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Beutler B 1 Exegese A Palavra de Deus entra no mundo (1,14–54) O EVANGELHO DE JOÃO abre solenemente com o Prólogo (1,1- 18). Este canta a “en-carn-ação” do Logos eterno. Em sua Palavra, Deus entra na história humana e participa dela. Muitos comentadores prepõem o Prólogo ao evangelho como um texto separado. Contudo, há muitos argumentos para tratá-lo em conexão com os capítulos subsequentes. O testemunho do Batista (1,19-34) já veio preparado no Prólogo (1,6-8.15). O Jesus Cristo, nomeado no Prólogo (1,17), agora é anunciado por João Batista. O Batista conduz a Jesus os primeiros discípulos (1,35-51), que se tornam as testemunhas do primeiro sinal de Jesus, em Caná (2,1-12). A primeira Páscoa conduz Jesus a Jerusalém, onde purifica o Templo (2,13-25) e entra em diálogo com o conselheiro Nicodemos (3,1-21). A partir daí encontramos Jesus em círculos concêntricos no caminho a caminho de novas regiões: da Judeia (3,22-36) através da Samaria (4,1-42) paras a Galileia (4,43-45), onde ele realiza o segundo sinal em Caná (4,46-54). O afastamento de Jerusalém significa também abertura para novos grupos humanos: os samaritanos, que não estão unidas à Judia numa fé plena, e os galileus, que, como “terra de Zabulon e de Neftali”, são por Isaías chamados “a região dos gentios” (texto de Is 8,23, assumido em Mt 4,14-16). Destarte Jesus, na sequência de sua primeira romaria a Jerusalém, inicia uma viagem que o leva a pessoas sempre mais afastadas de Jerusalém, de seu culto e de sua fé. A partir de 5,1 haverá uma mudança: Jesus usa agora as festas de peregrinação para se manifestar a seu povo e a seus líderes (exceto a Páscoa de Jo 6,4, na Galileia). Por isso, não convém ver nos caps. 2– 12 (como faz R. Bultmann) “a revelação da doxa diante do mundo”, nem nos caps. 5–12 (como faz a Einheitsübersetzung de 1980). Deve-se distinguir entre a manifestação de Jesus diante do mundo em 1–4 e sua manifestação diante de seu povo em 5–10, com uma visão retrospectiva em Jo 12,37-43 e um último apelo à fé em Jo 12,44-50.

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Beutler B 1

Exegese

A Palavra de Deus entra no mundo (1,14–54)

O EVANGELHO DE JOÃO abre solenemente com o Prólogo (1,1-18). Este canta a “en-carn-ação” do Logos eterno. Em sua Palavra, Deus entra na história humana e participa dela. Muitos comentadores prepõem o Prólogo ao evangelho como um texto separado. Contudo, há muitos argumentos para tratá-lo em conexão com os capítulos subsequentes. O testemunho do Batista (1,19-34) já veio preparado no Prólogo (1,6-8.15). O Jesus Cristo, nomeado no Prólogo (1,17), agora é anunciado por João Batista. O Batista conduz a Jesus os primeiros discípulos (1,35-51), que se tornam as testemunhas do primeiro sinal de Jesus, em Caná (2,1-12). A primeira Páscoa conduz Jesus a Jerusalém, onde purifica o Templo (2,13-25) e entra em diálogo com o conselheiro Nicodemos (3,1-21). A partir daí encontramos Jesus em círculos concêntricos no caminho a caminho de novas regiões: da Judeia (3,22-36) através da Samaria (4,1-42) paras a Galileia (4,43-45), onde ele realiza o segundo sinal em Caná (4,46-54). O afastamento de Jerusalém significa também abertura para novos grupos humanos: os samaritanos, que não estão unidas à Judia numa fé plena, e os galileus, que, como “terra de Zabulon e de Neftali”, são por Isaías chamados “a região dos gentios” (texto de Is 8,23, assumido em Mt 4,14-16). Destarte Jesus, na sequência de sua primeira romaria a Jerusalém, inicia uma viagem que o leva a pessoas sempre mais afastadas de Jerusalém, de seu culto e de sua fé. A partir de 5,1 haverá uma mudança: Jesus usa agora as festas de peregrinação para se manifestar a seu povo e a seus líderes (exceto a Páscoa de Jo 6,4, na Galileia). Por isso, não convém ver nos caps. 2–12 (como faz R. Bultmann) “a revelação da doxa diante do mundo”, nem nos caps. 5–12 (como faz a Einheitsübersetzung de 1980). Deve-se distinguir entre a manifestação de Jesus diante do mundo em 1–4 e sua manifestação diante de seu povo em 5–10, com uma visão retrospectiva em Jo 12,37-43 e um último apelo à fé em Jo 12,44-50.

1 O Prólogo (1,1-18)

1 1 No princípio era a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus, e a Palavra era Deus. 2 Ela estava, no princípio, junto de Deus. 3 Tudo foi feito por meio dela, e separado dela foi feita coisa nenhuma. O que está feito nela 4 era vida, e a vida era a luz dos homens. 5 E a luz brilha nas trevas, e as trevas não a conseguiram acataram. 6 Surgiu um homem, enviado por Deus; seu nome era João. 7 Ele veio como testemunha, para dar testemunho da luz, para que todos pudessem crer por meio dele. 8 Não era ele a luz; ele devia dar testemunho da luz. 9 A luz verdadeira, que ilumina todo homem, veio ao mundo. 10 Estava no mundo, e o mundo foi feito por ela, mas o mundo não a reconheceu. 11 Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram. 12 A quantos, porém, a acolheram, deu-lhes poder de se tornarem filhos de Deus: todos os que crêem no seu nome, 13 que foram gerados não do sangue, nem do impulso da carne, nem do desEvangelho de Joãoo do varão, mas de Deus.

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14 E a Palavra se fez carne e habitou entre nós, e nós contemplamos a sua glória, glória como do unigênito do Pai – cheia de graça e de verdade. 15 João dá testemunho dele e proclama: “Foi dele que eu disse: ‘Aquele que vem depois de mim veio a ser antes de mim, porque era antes de mim”. 16 Todos nós, de sua plenitude, recebemos graça por graça. 17 A Lei foi dada por meio de Moisés, a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo. 18 A Deus, ninguém jamais o viu; o unigênito, que é Deus e repousa sobre o coração do Pai, ele no-lo deu a conhecer.

I

O quarto evangelista não inicia seu relato de Jesus com uma cena histórica particular como a atividade de João Batista em Marcos ou a descrição da origem terrestre de Jesus, como em Mateus e Lucas. Antes, nos reconduz ao início primordial, como mostra a alusão a Gn 1,1 LXX em Jo 1,1 – ou melhor, ainda mais atrás, antes de todo o tempo, na eternidade de Deus. Desta eternidade vem o Logos; dela, ele entrou no mundo para se tornar carne.

Literariamente, o Prólogo joanino constitui uma unidade que se destaca claramente do texto subsequente. Enquanto, no Prólogo, os versículos que falam do testemunho de João se integram na linguagem hínica e no desenvolvimento temático do mesmo, a secção sobre o testemunho do Batista em 1,19-34 entra claramente na parte narrativa do evangelho. A martyría de João Batista, mencionada em 1,6-8 e15, agora é especificada quanto ao conteúdo e situada historicamente.

Certa pesquisa atual considera o Prólogo de João como unidade literária passível de explicação em si. Antes disso, houve um século de hipóteses literário-críticas acerca da origem do Prólogo. Nesta investigação prevaleceu a distinção entre os versículos de ritmo mais poético e outros que se parecem antes com prosa. Assim, J. Wellhausen, em 1908, estranhou que, no v. 6, no meio do Prólogo, “o Batista entra como neve dentro da eternidade”1. A investigação do séc. XX ficou fortemente marcada pela hipótese de que por trás de Jo 1,1-18 está um hino pré-joanino. Suspeitou-se até de dois hinos, porque os vv. 14 e 16 se distinguem estilisticamente dos versículos introdutórios. Quanto ao aspecto religioso-histórico, se Bultmann pensava num hino gnóstico dos círculos do Batista, logo surgiu a hipótese de um ou mesmo de dois hinos cristãos. Mas estas hipóteses nunca chegaram a ser plenamente evidenciadas. Hoje prefere-se uma leitura sincrônica2.

