vinicius de moraes - portugueese poetry

8
Soneto de Fidelidade De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure. Pátria Minha A minha pátria é como se não fosse, é íntima Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo É minha pátria. Por isso, no exílio Assistindo dormir meu filho Choro de saudades de minha pátria. Se me perguntarem o que é a minha pátria direi: Não sei. De fato, não sei Como, por que e quando a minha pátria Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água Que elaboram e liquefazem a minha mágoa Em longas lágrimas amargas. Vontade de beijar os olhos de minha pátria De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos… Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias De minha pátria, de minha pátria sem sapatos E sem meias pátria minha Tão pobrinha! Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho Pátria, eu semente que nasci do vento

Upload: victor-borges

Post on 11-Apr-2016

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Here I presented 10 poems by Vinicius de Moraes, in portugueese.

TRANSCRIPT

Page 1: Vinicius de Moraes - Portugueese Poetry

Soneto de FidelidadeDe tudo ao meu amor serei atentoAntes, e com tal zelo, e sempre, e tantoQue mesmo em face do maior encantoDele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momentoE em seu louvor hei de espalhar meu cantoE rir meu riso e derramar meu prantoAo seu pesar ou seu contentamento

E assim, quando mais tarde me procureQuem sabe a morte, angústia de quem viveQuem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):Que não seja imortal, posto que é chamaMas que seja infinito enquanto dure.

Pátria MinhaA minha pátria é como se não fosse, é íntimaDoçura e vontade de chorar; uma criança dormindoÉ minha pátria. Por isso, no exílioAssistindo dormir meu filhoChoro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:Não sei. De fato, não seiComo, por que e quando a minha pátriaMas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a águaQue elaboram e liquefazem a minha mágoaEm longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátriaDe niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos…Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feiasDe minha pátria, de minha pátria sem sapatosE sem meias pátria minhaTão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenhoPátria, eu semente que nasci do ventoEu que não vou e não venho, eu que permaneçoEm contato com a dor do tempo, eu elementoDe ligação entre a ação e o pensamentoEu fio invisível no espaço de todo adeusEu, o sem Deus!

Page 2: Vinicius de Moraes - Portugueese Poetry

Tenho-te no entanto em mim como um gemidoDe flor; tenho-te como um amor morridoA quem se jurou; tenho-te como uma féSem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeitoNesta sala estrangeira com lareiraE sem pé-direito.

Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova InglaterraQuando tudo passou a ser infinito e nada terraE eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céuMuitos me surpreenderam parado no campo sem luzÀ espera de ver surgir a Cruz do SulQue eu sabia, mas amanheceu…

Fonte de mel, bicho triste, pátria minhaAmada, idolatrada, salve, salve!Que mais doce esperança acorrentadaO não poder dizer-te: aguarda…Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e paraRever-te me esqueci de tudoFui cego, estropiado, surdo, mudoVi minha humilde morte cara a caraRasguei poemas, mulheres, horizontesFiquei simples, sem fontes.

Pátria minha… A minha pátria não é florão, nem ostentaLábaro não; a minha pátria é desolaçãoDe caminhos, a minha pátria é terra sedentaE praia branca; a minha pátria é o grande rio secularQue bebe nuvem, come terraE urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria temUma quentura, um querer bem, um bemUm libertas quae sera tamemQue um dia traduzi num exame escrito:“Liberta que serás também”E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisaQue brinca em teus cabelos e te alisaPátria minha, e perfuma o teu chão…Que vontade de adormecer-meEntre teus doces montes, pátria minhaAtento à fome em tuas entranhasE ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minhaTeu nome é pátria amada, é patriazinha

Page 3: Vinicius de Moraes - Portugueese Poetry

Não rima com mãe gentilVives em mim como uma filha, que ésUma ilha de ternura: a IlhaBrasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotoviaE pedirei que peça ao rouxinol do diaQue peça ao sabiáPara levar-te presto este avigrama:“Pátria minha, saudades de quem te ama…Vinicius de Moraes.”

Poema de NatalPara isso fomos feitos:Para lembrar e ser lembradosPara chorar e fazer chorarPara enterrar os nossos mortos —Por isso temos braços longos para os adeusesMãos para colher o que foi dadoDedos para cavar a terra.Assim será nossa vida:Uma tarde sempre a esquecerUma estrela a se apagar na trevaUm caminho entre dois túmulos —Por isso precisamos velarFalar baixo, pisar leve, verA noite dormir em silêncio.Não há muito o que dizer:Uma canção sobre um berçoUm verso, talvez de amorUma prece por quem se vai —Mas que essa hora não esqueçaE por ela os nossos coraçõesSe deixem, graves e simples.Pois para isso fomos feitos:Para a esperança no milagrePara a participação da poesiaPara ver a face da morte —De repente nunca mais esperaremos…Hoje a noite é jovem; da morte, apenasNascemos, imensamente.

