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Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e de sociabilidade portuguesas no vale amazônico Katy Eliana Ferreira Motinha Universidade Federal do Amapá – UNIFAP Desde o século XVI até o século XVIII, as terras da Amazônia atraíram a atenção dos europeus. Espanhóis, holandeses, franceses, ingleses e portugueses alternavam-se em ações de conquista e posse do espaço amazônico. Os monarcas portugueses, ao longo dos séculos, buscaram assegurar o território conquistado, ampliando as fronteiras e estabelecendo um novo tipo de encontro, de troca, de assimilação, processo este que resultou na construção de novas fronteiras – físicas e culturais - muitas das quais ainda persistem na atualidade. As terras da Amazônia constituíam uma região extremamente vulnerável a ataques e invasões, especialmente pelo fácil acesso que a foz do rio Amazonas proporcionava aos navegantes europeus e, também, pelo fato de a região ser povoada por numerosos grupos indígenas, a quem não cabia a missão de defesa do território. Até fins do século XVI, os portugueses não se interessaram por esta região, até então, imaginada e concebida miticamente, mas inexplorada. Entretanto, a tentativa de invasão francesa à capitania do Maranhão, viria alterar tal postura. A região era considerada perigosa e de difícil implantação para uma economia agrária baseada em produtos tropicais, mas não se perdia de vista a potencialidade comercial dos produtos que viriam a ser posteriormente conhecidos como “as drogas do sertão”. Deste modo, a preservação da posse destas terras seria imprescindível para os interesses comerciais portugueses em um futuro próximo. A segunda metade do século XVII, vem inaugurar a época do efetivo e contínuo domínio português na Amazônia, sendo a fundação dos núcleos de São Luís e Belém marcos da formação urbana da região 1 . Para assegurar a posse da terra aos portugueses, em 1616, 300 colonos açoreanos desembarcam em São Luís e, em 1618, 200 casais originários de Angra desembarcam em Belém 2 . Em 1627, estando Portugal ainda sob o domínio espanhol, por determinação do governador do Estado do Maranhão, Bento Maciel Parente empreende viagem à Espanha para solicitar meios de defesa e combate aos invasores que tentavam ocupar a região do delta do rio Amazonas. A efetiva colonização principia em 14 de julho de 1637, ocasião na qual o rei Felipe IV veio a criar a capitania do Cabo do Norte, denominação esta devido à existência de um cabo em terras compreendidas entre as regiões do rio Oiapoque, a foz do rio Amazonas e o rio Nhamundá, Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP; Professora Titular da Cadeira de História Medieval e de História da Civilização Ibérica da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. 1 Renata Malcher ARAÚJO, As cidades da Amazônia no século XVIII, Porto, Universidade do Porto, 1992, p. 36. 2 AHU_ACL_CU_013, Cx 1, D. 7.

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Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e de sociabilidade portuguesas no vale amazônico

Katy Eliana Ferreira Motinha ∗ Universidade Federal do Amapá – UNIFAP

Desde o século XVI até o século XVIII, as terras da Amazônia atraíram a atenção dos

europeus. Espanhóis, holandeses, franceses, ingleses e portugueses alternavam-se em ações de conquista e posse do espaço amazônico.

Os monarcas portugueses, ao longo dos séculos, buscaram assegurar o território conquistado, ampliando as fronteiras e estabelecendo um novo tipo de encontro, de troca, de assimilação, processo este que resultou na construção de novas fronteiras – físicas e culturais - muitas das quais ainda persistem na atualidade.

As terras da Amazônia constituíam uma região extremamente vulnerável a ataques e invasões, especialmente pelo fácil acesso que a foz do rio Amazonas proporcionava aos navegantes europeus e, também, pelo fato de a região ser povoada por numerosos grupos indígenas, a quem não cabia a missão de defesa do território.

Até fins do século XVI, os portugueses não se interessaram por esta região, até então, imaginada e concebida miticamente, mas inexplorada. Entretanto, a tentativa de invasão francesa à capitania do Maranhão, viria alterar tal postura. A região era considerada perigosa e de difícil implantação para uma economia agrária baseada em produtos tropicais, mas não se perdia de vista a potencialidade comercial dos produtos que viriam a ser posteriormente conhecidos como “as drogas do sertão”. Deste modo, a preservação da posse destas terras seria imprescindível para os interesses comerciais portugueses em um futuro próximo.

A segunda metade do século XVII, vem inaugurar a época do efetivo e contínuo domínio português na Amazônia, sendo a fundação dos núcleos de São Luís e Belém marcos da formação urbana da região 1.

Para assegurar a posse da terra aos portugueses, em 1616, 300 colonos açoreanos desembarcam em São Luís e, em 1618, 200 casais originários de Angra desembarcam em Belém2.

Em 1627, estando Portugal ainda sob o domínio espanhol, por determinação do governador do Estado do Maranhão, Bento Maciel Parente empreende viagem à Espanha para solicitar meios de defesa e combate aos invasores que tentavam ocupar a região do delta do rio Amazonas. A efetiva colonização principia em 14 de julho de 1637, ocasião na qual o rei Felipe IV veio a criar a capitania do Cabo do Norte, denominação esta devido à existência de um cabo em terras compreendidas entre as regiões do rio Oiapoque, a foz do rio Amazonas e o rio Nhamundá,

∗ Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo – USP; Professora Titular da Cadeira de História

Medieval e de História da Civilização Ibérica da Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. 1 Renata Malcher ARAÚJO, As cidades da Amazônia no século XVIII, Porto, Universidade do Porto, 1992, p. 36. 2 AHU_ACL_CU_013, Cx 1, D. 7.

Comunicações

2 Katy Eliana Ferreira Motinha

hoje, Paru. Essa ação colonizadora resultou na expulsão dos franceses da ilha dos índios Tucujus, habitantes primeiros desta região 3.

A França, com o objetivo de expandir o seu território equinocial, veio a contestar a posse portuguesa do Cabo Norte, praticamente desde o momento em que se estabeleceu com mais segurança em Caiena, ao expulsar os ingleses e holandeses nos idos 1676, tendo em vista que o único texto que regulava os territórios coloniais na América ainda era o velho e já ultrapassado Tratado de Tordesilhas.

Em 1688, os franceses chegaram a intimidar o capitão do forte de Araguari e, finalmente, em 1697, conseguiram conquistar as fortificações do Cumaú e do Nhamundá, logo a seguir retomadas pelos portugueses.

Embora na posse física de Portugal, as terras do Cabo Norte continuaram a ser objeto de contestação e, em um clima de difíceis negociações, os portugueses obtiveram a assinatura do Tratado Provisional de 1700, o qual definia a neutralidade do território até 1701, prazo estipulado para que as duas coroas apresentassem suas argumentações. Antes de findar tal prazo, como a política externa empreendida por Portugal era firmar um pacto de aliança com a França, o governo de Lisboa cedeu às pretensões de Luís XIV e a situação de posse anteriormente provisória foi dada como definitiva, mantendo-se o estatuto de território neutro 4.

Entretanto, novamente o confuso clima da política européia, voltou a colocar Portugal e França em campos opostos. Portugal entrou na Guerra de Sucessão, ao lado da Inglaterra e da Áustria, contra a França e o arremedo de vitória obtida pelos aliados devolveu a posse legal do Cabo Norte aos portugueses, os quais, de fato, nunca haviam, deixado o território 5.

Em 1713, pelo Tratado de Utrecht, chegava-se a um acordo no qual a França declarava que “desistirá para sempre ... de todo e qualquer direito e pretensão...sobre as terras do Cabo Norte” 6.

Embora o texto fosse cristalino, o “sempre” durou pouco e os franceses não tardaram em apresentar novas reivindicações, propondo uma leitura diferente das marcas fronteiriças estabelecidas. Pretendiam que o rio Oiapoque e o de Vicente Pinzón fossem dois, e não o mesmo como é, realmente, e assim argumentavam que a fronteira deveria estar a cinqüenta léguas de onde efetivamente estava estabelecida. Ao sugerir esse novo limite, colocavam metade das ditas Terras do Cabo Norte, precisamente até ao rio Araguari, em mãos francesas. Essa nova “leitura” do tratado, insistentemente repetida pelos franceses, trouxe novamente o litígio e este só teria termo com a assinatura do Tratado de Madrid, em 1750.

É nesse contexto que podemos entender a atuação de Francisco Xavier de Mendonça Furtado nas demarcações das terras do Norte da América Portuguesa, especialmente em suas disputas com os jesuítas assim como entender as ações empreendidas por Pombal quando da assunção do ministério de D. José I, herdeiro não só da coroa portuguesa mais, também, de todas as complicadas disputas territoriais com a Espanha 7.

3 Alexandre Rodrigues FERREIRA, «Propriedade e Posse das Terras do Cabo do Norte Pella Coroa de Portugal», in

Revista do Instituto Histórico e Geográfico, t. 3, 1841, pp. 389-421 e Estácio Vidal PICANÇO, Informações Sobre a História do Amapá: 1500 – 1900, Macapá, Imprensa Oficial, 1981, p. 39.

4 A. H. de Oliveira MARQUES, História de Portugal, vol. II, Lisboa, Palas, 1984, p. 400. 5 Idem, Ibidem. 6 Apud. Max Justo GUEDES, «Os limites de Territoriais do Brasil a Noroeste e a Norte», in Portugal no Mundo, vol. 5.

Lisboa, Publicações Alfa, 1989, p. 210. 7 Uma extensa bibliografia dá conta do ministério pombalino e das inovações introduzidas na administração do

Estado do Grão-Pará e Maranhão: Hélio de Alcântara AVELLAR, História Administrativa do Brasil; a administração pombalina, Brasília, Fundação Centro de Formação do Servidor Público; Editora da Universidade de Brasília, 1983; João Lúcio de AZEVEDO, O Marquês de Pombal e sua época, Lisboa, Clássica Editora, 1990; Kenneth MAXWELL, Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996; Álvaro Teixeira SOARES, O Marquês de Pombal, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1983 e, sobretudo, Jaime CORTESÃO, Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madri, Rio de Janeiro, 1950.

Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e sociabilidade portuguesas… 3

O processo de negociação do Tratado de Madri 8, irá exigir uma nova forma de ação para a preservação das terras aos portugueses. Os frutos da magistral diplomacia de Alexandre de Gusmão patenteavam, por um lado, a necessidade de concretamente conhecer a terra para alegar a sua posse, fundamentada no conhecimento de suas características e potencialidades. Por outro, a nova configuração do território implicava, também, em uma outra relação com aqueles que colonizariam as terras que o constituíam. Implicitamente, deixavam de ser consideradas como posse do colonizador para se tornarem objeto privilegiado de uma renovada noção de conversão, fundada menos no critério religioso e mais nas virtudes da civilização, procurando conquistar aos naturais mais pela persuasão e aliciamento do que pela força. Ação, conhecimento e persuasão ideológica passarão a constituir a base da reforma pombalina na Amazônia, executada desde a administração de Francisco Xavier de Mendonça Furtado até a de João Pereira Caldas.

Essa situação justificava, portanto, as instruções de Mendonça Furtado de investir paralelamente e sem demora na formação de um novo povoado nas terras do Cabo Norte 9.

Aportando em Belém em setembro de 1751, apressa-se a lançar as bases do projeto de colonização daquela região rodeada por “maus vizinhos” e “boas terras”, como informaria em carta enviada ao Conselho Ultramarino 10. Determina que João Batista de Oliveira comande uma expedição para fundar a “nova povoação e fortaleza de Macapá” e que providenciasse instalações para abrigar os moradores e que estes deveriam se dedicar à agricultura, de forma a não “cair no abuso que está arraigado nestas terras de que só os índios são os que devem trabalhar e que a todo o branco é injurioso o pegar em instrumentos para cultivar as terras” 11.

Os colonos, aos quais se referia Mendonça Furtado, eram, também, ilhéus açoreanos, num total de 486 pessoas que desembarcaram no porto de Belém a 29 de agosto de 1751, posto que durante a viagem, 4 pessoas morreram.

Por falta de meios, o transporte de Belém para a região onde existira a fortificação de Santo Antônio se efetivou em etapas, acontecendo no período de 1o de novembro de 1751 a 25 de janeiro de 1752, o transporte de 456 ilhéus, já que os doentes permaneceram em Belém 12.

Os trabalhos para a instalação eram muitos e a correspondência foi constante ao longo dos anos, entre os comandantes, o governador, o rei D. José e seu ministro Pombal 13.

Até 1760, a ocupação da área será garantida apenas pela vila e pelas tropas móveis do Regimento de Macapá. Contudo, devido a problemas advindos da aplicação do Tratado de Madri, é assinado em 1761 mais um tratado, denominado de El Pardo, que colocava Macapá novamente sob o domínio espanhol. Portugal deveria preparar-se para defender o território ocupado.

À curto prazo, edifica-se um fortim de faxina, próximo aos quartéis da tropa, para impedir o desembarque de invasores 14. Em tratando-se de fortificação de caráter temporário, apresentava

8 Renata Malcher ARAÚJO, As cidades da Amazónia… cit., p. 105. 9 Biblioteca Nacional de Lisboa, Coleção Pombalina - POMB 626 fl. 17. AHU_ACL_CU_013, Cx. 33, D. 1754. 10 Apud Nírvia RAVENA, «”Maus vizinhos e boas terras”: idéias e experiências no povoamento do Cabo Norte – século

XVIII» in Flávio José dos Santos GOMES (org.), Nas Terras do Cabo Norte: fronteiras, colonização e escravidão na Guiana Brasileira (séculos XVII-XIX), Belém, Ed. Universitária/UFPA, 1999, pp. 63-95.

11 «Instrução que levou o capitão-mor João Baptista de Oliveira quando foi estabelecer a Nova Vila de São José de Macapá», in Marcos Carneiro de MENDONÇA, A Amazônia na Era Pombalina. 1o Tomo, Rio de Janeiro: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 1963, pp. 115-117.

