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Carlos Heitor Cony

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Carlos H

eitor Cony

Carlos Heitor Cony

Capa: Marília Bruno

Vindo de uma família conceituada do Rio de Janeiro, Alfredo é um jovem com dificuldade em se relacionar com outras pessoas. Prefere as brincadeiras solitárias, não tem amigos e demonstra um excesso de zelo por seu irmão, Alberto.

Viaja para Paris com tudo providenciado por seu pai — que enxergava a viagem como uma questão de status —, possibilitando que nada lhe faltasse em sua estada na Europa. Nessa fuga do mundo conhecido, acaba entrando no universo das drogas, e, quando perde totalmente o controle, chega a se envolver em um assassinato, o que o leva a parar na polícia e nas páginas dos jornais.

Carlos Heitor Cony nasceu no Rio de Janeiro em 1926. Estreou na literatura ganhando por duas vezes consecutivas o Prêmio Manuel Antônio de Almeida, com os romances A verdade de cada dia e Tijolo de segurança. Cony trabalhou na imprensa desde 1952: inicialmente no Jornal do Brasil, e mais tarde no Correio da Manhã, do qual foi redator, cronista e editor.

Em 1998, foi condecorado pelo governo francês com a L’Ordre des Arts et des Lettres. Foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em março de 2000.

Alfredo, jovem de uma conceituada família do Rio de Janeiro, vai estudar no exterior e acaba se entregando às drogas até perder totalmente o controle. Além disso, vai parar na polícia e nas páginas dos jornais ao se envolver em um assassinato.

Um dos maiores representantes do neorrealismo brasileiro, Carlos Heitor Cony focaliza as diversas etapas pelas quais uma pessoa em fuga passa ao depender da droga. A narração acelerada e a chocante descrição das reações e dos delírios de um viciado fazem deste livro um documento impressionante sobre o mais trágico dos problemas com que se defronta a juventude: os tóxicos.

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Carlos Heitor Cony3a edição

© 2013 por Carlos Heitor Cony

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil ad-quiridos pela Editora Nova FroNtEira ParticiPaçõEs s.a. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou proces-so similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de foto-cópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

Editora Nova FroNtEira ParticiPaçõEs s.a.Rua da Candelária, nº 60, GRP 701 A 714 — CEP: 20091-020 Centro — Rio de Janeiro — RJ

CIP-Brasil. Catalogação na publicaçãoSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Cony, Carlos Heitor, 1926- O irmão que tu me deste / Carlos Heitor Cony. - 3. ed. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2013.

ISBN 978.85.209.3445-6 1. Ficção brasileira. I. Título.

13-01754 CDD: 869.93CDU: 821.134.3(81)-3

C784i3. ed

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O irmãO que tu me deste e a juventude

O irmão que tu me deste aborda a vida e as questões pessoais e sociais de um jovem com dificuldade em se relacionar com outras pessoas. Após enfrentar problemas e tensões familiares, viaja para Paris e acaba entrando no universo das drogas, perdendo totalmente o controle de si e de sua vida.

A leitura deste livro é uma ótima forma de os jovens pensarem seu lugar no mundo e as relações que todos estabelecemos com nossos amigos, familiares e pessoas próximas. O livro também nos dá ferramentas para pensar os processos da juventude, nossos momentos de solidão, nossos vínculos e as descobertas que fazemos nesse período da vida. A literatura permite que nos coloquemos no lugar do outro, que imaginemos como seria uma outra vida que não a nossa — o que chamaríamos de alteridade —, e essa experiência é muito valiosa quando trabalhada em sala de aula, contando com o diálogo com o professor e com os colegas.

GênerO rOmance

O romance “apresenta uma narrativa longa, em prosa, estruturada em capítulos. Envolve grande número de personagens e histórias paralelas ao conflito principal, podendo abranger vários espaços simultaneamente, abordar o tempo presente e passado. Esse gênero literário é fundamentalmente de ficção, embora possa retratar uma história real”.1

O romance pode tratar de qualquer assunto. Essas histórias podem ser inteiramente inventadas ou podem assemelhar-se à realidade bem como podem ter um cunho fantástico ou realista.

1 JORDÃO, Rose; OLIVEIRA, Clenir Bellezi. Linguagens: estrutura e arte. São Paulo: Moderna, 1999, p. 41.

E disse o Senhor a Caim: — Onde está o teu irmão Abel? Ao que Caim respondeu: — Não sei. Por acaso sou guardião do irmão que tu me deste?

Gênesis, 4 — IX

{ Primeira parte

O pêssego, o anel e a festa}

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Capítulo l

Tudo pronto. Eu próprio estou pronto. O pior foi a fila

na Polícia Marítima para descolar o passaporte. Papai

pagou o melhor despachante (o velho sempre procura o me-

lhor) mas assim mesmo tive de ir, pessoalmente, assinar o re-

cibo. Está tudo em ordem. Meu retrato em tamanho grande

na página verde e plastificada, o nome completo, data de nas-

cimento, esses babados legais.