Soneto de ContriçãoEu te amo, Maria, eu te amo tantoQue o meu peito me dói como em doençaE quanto mais me seja a dor intensaMais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o cantoAnte o mistério da amplidão suspensa

Page 4: Vinicius de Moraes - Portugueese Poetry

Meu coração é um vago de acalantoBerçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a almaNem melhor a presença que a saudadeSó te amar é divino, e sentir calma…

E é uma calma tão feita de humildadeQue tão mais te soubesse pertencidaMenos seria eterno em tua vida.

Não Comerei da Alface a Verde PétalaNão comerei da alface a verde pétalaNem da cenoura as hóstias desbotadasDeixarei as pastagens às manadasE a quem maior aprouver fazer dieta.

Cajus hei de chupar, mangas-espadasTalvez pouco elegantes para um poetaMas peras e maçãs, deixo-as ao estetaQue acredita no cromo das saladas.

Não nasci ruminante como os boisNem como os coelhos, roedor; nasciOmnívoro: deem-me feijão com arroz

E um bife, e um queijo forte, e paratiE eu morrerei feliz, do coraçãoDe ter vivido sem comer em vão.

A Rosa de HiroximaPensem nas criançasMudas telepáticasPensem nas meninasCegas inexatasPensem nas mulheresRotas alteradasPensem nas feridasComo rosas cálidasMas oh não se esqueçamDa rosa da rosaDa rosa de HiroximaA rosa hereditáriaA rosa radioativaEstúpida e inválida.A rosa com cirroseA antirrosa atômicaSem cor sem perfumeSem rosa sem nada.

Page 5: Vinicius de Moraes - Portugueese Poetry

Soneto de DevoçãoEssa mulher que se arremessa, friaE lúbrica aos meus braços, e nos seiosMe arrebata e me beija e balbuciaVersos, votos de amor e nomes feios.

Essa mulher, flor de melancoliaQue se ri dos meus pálidos receiosA única entre todas a quem deiOs carinhos que nunca a outra daria.

Essa mulher que a cada amor proclamaA miséria e a grandeza de quem amaE guarda a marca dos meus dentes nela.

Essa mulher é um mundo! — uma cadelaTalvez… — mas na moldura de uma camaNunca mulher nenhuma foi tão bela!

Soneto do Amor TotalAmo-te tanto, meu amor… não canteO humano coração com mais verdade…Amo-te como amigo e como amanteNuma sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,E te amo além, presente na saudade.Amo-te, enfim, com grande liberdadeDentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,De um amor sem mistério e sem virtudeCom um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,É que um dia em teu corpo de repenteHei de morrer de amar mais do que pude.

Soneto de separaçãoDe repente do riso fez-se o prantoSilencioso e branco como a brumaE das bocas unidas fez-se a espumaE das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o ventoQue dos olhos desfez a última chama

Page 6: Vinicius de Moraes - Portugueese Poetry

E da paixão fez-se o pressentimentoE do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repenteFez-se de triste o que se fez amanteE de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distanteFez-se da vida uma aventura erranteDe repente, não mais que de repente.

Receita de MulherAs muito feias que me perdoemMas beleza é fundamental. É precisoQue haja qualquer coisa de flor em tudo issoQualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute coutureEm tudo isso (ou entãoQue a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).Não há meio-termo possível. É precisoQue tudo isso seja belo. É preciso que súbitoTenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rostoAdquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabrocheNo olhar dos homens. É preciso, é absolutamente precisoQue seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradasLembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braçosAlguma coisa além da carne: que se os toqueComo o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vosQue é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaroSeja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo eSeja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvemCom olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, entãoNem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma bocaFresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossosDespontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicasNo enlaçar de uma cintura semovente.Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteirasÉ como um rio sem pontes. IndispensávelQue haja uma hipótese de barriguinha, e em seguidaA mulher se alteia em cálice, e que seus seiosSejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barrocaE possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebralLevemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de coxasE que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugemNo entanto sensível à carícia em sentido contrário.É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprioApenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)Preferíveis sem dúvida os pescoços longos

Page 7: Vinicius de Moraes - Portugueese Poetry

De forma que a cabeça dê por vezes a impressãoDe nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembreFlores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticosDiscretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na faceMas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferiorA 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimadurasDo primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandesE de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; eQue se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixãoQue é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio altaOu, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhosAo abri-los ela não mais estará presenteCom seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não váE que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beberO fel da dúvida. Oh, sobretudoQue ela não perca nunca, não importa em que mundoNão importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidadeDe pássaro; e que acariciada no fundo de si mesmaTransforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempreO impossível perfume; e destile sempreO embriagante mel; e cante sempre o inaudível cantoDa sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarinaDo efêmero; e em sua incalculável imperfeiçãoConstitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.