12 Doc. 10. «Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado ao rei, de 25 de janeiro de 1752», Marcos Carneiro de MENDONÇA, A Amazónia… cit., tomo I, pp.207-209.

13 Assuntos que vão desde a instalação dos colonos, construção da vila, epidemias, diretrizes para o desenvolvimento da economia são tratados em um considerável corpus documental indicado na bibliografia. Tendo em vista que nosso objetivo presente não é abordar exaustivamente a ocupação e colonização das Terras do Cabo Norte, mas apresentar o contexto em que se deu a formação desse “palco” de representações culturais, remeteremos em notas apenas a indicação daquela situação específica.

14 Segundo Adler Homero Fonseca de CASTRO, «O Fecho do Império: História das Fortificações do Cabo Norte ao Amapá de Hoje», in Flávio José dos Santos GOMES (org.), Nas Terras do Cabo Norte… cit., p.164, faxina, no sentido

Comunicações

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uma série de problemas, conforme apontou Adler Homero, como as suas diminutas proporções, as reduzidas dimensões das canhoneiras e, sobretudo, por não haver nenhuma edificação interna, pois até a guarita de observação ficava fora do forte 15.

A alternativa de defesa encontrada não era a mais adequada, posto que muito modesta para resistir a um ataque por parte de invasores bem equipados. Na resolução do problema, deveria se edificar uma grande fortificação, “prova efetiva e tangível de que a coroa portuguesa era a proprietária do Cabo Norte e de que qualquer pessoa que tentasse disputar a sua posse teria de superar esse gigantesco obstáculo, verdadeiro ‘fecho do Império”’ 16.

A construção da tão almejada fortaleza só seria iniciada em 1764. Até lá, seria imprescindível desenvolver ações que viessem a contribuir para a defesa das Terras do Cabo Norte.

É neste contexto que podemos entender a decisão tomada pela coroa portuguesa quanto à marroquina Praça de Mazagão, para a resolução de dois problemas de uma só vez.

O lugar de Mazagão, situado na orla atlântica de Marrocos, aproximadamente a cerca de 10 Km de Azamor, foi conhecido desde a Antigüidade devido à segurança oferecida à navegação por sua ampla baía. Os portugueses aproveitaram sua privilegiada posição para exportar o trigo da Duquela, denominação segundo Robert Ricard, de uma confederação de tribos marroquinas de origem árabe, cujo território, no século XVI, se encontrava situado ao redor das praças portuguesas de Azamor, Mazagão e Safim 17.

Em 1541, quando os mouros conquistaram Santa Cruz do Cabo de Gué, D. João III ordenou que os portugueses abandonassem Safim e Azamor. A partir deste ano, a Praça de Mazagão foi a única fortaleza sob domínio português na costa sul de Marrocos. Há muito a manutenção da Praça custava caro aos portugueses e o assédio crescente das tribos em torno da fortaleza e os ataques do sultão Sidi Mohamed ben Abdallah, em 1769, forçaram a sua evacuação18.

Em carta de 16 de março de 1769, Francisco Xavier de Mendonça Furtado informa ao então governador do Grão-Pará, Fernando da Costa Ataíde Teive, sobre a decisão régia de abandonar a praça marroquina e a transferência compulsória de seus moradores para a Amazónia19.

De acordo com Augusto Ferreira do Amaral, em 11 de março de 1769, 14 embarcações portuguesas transportaram os valorosos mazaganistas para Lisboa, que antes da partida “destruíram as pedras sacras da igreja, encravaram as peças de artilharia, mataram os cavalos e mais gado e minaram todos os baluartes...sendo que o arrebentamento dos baluartes veio a provocar a morte de milhares de mouros, que festivamente entraram na praça” 20.

militar, são ramos finos e desfolhados de árvores, os quais, entrelaçados, formavam cercas de contenção em trabalhos de terra, cestões ou ainda feixes de madeira para servir de aterro temporário. Um forte ou fortim de faxina poderia ser feito de várias formas: barricadas de feixes de faxina amontoados, trincheiras cujas paredes eram formadas por cestos de faxina (gabiões), cheios de terra e empilhados uns sobre os outros, ou ainda construções mais permanentes, de terra solta, cuja forma era mantida por esteiras de faxina.

15 As informações do autor têm por base a Planta da Praça e vila de São José de Macapá, constante do Acervo do Serviço Geográfico do Exército.

16 Adler Homero Fonseca de CASTRO, «O Fecho do Império…» cit., p. 136. 17 Robert RICARD, «Duquela», in Joel SERRÃO (dir), Dicionário de História de Portugal, Volume II, Porto, Figueirinhas,

1985, p. 344. 18 Robert RICARD, «Le transport au Brésil de la ville Portugaise de Mazagan», in Hesperis, Archives Berbéres et

Bulletin de l’Institut des Hautes Études Marocaines, n.º 24, 1-2, Paris, 1937, pp. 139-42, especificamente a p. 139. 19 Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, de 16 de março de 1769, apud Francisco A. de OLIVEIRA

MARTINS, A Fundação da Vila de Nova Mazagão no Pará, subsídios para a História da Colonização Portuguesa no Brasil. Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 1938, pp. 5-7.

20 Augusto Ferreira do AMARAL, História de Mazagão. Lisboa: Alfa, 1989, p. 258.

Actas do Congresso Internacional Espaço Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades

Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e sociabilidade portuguesas… 5

Ao longo dos anos, Mazagão tem despertado o interesse de vários autores dos dois lados do Atlântico, como, por exemplo, Francisco Oliveira Martins, Robert Ricard, António Dias Farinha, Frédéric Maurro, Nunes Pereira, Renata Malcher de Araújo e Rosa Acevedo Marin 21. Entretanto, as informações referentes ao número de famílias e pessoas da antiga praça mazaganista, bem como as embarcações utilizadas para o seu transporte de Lisboa para Belém são totalmente desencontradas.

Os dois estudos mais recentes, ou sejam, de Renata Malcher Araújo e Rosa Acevedo Marim são os mais utilizados pelos estudiosos da região Norte do Brasil, por serem os mais acessíveis em termos materiais.

O desencontro de informações pode ser creditado ao fato de o acervo abrigado no Arquivo Público do Estado do Pará não conter todos os fólios que constituem a documentação sobre o transporte dos mazaganistas, analisados por Rosa Acevedo Marin 22 e, também, o alentado número de 12.690 manuscritos avulsos, referentes à Capitania do Pará, utilizados por Renata Malcher Araújo 23, não estarem, naquela altura, classificados e catalogados como no presente, o que levou as autoras a análises parciais, mas não de menor importância, tendo em vista constituírem-se marcos para estudos posteriores.

A documentação analisada em nossa tese de doutorado, permite comprovar a transferência de Lisboa para Belém de 414 (quatrocentos e quatorze) famílias mazaganistas, em 15 de setembro de 1769, famílias estas que vieram povoar e assegurar o domínio das terras ao Norte da América Portuguesa, estabelecendo-se, por ordenação real, em Vila Nova de Mazagão, Vila Vistoza da Madre de Deus e Belém 24.

O transporte se deu em nove embarcações, a saber: charruas de Nossa Senhora da Conceição, São José, Nossa Senhora da Purificação e Nossa Senhora das Mercês; galeão Nossa Senhora da Glória e Santa Ana da Guarda, e a fragata São Francisco Xavier e Nossa Senhora da Conceição, todos de propriedade da coroa portuguesa; e a galera São Joaquim e Santa Ana, os

21 Francisco A. de OLIVEIRA MARTINS e Antonio Maria PEREIRA, Portugal e Marrocos no século XVIII e Subsídios para

a História da Colonização Portuguesa no Brasil – A Fundação da Vila Nova de Mazagão; Robert RICARD, «Le transport au Brésil de la ville Portugaise de Mazagan»; António Dias FARINHA, História de Mazagão durante o período Filipino; Renata Malcher ARAÚJO, As cidades da Amazónia… cit., Rosa Elizabeth Acevedo MARIN, «Prosperidade e estagnação de Macapá Colonial:as experiências dos colonos», Flávio José dos Santos GOMES (org.), Nas Terras do Cabo Norte… cit.

22 “Povoamento do Gram-Pará. Famílias de Mazagão”. In: Anais do Arquivo Público do Pará, 1 (1): 13-178,1995, pp. 13-178. Os documentos editados fazem parte dos Códices Nº 197 – Listas das Famílias da Praça de Mazagão, vindas para o Pará em 1769 – Livros 1 e 2; Códice Nº 208 – Famílias de Mazagão que vão para a Vila deste nome tendo princípio em 4 de abril de 1770; Códice Nº 290 – Correspondência dos Governadores com diversos, 1775 e 1776, relações anexas aos Documentos N ] 59, 143 e 152.

23 Ver a indicação das fontes em Renata Malcher ARAÚJO, As cidades da Amazónia… cit., p. 334. 24 AHP. Códice 208. Famílias de Mazagão que vão para a Vila deste nome tendo princípio em 4 de abril de 1770;

Códice 290 Correspondência dos Governadores com diversos. AHU_CU_.013, Caixa 73, D 6195. Relaçam das Famílias da extinta Praça de Mazagão que em 1774 passaram para a Villa Nova de Mazagão, Caixa 75, Relaçam das Famílias, que em todo o anno de 1775 se transportarão ao Novo Estabelecimento da/ Villa de Mazagão. O cruzamento das citadas fontes permitiu comprovar que o desencontro no número de embarcações que transportaram os evacuados da Praça marroquina para Belém se deve a dois fatores: primeiramente, não se distinguiram as diferenças das embarcações, como demonstrado em nossa tese de doutorado, entendendo ser mera repetição da denominação da embarcação, não atentando para o fato de um ser charrua e o outro navio, ou, um ser charrua e outro fragata, tratando-se, na verdade, de embarcações distintas. Em segundo lugar, não se atentou para o fato de que era costume associarem aos nomes das embarcações diferentes santos protetores para potencializar a graça e que muitas vezes perdia-se na memória a invocação primeira, dando lugar ao seu nome “vulgar”, como, por exemplo, inicialmente Nossa Senhora da Glória e Santa Ana, e, depois, simplesmente Santa Ana, como verificara Maria Benedita ARAÚJO em «A expressão religiosa na expansão portuguesa: contribuição para um estudo», in Colóquio a Universidade e os Descobrimentos, pp. 252-266.

Comunicações

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navios Nossa Senhora do Cabo, São Francisco Xavier e Nossa Senhora das Mercês, de propriedade da Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão 25.

A informação do ouvidor do Estado, José de Melo e Albuquerque a Mendonça Furtado, falecido antes de receber a notícia, não deixa dúvidas quanto a chegada dos mazaganistas ao Grão Pará, em janeiro de 1770 26.

A transferência das famílias para o Grão-Pará foi patrocinada pela Companhia Geral do Comércio do Grão-Pará e Maranhão e pela Coroa portuguesa, com regras e objetivos definidos. Entretanto, esse empreendimento realizado pelo governo metropolitano em dois momentos - um na vinda de Lisboa e outro quando do deslocamento de Belém para a Vila Nova de Mazagão - implicou em um pesado sistema de dívidas. A Coroa portuguesa precisou recorrer a empréstimos da Companhia Geral de Comércio para pagamento tanto do transporte quanto das tenças, moradias e soldos vencidos na antiga Praça de Mazagão, como demonstram os documentos 27.

Assim, endividado, no entender de Francisco Falcon, Portugal acabou se vendo preso nas próprias malhas, posto que as reformas empreendidas por Pombal tinham um caráter acentuadamente mercantilista. Dentre as várias práticas mercantilistas citadas pelo autor para a efetivação da política comercial e colonial pombalina, destaca-se o instrumento para maximizar os objetivos do monopólio comercial que foi a criação das companhias de comércio. Procurava-se, assim, resolver três questões: o controle monopolístico da circulação, o incentivo às produções coloniais de interesse comercial e o tráfico de escravos. Para o espaço colonial da América Portuguesa, foram criadas a Companhia Geral do Comércio no Grão-Pará e Maranhão, em 1755 e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, em 1759 28.

Os mecanismos de ajuda e os auxílios prestados para a instalação das diversas famílias, assim como o papel econômico, social e militar a serem desempenhados por cada uma das pessoas que as constituíam, eram definidos em códigos de controle da administração local, como informa Rosa Acevedo Marin. A administração determinava, por exemplo, a casa para construir ou arrendar; as rações; o salário; os instrumentos; as terras a lavrar; o fornecimento das sementes; as cabeças de gado e os trabalhadores para o serviço dos colonos. Todos esses gastos eram contabilizados, minuciosamente, pela Companhia Geral de Comércio 29.

Criada oficialmente em 23 de janeiro de 1770, no governo de Ataíde Teive, Vila Nova de Mazagão não existia, de fato, o que irá ocasionar a permanência dos mazaganistas em Belém, como verifica-se nos mapaeamentos da população - os precursores dos censos - iniciados na

25 AHU_ACL_CU 013. Pará Caixa 93, D. 5601, 5602 e 5605. 1770. Anais do Arquivo Público do Pará, 1 (1): 13-

178,1995, pp. 13-178. Os documentos editados fazem parte dos Códices Nº 197 – Listas das Famílias da Praça de Mazagão, vindas para o Pará em 1769 – Livros 1 e 2; Códice Nº 208 – Famílias de Mazagão que vão para a Vila deste nome tendo princípio em 4 de abril de 1770; Códice Nº 290 – Correspondência dos Governadores com diversos, 1775 e 1776, relações anexas aos Documentos N ] 59, 143 e 152.

26 AHU_ACL_CU 013, Cx.65, D 5587. Pará, 12 de janeiro de 1770. Carta de José Feijó de Melo e Albuquerque a Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Mendonça Furtado falecera a 15 de novembro de 1769, mas seu irmão, o Marquês de Pombal deu continuidade ao projeto inicialmente planejado por ambos.