Quanto à composição propõem-se, principalmente, três modelos Muitos autores vêem no Prólogo uma construção linear. H. J. Holtzmann lembra exemplos dos Santos Padres para uma divisão tripartite: vv. 1-5, a preexistência do logo e seu papel na criação; vv. 6-13, a preparação da encarnação; vv. 14-18, a encarnação3. Em tempos recentes insiste-se mais na identidade do Logos com Jesus Cristo, embora este só venha nomeado no v. 17. Tripartições semelhantes encontram-se com frequência nos comentários. H. Lausberg indica um fundamento linguístico para esta estrutura tripartite4. Ponto de partida é a presença do termo “Logos” nos vv. 1 e 14. Em 1,1-5 desdobra-se o tema na base de referências à tradição veterotestamentária. Nos vv. 6-13, Lausberg vê referências à tradição do NT. Nos vv. 14 e 16 , ele vê a releitura da tradição do Êxodo.

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O mesmo autor pensa que, nos vv. 6-7, João tenha utilizado o “exórdio” mais antigo do evangelho, para criar um novo exórdio, que sintetizasse o evangelho e preparasse o leitor para os temas principais. L. Schenke vê nos vv. 1-5 um “mito”, em 6-13 “história” e em 14-18, a “confissão da comunidade”5.

Uma séria de autores vê no Prólogo uma estrutura concêntrica. Teve muita influência a proposta de M.-E. Boismard6 de ver o Prólogo como construção concêntrica em torno do v.13. Boismard lê aqui o singular “que foi gerado ... de Deus”, embora não possa apoiar isso em nenhum manuscrito grego da Antiguidade (cf. adiante, v. 13). Assim o centro não [[80]] seria o enunciado sobre a encarnação, mas a afirmação do nascimento virginal do Filho de Deus. I. de la Potterie7 contesta esse modelo, acertadamente, com quatro argumentos: o modelo é estático, não dinâmico; não reconhece o lugar central da encarnação; as duas secções acerca do Batista (vv. 6-8 e 15) não são idênticos, pois o segundo fala no presente; os vv. 1 e 18 não constituem uma correspondência (o v.18 pressupõe o Logos encarnado).

Para superar as dificuldades, alguns autores, como I. de la Potterie8, sugeriram uma estrutura em forma de espiral para o Prólogo de João. Os temas são retomados e desenvolvidos em nível superior. A maneira como os autores dividem o texto permanece, porém, discutível, porque se baseiam em visões semânticas e teológicas, não linguísticas.

Devemos partir do texto de João como nos foi transmitido. Por isso dispensamos inicialmente a hipótese de fragmentos hínicos subjacentes ao Prólogo, embora isso sEvangelho de Joãoa verossímil para os vv. 1-5, 10-12 e 14.16. Explicamos o texto com o reconhecido procedimento metódico da exegese intratextual, com análise linguístico-sintática, semântica e pragmática do texto, desde que sua forma se apresente segura. Será considerado também a influência do mundo literário em que o Prólogo nasceu. Com H. Lausberg e outros, vemos por trás do vv. 1-5 o início do livro do Gênesis, bem como de tradições sapiencias que falam da entrada da Sabedoria no mundo humano; por trás dos vv. 6s. e 15, a influência de tradições neotestamentárias acerca de João Batista; e por trás dos vv. 14-18, tradições mosaicas que remontam ao livro do Êxodo9.

Abordaremos, pois, o Prólogo de João como um texto homogêneo e unitário. Não julgamos que o texto justifique uma divisão bipartida, com uma primeira parte nos vv. 1-13 (o logos antes da encarnação) e uma segundo nos vv. 14-1810. Pelo contrário, mostraremos que, desde o v. 4, o texto fala da vinda de Cristo como Palavra divina no meio dos homens. Os vv. 4s. e 9s. são altamente parecidos. Inspirados pelo mito da vinda da sabedoria divina, falam das vicissitudes do Palavra divina entre os homens, sem mencionar explicitamente sua vinda na carne. Esta vem à fala, explicitamente, só nos vv. 14-18, e só aqui é que se menciona pela primeira vez e explicitamente o nome de Jesus Cristo. Assim confirma-se a construção homogênea do Prólogo: o movimento se desloca de uma linguagem escondida e implícita para uma linguagem manifesta e explícita. Aquele no qual Palavra divina veio ao mundo e permanece entre os homens, é Jesus Cristo.

O lugar da questão da pré-história do Prólogo joanino foi ocupado, nestes últimos tempos, sempre mais, pela pergunta por sua função. Isso está ligado à troca de 5 6 7 8 9 10

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paradigma, que se afasta da abordagem histórico-crítica e se volta para a consideração literária dos textos neotestamentários. No centro do interesse encontra-se agora a relação do Prólogo com o desdobramento do resto do QUARTO EVANGELHO. Esta relação pode ser vista mais literariamente ou mais teologicamente. De modo geral, ambas as perspectivas se encontram interligadas.

Uma proposta recente que ver no Prólogo joanino um texto para a legitimação das posições teológicas do EVANGELHO DE JOÃO11. A cristologia joanina aparece aqui ancorada na missão da Palavra divina desde a eternidade. Assim, pode ser de utilidade nas discussões com grupos que, dentro do âmbito religioso do QUARTO EVANGELHO, representam um credo divergente.

Michael Theobald, desde seu texto de habilitação12, vem estudando a relação do Prólogo joanino com o resto do evangelho. Para Theobald, o Prólogo é a introdução ao QUARTO EVANGELHO como um todo, escrito com a finalidade de introduzir seu público leitor nos grandes temas do mesmo. Pode-se partir da hipótese de que esta introdução – como, aliás, acontece de costume – foi composto depois que a obra ficou pronta. Assim se entende por que alguns conceitos do Prólogo (como o Logos personificado ou a “graça”) não tornam a aparecer no restante do texto.

Outro estudo recente examina o Prólogo exatamente como prólogo13. Este gênero literário é conhecido desde a Antiguidade. Já ano séc. VI a.C. encontra-se um modelo no autor grego Téspis de Ática, que, com este gênero, introduz seu público na ação desenvolvida no seu drama. Posteriormente, o prólogo será utilizado também para discursos, ao lado de dramas e narrativas dramáticas. João – como único entre os evangelistas – parece ter utilizado este gênero para introduzir seus leitores na mensagem do seu evangelho e para apresentar as figuras principais: Jesus Cristo, o Logos eterno, Moisés e João Batista.

Jean Zumstein14 vê o Prólogo segundo seu modelo da “releitura”. Tais “releituras” (“Neulesungen”) ocorrem na Bíblia em diversas formas: como título, como inter ou intratextualidade (remissivas entre textos diversos textos ou para dentro do mesmo texto) e como paratexto. Esta última forma se encontra, segundo Zumstein, no Prólogo de João e no epílogo, cap. 21. Um paratexto tem a função de olhar para trás, para um texto concluído, ou de preparar os leitores para a leitura do texto. Tal texto protege o leitor diante de mal-entendidos, fornece a chave para a decodificação da obra literária e orienta o leitor diante da leitura. Zumstein encontra a legitimação para o prólogo como paratexto sobretudo em Aristótelos (Rhet. 3, 1414b, 19ss.). Com este subsídio conseguimos entender melhor a função do Prólogo joanino dentro do QUARTO EVANGELHO.

Se se pode suspeitar que o Prólogo foi acrescentado apenas na última fase redacional do QUARTO EVANGELHO, explica-se mais facilmente por que conceitos e temas centrais do mesmo não se encontram no restante do evangelho, pelo menos não explicitamente. Assim temos o Logos personificado e sua colaboração na criação, mas também o conceito da “graça”. Por outro lado, porém, a Palavra constitui uma das representações sustentadoras do EVANGELHO DE JOÃO. Já no próprio Prólogo percebe-se um movimento do ser divino do Logos em direção a sua missão junto aos seres humanos. Ele é “luz” e “vida” para os homens. João testemunha dele. Todos

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devem passar a crer nele (1,7; cf. 1,12). A explicação do Prólogo mostrará em particular como se anuncia, no Prólogo, a vinda do Logos divino.