Depois fui comprar os dólares, mil apenas, dentro do

câmbio do dia. Mas o velho já arranjou dinheiro por fora, no

mercado negro, diz que pagou os olhos da cara para eu poder

levar bastante grana. Falando francamente, ele fez tudo o que

podia para me dar o melhor. E, em certo sentido, conseguiu.

Inclusive me deu o melhor irmão do mundo: Alberto. Me-

lhor mesmo, no duro. Tão melhor que... bem, isso agora vai

ficar pra trás, eu vou em frente, na minha.

Papai é bacana mesmo. Deu certo na vida, gosto dele

por que nunca perde a esportiva, diz que conhece o mundo, as

pes soas. Por isso não precisei falar tudo o que devia com ele.

Nem com minha mãe. Essa entende menos mas tem um co-

ração des se tamanho. No início, deu contra a minha viagem,

achava um desperdício de tempo, e uma temeridade, imagina,

um garoto de 17 anos perdido numa cidade estranha, longe

de casa, sem co nhecer ninguém, e enfrentar o inverno, eu,

habituado aos 40 graus do Rio, à praia, ao surfe, às garotas...

Grilo às pampas na cabeça da mãe. Mas acabou cedendo, meu

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pai fechou a questão, ela fungou um pouco e não criou mais problema.

Bem, para chegar a isso, não foi nada fácil. Nem da mi nha parte, nem da parte do velho. No fundo, acho que o drama dele é pior do que o meu. Afinal, eu posso ir para Paris, fugir disso aqui. Mas ele?

No momento, a sua preocupação é comprar dólares, ver se tudo está legal, se é o melhor como sempre. Depois, dormirá com a consciência tranquila, pelo menos a meu respeito. Quanto ao Alberto, honestamente, eu apenas sus-peito que ele desconfia de tudo. Ou, no mínimo, de alguns pedaços. O importante é que meu pai deu apoio, de estalo, quando falei nessa viagem, um ano fora, em Paris. Limitou-se a perguntar:

— Mas por que Paris?— Posso estudar, fazer um curso...— Mas vai interromper o colégio aqui. Perderá um

ano...— Acho que saio ganhando. Quando voltar, posso me-

ter os peitos na arquitetura, com uma boa base...O velho pensou um pouco, depois admitiu:— Está bem. Eu compreendo. No meu caso, só fui a

Paris depois de formado, quando já tinha condições para isso... fiz um curso também, de urologia, gostaria de ter feito esse estágio an tes, mesmo assim me valeu muito... Na medicina...

— Já sei, pai, já conheço a sua biografia. O senhor se for mou, era um estudante pobre, deu duro nas ambulâncias do pron to-socorro, subia os morros para fazer partos, dava injeções em ambulatórios... mas aí está, com boa clínica, ca-tedrático da faculdade, medalhado e bem-remunerado. O se-

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nhor não teve cul pa de nascer pobre, nem eu tenho culpa de

ter um pai rico como o senhor...

Ele ficou satisfeito de ouvir isso. Estava na cara que

com preendia exatamente o que eu queria dizer.

— Não falo isso por você... acho que tudo vai bem

pro seu lado... sua mãe bronqueou um pouco mas afinal se

convenceu...

Mais uma vez, o assunto pesou sobre nós. Não havia

pro blema nenhum a resolver em nossas vidas, éramos uma

família modelo, podíamos ganhar medalhas se houvesse expo-

sições fa miliares, como há exposições para bovinos, equinos,

suínos, agropecuária... Meu pai um touro forte, sadio, perfeito,

minha mãe também perfeita, e as crias... bem, aí começavam

as diferenças. Praticamente, eu estava fugindo de casa e papai

sabia disso. Mas Alberto?

Meu irmão nem deu importância quando, dois meses

atrás, sem qualquer preâmbulo, eu interrompi o silêncio que,

ultima mente, pesava sobre o jantar:

— Pai, tou querendo viajar.

A mãe pensou que eu queria, mais uma vez, passar as

férias na Bahia.

— Corta essa, mãe! Vou para a Europa, passar um

ano lá!

Papai me olhou sério. Tão sério que eu compreendi

logo que ele topava a minha ideia. Mais: se recriminava por

não ter tido a iniciativa. Entre nós dois, nunca precisamos

gastar muitas palavras. Entendíamos o que era importante, o

essencial, e deixávamos as palavras para gastar com os detalhes,

as besteiras disso ou daquilo. Então discutíamos, às vezes bri-

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gávamos, mas era uma tapeação consentida de ambas as partes. O essencial já estava no papo.