27 AHU_ACL_CU_013, Cx. 65, D. 5631. Ofício do provedor da Fazenda Real [da capitania do Pará], Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, para o [secretário de estado dos Negócios do Reino e inspector geral do Erário Régio], conde de Oeiras, [Sebastião José de Carvalho e Melo], sobre os pagamentos feitos às famílias vindas de Mazagão, através dos empréstimos solicitados aos administradores da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão. AHU_ACL_CU_013, Cx. 66, D. 5731. Ofício do provedor da Fazenda Real [e juiz de Fora da capitania do Pará], Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, para o inspector geral do Real Erário [e secretário de estado dos Negócios do Reino], marquês de Pombal, [Sebastião José de Carvalho e Melo], comunicando-lhe ter passado letra ao tesoureiro-mor do Erário Régio, Joaquim Inácio da Cruz, relativa ao segundo pagamento do empréstimo concedido pelos administradores da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, para pagamento das despesas de transporte das famílias vindas da vila de Mazagão.

28 Francisco Calazans FALCON, «Pombal e o Brasil», in José TENGARRINHA (org.), História de Portugal. Bauru, SP:, EDUSC; São Paulo, SP: UNESP; Portugal, PT, Instituto Camões, 2001, pp. 232-233.

29 Rosa Elizabeth Acevedo MARIN, «Prosperidade e estagnação…» cit., p. 10.

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Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e sociabilidade portuguesas… 7

década de 1770, onde são registrados separadamente, apontando-se a população “permanente” de Belém e a “flutuante” de mazaganistas 30.

É oportuna a lembrança de que, ainda em dezembro de 1769, fora nomeado para primeiro comandante da Vila Nova de Mazagão o capitão-mor Ignácio de Castro Moraes Sarmento, o qual tinha por missão efetuar um estudo preliminar do terreno para a construção da planejada Vila 31. O local da Vila fora sugestão do próprio Mendonça Furtado, que, em carta enviada a Ataíde Teive, determinava que a construção deveria ser efetivada nas terras situadas às margens do rio Mutuacá que permitia o acesso ao rio das Amazonas 32.

A contabilidade do investimento em Vila Nova de Mazagão, várias vezes foi efetuada pelos governadores, verificando-se que era objeto de grandes preocupações por seus custos consideráveis. Os principais encargos envolviam as obras em si, materiais e operários, assim como as despesas para o sustento dos colonos em Belém e o pagamento de quantias a eles determinadas quando da transferência de Lisboa para o Grão Pará.

A planta da Vila, inicialmente traçada pelo capitão Inácio de Castro Moraes Sarmento, foi posteriormente modificada e executada pelo engenheiro ajudante Domingos Sambucetti 33.

A construção teve início em 1770 e verifica-se que nas viagens empreendidas entre abril de 1770 a setembro de 1771, foram transportados os primeiros mazaganistas destinados não só a povoar mas, também, a iniciar os trabalhos de construção da nova Vila. As cinco primeiras relações são as únicas a conter anotações dos ofícios dos transportados: ferreiros, carpinteiros, pedreiros, serralheiros diretamente ligados aos trabalhos de construção e cirurgião, sangradores, boticário, barbeiro e sapateiros, para atendimento aos moradores 34. Não consta o registro de nenhum escravo, o que é demonstrativo de suas poucas posses. Em contrapartida, os transmigrados no ano de 1775, levavam em “suas bagagens”, 87 escravos e chama a atenção o fato de suas mulheres receberem o tratamento de “Donas”, o que não acontece com as anteriormente relacionadas, denotando, portanto, que os transportados nesse ano de 75, gozavam de uma situação econômica e, conseqüentemente social, mais elevada do que aquela de seus antecessores 35.

Os trabalhos desenvolviam-se morosamente tendo em vista que, em 5 de janeiro de 1773, o comandante nomeado para a Vila Nova de Mazagão, Lobo de Almada, informava ao governador do Grão-Pará, João Pereira Caldas, a informação de 117 casas “completas” e mais 61, “incompletas”, das quais 36 não estavam caiadas e 25 nem caiadas ou rebocadas, mas todas já habitadas. Informava, também, que iniciara a construção de mais 17 36.

A lentidão das obras se verifica, também, na construção da igreja, iniciada em março de 1772 e somente concluída em agosto de 1773 37, embora desde janeiro de 1770, o vigário capitular do bispado do Pará, Giraldo José Abranches, houvesse enviado a Mendonça Furtado,

30 AHU_ACL_CU 013. Pará Caixa 70, D 6002. 1773. Caixa 73, D 6174. 1774. Caixa 74, D 6252. 1775. Caixa 74, D

6256. 1776. Caixa 76, D 6368. 1777. 31 APP. Códice 208 – Correspondência dos Governadores com Diversos. Officio de Atayde Teive a Mendonça

Furtado, em 13 de janeiro de 1770. 32 Renata Malcher ARAÚJO, As cidades da Amazónia… cit., pp 267-268. 33 APP, Officio de Athayde Teive, em 13 de março de 1770. 34 APP, Códice 208 fls 1-8. Famílias de Mazagão que vão para a Villa deste nome, tendo principio em 4 de Abril de

1770. Informa a composição de cada família, a profissão dos homens e a idade dos dependentes. Nesse período foram transportadas 139 pessoas de Belém para Nova Mazagão.

35 APEP. Correspondência dos Governadores com diverso. Códice 290. Doc. 143 e Doc. 152 e AHU_ACL_CU_013, Cx. 69, D. 5933. Nessa correspondência de João Pereira Caldas, para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, remete a relação das pessoas empregadas nas obras de vila de Nova de Mazagão; a relação do número de casas, construídas e a construir; as casas habitadas e o hospital, bem como os trabalhos de defesa e fortificação da Praça e Barreira de São José do Macapá.

36 Arquivo Público do Pará. Códice 128. 37 Idem.

Comunicações

8 Katy Eliana Ferreira Motinha

Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, ofício no qual confirmava o padre João Valente do Couto como vigário da igreja da freguesia de Nova Mazagão, de invocação à Nossa Senhora da Assunção 38.

A demora implicava na permanência dos mazaganistas em Belém e a sua manutenção acarretava uma série de problemas para as autoridades e gastos elevados para a fazenda real 39. Entretanto, parece haver se formado um círculo vicioso. Em não se concluindo as obras da nova Vila, permaneciam os povoadores em Belém. Em lá permanecendo, implicavam em maiores gastos. Sem recursos, não se concluíam as obras e, tampouco, se efetivava o transporte para Vila Nova de Mazagão.

Apesar da precariedade das instalações da Vila, de 1770 a 1775, verifica-se o transporte de 1.051 pessoas de 242 famílias 40.

Em ofício de 5 de março de 1776, João Pereira Caldas informa a Martinho de Melo e Castro não só o número de pessoas transportadas para Nova Mazagão, no ano de 1775, mas, também, a ordem de suspensão de auxílio às famílias oriundas da Praça de Mazagão que ainda se encontravam em Belém 41.

Em 1776, muitos transportados da extinta praça portuguesa em Marrocos, já estão estabelecidos em Belém e não desejam ir para Nova Mazagão, dos quais tomamos, dentre muitos, o exemplo do requerido por Manuel Simões, “cavaleiro fidalgo da Casa de Sua Majestade”, casado com Bárbara Valente que solicitava autorização à rainha D. Maria I para permanecer como mercador, na vila de Cametá, próxima a Belém 42.

Posteriormente, em 1778, João Pereira Caldas informa a Martinho de Melo e Castro a instalação de 5 famílias mazaganistas, constituídas por 16 pessoas, que passaram a viver em um novo estabelecimento, criado fora dos limites da cidade de Belém, nos anos de 1776 e 1777 43.

A partir de 1776 não se encontram registros de transportes de Belém para Vila Nova de Mazagão. Entretanto, consultando-se o mapeamento da população da “Freguezia de Nossa Senhora da Assunção da Vila de Mazagão”, em 1778, verifica-se o registro de 310 “cabeças de família”, dos quais 248 são homens e correspondem a 80 %, e 62 são mulheres que assumiram tal posição em razão de viuvez, correspondendo a 20 % dos chefes de famílias 44.

Dentre estas viúvas, 14 % se dedicavam à lavoura e 86 % não possuía rendimento algum, o que as colocava em estado de penúria.

Verifica-se, também, o apontamento de 395 escravos, dos quais 254 eram homens, o que equivale a 60 %, abrigando a Vila um total de 1.521 pessoas.

38 AHU_ACL_CU_013, Cx. 65, D. 5593. O ofício fora datado a 12 de janeiro de 1770, altura em que Mendonça

Furtado já falecera em Lisboa. 39 AHU_ACL_CU_013, Cx. 75, D. 6291. Em ofício de 5 de março de 1774, o governador e capitão general do Estado

do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, remete para Martinho de Melo e Castro, secretário de estado da Marinha e Ultramar, cópias das ordens expedidas para evitar os prejuízos sentidos na Fazenda Real, resultado da desordem verificada com as acomodações das famílias de Mazagão existentes na cidade de Belém e com as rações de mantimentos a estas atribuídas em conformidade com as ordens régias recebidas; bem como sobre as determinações tomadas quanto à medição e concessão da farinha e outros gêneros, pela medida do alqueire, considerando a venda de produtos pela medida de paneiros como lesiva e abusiva aos interesses da Fazenda Real.

40 AHP. Códice 208. Famílias de Mazagão que vão para a Vila deste nome tendo princípio em 4 de abril de 1770; Códice 290 Correspondência dos Governadores com diversos. AHU_CU_.013, Caixa 73, D 6195. Relaçam das Famílias da extinta Praça de Mazagão que em 1774 passaram para a Villa Nova de Mazagão, Caixa 75, Relaçam das Famílias, que em todo o anno de 1775 se transportarão ao Novo Estabelecimento da/ Villa de Mazagão.

41 AHU_ACL_CU_013, Cx. 75, D. 6291. 42 AHU_ACL_CU_013, Cx. 74, D. 6271. 43 AHU_ACL_CU. Caixa 79, Doc. 6574. 1778, Maio, 7. Pará. R.elaçam das Famílias e Pessoas Mazaganistas, / que

se tem continuado em Remetter da Cidade do Pará para o / Novo Estabelecimento, que se lhe destinou nos annos de 1776, / e 1777.

44 “Mappa de todos Habitantes e Fogos que existem em cada uma das freguezias da Capitania do Pará- 1778”, fotocópia do Núcleo de Altos Estudos do Pará.

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Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e sociabilidade portuguesas… 9

Os documentos indicam o transporte de 242 famílias, constituídas por 1.051 pessoas. A diferença entre o número de famílias e pessoas registradas no censo de 1778 para

aquele de 242 famílias e 1.051 pessoas verificadas nos documentos que registram o transporte, é de 68 “cabeças de família” e 470 pessoas. Merece o relevo de que dentre a minuta de 12.690 documentos do Catálogo de Documentos Manuscritos Avulsos Referentes à Capitania do Pará, não encontrar-se registro de transporte para o ano de 1773. Tão minuciosos em seus apontamentos, não nos parece possível que deixassem de realizá-lo. O mais provável é que tenha se perdido, como tantos outros documentos ao longo da história e que o transporte tenha, realmente, se efetivado, explicando-se, assim, a diferença apontada, pois os índices de natalidade nos anos de 1776 e 1777 dos mazaganistas “flutuantes” em Belém, nos dão conta desta alteração45.

Os moradores de Nova Mazagão estabeleceram suas plantações nas ilhas Mutuacá e Pará, onde a salinização era menor, estendendo-se o cultivo para as terras às margens dos rios Preto e Maracá e do lago Juriti 46. Lavrava-se arroz, algodão, milho, maniva (mandioca) e fabricavam-se panos de algodão, que eram comercializados em Belém 47.

A economia agrícola abrigava uma malha de trocas. Os colonos vendiam sua produção para a Companhia do Geral do Comércio e dela adquiriam mercadorias importadas. No ano de 1775, por exemplo, os mazaganistas solicitavam o pagamento em fazendas secas em troca da produção de arroz. Foi autorizada a troca no valor de 400 réis o alqueire pelo equivalente em mercadorias diversas, como sal, pólvora, facões e tecidos 48. Essa transação estancava a circulação de moedas e, gradativamente, contribuía para o endividamento dos colonos nos armazéns da Companhia. Soma-se a essa situação o fato do elevado preço dos escravos, tão necessários para o sistema de produção da época, escandalizar até os próprios governantes, como pode ser verificado em ofício de João Pereira Caldas para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro 49.

Segundo Rosa Marin, há indícios de que os laços de dependência, as dívidas, a fiscalização e, sobretudo, os baixos preços pagos pela produção dos mazaganistas, os conduziram a um estado de “miséria” 50.

Em termos de assistência médica, os colonizadores achavam-se entregues à Deus e à própria sorte, pois embora nomeado para atendimento da população da Vila Nova de Mazagão, Bento Vieira Gomes recusava-se a embarcar e cumprir seu ofício 51. Bento Vieira Gomes não é exceção, posto que muitos desejavam escapar dos infortúnios que sabiam esperá-los, requerendo permissão para se estabelecer em Belém, como Inácio Freire da Fonseca, capitão de Infantaria da Companhia de Guarnição da extinta praça de Mazagão 52 ou, em outros casos, como o de Manuel Simões, cavaleiro fidalgo da Casa de Sua Majestade, solicitando autorização para permanecer como mercador na Vila de Cametá 53.