II

A origem da Palavra de Deus (1,1-5)

Os primeiros cinco versículos do Prólogo joanino falam da origem da Palavra divina. Mostram-se quanto à forma e o conteúdo uma unidade coerente e destacada do contexto subsequente. Característico é para o conjunto a composição em escadinha. Um conceito que se encontra no fim do enunciado anterior é retomado no início do posterior, na linha seguinte. Lá ele é esclarecido por um terceiro conceito, que por sua vez aparece no início da terceira linha (a–b, b–c, c–d). Nas primeira três linhas, o conceito Logos conduz ao termo “Deus” no início da segundo linha. Este é desdobrado na terceira linha pelo termo “Logos”, que provém da primeira linha. Assim se dá no interior do v. 1 uma inclusão entre a primeira e a terceira linha. O v. 2 retoma o primeiro termo da primeira e o segundo da segundo linha. Assim eles são reduplicados. Quanto ao conteúdo, trata-se do estar junto a Deus do Logos divino e de seu ser divino. O v. 3 descreve o papel do Logos divino na criação. O tempo gramatical muda do imperfeito ao aoristo. Em nossa análise incluímos a locução “o que foi feito”, no fim do v. 3, no próximo versículo, como se justifica na exegese detalhada: “O que foi feito nela, era (a) vida”. Já divisamos aqui a transição da criação para o desígnio da salvação. A “vida” e a “luz” que se contrapões às trevas são dons da salvação. Estão ligados à Palavra divina de modo permanente (tempo imperfeito) e sua oferta marca o presente (a luz “brilha” nas trevas, presente) , porém, foi rechaçada historicamente (aoristo). Assim, já os versos iniciais do Prólogo introduzem às vicissitudes do Logos no mundo. Quanto à forma, percebemos que nos vv. 3-5 a construção em escadinha continua: o termo “foi feito” leva ao bem que é a “vida”, este termo leva a “luz”, esta a “trevas”, e este termo, à rEvangelho de Joãoeição do Logos. Assim o conjunto inteiro dos primeiros versos do Prólogo mostra-se, estilisticamente, uma unidade fechada.

A construção mostra-se assim:

- a Palavra unto ao Pai antes de todo começo (vv. 1-2);

- a participação da Palavra na obra da criação (v. 3ab);

- a significação da Palavra para os homens e as vicissitudes que ela conhece (vv. 3c-5).

1,1-2 O início do Prólogo de João reconduz ao início primordial. “No princípio” dirige o olhar para a criação e a história. Biblicamente, retoma-se Gn 1,1: “No princípio, Deus criou ...”. No Prólogo joanino, antes de qualquer ação de Deus, trata-se de seu ser, mais exatamente, do ser do Logos divino: seu ser divino e sua natureza divina. O Logos é desde a eternidade. Entenda-se: ele está junto de Deus e é voltado para ele (como sugere a preposição grega prós). E ele é de essência divina: theós, no fim do v. 1, é predicado: ele é Deus. Precisamente este Logos, que era desde o princípio e que estava junto de Deus, sendo de essência divina, ele estava desde o princípio junto de Deus: assim resume e reassume o v. 2.

1,3ab Depois da evocação da presença eterna da Palavra divina junto a Deus, o texto passa para o papel da Palavra na criação do mundo. Nota-se certa [[84]] ênfase. O enunciado do texto no v. 3a é repetido num paralelismo sinonímico com dupla negação. Assim, o mundo todo, sob todos os aspectos, remonta à Palavra divina como mediadora da criação. Na mudança do imperfeito para o aoristo, já se prepara a transição para o olhar sobre a história.

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1,3b-5 Com Nestle-Aland15 e GNT16 incluímos o termo ho egéneto no fim do v. 3 na frase seguinte. Um artigo de K. Aland justifica isso de modo conclusivo17. A lição que assim se propõe é a mais difícil e, por isso, preferível. Entre as traduções antigas, a saídica e a sirociretânia atestam a lição do texto de Aland, e assim também a maioria das testemunhas latinas antigas e o Diatessaron de Taciano. A maioria dos textos gregos ulteriores prefere a lição que inclui “o que foi feito” no v. 3, mas em certo número desses manuscritos se mantém a anterior. Os manuscritos mais antigos não têm pontuação, mas ocasionalmente aparece um espaço entre as palavras, como é o caso aqui (códices C e D, e também pap. 75). Os Santos Padres do séc. II e da primeira metade do séc. III da Gália, África, Egito e Palestina conhecem exclusivamente a lição preferida por Aland. Tanto os textos gnósticos como os antignósticos desta época a supõem. No séc. IV começa a se incluir predominantemente “o que foi feito” na frase anterior. Isso poderia ter sua origem na luta da IgrEvangelho de Joãoa grega contra os arianos (que consideravam o Logos como “feito”), embora a lição por nós preferida se verifique também algumas vezes antes da discussão antiarianita. No Ocidente, esta tendência ainda não é atestada nesse momento. Quanto ao conteúdo, a lição que liga “o que foi feito” ao texto anterior fica aquém do nível teológico do QUARTO EVANGELHO, pois representa uma mera repetição. Por esta razão e outras semelhantes, diversas edições do texto do NT18, bem como comentários e traduções, adotam a lição preferida por Aland19.

Mas como entender? Aparentemente, o termo ho gégenon se liga ao egéneto do v. 3ab. Contudo, a diferença do tempo gramatical (do aoristo ao perfeito) adverte contra uma simples identificação dos dois termos. Trata-se agora daquilo que, de modo permanente (perfeito), veio a ser pela Palavra e atua no presente. Assim prepara-se o presente phainei [[85]] do v. 5. Parece que no fim do v. 3 se trata de outro modo do vir a ser que no ser criado do v. 3ab. O texto passa, ao que parece, para a ordem da salvação. O problema, quando se deixo começar a frase com ho gégonen, está no termo en autôi. A este respeito, os comentadores propõem, principalmente, três modelos. Uma possibilidade é interpretar ho gégonen no início da frase como casus pendens: “O que está feito, nisso ele era a vida”; “ele” seria então entendido cristologicamente: o Logos (assim R. Bultmann, J. Becker, G. R. Beasley-Murray, M. Theobald20, a Bíblia de Jerusalém). Sem esta interpretação cristológica, pode-se dizer também: “O que está feito, nisso havia vida”. Não haveria muita diferença no sentido, porque “a vida” no contexto seguinte deve ser entendida soteriologicamente. A interpretação melhor é defendida por E. L. Miller e já se encontra em R. E. Brown: eles fazem de “o que está feito” não um casus pendens, mas o sujeito de uma frase nominal, devendo ser ligado a “nele”: “O que está feito nele, era (a) vida”. Assim se mantém a referência cronológica ao Logos, e o casus pendens, linguisticamente difícil, é evitado. Neste caso, o Prólogo passaria já neste lugar para a missão no mundo, da criação para a história da salvação. Também do ponto de vista prosódico recomenda-se esta intepretação. Mantém o esquema da escadinha dos três primeiros versículos, que determina também a frase seguinte até o v. 5. Quanto à semântica, segue-se ao egéneto do v. 3b o gégonen do final do v. 3: um deslocamento da ideia da criação ao acontecer de vida e luz na história. Mas este deslocamento pode facilmente passar desapercebido, o que então conduz às

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conhecidas dificuldades de compreensão, que levaram um autor tão renomado com C. K. Barrett a desistir de uma preferência entre as possibilidades de compreensão. A transição da criação “pelo” (diá) Logos no v. 3a ao gégonen en (“está feito em”) como início do v. 4, que incomodou Bultmann, pode ser explicado pela indicação de que no v. 4 não se trata mais da criação, mas da salvação “ no” (en) Logos. À guisa de mediação entre os dois pensamentos remetemos a Cl 1,16: hoti em autôi ektísthē ta pánta (R. E. Browmn).

Com “luz” e “vida” introduzem-se dois termos centrais da teologia joanina. Como ele dá a vida (cf. 3,16.36), e é a vida (cf. 3.31.36), assim Jesus é a luz do mundo (cf. 9,5; 8,12; 12,46). A encarnação da Palavra divina ainda não se expressou aqui, mas parece suposta.

1,5 A luz brilha nas trevas. Também este enunciado se refere ao destino o da Palavra divina no mundo. João exprime isso com o dualismo de “luz” e “trevas”. Segundo ele pertence à missão da luz no mundo brilhar para dentro das trevas e libertar destas a humanidade (cf. 8,12; 12,36.46).

