da tnaiura, golpeeigritando: V iva a Revo luo A m inha mo tocou a roupa doPresidente, a lm ina eeiaua afundada at o cabo . [... ] OPresidente m e olhou, em seguida aoanonei a viatura e gritei:V ivna anarqu ia C erto de que seria finalm ente preso. (M aitron,1975 p 158 .

    [6] Condescendente, a duquesa de Uzes se oferece para adotar Sidonie, mas Vaillantrecusa, entregando-a ao anarquista Sebastin Faure que a educou at a juventude. Atumba de Vaillant, no cemitrio de Ivry, foi local de grande peregrinao. Um poema,deixado entre as folhas de uma palmeira, dizia: Porque fizeram beber a terra/Na horado Sol nascente/Rosa do, augnsto e salutar/ As santas gotas do teu sangue/Sob as folhasdesta palma/Que te oferece o direito ultrajado/Dormes leu sono soberbo e calmo/mrtir ... Tu sers vingado . Cf. Maitron, 1975, 235

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    Com efeito, foi esse ltimo gesto que causou sua priso,pois, at ento, imaginava-se que o jornal no qual haviaenvolvido o punhal continha flores ou um pedido de splica. Ogolpe de Caserio perfurou em onze centmetros o fgado deSadi Carnot, que morreu trs horas depois. No dia seguinte, aviva, Sra. Carnot, recebe uma carta contendo urna foto doanarquista guilhotinado Ravachol, onde se lia: devidamentevingado . Anos depois, foi a vez do Rei Umberto Primo, mortoem Milo pelos disparos do anarquista Caetano Bresci,no anode 1900. E no ano seguinte, o presidente americano WilliamMcKinley morre assassinado, em Buffalo, pelo anarquistapolons radicado nos EUA, Leon Czolgosz (Masini, 1981).Nose trata de exaltar a violncia nesses gestos dramticos. Osanarquistas bem sabiam, ao contrrio de Sorel, dos perigosresultantes de urna apologia violncia. Basta ler o queescreveu Errico Malatesta a propsito do regicdio de Milo, eque pode ser considerado o corao da ttica anarquista:

    Sabemos que o essencia l, o indiscutivelmente til , no matar apessoa de um rei, mas matar todos os reis - das cortes,parlamentos e fbricas - no cora .o e na m ente das pessoas; isto, erradicar a f no princp io de autoridade a qual presta cultoum a enorm e parcela do povo. (M a/atesta , 1900 ).

    Em todo caso, nada seria mais tolo e estril que acondenao moral de tais gestos supondo que no h nelesnada mais alm de simples violncia. So, sobretudo, atos deresistncia ao poder, nos quais o indivduo passa por urnatransformao tica importante. Revelam esse momento queFoucault chamou de ponto mais intenso da vida, aquele emque se concentra sua energia, [... ali onde ela se choca contra opoder, debate-se contra ele, tenta utilizar suas foras e escaparde suas armadilhas (Foucault, 2001, p. 241). Pode-secompreender o que Malatesta chamou de erradicar a f noprincpio de autoridade como suspenso da legalidade.Quando se olha as coisas fora do mbito moral, percebe-se que

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    se trata bem mais do que vandalismo. No a ode ao crimetampouco a apologia ao delito. uma disposio que seapodera dos nimos e se torna o alimento mais precioso davida poltica. A legalidade no uma ordem exterior aosindivduos, ela integra sua prpria subjetividade por meio daqual opera e se manifesta. Ela se instala nos espritos antes deerguer fortalezas. Romper com a ordem da legalidade um atopoltico da maior importncia. No limite, no h transformaopoltica concreta fora dessa ruptura. Na ttica da propagandapelo fato dos anarquistas do sculo 19 existe esse gesto corajosode enfrentamento com o poder ao qual parece possvel remetera ao dos black blocs do sculo 21, e que se poderia resumirnas seguintes palavras: no se impe a lei a quem est dispostoa arriscar a vida. Hoje, trata-se de responder especialmente aosprocessos de apodrecimento da linguagem e da comunicaoque produzem uma degradao da subjetividade semprecedentes por meio de violncias semiticas televisivas ejornalsticas. O poder poltico no produz apenas a misriaeconmica dos trabalhadores: impe igualmente uma misriasubjetiva, produtor de subjetividades: ele produz osindivduos, seu pensamento, seus corpos, as formas pelas quaissentem e percebem o mundo. Se durante todo o sculo 18 at osculo 20 o poder poltico produziu uma ordem econmica queatirava na misria milhes de trabalhadores, a partir dasegunda metade do sculo 20, parece-me que o processo depauperizao do capitalismo se deslocou da ordem daeconomia para a ordem da subjetividade. Hoje o capitalismono produz, ao menos nas mesmas propores, os mesmosnveis de misria material do passado. Porm, produz umamisria subjetiva atroz e que , tanto quanto era a misriaeconmica, extremamente violenta. Talvez aquilo que estarnosassistindo possa ser lido, tambm, como revoltas contra apauperizao da subjetividade. No seria por acaso que umdos alvos preferidos, seno o mais visado pelos manifestantes,alm dos bancos, tenha sido a grande mdia: TV Globo, Record,

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    Folha de So Paulo etc. Se isso.ocorre por que hoje a grandemdia a principal responsvel por essa violncia simblicadestinada a degradar a subjetividade das pessoas. Mas no s:em nossos dias, quase tudo se encontra configurado como sefosse um programa de auditrio. Basta pensar nascomemoraes do 1 de maio com direito a show de cantorespopulares e sorteio de bens de consumo. Os sindicatos setransformaram em vetores de pauperizao subjetiva, comotambm os partidos polticos, as instituies governamentais emuitas outras organizaes da esquerda. O que se encontra sempre a disseminao desse modelo do programa deauditrio, com sua plateia interagindo com aplausos ou vaiasconforme orientao da assistncia. Tudo isso nos leva a pensarque a misria que toca o intolervel hoje, para grande parte daspessoas, no sejamais produto de uma economia material, masde uma economia subjetiva que provoca a pauperizao dasubjetividade.

    Face ao apodrecimento da semntica poltico-democrtica preciso, e eu diria que mesmo urgente, criarnovas formas de comunicar. Os black blocs podem ser umadelas, desde que saibam evitar que a violncia se transformeem retrica e em teoria. A histria nos mostra que a violnciapode ter um efeito inverso ao pretendido, na medida em queela torna o poder ao qual se dirige ainda mais tirnico. Nofundo, poder e violncia vivem uma espcie de eternasimbiose, se admitirmos, com Deleuze e Guattari (1999),que precisamente a impotncia do poder que o faz to perigoso: aperseguio meticulosa, a desmedida das pumoes, agrandiloquncia judiciria, a magnitude da represso, aonipresena dos controles etc., tudo isso no nada alm dopoder buscando tomar, fixar, deter aquilo que o ameaa.

    Portanto, ser fundamental saber transformar a violnciaconservando o que nela pode haver de estmulo para a lutacontra o poder.

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