Desde outubro de 1777, em Belém, tornaram-se agudas as críticas dos defensores da extinção da Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e Maranhão, a ponto do ouvidor-geral

45 Relaçam das Famílias e Pessoas Mazaganistas, / que se tem continuado em Remetter da Cidade do Pará para o /

Novo Estabelecimento, que se lhe destinou nos annos de 1776, / e 1777. 46 Idem, p. 45. 47 Idem, p. 46. 48 Idem, p. 55. 49 AHU_ACL_CU_013, Cx. 69, D. 5945. 50 Rosa Elizabeth Acevedo MARIN, «Prosperidade e estagnação…» cit., p 57. 51 AHU_ACL_CU_013, Cx. 67, D. 5798. 52 AHU_ACL_CU_013, Cx.73, D. 6171. 53 AHU_ACL_CU_013, Cx. 74, D. 6271.

Comunicações

10 Katy Eliana Ferreira Motinha

da capitania do Pará, João Francisco Ribeiro, em grande agitação, retirar os retratos de Gomes Freire de Andrade e Francisco Xavier de Mendonça Furtado da Câmara da cidade 54.

A situação de miserabilidade dos mazaganistas será agravada no ano de 1778, com a extinção da referida Companhia Geral de Comércio que, até então, mesmo que movida por interesses comerciais, bem ou mal atendia aos colonizadores da Vila, franqueando-lhes crédito; propiciando-lhes mão-de-obra escrava, se bem que a altos preços; fornecendo-lhes mantimentos, se bem que muitos deteriorados e comprando-lhes a produção, se bem que a baixos preços 55. Os ecos desse passado de angústia e comiseração, chegam até os nossos dias, cristalizados nas petições dos desditosos povoadores.

Em correspondência de 20 de julho de 1778, os Oficiais da Câmara de Vila Nova de Mazagão, relatam à rainha D. Maria, a situação em que se encontravam 56. Os representantes reiteravam o exposto em petição anterior, evocando o sangue derramado não só por eles, mas, também pelos seus antepassados, em relevantes serviços de defesa da extinta Praça marroquina. Enfatizavam que longe de receberem a premiação como fiéis vassalos, desde a permanência em Lisboa, quando a “grande peste” ceifou a vida de quase 500 pessoas, foram encaminhados para um destino cruel.

Transportados, violentamente, para o Pará; passando quase todos para uma nova povoação, sem meios precisos para a sua subsistência, informavam que após o primeiro ano de instalação, passaram a receber apenas “a contribuição de huma ração de farinha” e, na falta desta, carne seca ou peixe, que “duplicão mais as enfermidades que padecem, de que, concervão a saude”. Argumentavam, ainda, que “em hum terreno ...inutil para a produção, nelle subsista hum Povo aquem se negou no espaço de outo anos a indespençavel providencia de ouperarios para as lavouras”. Além do mais, esse quadro fora agravado, pelo que denominavam “a tirana violencia de se lhe tirar seus filhos para soldados da Tropa paga”, o que, além de comprometer a produção, deixava ao desamparo as mães viúvas e os irmãos menores.

Alertavam a soberana para que não se desse crédito ao número de 402 escravos que lhe informavam possuir, já que neste total havia 71 menores, “que só servem para aumentar a pobreza no dispendio do diário sustento”, 74, que ainda estavam a dever e tinham muita dificuldade para efetuar o pagamento, tendo em vista que uns tantos haviam morrido, e que 257, receberam por “conta dos soldos, praças e tenças”, vencidas no “Almoxarifado da Extinta Praça de Mazagão”, os quais, juntamente com “outros gêneros”, contra as suas vontades, lhe foram dados logo que chegaram, em pagamento pela Companhia Geral do Comércio que exorbitou nos preços, de acordo com seus interesses.

Quando da divulgação do mapeamento da população, registrava-se o total de 395 escravos, indicativo concreto de que entre o espaço de tempo decorrido entre a redação da carta, em julho de 1778, e a conclusão censitária, mais 7 adultos haviam morrido, o que certamente diminuiu ainda mais a força de trabalho. Em contrapartida, passou-se de 71 escravos menores para 85, ou seja, mais 14 bocas a alimentar e menos 7 pares de braços para produzir.

Desde 1773, João Pereira Caldas constatara a necessidade de se estabelecer comunicação entre Vila Nova de Mazagão e Macapá, em razão da difícil travessia dos rios Matapi

54 AHU_ACL_CU_013, Cx. 78, D. 6462. 55 A 13 de maio de 1777, Manuel Pereira de Farias, contador geral de uma das contadorias do Erário Real, em ofício

para Martinho de Melo e Castro, informava sobre o prejuízo acarretado pelas companhias exclusivas à Fazenda Real, citando o exemplo da do Grão-Pará e Maranhão (AUH_ACL_CU 013, Cx. 76, D 6400). Ainda no mesmo ano, João Pereira Caldas relatava à Martinho de Melo e Castro as agitações ocorridas em Belém, causadas pelos defensores da extinção da Companhia (AHU_ACL_CU 013, Cx. 78, D 6462). A situação agrava-se em 1778 e é enviada carta da Comissão de Liquidação dos bens da Companhia para a Junta de Administração da mesma e as providências tomadas para a liquidação de sues bens (AHU_ACL_CU 013, Cx. 7, D 6523). A extinção da Companhia foi motivo de júbilo para representação da Câmara de Belém, a qual manifestou seus agradecimentos através de ofício (AHU_ACL_CU_013, Cx. 81, D. 6697).

56 AHU_ACL_CU 013,Cx. 80, D 6639. Carta dos oficiais Camara de Mazagão dirigida à Rainha.

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Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e sociabilidade portuguesas… 11

e Anarapecu 57. Entretanto, em 1778, a comunicação continuava a ser por via fluvial, dificultando o transporte dos doentes para tratamento em Macapá, já que na Vila contavam, apenas, com os serviços de um boticário, um cirurgião e um sangrador, como registrado no mapa da população de Vila Nova de Mazagão 58.

Digno de nota é o fato de verificar-se no mapa da população, em 1778, que dos 310 cabeças de família, 41 % se dedicam, exclusivamente, à lavoura. Esse número é acrescido de 6 % de militares que também se dedicavam à lavoura e 3 % que possuem outro ofício, mas, que complementavam seus recursos com os rendimentos de lavrador, perfazendo, portanto, 50 % dos cabeças de família que retiravam seus proventos totais ou parciais da lavoura, que depende, sobretudo, dos caprichos da natureza.

Do restante, 38 % não têm nem emprego ou ofício, certamente sobrevivendo de suas jornadas de trabalho, já que constituíam famílias próprias e, 12 %, exerciam ofícios para atendimento da população.

Os recursos financeiros ficam claros desde que se consulte a relação para pagamento das quantias devidas na extinta Praça marroquina, onde o minucioso apontador registrou ao lado da importância a ser paga, o percentual efetivamente recebido, em “escravos e fazendas pelos preços correntes”, como indica a epígrafe do documento 59. Do total de 340 famílias “civis”, 6 , ou sejam, 2 % do total, receberam ¾ partes do pagamento devido; 203, ou sejam, 60 %,receberam ½ do pagamento; 75 ou 25 %, receberam 2/3 e 56 ou 16 %, não receberam nenhum pagamento.

Dentre as 41 famílias de militares, a situação ainda é pior. Apenas 1 alferes recebeu 2/3 do que lhe era devido na Praça marroquina, o que corresponde a 2 % do total; 5, dentre os quais 2 sargentos, receberam ½, correspondendo a 12 % e 35, o que corresponde a 86 %, nada receberam.

Após a extinção da Companhia Geral do Comércio, o que restava dos pagamentos a que faziam jus, não foram pagos, tendo em vista que no ano de 1779, Frei Álvaro de Lourenço da Fonseca Zuzarte dentre outros pedidos, suplicava pelo pagamento dos soldos atrasados de seu pai, o sargento-mor Luís da Fonseca Zuzarte e de seu irmão, o capitão Salvador Nunes da Fonseca, “que serviram na extinta Praça de Mazagão” 60.

A má alimentação contribuía, certamente, para a debilidade física, que por sua vez, deixava o corpo vulnerável às doenças. Some-se a estas considerações o cerceamento do direito de abandonar a Vila em busca de tratamento, agravada com a perda de tempo no tratamento das moléstias, motivada pela demora na apreciação do pedido dos enfermos, os quais quando ministrado, já se revelava inútil, quer seja pelo adiantado estado das doenças, quer porque a morte os havia libertado de tão forte e desumano jugo.

Em 8 de outubro de 1778, João Pereira Caldas informava a Martinho de Melo e Castro das queixas dos antigos moradores da extinta Praça de Mazagão, e solicitava providências as quais, certamente, dependeriam da avaliação oficial das condições dos mazaganistas, averiguações estas que reiteravam o pedido em ofício de 30 de outubro 61.

57 AHU_ACL_CU_013, Cx. 69, D. 5938. 58 De acordo com AHU_ACL_CU_013, Cx. 65, D. 5599, em janeiro de 1770, Francisco Martins da Costa, recebe a

botica para seu ofício na Vila Nova de Mazagão. Na lista dos transportados para a nova Vila, é agregado da 313ª família. Constamos que seu pai, João Batista Neves, era o boticário da Praça de Mazagão, e que fora listado para receber seu ordenado de boticário, cargo este criado pelo Conselho Ultramarino desde 1721, segundo Carlos da Silveira, «As Boticas a bordo das naus de Quinhentos», in Colóquio A Universidade e os Descobrimentos, Lisboa: Universidade de Lisboa/Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993, p. 244.

59 APEP. Códice Livro 2 fls. 1-26. Relaçaó das Familias, q’ vaó estabelecer-se por ordem de S. Magestade, e rateyo do q’ o mesmo Snr’ lhes manda pagar na Cidade de Belém do Gram Pará pelos Adm.es da Comp.a Geral em escravos e fazendas pelos preços correntes por conta dos soldos, tenças, moradias, e alvar´z q’ venceraó na Praça de Mazagaó.

60 AHU_ACL_CU_013, D 6749. 61 AHU_ACL_CU_013, D 6650.

Comunicações

12 Katy Eliana Ferreira Motinha

Em 28 de novembro de 1778, Julião Alvares da Costa, cirurgião-mor da Vila de São José de Macapá, certificava a gravidade da situação em que se encontravam os desditosos mazaganistas 62.

Na época da certificação, encontravam-se na Vila de Macapá, vinte mazaganistas para tratamento e apresentavam um grave quadro.

Sem solução dos problemas anteriormente relatados, os oficiais da Câmara da Vila de Nova Mazagão, em 5 de fevereiro de 1779, voltaram a suplicar às autoridades portuguesas, em Lisboa, pelo fato da população encontrar-se tocada pela pobreza, fome, doenças e mortes, em decorrência do “efetivo contajo originado do terreno”, que deixava “na aspareza daquelles matos”, “aleijados...e as Viúvas e orfãs dezemparadas com a perda de seos Maridos, e pais (...) e os demais moradores já tão arruinados e vivendo a mayor parte delles ao rigor do tempo, sem meyos de poderem reparar as suas cazas”, suplicavam, mais uma vez, a permissão régia para se estabelecerem em outro local.

Nos infortunados anos de 1778 e 1779, os mazaganistas não puderam contar com o atendimento dos homens, em cujas mãos estavam seus destinos, nem, tão pouco, com a assistência da Igreja, a quem faltavam intermediários divinos para atendimento dos fiéis da Amazônia. O que restava aos infelizes moradores? Seus medos e angústias procurando bastarem a si próprios na intermediação com o divino.

Neste triste e grave quadro, nada se aplica melhor que a assertiva de Robert Muchembled, para quem, a angústia, a insegurança física e mental, faz com que os homens estabeleçam múltiplos laços de solidariedade. Primeiramente, entre eles, depois com a divindade, propiciando um terreno fértil para manifestações da cultura popular 63.

Recorda o autor, que tal como apontou Lucien Febvre, “Peurs toujours, peur partout” 64. Medos reais ou imaginários acompanham o homem desde sempre. Dentre os medos reais, destaca-se o medo às doenças e à morte. Cada um é um doente em potencial, que depende do sabor da sorte para escapar do toque da negra ceifeira. Recorda-nos, também, o medo da fome, sobretudo em grupos sociais onde as bases materiais sejam muito frágeis, fundamentadas na agricultura, totalmente tributárias das variações climáticas e da multiplicação de bocas a nutrir, como é o caso da nossa Vila Nova de Mazagão.

Muchembled enfatiza que no momento em que os homens se sentem abandonados pelo Estado e pela Igreja, se voltam para si próprios, buscando estabelecer a segurança nas relações humanas, estabelecendo-se uma malha de solidariedades sociais. Exemplifica o autor, que tal como são sobrepostas camadas sucessivas de roupas para se proteger do frio, assim também vão se estabelecendo círculos sucessivos de relações humanas em busca de proteção e segurança 65.

O primeiro círculo de solidariedade é a família, sem dúvida o principal local de relações afetivas. Enquanto unidade de produção e de consumo, conjuga esforços para a sua própria sobrevivência. Composta, basicamente por pais e filhos, estende-se aos avós, irmãos e irmãs casados, aos primos, podendo juntar-se à família natural, outros tantos agregados, em face de determinadas ocorrências.

Enquanto instituição primeira, funcionalmente, serve de escola para as crianças, de casa de correção para os desvios ocasionais, complementa a função da Igreja na formação de princípios morais e religiosos, reprodutora de relações sociais, na medida em que possibilita às crianças a imitação dos pais, impondo aos jovens o estilo de vida dos mais velhos.

62 AHU_ACL_CU_013, D 6671. 63 Robert MUCHEMBLED, Culture Populaire et Culture des Élites dans la France Moderne (XVe – XVIIIe siècle), Paris,

Flamarion, 1976, p. 22. 64 Robert MUCHEMBLED, Culture Populaire… cit, p. 31. 65 Idem, Ibidem, p. 44.