Há discussão em torno do fim do primeiro conjunto do Prólogo: kai hē skotía auto ou katélaben21. Alega-se Jo 12,35 para traduzir “E as trevas não a subjugaram”22. Mas trata-se de um caso isolado no QUARTO EVANGELHO. O dicionário do NT de Bauer indica como significado básico para o verbo katalambánō: “captar, adquirir”, significado que se desloca na direção de “compreender”. Onde o sentido é “subjugar, dominar” acresce o elemento surpresa, que parece excluído pelo pháinei de Jo 1,5 (cf. 1Ts 5,4; Mc 9,18). Se, sobretudo, versões e comentários anglossaxônicos (como RSV) traduzem auto ou katélaben como “não a subjugaram”, fazem isso não em última instância sob influência da maioria dos Padres gregos desde Orígenes. Nisso, não se presta atenção ao modo como Orígenes chegou à sua interpretação. O douto alexandrino tem antes de tudo um interesse teológico. Segundo ele as trevas não são capazes de vencer a luz divina por razões fundamentais. Ele introduz em seu texto um conceito suplementar, a saber, o da perseguição. As trevas perseguem a luz e tentam dominá-la, mas não são capazes disso23. Esta ideia da “perseguição”, porém, não se encontra no texto joanino. A tradição latina não a conhece e fica, portanto, com o sentido de “compreender”. A favor deste sentido pleiteia o contexto de Jo 1,5. Nos vv. 10 e 11 se diz: “Estava no mundo, e o mundo foi feito por ela, mas o mundo não a reconheceu. Veio para o que era seu, mas os seus não a acolheram”. Exatamente este sentido é que parece ser o do v. 5 – passando por cima do parêntese dos vv. 6-8, que trata do Batista.

A referência dos primeiros versículos do Prólogo aos primeiros versículos da Bíblia, Gn 1,1–2,4a, é patente. Ambos os textos começam com “no princípio” e contrapõem “luz” e “trevas”. Ao “Deus disse” de Gênesis corresponde em João “a Palavra”. Ambos os textos falam do “vir a ser” (egéneto é a forma mais frequente na versão grega do primeiro relato da criação). Ambas falam da “vida” como obra de Deus (em Gênesis com referência aos seres vivos, Gn 1,92-30). [[87]]

As vicissitudes da Palavra divina na história (1,6-13)

A transição aos versos que se referem ao Batista, muitas vezes, é percebido como ruptura estilística e teológica no interior do Prólogo joanino. Lembramos que já J. Wellhausen estranhou porque no v. 6, de repente, o Batista “aparece como neve na

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eternidade”. Percebe-se a ruptura ainda mais fortemente quando se quer ver, como muitos autores, um hino pré-joanino por trás do Prólogo. Embora exatamente esta hipótese ofereça também uma explicação para a ruptura no v. 6. O evangelista teria introduzido neste lugar uma tradição a respeito do Batista ou teria ele mesmo comentado o hino preexistente pelos versículos dedicados ao Batista.

Renunciamos aqui a qualquer hipótese literário-crítica e apenas constatamos uma mudança estilística no interior do Prólogo. Passa-se do estilo hínico para um estilo mais narrativo. Esta transição percebe-se também na mudança dos tempos presente, imperfeito e perfeito dos primeiros quatro versículos para o aoristo no v. 6. Esse aoristo já se apresentou em cena no egéneto da criação no v. 3 e no katélaben da reação à revelação do Logos, no v. 5.

Como já avisamos na secção anterior, não vemos na transição vv. 1-5 do Prólogo para os vv. 6-13 a guinada da eternidade ou pre-história para a história. Nossa compreensão dos vv. 4-5 exclui tal visão: o Logos divino, luz dos homens, brilha até o dia de hoje no mundo, mas o mundo não quis abrir-se a essa luz. Portanto, nesse texto não nos encontramos em algum cinzento tempo pré-histórico. Olhando assim, a introdução do Batista não pode ter o sentido de abrir uma nova fase da história da salvação. Só serve para chamar a atenção da comunidade leitora para um confronto importante: não João é a luz do mundo, mas o Logos divino, que logo mais vai ser chamado com seu próprio nome: Jesus Cristo (v. 17).

Convém ver os vv. 6-13 como uma secção própria do Prólogo, sobretudo quando se lê o v. 13 no plural. Os autores que leem o v. 13 no singular (“que foi gerado... de Deus) veem este versículo em íntima união com o v. 14. Como acima dissemos, estes autores que fazem do v. 13-14 o centro de uma estrutura concêntrica. Contudo, mesmo I. de la Potterie mostrou ressalvas quanto a essa hipótese, embora ele, por sua parte, leia o singular24.

A secção inteira se deixa dividir em duas partes. No início estão os vv. 6-8. Eles introduzem o Batista, falam de sua missão e o contrapõem à “luz”. Ele não era a luz, só devia dar testemunho da luz. As duas primeiras frases usam o aoristo, a terceira (v. 8), o imperfeito. E com a troca do sujeito (to phôs) prepara-se a transição para o versículo seguinte.

Os vv. 9-13 podem então ser vistos como uma subsecção própria, como acontece na divisão do texto de Aland-Nestle (28ª ed.). Dentro desta subsecção podem-se distinguir duas partes. Primeiro constata-se o fracasso da missão da “luz” no mundo e aos que são seus (vv. 9-11). Depois, fala-se daqueles que a acolheram (vv. 12-13). A transição linguística se realiza pelo verbo parélabon no fim do v. 11 e o élabon no início do v. 12 (essa duplo uso confirma também o katélaben do v. 5 no sentido de “acolher”).

1,6-8 Por três vezes já, o Prólogo usou o verbo gínesthai. No v. 3 lemos com repetição que tudo “foi feito” (egéneto) pela Palavra divina. No v. 4, interpretamos ho gégonen no sentido de que o que nela “está feita” era a vida. Assim, a expressão já ganhou um sentido que aponta para a história. Com o egéneto ánthrōpos do v. 6, entramos definitivamente na história conhecida. O sentido da expressão pode ser traduzido por “surgiu, apareceu”. Isso se deduz também do contexto: João Batista foi enviado por Deus e “veio” para dar testemunho (v. 7). Aparece aqui a concretização crescente que reconhecemos como marca fundamental do Prólogo joanino: desde a criação em direção à história humana nem geral até o momento histórico do surgimento do Batista.

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É notável que o quarto evangelista recusa para João o título de “Batista”. Nem mesmo relata o batismo de Jesus por João como o encontramos nos outros evanglehos. A razão disso é a teologia joanina, que vê no Batista exclusivamente a testemunha de Jesus. A secção 1,19-34 serve inteirinha para essa finalidade. Acrescem a isso Jo 53,26 e 5,33. Aqui no Prólogo, o significado de João parece ao mesmo tempo relativizado e valorizado: ele não é outra coisa senão testemunha de Jesus Cristo, luz e salvador do mundo. Os exegetas remetem regularmente a certa veneração do Batista em círculos judaicas e talvez também em círculos cristãos (cf. At 19,3s.). Ao lado de tal finalidade apologética, que visa a garantir a unicidade de Cristo, o papel de João se insere também na teologia joanina do testemunho. Segundo esta, não apenas João testemunha a favor de Jesus, mas o próprio deus Pai, as Escrituras de Israel, as obras de Jesus, o Espírito e os discípulos de Jesus são testemunhas em seu “grande processo” com o mundo (cf. Jo 5,31-40; 8,12-20; 10,25; [[90]] 15,26s.)25. A conexão de martyréin com a preposição perí no sentido de testemunhar acerca de uma pessoa, no caso, Jesus, é característica do quarto evangelista, e fora do EVANGELHO DE JOÃO raras vezes se encontro no NT. Geralmente, em João, a expressão significa o testemunho “a favor” de Jesus. O texto aqui fala do testemunho a favor da “luz”, utilizando o termo que, no início do Prólogo, descrevia a incumbência da Palavra divina em sua entrada no mundo.

O testemunho, no EVANGELHO DE JOÃO, sempre serve para suscitar a fé em Jesus. Assim, Jo 3, com sua menção ao testemunho do Batista (3,26), termina na promessa de vida eterna para aqueles que acolhem Jesus na fé (3,36). A secção inteira Jo 5,31-40 serve para a finalidade de levar a Jesus, com base no repetido testemunho a favor de Jesus (cf. 5,38). Coisa semelhante vale para Jo 8,12-20, mesmo se aí falta o verbo pistéuein; os conceitos aparentados são “reconhecer” e “julgar”.

E evidente, em Jo 1,6-8, a influência da tradição sinóptica dos inícios da atividade pública de João Batista. Em Mc 1,3 está: egéneto Iōánnēs baptízōn em tēi erêmōi (cf. também Mt 3,1; Lc 3,2). Em sua forma primitiva, o relato de João talvez tenha sido semelhante.

