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Seleção de poemas para o 8.º ano
Amigo
Mal nos conhecemos Inaugurámos a palavra «amigo».
«Amigo» é um sorriso De boca em boca, Um olhar bem limpo, Uma casa, mesmo modesta, que se oferece, Um coração pronto a pulsar Na nossa mão!
«Amigo» (recordam-se, vocês aí, Escrupulosos detritos?) «Amigo» é o contrário de inimigo! «Amigo» é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado, É a verdade partilhada, praticada.
«Amigo» é a solidão derrotada!
«Amigo» é uma grande tarefa, Um trabalho sem fim, Um espaço útil, um tempo fértil, «Amigo» vai ser, é já uma grande festa!
Alexandre O’Neill
E tudo era possível
Na minha juventude antes de ter saído da casa de meus pais disposto a viajar eu conhecia já o rebentar do mar das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de Maio era tudo florido o rolo das manhãs punha-se a circular e era só ouvir o sonhador falar da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida e havia para as coisas sempre uma saída Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança entre as coisas e mim havia vizinhança e tudo era possível era só querer
Ruy Belo
Mudez
Que desgraça, meu Deus! Tenho a Ilíada aberta à minha frente, Tenho a memória cheia de poemas, Tenho os versos que fiz, E todo o santo dia me rasguei À procura não sei De que palavra, síntese ou imagem! Desço dentro de mim, olho a paisagem, Analiso o que sou, penso o que vejo, E sempre o mesmo trágico desejo De dar outra expressão ao que foi dito! Sempre a mesma vontade de gritar, Embora de antemão a duvidar Da exatidão e força desse grito.
Mudo, mesmo se falo, e mudo ainda Na voz dos outros, todo eu me afogo Neste mar de silêncio, íntima noite Sem madrugada. Silêncio da criança que ficasse Toda a vida criança E nunca conseguisse semelhança Entre o pavor e o pranto que chorasse.
MIGUEL TORGA
PARA ESCREVER O POEMA
O poeta quer escrever sobre um pássaro:e o pássaro foge-lhe do verso.
O poeta quer escrever sobre a maçã:e a maçã cai-lhe do ramo onde a pousou.
O poeta quer escrever sobre uma flor:e a flor murcha no jarro da estrofe.
Então, o poeta faz uma gaiola de palavraspara o pássaro não fugir.
Então, o poeta chama pela serpentepara que ela convença Eva a morder a maçã.
Então, o poeta põe água na estrofepara que a flor não murche.
Mas um pássaro não cantaquando o fecham na gaiola.
A serpente não sai da terraporque Eva tem medo de serpentes.
E a água que devia manter viva a florescorre por entre os versos.
E quando o poeta pousou a caneta,o pássaro começou a voar,Eva correu por entre as macieirase todas as flores nasceram da terra.
O poeta voltou a pegar na caneta,escreveu o que tinha visto,e o poema ficou feito.
Nuno Júdice
As palavras
São como um cristal,as palavras.Algumas, um punhal,um incêndio.Outras,orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.Inseguras navegam:barcos ou beijos,as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,leves.Tecidas são de luze são a noite.E mesmo pálidasverdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quemas recolhe, assim,cruéis, desfeitas,nas suas conchas puras?
Eugénio de Andrade
Um dia juntei todas as palavras
Um dia juntei todas as palavrasque já aprendera ebusquei para elas novos sentidos,novas maneiras de soar e de voaraté ao coração dos homens.Censuraram-me por tê-lo feitoe houve até quem dissesse:“As palavras são o que sãoe procurar para elas novos significadosé pura perda de tempo e ofensa dos deuses.”Eu não lhes dei ouvidose continuei a escrever, aprendendoO sabor de casar a palavra”água”com a palavra”vento” e a palavra“corpo” com a palavra “terra”e a palavra “homem” com “sonho”e a palavra “natureza” com “vida”.
Foi, assim um pouco sem o querer,um pouco sem o esperar, que useipela primeira vez a palavra”poesia”,que viaja comigo, companheira eterna,para todos os lugares onde vou,desde a memória do homematé aos últimos esconderijos da noite, até ao fundo da claridade dos dias (…)
José Jorge Letria
As mãos
Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
Manuel Alegre
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão
O anjo das pernas tortas
A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.
Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés - um pé-de-vento!
Num só transporte a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.
Garrincha, o anjo, escuta e atende: - Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um o
Dentro da meta, um L. É pura dança!