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Vila Nova de Mazagão: espelho de cultura e sociabilidade portuguesas… 13

Por outro lado, na opinião do citado autor, traz em seu âmago todo um conteúdo emocional e sentimental estabelecidos no amor mútuo de seus membros. Protege dos perigos, enraíza o indivíduo em seu meio social, sendo indispensável no estabelecimento da vida normal. Infelizes os celibatários, as viúvas, os órfãos, as crianças abandonadas, a quem a má sorte privou de família. Tem menos chances de sobreviver e, conseqüentemente, pouca ou nenhuma possibilidade em aspirar a ascensão a um segundo círculo de solidariedade onde se realizam as trocas afetivas e de ajuda mútua, ou seja, o parentesco artificial. São as confrarias, irmandades, corporações de ofícios que vemos multiplicar desde a Idade Média 66.

Essas associações diversas entrecruzam os laços de solidariedade. Organizam festas, jogos, banquetes ou refeições comuns, procissões, representam mistérios. Mesclam-se o sagrado e o profano na busca de proteção.

Na Vila Nova de Mazagão, no século XVIII, em nossa interpretação, as ações não foram diferentes. A população transferida para o Vale Amazônico, todavia, não era exclusivamente africana ou do continente europeu. Havia entre os emigrados para Vila Nova de Mazagão, algumas pessoas originárias dos Açores, especialmente das ilhas de São Miguel, Faial e Gracioza, razão pela qual buscaram reproduzir práticas e representações que lhes chegaram pelos lentos e perenes caminhos da cultura e da sociabilidade encenadas na Festa ao Espírito Santo. Trilhar esses caminhos em busca de sua historicidade foi uma gratificante e agradável viagem.

Constatamos que os devotos mazaganenses 67, mesmo sem o saber, reproduzem fragmentos do culto ao Espírito Santo, muito próximos daqueles registrados nas fontes dos séculos XVII e XVIII, em Portugal. As imagens e representações reunidas na festa do Espírito Santo, em Mazagão Velho, são vivências vigorosas daquele festivo culto, no século XVIII, na então Freguesia de Nossa Senhora da Assunção da Vila Nova de Mazagão.

O problema que se nos apresentava consistia em recompor a forma como esta determinada realidade social foi construída pelo grupo que a criou, pois as práticas culturais não são imagens descarnadas e, esta estrutura, quase imóvel, é resultante de processos culturais que apresentam linguagens historicamente elaboradas no tempo da longa duração, tão caro a Braudel.

Como afirmou Peter Burke, “(...) cada vez mais historiadores estão começando a perceber que seu trabalho não reproduz o ‘que realmente aconteceu’” 68. Portanto, temos consciência da possibilidade de resgatar imagens muito próximas das festas realizadas em Vila Nova de Mazagão, no século XVIII, mas não a recuperação dos fatos reais. Além do que, esta parece ser uma questão que não é colocada mais em dúvida, pois tanto a escrita da História como a escolha de seu objeto, são feitas a partir de um ponto de vista muito particular. Assim, as visões de mundo do historiador, são oriundas de uma forma indireta da percepção da realidade e variáveis de acordo com a sua opção de interpretação. Há que se considerar, ainda, que o espelho reflete imagens reais, mas não abarca todo o quadro onde estas imagens estão inseridas, apenas uma pequena parte refletida.

Em Portugal, tanto em terras continentais quanto insulares, em busca de proteção e auxílio, os homens se associaram em confrarias e irmandades. Documentos abrigados no Arcebispado do Pará nos dão conta da existência, no período de 1773 a 1884, de inúmeras irmandades e confrarias como, por exemplo, as de Santa Rosa de Lima, Sant’Ana, São Benedito,

66 Idem, Ibidem, p. 49. 67 Cumpre esclarecer que “mazaganistas” são aqueles compulsoriamente transportados da Praça marroquina e,

“mazaganenses”, os nascidos em Mazagão, em sua grande maioria, descendentes dos primeiros. 68 Peter BURKE, «A História dos Acontecimentos e o Renascimento da Narrativa», in A Escrita da História: novas

perspectivas, São Paulo, Editora UNESP, 1992, p. 337.

Comunicações

14 Katy Eliana Ferreira Motinha

Nossa Senhora do Rosário, São Francisco, Nossa Senhora do Monte, Bom Jesus dos Passos, Santíssimo Sacramento e Irmandade do Espírito Santo dos Cativos 69.

Desde metade do século XVII, progressivamente, expandiram-se, tanto as diretrizes emanadas do Concílio de Trento, como as instituições encarregadas pela melhor formação do clero, o que muito contribuiu para a efetivação do projeto reformador. À medida em que o clero se instruía, afastava-se cada vez mais dos usos e costumes dos fiéis que lhes estavam sujeitos, ficando claramente definidos os dois grupos que formavam a cristandade: o dos clérigos e o dos leigos 70.

Objetivando reformar as práticas religiosas, na Idade Moderna, a Igreja, simultaneamente, recorreu ao ensino, à persuasão e à ação direta sobre os fiéis, através da vigilância e da repressão. Entretanto, no século XIX, visando o fortalecimento do poder eclesiástico e o enquadramento dos fiéis aos padrões tridentinos, os bispos tomaram uma série de medidas práticas, dentre as quais duas têm especial relevo: eliminar os elementos considerados profanos no culto religioso, o que significava depurar a religiosidade popular e fazer com que o clero assumisse a total direção de culto e das associações religiosas, de forma a poder utilizá-las como instrumento de catequese popular 71.

Em Belém, desde 1772, objetivando alcançar a doutrinação, necessária à purificação das práticas populares, o bispado, “para bom serviço à Religião e a sociedade”, contava com o apoio do Presidente da Província para imprimir e colocar em circulação, a 3a edição do Catecismo da Diocese, aprovado pela repartição da Instrução Pública, para distribuição nas escolas primárias 72.

Os documentos que se reportam às irmandades e confrarias do Grão-Pará, no século XVIII, apontam a existência de cargos de juiz e mordomos como naquelas portuguesas da mesma época 73. Algumas associações, como, por exemplo, a irmandade do Santíssimo Sacramento e as confrarias de São Francisco e a de Bom Jesus dos Passos, tinham, inclusive, seus compromissos aprovados pela Igreja 74.

A documentação nos leva a inferir que, embora não tenhamos encontrado nenhum indício de aprovação de estatutos ou compromissos, as irmandades e confrarias de Santa Rosa de Lima, Sant’Ana, São Benedito, Nossa Senhora do Rosário dos Brancos, São Francisco, Nossa Senhora do Monte e Santíssimo Sacramento, deveriam seguir as diretrizes diocesanas, não havendo qualquer tipo de restrição quanto às suas festas anuais de seus patronos, constituídas por atos devocionais que iam de encontro aos cânones da Igreja: novenas, vésperas, missa e “Te-Deum Laudamus”, tendo guarda de honra às portas das igrejas 75.

Entretanto, na mesma altura, havia associações que não obedeciam às determinações do episcopado, como, por exemplo, a Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos. Intimada a apresentar ao bispo o Livro das Atas, enviou, apenas, o Livro Compromisso, “sob o pretexto de que a autoridade religiosa nada tem a ver com as irmandades” 76.

A distinção da confraria ou irmandade pela cor de seus membros, é indicativa da duplicidade das associações sob a invocação do mesmo orago, como as de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Brancos e Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, São Benedito

69 Arquivo do Arcebispado do Pará – AAPA. Cx. 310. D. 20, D. 60, D. 77, D. 177,D. 187, D. 192, D. 194, D. 206, D.

22, D. 227, D. 257, D. 275, D. 298, D. 310, D. 325, D. 347, D. 355, D. 362, D. 363, D. 364, D. 365, D. 380, D.385, D. 389. Cx. 349. D. 63, D. 158. Cx 387. D. 17, D. 19, D.20,

70 Jean DELUMEAU, O Cristianismo vai morrer?, Lisboa, Bertrand, 1981, p. 82. 71 Riolando AZZI, O Altar unido ao Trono: um projeto conservador, São Paulo, Ática, 1992, pp. 32-33. 72 AAPA. Cx. 310, D. 250. 73 AAPA. Cx. 310, D. 298, D. 337. 74 AAPA. Cx. 310, D. 14, D. 22, D. 60, D. 177. Cx. 349, D. 158. 75 AAPA. Cx. 387, D. 19, D. 22, D. 227, D. 325, D. 353, D. 356, D.357, D. 359, D. 363, D. 368, 380. 76 AAPA. Cx. 310, D. 375.

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dos Homens Brancos e São Benedito dos Homens Pretos, Divino Espírito Santo e Divino Espírito Santo dos Cativos 77.

Os documentos abrigados no Arquivo da Arquidiocese do Pará, não deixam dúvidas quanto à existência de confrarias e irmandades nas áreas circunscritas ao bispado do Grão-Pará, no século XVIII, da qual a recém criada Vila Nova de Mazagão fazia parte. Se em Belém, sede do bispado, muitas instituições exerciam suas práticas sem terem estatutos ou compromissos aprovados, a distância certamente facilitaria a criação de uma confraria na citada freguesia, como aquelas francesas estudadas por Pierre Duparc 78.

Entretanto, se a distância propiciou o livre exercício, naquela época, em contrapartida, essa mesma falta de controle por parte das autoridades eclesiásticas contribuiu para que, mesmo indiretamente, nos chegassem algum registro de suas práticas.

Entretanto, e se, ao longo da História, a denominação original do grupo associado para os devotos festejos e ajuda mútua passou a ser o de Comissão Organizadora, sua função, no entanto, apresenta significativas semelhanças que nos recordam a função das anteriores confrarias, como, por exemplo, a própria organização da festa; o princípio de a escolha do substituto de um falecido membro obrigatoriamente fazer-se no seio da família do morto; a destinação dos recursos advindos do leilão dos donativos para atender às necessidades de tratamento médico; alimentar ou outro, desde que autorizado pela Comissão, devidamente registrado em ata.

As Visitas Pastorais de Dom Frei João de São José Queiroz, empreendidas entre os anos de 1761 a 1763, evidenciam o desejo de depuração de muitas destas práticas religiosas: “...Estou bem mortificado, porque a miséria dos costumes me faz lembrar ...como diz a escritura...subúrbios de Gomorra, mui próxima em vizinhança de Sodoma” 79.

Quanto às representações festivas, recorda que São Tomas era de parecer que da “histrionia ou arte de representar” pode-se fazer bom ou mau uso, como acontece na América com “as comédias reputadas por ato de religião” 80.

Alguns anos mais tarde, precisamente em 1788, Dom Frei Caetano da Anunciação Brandão, bispo do Grão-Pará, revela pensamento semelhante, em ofício dirigido ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, quanto à conduta dos membros da Confraria do Espírito Santo:

(...) Ha aqui huã Confraria denominada o Imperio do Espírito Santo, de natureza totalmte alheia das mais q a Igra e os Principes costumão aprovar. Compoem-se de hum Imperador, e alguns Mordomos, porem so aquelle he figura considerável, e por isso mesmo a que todos, sem excepção, dezejão fazer, nesta Comedia ao Divino. Não me refiro as irreverências; e profanações que se comettem nos Templos com o pretexto de render obsequio a 3a Pessoa da Sma Trindade, porque as considero notórias a V. Exa. Digo somte q he preciso q os Prelados tenhão confundidas todas as ideas do Culto Ecclesiastico pa deixarem de combater semelhante extravagância (...). Mas sobretudo o que mais escandaliza he o abuzo q s faz das esmolas, com q o Povo contribue (...) se servem dellas pa se vestirem amgnificamte, e fazerem esplendidos banquetes, seguidos ordinariamte de mil excessos de bebida, e outros não menos prejudiciais a Religião e a Sociedade (...). Isto, Exmo Snr, he

77 AAPA. Cx. 310, D. 298, D. 380.Cx. 387, D. 17 e D.19. 78 Vide Pierre DUPARC, «Confréries du Saint-Esprit et Communautés d’Habitants au Moyen-Age», in Revue Histoire

du Droit Français et Etranger, 4a s, 36, Paris, 1958. 79 D. Frei João de São José QUEIROZ, Visitas Pastorais. Memórias (1761-1762-1763), Rio de Janeiro, Ed. Melso

Sociedade Anônima, 1961, p. 1961. 80 Idem, Ibidem, p. 410.

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quazi geral nas Freguesias de brancos, onde se acha estabelecida a mencionada Confraria: e he tam grande a cegueira do Povo, q sabendo mto bem o estranho e injusto consumo que tem os effeitos da sua beneficencia, continuão sempre a dar (...) persuadidos (...) q obrando o contrario serão logo vitimas da cólera da Divinde: Sobe a tal excesso o fanatismo q já chegarão a dizer q eu não admitia senão duas Pessoas na Trindade, isto so por dar huas pequenas providencias, com q se evitassem alguas profanações (...) peço q prohiba debaixo de rigorosissimas penas tiraremse esmolas pa semelhante fim, e querendo os Imperadores festejar o Divino Espírito Santo o fação a sua custa (...) 81 Grifos nossos.

O texto não deixa qualquer dúvida sobre a existência de confrarias do Espírito Santo em

inúmeras freguesias do Grão-Pará, sem estatutos ou compromissos aprovados pelas autoridades civis ou eclesiásticas.

Verifica-se, também, a origem eminentemente popular destas práticas e representações, cristalinamente definidas no discurso. Os recursos para a festiva celebração são oriundos das “esmolas” dadas pelo “povo”, o qual em sua “cegueira”, mesmo sabendo do “estranho e injusto” consumo que propiciam, continuam a bancá-lo, levados pelo temor da “cólera da Divindade”, em caso de quebra do contrato sobrenaturalmente estabelecido e arraigado em seu imaginário, ao longo dos tempos histórico e social.

O caráter consuetudinário e a organização primitiva, mesmo rudimentar destas confrarias, não despertaram o interesse das autoridades, por, oficialmente, não existirem. Dentre os milhares de documentos abrigados no Arquivo Histórico Ultramarino, apenas o citado ofício a elas se reporta, e, mesmo assim, por serem consideradas objeto de escândalo, ainda mais por ações de “brancos”, dando motivo à repressão, pelo “bem da sociedade e da religião”, enquanto purificadora de maus costumes.