1,9-11 Depois da “digressão” a respeito de João Batista, nos vv. 6-8, o texto do Prólogo volta aos versículos iniciais, sobretudo o v. 5. Um elemento de continuidade encontra-se no conceito de “luz”, utilizado na evocação da missão do Batista nos vv. 7-8. É possível que, originalmente, o v. 5 continuava no v. 1026. É possível também que num hino original os v. 5e 9 se seguiam27. A opinião de Schnackenburg é de que o hino começava com os vv. 1-4 e continuava no v. 928.

No início do v. 9 há um problema de tradução. As palavrvas erkhómenon eis ton kósmon podem ser ligados quer a ên to phôs to alêthinon, quer a pánta ánthrôpon. As opiniões se dividem, mas a maioria dos estudiosos prefere a ligação a ên to phôs to alêthinon. A ideia do “homem vindo ao mundo” parece antes alheia ao mundo bíblico e joanino, enquanto a vinda do Cristo ao mundo é uma representação corriqueira, precisamente em João. Alegam-se os seguintes textos para o “vir” de Cristo da parte de Deus: Jo 5,43; 7,28; 1,14.21; 9,39; 10,10; 12,47; 13,3; 16,28; 18,37 29. Jo 1,9 aproxima-se, sobretudo, de Jo 9,39 e 12,47, visto que nestes textos o “vir” está ligado ao tema da “luz” (cf. também 8,14). Assim, Jo 1,9 pode ser traduzido por uma construção perifrástica: “A luz verdadeira, que ilumina todo homem, veio [lit. estava vindo] ao

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mundo”; ou por uma frase de identificação: “(A Palavra) era a luz verdadeira, que ilumina todo homem. Ela veio ao mundo.”. É assim que a maioria das traduções recentes entendem a frase30.

Quanto ao conteúdo, o v. 9 retoma a vinda da luz ao mundo do v. 5. A ideia de que esta luz ilumina todo homem é retomada do v. 4. Segundo o v. 9, a luz não vem somente para os “iluminados”, mas para “todo homem”. Este universalismo continua no v. 10. Como o mundo inteiro é obra da criação pela Palavra de Deus, o mundo deveria acolhê-la. As palavras kai ho kósmos di’autóu egéneto podem ter sido acrescentadas para acentuar a conexão com o v. 3. A rEvangelho de Joãoeição da Palavra divina pelo “mundo” parece irrestrita. O mundo não (re)conheceu essa Palavra. Num paralelismo exato com este enunciado, o v. 11 escreve: “Ele veio a que é seu, e os seus não a acolheram”. Quem são esses “seus”? Pode-se pensar nos judeus, mas a visão universalista do contexto desaconselha isso. Trata-se dos seres humanos que da parte de Deus foram criados na Palavra, “todos” (v. 7), “todo homem” (v. 9), o “mundo” (v. 10). O destino da Sabedoria divina entra aqui no sentido em que está em Provérbios, na Sabedoria ou no Eclesiástico31. Estes hinos mostram que a Palavra participa da obra da criação. Segundo Pr 8,31, ela se “alegrava em estar com os filhos dos homens”. O hino de Eclo 24 louva a missão da Sabedoria no mundo e sua acolhida em Israel e no monte Sião. Identificar “os seus” em Jo 1,11 com Israel estaria em franca contradição com essas representações sapienciais.

Segundo muitos autores32 o v. 12ab pertenceria ao suposto hino pré-joanino, enquanto as linhas seguintes (v. 12c-13) teriam sido acrescentadas pelo evangelista. Assim se explicaria uma dificuldade lógica: por um lado promete-se, aos que creem, a filiação divina (12a-c), mas por outro lado (12d-13) só pode chegar à fé quem é nascido de Deus e não apenas [[92]] dos pais físicos. “Acolher” a Luz/a Palavra (v. 12a) é equivalente a “crer” na Luz (v. 12c). Esta fé se apresenta como dom divino, fruto de um nascimento de Deus. O v. 13 exclui toda a colaboração humana no nascimento de quem nasceu de Deus, quer física (ex haimátōn) ou psicológica (ek thelêmatos sarkos ... andrós). A ideia de tal nascimento ou geração a partir de Deus é, antes, estranha à Bíblia, mas encontra paralelos na mitologia oriental e greco-romana (pense em nomes como “Diógenes” e “Hermógenes”). Do ponto de vista teológico, a aparente contradição entre a filiação divina como condição ou como consequência da fé provavelmente se resolve pela visão complementar: a fé pressupõe, por um lado, a graça divina, mas, por outro, conduz também à filiação divina; ora, como o quarto evangelista não dispunha de um sistema que permitisse harmonizar os dois aspectos, ele os justapôs, de modo que a visão certa se dá na contemplação simultânea de ambos.

Não há, até agora, plena concórdia quanto ao texto do v. 13. No lugar do plural “os que nasceram/foram gerados de Deus”33, apresenta-se desde a Antiguidade, embora rara, a lição no singular (“o que nasceu/foi gerado de Deus”). O plural serve de base para o texto de Nestle-Aland (28ª ed.) e do GNT (4ª ed.), obtendo a nota mais alta (A = sem dúvida). É a lição do todos os manuscritos gregos. O singular aparece a partir do séc. II, pela primeira vez em Tertuliano, possivelmente também em Hipólito, certamente em Ireneu, na Epistula Apostolorum, na códice “b” da Vetus Latina (Codex Veronensis), no assim chamado Liber Comicus (lecionário de Toledo) e em alguns manuscritos da

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tradição siríaca34. I. de la Potterie35 e J. Galot36 indicam estas testemunhas37. Mas esta atestação externa continua muito fraca, por faltar completamente nos manuscritos gregos do NT. Isso explica a avaliação dos editores de Nestle-Aland (28ª ed.) e do GNT (4ª ed.). A atestação externa da lição no plural recebe o apoio dos papiros do II e III séculos (pap. 66 e 75) e do próprio Tertuliano, que a menciona ao polemizar contra ela38.

Olhemos, pois, os critérios internos. Segundo Tertuliano, o plural provém dos gnósticos, para dar uma base escritural à origem do home espiritual. Este argumento não convence, como já observa B. M. Metzger39. Os gnósticos distinguem entre os homens do Espírito, os pneumáticos, e os demais, os homens da carne. Afirmar que todos os homens se originam de Deus e não da mulher estaria em contradição com as convicções gnósticas. Do outro lado, entende-se a origem da leitura no singular a partir do empenho dos autores da IgrEvangelho de Joãoa antiga por encontrar em João o nascimento virginal de Jesus, atestado por Mateus e Lucas. O termo autóu no fim do v. 13 pode ter provocado esta adaptação40. Investigações novas que favorecem a lição no singular geralmente não a atribuem ao texto canônico do EVANGELHO DE JOÃO41.

A encarnação da Palavra e sua acolhida na comunidade (1,14-18)

Os últimos cinco versículos do Prólogo do QUARTO EVANGELHO são considerados pela maioria dos exegetas como o ápice deste texto joanino fundamental. Finalmente aparece agora no texto o nome Jesus Cristo (v. 17). Aqui aparecem novamente os termos lógos e theós dos verfsículos iniciais, para serem aplicados a Jesus. A impressão de uma inclusão entre o v. 1 e os vv. 14-18 confirma-se pelo fato de que a confissão de fé em Jesus como “Deus” voltará no evangelho apenas mais uma vez: na confissão de fé de Tomé, quase no fim do relato evangélico de João, em Jo 20,28, antes do epílogo do cap. 21. Isso sugere, portanto, uma inclusão mais ampla, que abrangeria a forma original do evangelho inteiro. A encarnação do Logos, porém, não encontra ressonância no restante do evangelho. Teologicamente, constitui, com certeza, o ponto alto do Prólogo. O percurso ulterior do evangelho descreverá o caminho desse Logos que se tornou carne.

Quando se considera a articulação de Jo 1,14-18 nota-se, antes de tudo, a diferença estilística e conteudística entre o v. 15 e seu contexto. Os vv. 14 e 16 demonstram um estilo hínico, mostram continuidade [[94]], cantam a encarnação da Palavra e seu efeito na comunidade. O v. 15, ao contrário, reata com a menção ao Batista nos vv. 6-8 e sai da prosódia dos versos vizinhos. Os vv. 17 e 18 voltam mais para essa prosódia e se revelam também aparentadas entre si.