Vinicius de Moraes
Viagem
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé do marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar,
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.
Miguel Torga
A CABEÇA NO AR
As coisas melhores são feitas no ar,
andar nas nuvens, devanear,
voar, sonhar, falar no ar,
fazer castelos no ar
e ir lá para dentro morar,
ou então estar em qualquer sítio só a estar,
a respiração a respirar,
o coração a pulsar,
o sangue a sangrar,
a imaginação a imaginar,
os olhos a olhar
(embora sem ver),
e ficar muito quietinho a ser,
os tecidos a tecer,
os cabelos a crescer.
E isso tudo a saber
que isto tudo está a acontecer!
As coisas melhores são de ar
só é preciso abrir os olhos e olhar,
basta respirar.
Manuel António Pina
O último andar
No último andar é mais bonito:
do último andar se vê o mar.
É lá que eu quero morar.
O último andar é muito longe:
custa-se muito a chegar.
Mas é lá que eu quero morar.
Todo o céu fica a noite inteira
sobre o último andar
É lá que eu quero morar.
Quando faz lua no terraço
fica todo o luar.
É lá que eu quero morar.
Os passarinhos lá se escondem
para ninguém os maltratar:
no último andar.
De lá se avista o mundo inteiro:
tudo parece perto, no ar.
É lá que eu quero morar:
no último andar.
Cecília Meireles
O VAGABUNDO DO MAR
Sou barco de vela e remosou vagabundo do mar.Não tenho escala marcadanem hora para chegar:é tudo conforme o vento,tudo conforme a maré...
Muitas vezes acontecelargar o rumo tomadoda praia para onde ia...
Foi o vento que virou?foi o mar que enraiveceue não há porto de abrigo?ou foi a minha vontade de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fossenão tenho rota marcadaando ao sabor da maré.
É, por isso, meus amigos,que a tempestade da Vidame apanhou no alto mar.
E agora,queira ou não queira,cara alegre e braço forte:estou no meu posto a lutar!Se for ao fundo acabou-se.Estas coisas acontecem aos vagabundos do mar.
Manuel da Fonseca
No Comboio Descendente
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada -
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela -
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não -
No comboio descendente
De Palmela a Portimão…
Fernando Pessoa
Segredo
Sei um ninho.E o ninho tem um ovo.E o ovo, redondinho,Tem lá dentro um passarinhoNovo.
Mas escusam de me atentar;Nem o tiro, nem o ensino.Quero ser um bom meninoE guardar este segredo comigo.E ter depois um amigoQue faça o pinoA voar…
Miguel Torga
Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.Minha mãe ficava sentada cosendo.Meu irmão pequeno dormia.Eu sozinho menino entre mangueiraslia a história de Robinson Crusoé,comprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeua ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceuchamava para o café.Café preto que nem a preta velhacafé gostosocafé bom.
Minha mãe ficava sentada cosendoolhando para mim:- Psiu... Não acorde o menino.Para o berço onde pousou um mosquito.E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeavano mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha históriaera mais bonita que a de Robinson Crusoé.
Carlos Drummond de Andrade
Aquela nuvem
Aquela nuvemparece um cavalo…
Ah! Se eu pudesse montá-lo!
Aquela?Mas já não é um cavalo,É uma barca à vela.
Não faz mal.Queria embarcar nela.
Aquela?Mas já não é um navio,é uma torre amarelaa vogar no frioonde encerraram uma donzela.
Não faz mal.Quero ter asaspara a espreitar da janela.
Vá, lancem-me no mardonde voam as nuvenspara ir numa delastomar mil formascom sabor a sal- Labirinto de sombras e de cisnesNo céu de água-sol-vento-luzconcreto e irreal…
José Gomes Ferreira
Meus dias de rapaz
Meus dias de rapaz, de adolescente, Abrem a boca a bocejar sombrios: Deslizam vagarosos, como os Rios, Sucedem-se uns aos outros, igualmente.
Nunca desperto de manhã, contente; Pálido sempre com os lábios frios, Oro, desfiando os meus rosários pios. . . Fora melhor dormir, eternamente. . .
Mas não ter eu aspirações vivazes, E, não ter, como têm os mais rapazes, Olhos boiados de sol, lábio vermelho!
Quero viver, eu sinto-o, mas não posso: E não sei, sendo assim enquanto moço, O que serei, então, depois de velho.
António Nobre
Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão. Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão. Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo. Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos. Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe
Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.
Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de
pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas
cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!
Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;
ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
Eugénio de Andrade