A “Comédia”, para o representante da elite eclesiástica, é farsa, é engano. Para os fiéis, é representação do Império celeste na terra, e, de renovação do contrato bilateral, que assegura ao votante, crédito por parte do divino mediador diante do pagamento festivo da promessa.

“Irreverências” e “profanações” eram, certamente, as “danças e tambores”, que não mais abrigadas na açoreana legislação de 1514, deviam, agora, ser depuradas, tendo em vista não se enquadrar no “culto eclesiástico”.

Escandalizava o banquete comunal que, nesta ocasião, permitia a todos, ao menos uma vez por ano, saciar a fome causada pelas más colheitas. Escandalizavam os excessos do vinho, que lhes permitia esquecer que, no dia seguinte, a miséria e a doença seriam, com toda a probabilidade, as mesmas companheiras; uma vez que muitos fiéis consideravam-se abandonados, tanto da parte de Deus quanto do Estado português. Mas, o que não escandalizava, porque não se via, era a esperança recôndita nos corações de todos, de se irmanarem na festiva devoção do ano que viria.

A referência à lei açoreana deve-se ao fato de que entre a população transferida da Mazagão marroquina encontrar-se um significativo número de pessoas provenientes do arquipélago açoreano, especialmente das ilhas de São Miguel, Terceira e Faial, em sua maioria, agregados, demonstrativo de sua inserção nas franjas do tecido social 82.

O tráfego comercial estabelecido entre as ilhas dos Açores, Madeira e Mazagão, no período de 1570 a 1670, originou uma das grandes rotas comerciais portuguesas, permitindo o escoamento da produção agrícola portuguesa, sobretudo, do trigo que abastecia os navios que partiam das ilhas de São Miguel e Terceira, o que, historicamente, dá suporte à transferência dos

81 AHU_ ACL_CU 013, Cx. 97, D. 7749. 82 Conforme Anais, pp. 20, 22, 25, 31, 38,108, 109, 110 e 111.

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ilhéus açoeranos para a fortaleza marroquina, como podemos constatar nos estudos de Frédéric Marrou.

Temos por certo que até 1761, a ilha Terceira continuava o comércio com os mazaganistas, pois Francisco Ferreira Drumond refere-se ao cancelamento do envio dos navios carregados de trigo, em decorrência dos flagelos causados pelas erupções vulcânicas 83.

Documentos abrigados no Arquivo Histórico Ultramarino, como já infomamos, são depositários das queixas dos desditosos mazaganistas na Vila Nova de Mazagão, quanto à sua miséria material e o lastimável estado da saúde de grande parte da população, atestada pelas autoridades nomeadas para esclarecimento da “mais pura verdade” 84.

Em 1783, a Câmara de Vila Nova de Mazagão, reiterava aos governantes portugueses, os apelos feitos nos últimos três anos, período em que as precárias condições de vida foram agravadas, mediante a escassez de grãos e a grave epidemia que sobre eles se abatera, pois fome e doença sempre caminharam juntas ao longo da História.

Assinavam o ofício enviado à soberana portuguesa, Manoel Gonçalves Neves, juiz, relacionado no censo de 1778 como sem emprego e sem ofício; Mathias Botelho, juiz e alferes auxiliar; Antônio Lourenço de Abreu, vereador e alferes auxiliar; João Antônio de Siqueira, vereador e “fiador de panos”; Francisco Xavier Videira, vereador e alferes auxiliar e Luiz da Fonseca Neves, procurador e lavrador 85.

No ofício, enviado pela mesma Câmara no ano anterior, 1782, constava a assinatura de Frncisco Barriga, vereador e capitão miliciano.

Verificamos que a compor a Câmara mazaganese, estavam membros das famílias Videira e Barriga, o que remete a dois de nossos questionamentos, caso se considere tanto o fato de aqueles que, na atualidade, ocupam as principais funções nos festejos, quanto na própria estrutura do evento festivo, abrigarem imagens cristalizadas no tempo da longa duração.

Os condicionantes históricos que facultam a permanência, primeiramente, do domínio do evento social, se assim o podemos dizer, pelos Videira e Barriga, encontram sua justificativa no fato de muitas confrarias e irmandades portuguesas, tanto continentais quanto insulares, estarem ligadas, intimamente às Câmaras, quer seja no que se refere à sua constituição, enquanto irmãos ou confrades, quer seja quanto à destinação de recursos para a realização de ritos religiosos como festas e procissões.

No bispado do Grão-Pará, verifica-se que, em 1880, as autoridades eclesiásticas chegaram ao limite máximo da tolerância quanto às ações das irmandades e da Câmara, como se percebe nas determinações emanadas da autoridade episcopal no que se refere ao Círio, em honra de Nossa Senhora de Nazaré:

(...) que festa alguma poderá ser feita (...) como a quer celebrar a

falsa irmandade, isto é, isto é, sem padres, independente do Bispo, sustentando isto ser um direito seu (...) trasladações solenes (...) são actos do culto publico do catholicismo, ou então devemos renunciar a linguagem humana como tendo perdido toda a significação (...) Faltaria assim se estivesse comvencido de que o Cyrio é uma cerimônia civil, uma passeata, que faz parte dos regozijos públicos e profanos (...) quanto a razão allegada de ser uma tradição popular, também as festas religiosas na ermida o são, todavia V. Exca reconhece que a autoridade religiosa pode, dados certos casos, suspender as dictas festas (...) já tinha entrado

83 Francisco Ferreira DRUMMOND, Anais da Ilha Terceira, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e

Cultura, 1981, Vol. II, pp. 288-289. 84 AHU_ ACL_CU 013, Cx. 88, D. 7161. 85 AHU_ ACL_CU 013, Cx. 90, D. 7346.

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em acordo com o encarregado da festa (...) mas tendo se desfeito esse acordo, com a maior sem razão e injustiça e perseverando a V. Exca dar seu apoio official para que se celebre essa festa religiosa sem a intervenção do clero, sem a dependência do Bispo, vejo-me na dolorosa necessidade de manter a prohibição do anno passado... 86

Como percebeu Eni Orlandi, o discurso é palavra em movimento, prática de linguagem e,

como tal, a partir da análise do discurso, pode observar-se o homem falando, permitindo-se compreender, enquanto trabalho simbólico, não apenas o homem como a sua história, constituindo-se, portanto, em instrumento necessário para estabelecer a relação existente entre o homem e a realidade social e historicamente vivida 87.

A análise do discurso, revela que se tratava de fortalecer a instituição eclesiástica, garantindo-lhe autonomia no exercício de suas funções especificamente religiosas; em razão de as autoridades civis considerarem, nesta época, a instituição eclesiástica como um departamento de Estado, em força da tradição do Padroado que lhe permitia indicar o nome de padres e bispos, daí abstraindo a idéia de considerar que poderia imiscuir-se em assuntos referentes às atividades apostólica, como percebeu Riolando Azzi 88.

Tendo em vista que as procissões e traslados aconteciam em vias públicas, havia um cruzar de competências em relação aos atos nelas praticados, enquanto espaço profano, mas, também sagrado, pelo caráter extraordinário de sacralização quando dos eventos que externavam práticas ligadas à Religião, tanto institucional quanto popularmente praticada, conforme afirmativas de François-André Isambert 89.

Tratava-se, portanto de se estabelecer limites de competência. Enquanto espaço sacralizado, estavam os eventos sob a jurisdição episcopal, mesmo que financiados pelas autoridades civis, cuja jurisprudência cabia, apenas, em eventos públicos ordinários.

Tanto em Portugal quanto no Estado do Pará e Rio Negro, as despesas de muitas procissões cabiam as Câmaras, sobretudo as determinadas pelo rei. Entretanto, a procissão de Corpus Christi, segundo Maria Helena da Cruz Coelho, era a festividade onde “a dignidade dos que governam projecta-se no seu posicionamento junto do sagrado” 90. Desde a Idade Média, cabia à Câmara não somente as despesas como a organização do sagrado cortejo, estabelecendo desde a ordem em que deveriam seguir as representações das corporações de ofício, até quem deveria conduzir as varas do pálio e as lanternas. Francisco Ferreira Drumond informa que, nos Açores, nas procissões de Corpus Christi havia “figuras profanas e dansas”, que se faziam sob o comando “majestático do juiz de vara” da Câmara 91.

Não sabemos se nestas procissões em Belém, em 1874, o cortejo sagrado apresentava a mesma configuração e práticas similares àquelas referidas açoreanas. Entretanto, a documentação consultada nos informa que a procissão se tornou objeto de dissensão entre o bispo e o presidente.

Em ofício de 2 de junho de 1874, D. Sebastião Borges de Castilho, evoca o fato de que “sendo costume” o Presidente e “mais autoridades civis (...) assistir (...) esse solenissimo ato do culto catholico”, julgava seu dever informar que, por motivos de “força” maior” o mesmo não poderia se realizar no dia 4 do mesmo mês 92.

86 AAPA. Cx. 387, D. 20. 87 Eni Puccinelli ORLANDI, Análise de discurso, Campinas, SP, Pontes, 2000, pp. 15-18. 88 Riolando AZZI, O Altar unido ao Trono… cit., p.32 e 33. 89François-André Isambert, Le sens du sacré: fête et religion populaire, Paris, De Minuit, 1992, pp.110-111. 90 Maria Helena da Cruz Coelho, História Medieval de Portugal. Porto: Universidade Portucalense, 1991, pp. 64-65. 91 Francisco Ferreira DRUMMOND, Anais… cit., Vol. II, pp. 123-125. 92 AAPA. Cx. 310, D. 381.

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Considerando os grandes e complicados preparativos, deduzimos que as ações e despesas da Câmara deveriam ter se iniciado há muito tempo e, também, o fato de o povo aguardar por aquele evento considerado o maior do ano, devem ter levado Pedro Vicente de Azevedo ao desespero, pois tinha em cálculo a repercussão negativa para sua administração o fato de se cancelar a procissão. Deve ter enviado ao bispo, imediatamente, um outro ofício, do qual não conhecemos o texto, mas temos certeza que suas palavras não tiveram o efeito por ele esperado, há julgar a resposta de D. Sebastião, no dia 3 do mesmo mês 93.

Declara, no início, que se assim o faz, é muito mais em consideração à sua autoridade e não por julgar-se obrigado a fazê-lo, posto que a procissão era assunto “de exclusiva competência da autoridade eclesiástica, cabendo-lhe apenas as despesas que se fazem nessa ocasião”, evocando a Leis e Regimento que definem os encargos por parte da Câmara, apenas pela “parte material” da solenidade. Em seu entender, “Qualquer outra interpretação seria absurda desde que os membros da Camara Municipal não são padres”.

No mesmo tom imperioso, acrescenta que “se os padres não estão obrigados a acompanhar procissões feitas por irmandades, como V. Exa reconheceu (...) a mesma senão maior razão milita na questão presente”.

Não podemos deixar de evocar, literalmente, as palavras do bispo, pois consideramos que elas têm mais força na expressão do crítico e grave encaminhamento e do terreno em que tais discussões se desenvolviam. Argumentando que “ha prescrições litúrgicas, que devem ser observadas nas procissões (...) ninguem ousará negar a competência exclusiva da Igreja em materias litúrgicas”. Considera, ainda que “(...) se a autoridade civil pretende resolver questões liturgicas tornar-se-lhe-há impossivel d’ora em diante o exercicio do Culto Catholico entre nos”.

Patenteando o poder por ele exercido, e, objetivando minar qualquer possibilidade de realização do cortejo sem o aval da Igreja, D. Sebastião assim se pronuncia:

(...) se a Câmara Municipal julga ter obrigação legal imprescindivel

de fazer a procissão de Corpus Christi, empregue os meios a seu alcance para realizar tal intento.

Acho-me porem na impossibilidade de auxilial-a neste empenho, e não me consta haja nesta capital sacerdotes, que possam acompanhar a mencionada procissão no dia 4 deste mez.

Não derroguei, nem infringi lei alguma, ao menos conhecida pois até agora não há legislação vigente no Imperio, que regule as procissões e a liturgia do Culto Catholico.

Entrego estas considerações ao criterio de V. Exa de parte das arguições da Camara Municipal acerca do meu tom imperativo para refutal-as descabidas e sem sabor”. (grifos nossos)

As tensas palavras não deixam dúvidas de que a discussão girava em torno da afirmação

de uma Igreja institucional e, hierarquicamente, acima de todas as variações populares do catolicismo, independentemente ou até contra os interesses políticos locais, de forma a preservar a fidelidade ao espírito tridentino emanado de Roma, como observa Riolando Azzi 94.

Temos por certo que a procissão não se realizou naquele ano de 1874, registrando os documentos os mesmos interditos para os anos de 1877 e 1878. Pela repetição do texto nos dois citados anos, nos parece plausível que, no período anterior, situado entre a primeira interdição, de 1874, e a última registrada, em 1878, a procissão de Corpus Christis não aconteceu, havendo a proibição se repetido, dado a redação do texto: “Subsistem os mesmos motivos que nos anos

93 AAPA. Cx. 310, D.385. 94 Riolando AZZI, O Altar unido ao Trono… cit., p.38.

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anteriores impediram de fazer-se a procissão de Corpus Christi d’acordo com a Lithurgia do Culto Catholico”.

No que se refere à Vila Nova de Mazagão, as repetidas queixas dos malditosos mazaganistas quanto ao lastimável estado de miséria e fome em que viviam, acrescidos das epidemias que sobre eles se abatiam - pois fome e doença sempre foram inseparáveis companheiras ao longo da História - nos dão conta da existência da Câmara, como, também, de sua composição.