1,14 O verso central divide-se em cinco linhas. As duas primeiras falam da encarnação do Logos e de sua habitação “no meio de nós”, expressão que traz a comunidade leitora à cena. Esta constitui o sujeito da terceira linha: ela contemplou a glória da Palavra feita carne. As duas últimas linhas desdobram essa “glória” com vistas a seu portador e seu afeito na comunidade leitora.

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A primeira linha é marcad pelo pela linguagem e pleo pensamento jonaues. As loinhas seguintas retomam mais visivelment eo vocabulário e as represetnqações da Esciruturas de Israel. Como dissemos antes42, encontra-se por trás dos vv. 1-5 do Prólogo o relato da criação do GÊnesis, por trás dos versículo seguintes a tradição evangélica a repseito de João Batista e, por trás de 1,14.16-18, a trDição do Êxodo. Este \modo de ver é compartilhado por muitos exegetas d Evangelho de Joãooão. A fiugra de Moisés é mencionada somente no v. 17, mas a teofania do sinai está por trás da secção inteira a partir do v. 14. Para atradição sacerdotal, a criação tem seu acabamento no erguimento da “Tenda” entre os filhos de Israel (Ex 40). Nesta tendo Deus habita no meio de seu pçovoe descansa de suas obras 43. Na tradição targumica os termos “shekiná” (“morada” na tenda), “palavra” e “glória” de Deus substituem o termo Deus. Evita-se assim mencionar o seu nome. Todos esses termos encontram-se no Prológo de João e no presente versículo. O binômio “graça e verdade” (kháritos kai alētheias) vem das palavras que Moisés ouviu na teofania de Ex 34: “O SENHOR, o SENHOR, Deus misericordioso e clemente, lento para a ira e rico em bondade/graça e fidelidade/verdade”, sendo que os dois últimos termos na tradução grega (Septuaginta) soam poyéleos kai alēthinós. O novo em Jo 1,15 consiste em anunciar que este Deus se revelou em Jesus Cristo, o Logos encarnado. Para isso não há paralelos nem judaicos, nem protocristãos. Ele é o Filho “unigênito”, o que lembra Isaac em Gen 22. E por que o Prólogo diz que o Logos se tornou “carne” e não homem/ser humano? A razão poderia ser que, na época da redação do Prólogo, a verdadeira humanidade de Jesus, sua existência em carne e sangue, seu nascimento e sua morte já se tornaram objeto de discussão e impugnação da parte dos círculos protognósticos. Assim se entende a ênfase dada à carne de Jesus nos textos joaneus tardios no EVANGELHO DE JOÃO (Jo 6,51-56) e nas cartas (1Jo 4,2s.; 2Jo 7). Invertendo o raciocínio pode-se concluir que o Prólogo, ou pelo menos esta secção do Prólogo, pertence à última fase do EVANGELHO DE JOÃO, como “releitura”, embora disso não segue que estes versos sEvangelho de Joãoam pós-joaneus44.

1,15 No v. 15 reaparece a figura do João Batista, já mencionada antes, nos vv. 6-8. A menção a ele assinalou a entrada da Palavra divina na história dos homens, e sua nomeação como testemunha a favor de Jesus,o começo do “grande processo” entre Jesus e o mundo. Como observa I. de la Potterie45, existe uma diferença gramatical entre os vv. 6-8 e o v. 15. Nos vv. 6-8, o testemunho de João aparece como um acontecimento do passado. João surgiu e deu testemunho a favor da luz, Jesus, o Logos. Segundo o v. 15 o, testemunho de João é um acontecimento presente: João “dá testemunho dele e proclama”. O perfeito kékragen provavelmente tem aqui, em paralelismo com martyréi, o significado do presente46. O conteúdo de seu testemunho antecipa Jo 1,30, mas, contrariamente a esse versículo, o v. 15 faz da precedência de Jesus sobre João o enunciado principal. Fisicamente, Jesus vem atrás de João Batista, e temporalmente apresenta-se aos israelitas depois dele, mas contudo, ele é primeiro e remonta mais longe no tempo. Assim, João Batista torna-se testemunha da preexistência de Jesus, o que significa para o leitor: até na eternidade (cf. vv. 1-2). Para os leitores antigos, o mais antigo merecia respeito maior. Aliás, os leitores do EVANGELHO DE JOÃO sabiam que Jesus não apenas era mais antigo que João, mas antecedia qualquer cômputo do tempo.

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1,16 O v. 16 reata com o v. 14. Volta a 1ª pessoa do plural, que já se encontrava no v.14: o “nós” da comunidade cantando louvor. Reencontra-se também a menção à “graça”. No v. 14 ele é mencionada como eco reconhecível da tradição do Êxodo. No v. 16, o sentido é mais pronunciadamente cristão. A expressão khárin anti kháritos pode ser entendida em diversos sentidos: “graça por graça”, “graça sempre maior”, ou “uma graça em vez da outra”. A primeira interpretação parece a mais provável, também porque logo se segue a expressão “plenitude” (plêrōma). Fora este lugar encontra-se no NT só em Paulo e sua escola e assinala a plenitude da salvação escatológica em Cristo (cf. sobretudo Cl 1,19; Ef 1,10.23).

1,17-18 Nos últimos três versículos, o texto volta à terceiro pessoa do singular. Duas antíteses constituem o conteúdo de ambos os versículos: no v. 17, a graça da Lei por mediação de Moisés e a vinda de graça e verdade em Jesus Cristo; e no v. 18, a invisibilidade de Deus e sua contemplação por Jesus, o “exegeta” do Pai. O dom da Lei por mediação de Moisés e a vinda de graça e verdade por Cristo podem ser entendidos de diversas maneiras. Segundo alguns, trata-se de um paralelismo antitético, portanto, de uma contraposição. Essa compreensão já se reconhece no pap. 66 e em algumas outras testemunhas textuais antigas. Autores recentes, pelo contrário, preferem um paralelismo em clímax: a graça e a verdade que vieram por Jesus Cristo superam o dom da Lei mediado por Moisés. Para os leitores não se trata, então, de uma diferença quantitativa, mas qualitativa. Há certa ironia no fato de que o dom da “graça e verdade” em Jesus é uma expressão que vem precisamente da segundo manifestação de Deus a Moisés no Sinai, Ex 34,6 LXX (cf. acima, v. 14).

A antítese formulada no v. 18 se inspira no livro do Êxodo. Depois do episódio do bezerro de ouro, Moisés solicita um novo encontro com Deus. Este pedido é atendido em parte, por Deus, mas ele acrescenta: “Não poderás ver minha face, porque ninguém pode ver-me e permanecer vivo” (Ex 33,20). Moisés só verá Deus pelas costas quando ele passar diante dele; seu rosto, não poderá enxergá-lo (Ex 33,23). Que ninguém jamais viu Deus é um tema que João repete (cf. 5,37; 6,46; também 14,9). Só Jesus o viu, ele, que “repousa sobre o coração do Pai”, em contraste com Moisés, que o viu apenas pelas costas. A razão disso é que Jesus é o “unigênito”47, do mesmo ser e natureza do Pai: “Deus”48. Por isso, só ele pode anunciar algo da parte do Pai e ser o seu “exegeta”49. (Quanto ao lugar “sobre o coração” do Pai, cf. o Discípulo Amado, que, segundo Jo 13,25, na ceia terá um lugar semelhante ao coração de Jesus e anunciará da parte dele).

III

O que diz este texto para o público leitor hoje?50 Para responder a esta pergunta deve=se observar, por um lado, a estratégia narrativa do texto e, por outro, o horizonte de expectativa e compreensão das leitoras e dos leitores de hoje.

Como se mostrou, o Prólogo de João leva o leitor passo a passo ao (re)conhecimento da palavra de Deus na figura histórica de Jesus Cristo51. O véu é levantado apenas no v.17, mas o acontecer da encarnação da Palavra em história humana é anunciado desde o v. 3. “Luz” e “vida” são comunicadas à pessoa humana, na Palavra divina, em manifestação histórica. É disso que o Batista deu testemunho, e o enunciado da encarnação no v. 14 apenas torna explícito o que já antes se podia ouvir em surdina.

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A resposta adequada ao anúncio da vinda da Palavra divina na história é a fé. É dela que trata, sobretudo, a parte central do Prólogo, os vv. 6-13. O testemunho do Batista pretende conduzir a esta fé. E quem a encontra, torna-se filho de Deus e mostra-se filho de Deus.