Ele disse qualquer coisa como “mais tarde a gente vê isso” e eu insisti.

— Não, pai, tenho um amigo que me aconselhou um curso de arte em Paris e quero pegar uma vaga. Normalmen-te, teria de me habilitar a uma bolsa de estudos na Maison de France, mas como o senhor pode pagar tudo, não preciso de mais nada a não ser da grana e da inscrição...

Continuamos nesse tom, minha mãe alarmada, pensan-do que eu e papai havíamos enlouquecido. Da parte dela, ainda houve muito grilo, deu mais trabalho a papai do que a mim e acredito que, quando os dois ficavam sozinhos, o assunto rendia.

Mas ali na mesa, o que mais me chateou foi Alberto. Ele continuou alheio, como se não tivéssemos, pelo menos du-rante aque le jantar, um assunto. Estava na dele, como sempre. Curioso, quan do ouvi pela primeira vez essa expressão que caiu na gíria (estar na dele) pensei que tivesse sido inventada para meu irmão. Acho que alguém — algum amigo dele — conhecendo-o bem, um dia saiu com essa, está na dele, e foi daí que a expressão começou a circular. Pois tudo tem um começo. E a minha história também.

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Capítulo 2

Sou o segundo filho de uma família de dois. Três anos me separam de Alberto. Agora, olhando tudo em conjunto,

sinto que são três séculos de distância. Nossa infância foi nor-mal — tão normal que pouco me lembro dela. Oficialmente, já passou de moda aquele campeonato de saber de quem o pai gosta mais, quem é o predileto da mãe. Parece que houve um acordo entre pais, filhos, pedagogos, professores, o diabo, todo mundo parou de falar nisso. Mas tanto lá em casa — como em casas alheias, a miséria ou a grandeza humanas continuaram as mesmas e sempre houve predileções, veladas ou ostensivas. Que surgem em pequeninas coisas, desde o melhor pedaço da carne assada até o tom de voz. Sobretudo isso: o tom de voz.

Por ser o mais moço, quando comecei a perceber a vida encontrei meu irmão solidamente instalado, na casa e no afeto do meu pai. Era o primeiro filho, puxara-lhe a cara. Se ele fos se um rei, Alberto seria legalmente o herdeiro do trono — um pai, principalmente quando não tem um reino para legar aos filhos, pensa sempre nisso na hora de dedicar mais afeto a um ou a outro. Ao primogênito, o trono. Tanto que meu irmão, um dia, me confessou que, aos três anos, temia que o irmãozinho que ia ganhar fosse uma menina. Ele sabia que as meninas con-quistam a predileção do pai, por isso tanto se alegrou quando soube que eu trazia um inofensivo birrinho no lugar adequado.

Se Alberto era o preferido do pai, fiquei sendo o predile to de minha mãe. Podíamos nos dar por satisfeitos, empatados no um a um, mas não sei o que aconteceu com

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Alberto. Seguro de que o pai era dele, começou a sofrer por causa da mãe. Muitas cenas de infância, que agora recordo, me pareciam naturais e insignificantes. Mas foram importantes e transcendentais para Alberto. Quando minha mãe saía com o pai, um cinema, um teatro, ele ficava alucinado. Ia para os cantos, fiscalizava os pre parativos dela. Bastava ver um vestido de noite em cima da cama dos pais, lá pelas quatro horas da tarde. E o banho que ela tomava, e o cabelo com o penteado mais caprichado. Alberto ficava mudo, não jantava. Mais tarde, chegava a me dar beliscões para que eu abrisse o berreiro, a fim de que minhas lágrimas derrubassem o plano dela de sair à noite.

— Chora, Alfredo, chora bastante! Assim ela fica em casa!

Pessoalmente, eu também preferia que a mãe ficasse sem pre em casa, ela me levava para a cama, contava histó-rias, canta va canções bonitas que só ela sabia — e era bom adormecer assim. Mas também não me sentia especialmente desgraçado quando sabia que ela tinha um compromisso que a afastava de mim.

Meu irmão era diferente. Só mais tarde, consegui dar o nome exato ao que ele sentia nessas horas. Até hoje, mesmo depois de tudo o que aconteceu na vida dele e na minha, Al-berto não admite esse sentimento. Mas eu o conheço bem e sei que sofre, não mais por causa de mamãe, que dele recebeu um afeto mais longo e profundo do que o meu.

Para falar tudo, eu não dava importância às manias do ir mão. Achava natural que ele se chateasse quando a mãe saía, ou quando ela me dava um carinho que, aos olhos dele, parecia exa gerado ou injusto. Até que houve

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um episódio que me ficou gra vado para sempre. No mo-mento, senti confusão e encantamento. Pouco a pouco, fui penetrando no subsolo daquele lance, definidor de uma porção de etapas, na minha e na vida de meu irmão. Para dizer realmente tudo: foi fundamental para não compreen-der mais nada do mundo.