Ao cruzarmos as fontes documentais, foi possível determinar o cargo ou função desempenhada pelos representantes que apresentaram suas queixas em ofício de 18 de março de 1783. Nele, constavam as assinaturas de Manoel Gonçalves, juiz da Câmara e, apontado no censo de 1778, como sendo sem emprego ou ocupação; Mathias Botelho, juiz e alferes auxiliar; Antônio de Lourenço de Abreu, vereador e alferes auxiliar; João Antônio de Siqueira, vereador e “fiador de panos”; Francisco Xavier Videira, vereador e alferes auxiliar e Luiz da Fonseca Neves, procurador e lavrador.

Do ofício enviado no anterior ano de 1772, constava assinatura de Francisco Barriga, apontado como lavrador de bons rendimentos e possibilidades, no censo de 1778.

Francisco Barriga e Francisco Xavier Videira, membros da Câmara de Vila Nova de Mazagão, despertaram nosso interesse pelo fato de, na atualidade, duas famílias suas descendentes, abrigarem os dois conjuntos de coroas, cetros e salvas utilizados na festa do Espírito Santo, anualmente.

Cabia a eles e seus companheiros de vereança deliberar sobre os assuntos pertinentes à vida de Vila Nova de Mazagão, que não era das melhores. Vários documentos permitem recompor a lastimável situação dos moradores Vila. Desde o início do povoamento, a Vila Nova de Mazagão contava apenas com o atendimento de boticário, cirurgião e sangrador, transportados de Belém para a recém criada Vila, em 1771.

Em 1772, Bento Vieira Gomes, nomeado médico para atendimento dos mazaganistas, se recusara a embarcar e exercer o ofício para qual fora nomeado 95. É bem provável que os problemas tenham se iniciado em 1774, quando se registrou o pedido de Inácio Freire da Fonseca, Capitão de Infantaria da extinta praça portuguesa na costa marroquina, para transferir-se para Belém, seguindo-se a este primeiro pedido, inúmeros outros, igualmente não atendidos 96.

Em 1776, em Belém, a epidemia de bexigas vem a causar a morte de um elevado número de soldados, sendo necessário o governador, João Pereira Caldas, solicitar autorização a Martinho de Melo e Castro, Secretário da Marinha e Ultramar, para nomeação interina para os postos vagos 97.

Em 1777, a mortandade não é menor. Frei João Evangelista Pereira da Silva, bispo do Pará, informa a D. Tomás Xavier de Lima Vasconcelos Brito Nogueira Teles da Silva, visconde de Vila Nova de Cerveira e Secretário de Estado dos Negócios do Reino e Mercês, informa que somente benzeria o cemitério, após a construção do muro, edificado às pressas para sepultar o elevado número de pessoas falecidas naquela ocasião, já que o antigo deveria ter atingido o máximo de ocupação 98.

Acreditamos que em Vila Nova de Mazagão se abatera o mesmo flagelo e que as queixas dos membros da Câmara aí tiveram seu início, posto que, em principio de 1778, tendo em vista a resposta do governador e capitão general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para Martinho de Melo e Castro, Secretário da Marinha e Ultramar, informar que só se poderia prestar esclarecimentos sobre as representações e queixas apresentadas pelos mazaganistas,

95 AHU_ACL_CU_013, Cx. 67, D. 5798. 96 AHU_ACL_CU_013, Cx. 73. D. 6171. 97 AHU_ACL_CU_013, Cx. 76, D. 6350. 98 AHU_ACL_CU_013, Cx. 77, D. 6449.

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haverem concluído as averiguações, o que leva a inferir que as queixas tenham se encaminhado ainda em 1777 99.

As informações enviadas a Martinho de Melo e Castro em 23 de novembro de 1778, provavelmente tiveram de ser complementadas, pois logo depois, em 5 de fevereiro de 1779, o governador, envia correspondência se reportando às averiguações das referidas queixas. A Memória e o Parecer do Conselho Ultramarino, sobre a situação de Vila Nova de Mazagão, traziam em anexos documentos que nos dão conta do que passaram os mazaganistas entre os anos de 1778 a 1783.

Em 17 de dezembro de 1781, os moradores enviaram requerimento à rainha D. Maria I, apresentando a sua miséria e sugerindo que fosse enviada uma pessoa de sua total confiança para apurar a veracidade dos fatos narrados. Declaravam-se dispostos a exporem-se ao castigo da soberana, caso suas afirmativas não fossem verdadeiras. Solicitavam um conselho de guerra que servisse de tribunal, onde se apurasse que crimes foram cometidos por aquele povo para que merecessem tal exílio como castigo 100.

Enviavam, em anexo, duas certidões, com firmas reconhecidas, respaldando suas argumentações. A primeira delas, passada a 20 de dezembro de 1778, era assinada por Julião Álvares da Costa, cirurgião-mor da Vila de Macapá, sede não só da administração, como, também, do único hospital para atendimento dos doentes da região.

O cirurgião informava que, naquela ocasião, encontravam-se para tratamento de graves enfermidades, 20 pessoas da Vila Nova de Mazagão. A situação era grave, devido ao fato de a maioria, quando recebia autorização para se deslocar para tratamento em Macapá, ou já estavam mortos quando da chegada da autorização, ou morriam durante a viagem de 15 dias ou faleciam quando da chegada ou durante o período de internação, pois devido ao adiantado estágio da doença, de nada adiantava o tratamento ministrado. Acrescenta que os 25 anos nos quais “estava debaixo deste céu”, lhe permitiram observar que só os pobres são sujeitos a estas enfermidades apresentadas pelos mazaganistas, causadas pelas más condições de trabalho, em áreas alagadas, pela ingestão de alimentos de má qualidade ou, o que era pior, a falta de mantimentos.

A par das epidemias de bexigas, as descrições dos doentes nos levam a um provável diagnóstico de malária, tendo em vista a administração alta de quina ou quinino, chegando a faltar em dados momentos, doença essa que, ainda em nossos dias, resulta em inúmeras mortes.

A segunda certidão, dada em março de 1781, era assinada por Francisco de Souza Estrela, mestre-carpinteiro e Antônio Moniz, mestre-pedreiro. Atestavam que as casas por serem feitas de “pau estacado no chão e cobertas de palha”, não duravam mais de quatro anos e se estragavam com facilidade devido às muitas tempestades, acontecendo de, ao mesmo tempo em que se concluíam umas, outras tantas já se encontrarem em ruínas. Afirmavam que nenhum morador tinha se servido de seus ofícios para consertar as casas, em razão da grande pobreza em que se encontravam.

O censo realizado na freguesia em 1778, nos fornece indicativos que reforçam tal situação. A metade da população retirava ou complementava a sua subsistência da lavoura praticada. Os outros 50%, perfaziam 155 “cabeça de família”, dentre os quais 43% desenvolviam ofícios para atendimento dos moradores; 25% encontravam-se empregados em algum cargo ou função e 48% não possuíam nem cargos, nem funções, correspondente aos desempregados da atualidade, como pode se constatar no Gráfico IV. Em considerando-se o total de 310, os desempregados corresponderiam a 24,19 %, ou seja, quase ¼ das famílias não tinham de onde retirar o seu sustento.

99 AHU_ACL_CU_013, Cx. 81, D. 6650. 100 AHU_ACL_CU_013, Cx. 88, D. 7161.

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Do total de 310 “cabeças de famílias” apontados em 1778, 83% são homens e 17%, mulheres viúvas. Destas, apenas 14% lavravam alguma coisa e 83% são de “poucas possibilidades”.

Soma-se a este triste quadro, o fato das Tenças e vencimentos pessoais estarem atrasados, como evidenciam as queixas do sargento-mor Luis da Fonseca Zuzarte e de seu irmão, capitão Salvador Nunes da Fonseca, que serviram na extinta praça de Mazagão 101.

Segundo Robert Muchembled, a angústia, a insegurança física e mental, faz com que os homens estabeleçam múltiplos laços de solidariedade. Primeiramente, entre eles, depois com a divindade, propiciando um terreno fértil para manifestações da cultura popular 102.

As precárias condições em que viviam os habitantes de Vila Nova de Mazagão, eram propícias a medos reais de fomes, doenças e morte, tendo em vista que as bases alimentares eram muito frágeis, fundamentadas na agricultura ou nos ganhos do Estado, ora em atraso.

Cada desditoso morador era, um doente ou morto em potencial, até então ao sabor da sorte. Muchembled enfatiza que quando os homens se sentem abandonados pelo Estado e pela Igreja, voltam-se para si próprios, buscando estabelecer a segurança nas relações humanas, facilitando o estabelecimento de uma malha de solidariedades sociais. Maiores necessidades têm as viúvas do estabelecimento deste tipo de parentesco artificial que são as confrarias e irmandades 103.

Essas associações diversas entrecruzam laços de solidariedade. Organizam festas, jogos, banquetes ou refeições comuns, procissões, representam mistérios. Mesclam-se o sagrado e o profano na busca de proteção.

Na Vila Nova de Mazagão, no século XVIII, em nossa interpretação as ações não foram diferentes. A população para cá transferida, abrigava agregados originários das ilhas de São Miguel, Terceira e Faial, os quais, ao ver se repetir as mesmas situações de angústia e temor anteriormente experimentadas, passaram a reencenar as mesmas práticas que asseguravam tanto o auxílio mútuo quanto a proteção do Espírito Santo.

Entretanto, ao contrário da documentação das festividades portuguesas, o silêncio quase que total em relação às festas do Divino mediador, no norte da América Portuguesa, exigiu que buscássemos outros caminhos que não aqueles tradicionalmente percorridos pelos historiadores. Para a recomposição de práticas que permaneceram abrigadas no tempo da longa duração, procuramos seguir a trilha apontada por Marc Bloch, quando ao fazer a leitura da história rural da França, partiu do século XVIII, que guardava mais indícios, para séculos anteriores, que apresentavam dados mais fragmentários. Sua intenção, não era a de “pular” milênios, mas, pretendia refazer o caminho, passo a passo, por um ou dois séculos mais recuados. Ao assim agir, não era porque pensasse que a transformação estivesse ausente dos campos franceses, mas, sim, que a mesma se processara em um ritmo muito lento, quase que imperceptível. Percebeu que em comunidades rurais, onde a maioria das famílias ali permanecia por várias gerações, vivendo nas mesmas casas de pais e avós, lavrando o mesmo solo, era razoável supor uma grande continuidade cultural. A este método, de partir do mais conhecido no presente, para a recomposição do fato passado, deu-se o nome de método regressivo.

A perspectiva metodológica adotada requer algumas considerações. A documentação sobre o cotidiano das populações que habitavam a Amazônia nos séculos XVIII e XIX é escassa. Mesmo para os dias de hoje, os dados são raros e de difícil obtenção. O ecossistema amazônico e a interação humana nele realizada talvez expliquem essa dificuldade. Em muitos lugares o acesso só é possível por via fluvial. O próprio Estado do Amapá só é acessível através de rios e

101 AHU_ACL_CU_013, Cx. 82, D. 6749. 102 Robert MUCHEMBLED, Culture Populaire… cit., p. 22. 103 Idem, Ibidem, p. 49.

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por via aérea. A floresta ou os campos, já devastados, dominam a paisagem, fazendo do isolamento a característica mais comum de muitas áreas da Amazônia.

Nos séculos passados essa situação era infinitamente mais grave, pois ao isolamento geográfico somava-se o isolamento cultural. As informações demoravam a deslocar-se dentro da região e o número de pessoas alfabetizadas era reduzidíssimo, de modo que a oralidade constituía-se no veículo mais importante da divulgação e da transmissão das informações. Esse contexto fez com que muitas localidades não registrassem seus eventos ou que os registros eventualmente elaborados fossem destruídos pelo tempo e pela inclemência do clima, cuja umidade é terminal para a manutenção de registros escritos. Assim, muitos dos documentos a que tivemos acesso para dar conta das questões aqui propostas, são esparsos ou nos trazem dados fragmentários. O ofício enviado pelo paço episcopal para as autoridades portuguesas explicitando seu repúdio, particularmente as festas dos imperadores, referido em passagens anteriores, é indispensável para o historiador da cultura popular na Amazônia, posto que o único, dentre os milhares catalogados no Arquivo Histórico Ultramarino, possibilitando, ao menos, a recomposição de parte da cultura popular, cristalizada em externa religiosidade.

Entretanto, em nosso percurso, procuramos não nos esquecer do conselho de Peter Burke: “o historiador que tem consciência de estar empregando uma abordagem indireta (...) confiará no método regressivo mais para as estruturas do que para os detalhes ...” 104.

As imagens da festa contemporânea constituíram-se peças de uma sólida engenharia de base para a comparação com as cerimônias e ritos registrados nas fontes portuguesas dos séculos XVIII, e, assim justapostas, nos forneceram uma imagem espelhada, possibilitando a recomposição de um padrão muito próximo daqueles originariamente açorianos, trazidos nas bagagens do imaginário transferido para a Vila de Nova Mazagão, cuja persistência na atualidade só encontra explicação no longo tempo da História.

Assim procedendo, procuramos suprir mesmo que parcialmente, essa lacuna da história regional que, de outra forma, poderia se supor morta ou condenada a permanecer escondida nas brumas do tempo.

O primeiro ponto de convergência reside nas coroas utilizadas nos ritos e cerimônias, como símbolo do Espírito Santo.

Nos Açores, desde o início, o Espírito Santo era representado por uma coroa de prata, sendo as primitivas, réplicas da coroa real usada até o século XVI. As que ainda hoje se encontram em Mazagão, são do tipo “fechada”, sendo uma delas, a que fica na Igreja, com quatro braços ou imperiais e, as outras duas, em posse das famílias Barriga e Videira, apresentam seis braços ou imperiais. A da Igreja, tem uma cruz, com uma pomba pousada em um dos braços, na junção dos imperiais. Já nas outras duas, a cruz é substituída por uma esfera com a pomba, de asas abertas, a fechar os imperiais, sendo que a configuração dos cetros acompanha a mesma das coroas, sendo as três, apoiadas em uma bandeja, também em prata.