Os evangelhos sinópticos começam com o relato da atividade inicial de Jesus (Marcos) ou de sua origem (Mateus e Lucas). Em contraste com eles, o evangelista João abre seu evangelho com um cântico que canta a origem divina da Palavra. A partir do v. 14, os cantores desse cântico aparecem expressamente como “nós”. Assim são integrados no relato do princípio primordial, antes dos séculos. Cantam-no com a autor e seu círculo. Destarte, não apenas se ouve um relato, mas releva-se uma confissão de fé que se expressa no culto. Tem-se a impressão de que esta maneira de falar da encarnação de Deus é adequada a seu objeto. Da vinda de Deus ao homem não se pode falar, afinal, na linguagem objetivante de um relato, mas apenas na forma do anúncio, à qual corresponde a posição da fé na comunidade dos que creem. Assim, o Prólogo de João é ao mesmo tempo expressão de seu tempo e discurso adequado de Deus também no sentido do pensamento teológico de hoje52.

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2 O testemunho de João Batista (1,19-34)19 Este é o testemunho de João, quando os judeus enviaram, de Jerusalém, sacerdotes e levitas para lhe perguntar: “Quem és tu?”. 20 Ele confessou e não negou; ele confessou: “Eu não sou o Cristo”. 21 Perguntaram: “Quem és, então? Tu és Elias?” Respondeu: “Não sou”. – “Tu és o profeta?” – “Não”, respondeu ele. 22 Perguntaram-lhe: “Quem és, afinal? Precisamos dar uma resposta àqueles que nos enviaram. Que dizes a respeito de ti mesmo?” 23 Ele declarou: “Eu sou a voz de alguém que grita no deserto: ‘Aplanai o caminho do Senhor!’”, como disse o profeta Isaías. 24 Eles tinham sido enviados da parte dos fariseus. 25 Perguntaram a João: “Por que, então, batizas, se não és o Cristo, nem Elias, nem o profeta?” 26 João lhes respondeu: “Eu batizo com água. Mas entre vós está alguém que vós não conheceis: 27 aquele que vem depois de mim, e do qual eu não sou digno de desamarrar as correias da sandália!” 28 Isso aconteceu em Betânia, do outro lado do Jordão, onde João estava batizando. 29 Na manhã seguinte, João viu que Jesus vinha a seu encontro e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo. 30 Este é de quem eu disse: ‘Depois de mim está vindo um homem que veio à minha frente, porque era antes de mim’! 31 Eu também não o conhecia, mas vim batizar com água para que ele fosse manifestado a Israel”. 32 João ainda testemunhou: “Eu vi o Espírito descer do céu, como pomba, e permanecer sobre ele. 33 Pois eu não o conhecia, mas aquele que me enviou disse-me: ‘Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, é ele quem batiza com Espírito Santo’. 34 Eu vi, e por isso testemunho: este é o Filho de Deus!”

I

Com Jo 1,19 inicia-se, depois do Prólogo, a narrativa do EVANGELHO DE JOÃO. No início, em Jo 1,19-51, encontramos quatro cenas conectadas entre si quanto ao cenário, a cronologia e os atores. Uma nota cronológica ulterior, em 2,1, completa a sequência das cenas formando uma “semana inicial”, que no seu tempo contemplaremos e que termina nas bodas de Caná. As quatro primeiras cenas são separadas umas das outras pelas notas cronológicas “na manhã seguinte” em Jo 1,29.35.43. Todas elas se passam na margem do rio Jordão. As duas primeiras se mostram interligadas, bem como as duas últimas cenas. As cenas Jo 1,19-28 e 1,29-34 estão unidas pelo tema comum do “testemunho”, já introduzido por Jo 1,6-8 e 1,15. O v. 1,19 serve de “sobrescrito” para esta secção, Jo 1,19-34. A dupla menção ao “testemunhar” em 1,32-34 completa a moldura da secção.

A divisão da secção é evidenciada pelas indicações de cenário e pelo conteúdo. A nota cronológica “na manhã seguinte” de 1,29 produz no conjunto dos versos uma divisão, na qual os conteúdos se mostram muito próximos. Em Jo 1,19-18, o Batista fala de si mesmo e de sua atuação, de Jesus, porém, só indiretamente; em 1,19-34 fala de Jesus diretamente com aquele que há de vir. Por isso podemos intitular 1,19-28 “O testemunho indireto de João acerca de Jesus” e 1,29-34 “O testemunho direto de João acerca de Jesus”.

Na parte narrativa do EVANGELHO DE JOÃO o testemunho do Batista de 1,19-34 forma uma inclusão com 10,40-42, onde se menciona João Batista pela última vez, novamente na paisagem do rio Jordão. João não fez sinais, mas tudo o que falou a respeito de Jesus era verdade; e, por ele, muitos passaram a crer em Jesus. Assim, João deixa definitivamente a cena e dá lugar, ao lado de Jesus, ao amigo deste, Lázaro (Jo

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11–12), antes que o lugar deste é ocupado pelo Discípulo Amado (Jo 13–21). Com isso demarcam-se também as partes principais do evangelho.

II

O testemunho indireto de João acerca de Jesus (Jo 1,19-28)

Esta perícope pode ser dividida em duas partes como base em indícios formais e conteudísticos. No meio encontra-se a nota do v. 24, dizendo que os sacerdotes e levitas enviados a Jesus foram enviados da parte dos fariseus. Os vv. 19-23 respondem à pergunta dirigida a João: “Quem és tu?”, os vv. 25-28 à pergunto do porquê de seu batismo.

1,19-23 Nos vv. 19-23 o assunto é a pessoa de João, nos vv. 25-28, a sua atuação, o seu batismo. No incíio, no v. 19, apresenta-se um sobrescrito redigido em estilo tipicamente joanino (pronome demonstrativo inicial seguido de uma frase definitória, cf. Jo 15,12; 17,3; 1Jo 3,11 etc.). Não é totalmente claro até onde vai a secção assim introduzida. Muitos comentadores pensam: até 1,34. Mas o testemunho do Batista tem alcance além deste versículo; é retomado na indicação “Eis o cordeiro de Deus” de 1,35. E, como já mencionamos, em 3,22-30; 5,33-35 e 10,40-42 encontram-se outras menções ao Batista. Por isso pode-se ver em Jo 1,19 o sobrescrito de toda a primeira parte do evangelho. Além disso, neste versículo introduzem-se os outros atores da primeira parte do EVANGELHO DE JOÃO: sacerdotes e levitas enviados de Jerusalém para ganhar informações acerca da pessoa e da atividade de João Batista. Os que os enviam são “os judeus”, entendidos como os que exercem a responsabilidade sobre o povo judeu em Jerusalém.

Do fim do v. 19 até o v. 23, o grupo de versículos é marcado por frases nominais no tempo presente. No centro da narrativa está a figura do Batista. Sua resposta à delegação de Jerusalém é introduzida por uma frase solene: “Ele confessou e não negou; ele confessou ...”. Pela primeira vez apresenta-se aqui o significado do “confessar” para a comunidade leitora do QUARTO EVANGELHO. Já apontamos isso antes53.

A resposta de João pode ser articulada em uma parte negativa e uma parte positiva. O enunciado mais importante para os leitores do QUARTO EVANGELHO encontra-se na primeira parte, negativa: João não é o Cristo. Este enunciado retoma o que foi dito sobre o Batista no Prólogo (1,6-8): João “não é a luz”, que é o Logos encarnado em Jesus Cristo. Além disso, João recusa a identificação com Elias, cuja volta se esperava para o tempo final. Nem é o profeta anunciado de acordo com Dt 18,18. A razão dessa recusa consiste no fato de que sempre se relacionava com a figura de Elias a representação do “precursor”, papel que o QUARTO EVANGELHO não admite. A origem de Jesus é de outra ordem: do ponto de vista do quarto evangelista é impossível que ele tenha precursor54.

A resposta positiva do Batista nos vv. 22-23 alega Is 40,3LXX, já utilizado pelos sinópticos neste contexto. O “Batista” (o QUARTO EVANGELHO nunca o indica com este termo) não é mais do que a voz de alguém que clama no deserto, convidando a preparar o caminho para o Senhor. Textualmente a citação corresponde em grande medida à Septuaginta, com uma diferença no termo “aplanai” (euthýnate), que hoje se tende a atribuir ao evangelista e não a uma fonte pré-joanina. Evidentemente, também o ego (“eu”) na introdução da citação vem da mão do evangelista. Para um autor cristão

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como o quarto evangelista não há dúvida que o kýrios de Is 40,3 significa Jesus, o Senhor da comunidade cristã, no qual Deus veio visitar seu povo. João Batista não aparece como seu precursor, mas como a voz que anuncia a sua chegada.

