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Criação/Música

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Vila Socó meu amorGILBERTO MENDES

"N ão devemos esquecer os nossos irmãos da Vila Socó,transformados em cinzas, lixo em pó. A tragédia da VilaSocó mostra como o trabalhador é explorado, esmagado

sem nenhum dó."Espanta-me a atualidade dessa constatação que fiz, já quase sete

anos passados, ao escrever o texto para minha pequena peça coral VilaSocó meu amor. Nada mudou. Na verdade, até que mudou, para pior!

Nunca o trabalhador foi tão explorado, tão enganado, sob o tacãodo medieval Senhor dos impostos, agora talvez com o consolo de nãoestar só, ter por companheiros de infortúnio a classe média, os aposen-tados em geral. A classe dirigente, numa boa, não abre mão de nada, opovo que faça os sacrifícios impostos pelos planos econômicos " salva-dores".

Com minha música, pretendi ter feito alguma coisa in memoriamdos mortos por aquela verdadeira bomba de Hiroshima que foi a ex-plosão da Vila Socó. Por isso a lembrança, no título, de Alain Resnais,da imensa piedade pelo destino dos homens, que seu extraordinário fil-me comunica.

Meu colega Celso Delneri dirigia um coral feminino no Departa-mento de Música da Escola de Comunicações e Artes da USP e me haviapedido uma música. O horror diante da terrível notícia deu-me o im-pulso. Quase um improviso, ao correr dos dedos no piano, a música foipensada para vozes femininas, à maneira das canções corais dos partisansda região do Voronejo, no tempo da grande guerra pátria dos russoscontra o nazismo. Um mesmo período musical é repetido cinco vezes,com dois textos que também são repetidos alternadamente, de acordocom aquele minimalismo natural que encontramos na música folclóricade muitos povos.

Quando cantada nas imediações de Cubatão, a música comove aaudiência, que já chegou a chorar. Não vou me orgulhar por provocartristeza nos outros, mas me satisfez saber que denunciar funciona. Masaté que ponto?

A despeito das promessas e alegadas realizações, o meio ambientecontinua sombriamente poluído. Volta e meia Cubatão entra em estadode alerta; ainda há pouco tempo explodiu e ardeu durante seis horas umgrande tambor de gás, colocando em perigo toda a Baixada Santista, queesteve à beira de outra tragédia, de muito maiores proporções do que ade Vila Socó. O descaso não tem fim.

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GILBERTO MENDES

Os compositores brasilei-ros que produziram a partir doséculo XX podem ser comparti-mentados através das tendências.Villa-Lobos, Francisco Mignone,Camargo Guarnieri e CláudioSantoro evidenciam fidelidadebásica às características naciona-listas. Com a ruptura, de mercadoque se dá a partir, na essência, daação cultural voltada às corren-tes universalmente contemporâ-neas, monitoradas sobremaneirapor H. J. Koellreutter, a criaçãoda música de concerto no Brasilempreenderia percursos os maisdiversos, comprometendo-se, emuito, com.o que ocorre nasvárias categorias mundistas.

E possível ser GilbertoMendes, hoje, o mais significati-vo compositor-pensador destepaís. Signatário do "ManifestoMúsica Nova" de 1963, em ne-nhum momento deixou de pro-duzir, escrever textos e o seu tra-balho demonstra desde a gêneseda composição homogeneidadee coerência, sempre na busca donovo, entenda-se este, sem pres-sionamento. O Festival MúsicaNova, criado por ele, nasce emSantos em 1962; perdura atéhoje a apresentar fundamentalprodução contemporânea brasi-leira e internacional e, em sendopor acréscimo o amplo leque deopções que se abrem, sobrema-neira, a Gilberto Mendes, um

observador infatigável.

Homem das esquerdas,suficientemente cônscio dos va-lores do socialismo, mas nostál-gico crítico dos erros humanos— entre os quais a distorção daperpetuação no poder —, Gil-berto Mendes persiste socialistae tem esperanças em um novosistema a contrapor o capitalis-mo em suas multifacetadas rou-pagens, mas em acelerado cami-nhar em direção ao impasse.

O arguto observador da ri-gidez nacionalista não deixa deser igualmente nacionalista e aobra insiste na rítmica nativa,mas entremeada de conteúdosjazzísticos e populares america-nos — alguns de seus mitos —sendo Ulysses em Copacabana sur-fando com James Joyce e DorothyLamour (1988), encomendadapelo Festival Internacional dePatras na Grécia, em 1989, coma presença do autor, ou Eisler eWebern caminham pelos mares doSul, estreada em Potsdam, naantiga RDA, em 1989, exemplostípicos.

Viajante inveterado, aber-to ao passado e ao novo, penetraa fronteira da setuagenariedadena observação in loco de paísesque, visitados, profissionalmentesubstanciam-no através da suacompreensão profunda das et-nias ou das várias internacionali-

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dades que autores como ele, deoutras plagas, entendem-se emrelacionamentos profícuos. Mé-xico, Venezuela, Chile, Portu-gal, Espanha, Alemanha, Aust-ria, Grecia e os cursos universi-tários que ministrou como Uni-versity Artist (1978-1979) emWisconsin, Milwaukee e comoTinker Visiting Professor(1983) em Austin, Texas. Soboutro aspecto, em muitos dospaíses ocidentais a sua obra já foiapresentada.

A produção de GilbertoMendes é extensa, dela fazendoparte: obra sinfônica, para pianoe orquestra, camerística em for-mações singulares, coral, canto epiano e instrumental, onde sedestaca a diversificada coleçãopianística.

Gilberto Mendes, santistana acepção, fascinado pelo ocea-no e a praia, assim como pelasala de cinema ao escurecer — oseu templo preferido —, passoprimeiro para o desvelamentodo desfilar de seus ídolos ClarkGable, Greta Garbo, Gary Coopere dos diretores Ingmar Bergman,Akira Kurosawa ou de muitos

dos principais norte-america-nos; é igualmente o denuncianteda tragédia ou da hipocrisia dosistema em que vivemos.

Vila Socó (1983) e O últi-mo tango em Vila Parisi (1987)contêm cargas da crítica perma-nente ao descaso e, sob outraégide, Beba, Coca-Cola (1966) éa crítica ao consumismo, arqui-tetado pragmáticamente pelo sis-tema.

Professor do Departamen-to de Música da Escola de Co-municações e Artes da Universi-dade de São Paulo, GilbertoMendes, neste ano de 1992, per-manece rigorosamente pleno deinsatisfações: "aquele que cria,se estiver satisfeito, estanca",confessava-me ele; de um magis-tério em país que despreza aCultura; do crítico sutil que per-deu espaços nos veículos queforam contaminados pela mídiacomprometida; do pensador quecompõe tentando compreendero absurdo do hoje.

* José Eduardo Martins é pianista e pro-fessor do Departamento de Música daECA/USP.