Uma das birras mais entranhadas de Alberto era a disputa, milímetro a milímetro, do melhor pedaço da torta, da maior quan tidade de batata frita ou de banana frita, dos morangos com creme — essas bobagens. Em nossa infân-cia, papai já era um médico bem-sucedido, rico. As brigas de meu irmão por migalhas de mesa e sobremesa não tinham sentido e eram ridículas. Se papai estava presente, decidia a questão sempre a favor dele, mandando que a copeira fosse à cozinha e mandasse fazer mais batata frita, mais isso ou aqui-lo. Sem papai, Alberto se sentia órfão. Mamãe sem pre ape-lava para a justiça na distribuição dos bens que eram fartos em toda a casa. Mas uma batata frita a mais no meu prato fazia meu irmão sofrer, pois lhe parecia que mamãe havia me preferi do, prejudicando-o em qualquer ou com qual-quer insignificância. Para ele, em se tratando de mãe, tudo era significante. Um gomo de tangerina ou uma fatia de melão.

Na véspera, a sobremesa tinha sido torta de maçã. Tanto eu como meu irmão gostávamos da parte do meio, mais cheia de maçã e com menos massa. Distraidamente, mamãe cor-tou aquele pedaço, estava conversando com papai, eu apro-ximei meu prato, por gravidade o bocado caiu nele e tudo ficaria nisso se Alberto não tivesse uma atitude malcriada e surpreendente:

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— Não quero esta droga!Papai pediu que a copeira arranjasse uma fruta ou

abrisse uma lata de compota, mas Alberto continuou engros-sando, de cara amarrada:

— Não preciso mais de sobremesa!E saiu da mesa, com raiva.Só então mamãe percebeu que havia cometido um

crime contra o filho mais velho. Geralmente, ela dividia o pedaço do meio em dois, para que ninguém brigasse. Tentou inutilmente corrigir a distração: eu já tinha comido a minha porção.

No dia seguinte, a cozinheira foi ao mercado, comprar fru tas e verduras. Quando voltou, por acaso minha mãe tinha ido à cozinha, atender um sujeito que tinha vindo regular a geladeira nova. Entre as frutas que a empregada trouxera, havia pêssegos, e eu era tarado por eles. Alberto gostava deles também, mas sem exageros, preferia peras d’água — fruta que eu sempre abominei. Vez por outra, papai mandava uma de suas secretárias buscar peras numa confeitaria da cidade, que importava as melhores, enormes, cheias de caldo, vindas da Argentina. Meu irmão se fartava.

Pêssego era assunto meu. Mamãe falava com o mecâ-nico, explicava que a geladeira nova não estava gelando bem — e foi aí que viu as frutas na cesta trazida pela empregada.

Eu estava nos fundos da casa, preocupado em armar uma espécie de cabana, não dessas de índio, vendidas nos shopping centers, mas uma cabana de verdade, feita de talos de bambu e folhas de palmeira. Há duas semanas vinha traba-lhando naquilo.

Ela me chamou:

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— Que que é, mãe?— Dá um pulo aqui!Fui à cozinha, mamãe despachava o mecânico. Tinha na

mão uma pequena sacola. Levou-me para o toalete que servia ao salão. Mandou que eu entrasse. Depois, olhou para os lados, ven do se havia alguém perto. E também entrou. Encostou a porta. Abriu a sacola e apanhou um pêssego, o maior, o mais belo que vira na vida. E não veria outro parecido nunca mais.

— Toma. É seu. Coma aqui mesmo. Se o Alberto sou-ber pode chorar.

E saiu. A recomendação estragou, em parte, o prazer de ter comido aquele pêssego fora de série, que ela separara para mim, antes que fosse para a mesa e criasse um problema, pois mesmo sem apreciá-los com igual intensidade, ele exigiria aquela prova de amor e preferência, o melhor e maior sempre para ele.

Foi, realmente, a fruta proibida, nascida da Árvore do Bem e do Mal, aquele pêssego cheio de sumo, lindo em suas cores amarelo-avermelhadas, aquela penugem macia. E ele cresceu, dentro de mim, dentro de minha infância. Eu era o eleito — e meu irmão não passava de um réprobo, um condenado. O diabo é que, mesmo sem nunca ter sabido da existência desse pêssego em nos sa infância, meu irmão parece que adivinhou tudo. E suspeitou de muito mais, de pêssegos inexistentes até.

Mesmo depois que me tornei adulto, depois que voltei de Paris e me internei na clínica, nunca tive coragem de lem-brar esse pêssego para mamãe. Ela também nunca tocou no assunto. Foi uma espécie de incesto entre nós, que apesar de não ter consumação integral, fez meu irmão sofrer, se sentir traído e desgraçado — na pior forma de desgraça, que é a de não saber.