O mesmo quadrado formado pelas varas de juízes, mordomos ou vereadores, na Amazônia se reproduz com as varas douradas, que tal como do outro lado do Atlântico encerravam o Divino em um quadrado, regionalmente designadas por corruptelas do substantivos originais.

Se, na atualidade as varas douradas são conduzidas por meninas, nos Açores, competia às Câmaras açoreanas, indicar as pessoas delas encarregadas nos cortejos e procissões.

Os registro indicam que eram escolhidos quatro vereadores dentre aqueles que constituíram a Câmara do ano anterior, para conduzir as varas nos cortejos e procissões 105. Acreditamos que nas festividades do século XVIII, na Vila Nova de Mazagão, também fossem eles

104 Meter BURKE, A Escrita… cit., pp. 109-110. 105 Maria Fernanda ENES, Reforma Tridentina e Religião Vivida, Ponta Delgada, Signo, 1991, p. 140.

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a comporem a confraria e, com suas varas douradas, constituíam o quadrado do sagrado cortejo, e que o termo “vara dourada” substituiu a denominação de mordomo.

O número de confrades ou mordomos das ilhas do Atlântico, também se reproduz em Mazagão, pois são doze as “empregadas do divino”, termo que generaliza as representantes dos cargos e desempenham as mesmas funções das originárias festas portuguesas 106.

A substituição do adulto pela criança nas coroações, teve início na ilha de Fayal, a partir de 1645, sendo os encargos da festa responsabilidade da família do pequenino imperador 107.

Não podemos localizar a época em que se substituiu o menino pela menina, mas, ao determinar que as meninas a serem coroadas como imperatrizes não tivessem mais de dez anos, é revelador que por esta época, já acontecera a substituição 108, sendo em Mazagão, o limite máximo de treze anos de idade.

As ações executadas pela trinchante e alferes bandeira, são as mesmas tanto nas festas mazaganenses quanto nas açoreanas 109. Já as “pega fogaças”, são encarregadas de conduzir as bandejas com biscoitos, pães e bolos, antigamente chamados “fogaças”, justificando-se, plenamente a denominação.

Já das “figuras profanas e dansas e cantorias dos foliões do Espírito Santo com estrépito de tambores, pandeiros e outros instrumentos”, permaneceram apenas os tambores, chamados de “caixas” e as cantorias, “ladrões”, posto que são versos anônimos, reproduzidos por alguém que o roubou.110 A maioria é composta por versos satíricos ou de forte cunho de crítica social, percebendo-se, nitidamente, a sua origem nas cantigas de escárnio e mal – dizer, portuguesas.

Substituiu-se, também, a carne bovina pelo camarão regional, tendo em vista que desde a colonização poucas eram as cabeças de gado, certamente reservado para o leite e não ao abate festivo.

O Mastro, anteriormente cortado nas matas, permanece como símbolo de abundância precatória. As espigas de milho, cachos de uvas e ramos de trigo, deram lugar à aclimatação regional, com a mandioca, o cupuaçu, as bananas, o tapereba, permanecendo, apenas, o milho e o pequeno estandarte branco a encimá-lo.

Entre cantos e danças, ainda se fazem as mudanças de coroa, o corte da murta, como ainda permanecem nos ombros das devotas marabaixeiras as brancas toalhas a comporem o traje que, em todos os detalhes, corresponde aos das negras escravas usados no século XVIII do Brasil Colonial.

As coroações e “descoroações” são realizadas por laicos, devido ao número insuficiente de padres, reclamado e registrado na documentação do século XVIII, persistindo a mesma carência no presente.

O leilão dos donativos, persistiram, como persistiu o “tirar pelouro”, em copos de vidro, que nas duas temporalidades abrigam os nomes dos pleiteantes devotos aos cargos para serviço do Espírito Santo, não mais denominados mordomos, mas empregadas do Divino.

As refeições fraternas e os excessos se repetem no tempo, mas seus componentes são reflexos da economia regional, releitura sem a qual a festa não poderia subsistir – Vinho ou gengibirra, pouco importa, pois os “esquentamentos” são os mesmos, ao longo da História.

Se as casas não são as mesmas, em contrapartida, as ruas permanecem com os mesmos traçados, palco perene onde se representa o mistério do divino, os chamados “lugares da memória”, no dizer de.

106 Francisco Ferreira DRUMMOND, Anais… cit., Vol. I, p. 100. 107 Idem, Ibidem, p. 102. 108 In Boletim Eclesiástico dos Açores, n.º 23 109 O trinchante era a primeira dignidade do pessoal do “governo do império”. Na hierarquia, vinha logo após o

imperador e cabia-lhe superintender os demais envolvidos nos festejos, e presidia a distribuição dos bodos nos domingos festivos.

110 Francisco Ferreira DRUMMOND, Anais cit., Vol. II, pp. 123-125.

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Nas ilhas de São Miguel, Terceira e Faial, a partir do século XVIII, passaram a realizar as festas em dois períodos diferentes, de acordo com os envolvidos nos impérios. No período tradicional, do domingo da Pascoela até o domingo de Pentecostes, realizavam-se os impérios dos nobres, na ilha de São Miguel e Faial e o Espírito Santo Real, na ilha Terceira e, a partir das duas últimas semanas de agosto até finais de outubro, o império dos negros ou Espírito Santo dos Pardos, denominação de finais do século XVIII e início do XIX 111.

Na Amazônia estas práticas permaneceram até o século XIX, havendo uma festa dos brancos e outra dos pardos. Entretanto, por conta da depuração dos costumes, por parte da Igreja, os brancos abandonaram os hábitos tidos por populares. Subsistiram as festas dos pardos e as suas danças da moda, o Marabaixo 112.

Com a população transmigrada da praça marroquina, vieram dois escravos: Gonçalo, negro e Manoel de Jesus, mouro. Mouro, negro, “amorenados” ou “pardos”, tinham em comum não apenas a privação da liberdade, mas, uma alcunha – tambor – a diferencia-los demais, pela função que certamente desempenhavam nas festas: arautos do alegre e divino mediador, o Espírito Santo 113.

Ainda hoje, na persistência das alvoradas festivas que realizam a busca das ajudantes e imperatriz divinas, é o som do tambor que marca o tempo social. Entretanto, o arauto não se confinou no tempo, muito mais por força da natureza, quebrando a linha de sucessão masculina no domínio da “caixa e ladrões”, posto que herdados pela descendente de família pioneira de “caixeiros”, não se sabe se por parte de Manoel, o mouro, o que parece mais provável por seus traços físicos, ou se de Gonçalo, mas, isso, pouco importa. Importa, sim, ser esta diferença uma reedição da festa de forma acompanhar os tempos “modernos”, pois antes, historicamente, não era viável que uma mulher chefiasse a cantoria.

Nesta recomposição das práticas, recuperamos imagens do século XVIII, sem dúvidas, situadas em anos anteriores ao de 1778, quando Frei Caetano declara que “achei arraigado nesta Diocese”, em quase todas as “freguesias de brancos”, o festivo culto denominado “Imperio do Espírito Santo”.

As queixas dos eclesiásticos em relação à religiosidade popular permanecerão, indefinidamente. As dos mazaganistas, em 1783, serão parcialmente atendidas, tendo em vista o parecer do Conselho Ultramarino, o qual após ouvir a opinião do Procurador da Fazenda, encaminha à rainha a seguinte sugestão:

• Que se pagasse, de imediato, as Tenças e vencimentos pessoais; • Que os mazaganistas, em razão do risco de acometeimento de

epidemias, deveriam ter o direito de escolher o local que desejariam povoar, pois seriam úteis em qualquer lugar;

• Que se desse prioridade aos naturais da Praça de Mazagão, seguidos dos nomes da lista enviada pelo Conde da Cunha, que tinha “foro” e eram “professos da ordem de Christo´e, por último, aqueles originários de várias partes do Reino ou do domínio português;

• Aquelas pessoas que possuíssem “ofícios públicos e postos pagos”, deveriam receber 10 escravos, pelos quais não se cobraria durante dez anos.

A partir de 1780, as permissões para transferência começam a ser expedidas, como, por

exemplo, a de Domingos Cardoso e sua mulher, naturais da Praça de Mazagão, que obtêm

111 Conforme Francisco Ferreira DRUMMOND, Anais… cit. e Frei Agostinho de Mont’Alverne, História Insulana. 112 Conforme Jornal Pinsonia, 1897. 113 Conforme Anais do Arquivo Público do Pará, respectivamente pp. 98 e 173.

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licença para irem para o reino 114. Em 1782, Inácio Freire da Fonseca, natural de Mazagão e seu filho Sebastião Freire da Fonseca, finalmente, seguem para Lisboa 115.

Em 11 de dezembro de 1784, Francisco Martins Regalado, natural da extinta praça de Mazagão, sargento-mor reformado de Artilharia da Corte, apresenta requerimento, solicitando licença de viagem com destino ao reino para ele e sua família, de forma a atender as dificuldades por que têm passado na Vila 116.

Em 5 de abril de 1791, Izidoro José da Fonseca Cabral Mesquita, sargento-mor do Regimento Auxiliar da Nova Vila de Mazagão e registrado no censo de 1778 como comandante da Vila, solicita permissão para ir ao reino com sua família, para poder se recompor nas águas das Caldas 117.

O censo de Macapá, para o ano de 1808, indica a transferência de inúmeros mazaganistas, anteriormente apontados no censo de 1778, como cabeças de famílias moradoras da Vila Nova de Mazagão 118.

Francisco Barriga e Francisco Xavier Videira, no entanto, lá permaneceram em seus cargos, complementando sua subsistência com os rendimentos de suas lavouras, continuando a festejar o Espírito Santo entre práticas e representações chegadas aos nossos dias pelos caminhos da cultura e da sociabilidade, perpetuados no tempo da longa duração por seus descendentes, reafirmando seu contrato com o Divino, mas, sobretudo, reafirmando uma identidade regional, mazaganense e mazaganista, que o “outro Brasil” e o mundo ainda discrimina.

Fim de festa... Nossa intenção foi recompor as imagens vivenciadas na Vila Nova de Mazagão, no século

XVIII. Descrevemos aspectos particulares de uma mesma devoção que se espraiou pelas ilhas açoreanas e atravessou o Atlântico, entre as redes de relações historicamente constituídas.

Revisitamos vias e trajetos, lugares da memória por excelência, onde as tradições só persistem porque continuam a ter um forte significado para a comunidade que as reencenam, adaptando-se às transformações do contexto no qual estão inseridas, mesmo que em aparência continuem as mesmas.

Percebemos que no processo de manutenção e reprodução das tradições, a memória tem lugar de destaque, sendo no caso de mazaganistas e mazaganenses o mais forte formador de uma identidade comunitária. A permanência de muitas das antigas tradições, poderia ser atribuída ao isolamento, devido à dificuldade de acesso, mas, certamente constituiu-se fator positivo para que se conservassem as feições e maneiras de viver em um outro tempo. No entanto, mais importante do que isto foi a forte ligação que os mazaganistas mantiveram com o seu passado, cultivado através de histórias contadas de pais para filhos, onde a realidade e a fantasia se misturavam, como, interpenetraram-se, também, o sagrado e o profano, através da festiva devoção, nos tempos social ou historicamente vividos.

Ao buscar no saber dos velhos, informações sobre danças, músicas e rituais; ao vasculhar baús e gravuras; ao abrir seus oratórios repletos de imagens centenárias que fariam a festa de qualquer antiquário; ao colocar no papel palavras de ladainhas e ladrões até então transmitidos

114 AHU_ACL_CU_013, Cx. 85, D. 6934. 115 AHU_ACL_CU_013, Cx. 89, D. 7258. 116 AHU_ACL_CU_013, Cx. 93, D. 7464. 117 AHU_ACL_CU_013, Cx. 100, D. 7966. 118 Conforme a Descripção e Estado Actual da População da Villa de S. Joze do Macapá: Domingos Antônio; Mateus

Valente; José Antônio da Cruz; João Correia de mesquita; João de Medina Azere; Ignacia Jacinta; Simão Marques Leitão; João Velho; João de Mendonça; João Fernandes de Crvalho; Antônio Barriga da Costa; João Dias; Paula Maria Botelha; Lucas Valente do Couto e João Baptista de Cristo.

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oralmente, os mazaganenses perceberam que estavam fazendo pesquisa histórica e, ao mesmo tempo, vivendo uma tradição que lhes pertence.

O sentimento de religiosidade incorporado através de uma vivência de tradições continuamente observadas e de uma convivência com pessoas que transmitiam comportamentos e maneiras de sentir, foi o aspecto que menos se alterou ao longo dos séculos, expresso principalmente nas promessas, enquanto forma de relacionamento com a esfera divina, prescindindo da intermediação da Igreja, posto que todos os ritos e cerimônias, tanto no passado, quando não existia clero para atender a demanda das recém criadas vilas e cidades, quanto no presente, quando a presença do sacerdote se concretiza apenas por ocasião da festa de São Tiago.

É justamente esse sentimento que possibilitou a recomposição de práticas anteriormente representadas no distante tempo da história.

Afinal, entre alvoradas nem sempre festivas e vigílias, às vezes, dolorosas, por longos anos fomos em busca dos caminhos que nos levassem a festa do Espírito Santo, em Vila Nova de Mazagão. Passo a passo, no refazer do passado, chegamos ao final, extenuados, esperando que o cansaço da jornada não tenha comprometido a visão destas imagens refletidas no Espelho de Cronos.

Agora, é chegada a hora de passar a “coroa e o cetro” para que se reencenem outras festas a partir das trilhas ora apontadas, podendo ser retomadas em qualquer tempo ou lugar, tendo em vista a perenidade da cultura.