Pro trás da secção Jo 1,19-23, bem como por trás dos versículos seguinte até o v. 34, é possível reconhecer a tradição sinóptica. De imediato se reconhece a entrada em cena do Batista segundo Mc 1,2-11. Que o quarto evangelista não oferece uma descrição do Batista e sua pregação penitencial permite concluir que ele se baseia principalmente em Marcos e não na tradição paralela de Mateus e Lucas (Q). As divergências em relação a Marcos se derivam da intervenção redacional do quarto evangelista55.

Logo no início da perícope, no v. 19, percebe-se a influência da perspectiva joanina. É introduzido o tema que é determinante para o quarto evangelista: o testemunho. A delegação de Jerusalém abre uma primeira fase crítica da relação entre Jesus ou o Batista e as autoridades judaicas de Jerusalém. O evangelista fala de “sacerdotes e levitas”, com a intenção de dar aos enviados de Jerusalém um perfil modesto. Este vocabulário não é indício de uma fonte joanina autônoma.

O fato de, desde o início, o olhar se voltar para a pessoa do Batista, mais uma vez deixa se explicar em vista dos interesses literários e teológicos do evangelista. Desde o Prólogo, a relação entre o Batista e Jesus é um tema central. Que João não usou a citação de Malaquias (Ml 3,1) que aparece nos sinópticos explica-se pela intenção do evangelista de não apresentar o Batista como precursor de Jesus. Quando, mesmo assim, a citação de Isaías aparece na boca do Batista, no EVANGELHO DE JOÃO, ela ganha mais peso. A introdução pela fórmula “ele confessou e não negou, ele confessou” se explica pela importância da confissão do Batista, como já apontamos antes56.

Por que perguntam os delegados de Jerusalém ao Batista se ele é o Cristo, Elias ou um dos profetas? Comentadores como J. Becker acham que esses títulos faltam na tradição sinóptica a respeito do Batista. U. Busse57 e D.-A. Koch58 perceberam que a sequência desses títulos pode ter sido gerado a partir de Mc 8,27-30 parr. Acrescente-se Mc 6,14-1659. No texto de Mc 8, os discípulos respondem à pergunta de Jesus sobre a opinião do povo a seu respeito: alguns dizem João Batista, outros, Elias, outros, algum dos profetas. E Pedro responde em nome do grupo dos discípulos: “Tu és o Messias”. O QUARTO EVANGELHO menciona este título no início da presente perícope. Evidentemente, elimina a menção ao Batista e continua logo com os títulos de Elias e do profeta, aqui entendido como “o Profeta” no sentido de Dt 18,18.

Outros elementos da cena introdutória de Marcus estão ausentes em João, por exemplo, a menção ao “ermo” como cenário da atividade de João, pois esse elemento acentuaria demais o papel do João como profeta. Assim também a descrição de seu vestuário e alimentação, que apontariam na mesma direção. Para o quarto evangelista, João é a testemunha de Jesus, nada mais e nada menos.

1,24-28 A segunda subsecção nos fornece mais informação sobre o grupo mencionado no começo, em 1,19. Há duas maneiras de interpretar a sintaxe do v. 24. Muitas vezes ele é traduzido: “E os enviados eram dentre os fariseus”. Mas neste caso esperar-se-ia o artigo hoi antes de apestalménoi. Ora, o artigo falta nos manuscritos mais antigos. Ele se encontra-se como correção secundária em alguns manuscritos ( 2א Ac C3 Ws); no mais,

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tem pouca atestação ({{gr. 102}}). Por isso traduzimos: “Eles tinham sido enviados da parte dos fariseus”. A preposição ek equivale então a apó. Também em outros lugares em João os fariseus aparecem como o grupo hegemônico em Jerusalém, certamente sob influência da época da redação do QUARTO EVANGELHO, quando os fariseus representavam o único grupo influente que restava no judaísmo, depois de 70 d.C. Como eles eram leigos, dificilmente se imagina que os sacerdotes e levitas mencionados no v. 19 lhes tenham obedecido.

A resposta de João à pergunta por que ele batizava não indica, de imediato, o sentido de sua atividade, mas a liga a Cristo. Enquanto ele, o Batista, batiza com água, está no meio dos judeus, na margem do rio Jordão, um que vem depois dele e do qual ele não é digno de desatar a sandália. Esperar-se-ia aqui uma palavra sobre o Espírito Santo que Jesus deve conceder, mas esta palavra só é citada na cena seguinte, no v. 33. Aqui, nos vv. 24-28, o assunto é a dignidade de Jesus, inclusive em comparação com o Batista. O fato de os judeus não o reconhecerem é interpretado por meio do tema do Messias desconhecido (v. 26). No fim da perícope vem a indicação do lugar, atrasada, mas isso pertence ao estilo de João; não convém atribuí-lo a outra mão que a sua60. Esta nota forma uma inclusão com a Betânia de Jo 11,1, com a locução “no outro lado do Jordão”, à qual corresponde o cenário de Jo 10,40-4261.

A pergunta pela origem de Jo 1,24-28 leva à conclusão de que o trecho é fortemente marcado pela mão do evangelista. A distinção terminológica entre “os judeus” no v. 19 e “os fariseus” no v. 24 não aponta para fontes diversas, mas explica-se pelo uso linguístico do quarto evangelista, que também em outros lugares parece usar os dois termos como sinônimos62. A resposta do Batista no v. 26 corresponde a Mc 1,8. O quarto evangelista, porém, suprime o anuncio do Batista a respeito do mais forte que ele, que há de vir depois dele, porque, aqui, isso exprimira apenas uma diferença quantitativa entre ele e Jesus. Para o quarto evangelista, isso não seria suficiente. Assim falta neste lugar a segunda metade da palavra do Batista, o anúncio daquele que batiza com o Espírito Santo. O quarto evangelista traz esta palavra no v. 33, relacionando-a com a descido do Espírito Santo sobre Jesus. Nos vv. 24-28 é a figura do Batista que está no primeiro plano. Jesus vem depois do Batista, mas tem dignidade maior do que ele. Isso é expresso com a palavra, colhida de Marcos, que diz que o Batista não é digno de desatar a correia da sandália de Jesus. Esta palavra encontra-se em Mc 1,7 par. e também em At 13,25, como aponta É. Trocmé63. Isso pode ser um indício interessante para a origem na história da tradição deste tema em João. O tema do Messias desconhecido é ao mesmo tempo tradicional e joanino: o mundo e os que lhe pertencem não reconhecem Jesus, a luz verdadeira (assim já em Jo 1,10-11).

O testemunho direto de João acerca de Jesus (Jo 1,19-28)

Os versículos seguintes poderiam ser intitulados “o testemunho de João acerca de Jesus”, mas isso não se recomenda, pois, como vimos, também os vv. 19-28 já tratavam de um testemunho de João sobre Jesus, ainda que de forma indireta. O batista negou ser o Messias ou, de alguma maneira, um “precursor” do Messias. A nova cena começa, no v. 29, com uma indicação do tempo (“na manhã seguinte”) e termina no v. 34, antes da nova indicação da manhã seguinte no v. 35.

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Nos vv. 29-34, o Batista vê Jesus vindo em sua direção e o aponta com as palavras: “Eis o Cordeiro de Deus”. Na continuidade, o Batista dá testemunho de sua própria experiência espiritual, segundo a qual ele viu o espírito descer sobre Jesus e permanecer sobre ele. A cena se encerra com um testemunho sobre Jesus que corresponde perfeitamente ao credo da comunidade joanina.

Segundo critérios linguísticos e conteudísticos a cena de vv. 19-34 pode ser subdividia em duas cenas, como faz a edição do texto de Nestle-Aland. O segunda subdivisão é emoldurada pelo tema do “testemunhar” nos vv. 32 e 34 (martyréin). O Batistga dpa testemunho de uma visão e de uma audição que lhe ocorreram no seu primeiro encontro com Jesus. Este primeiro encontro está descrito nos vv. 29-31. No meio ou no fim das declarações do João Batista nos vv. 29-31 e nos vv. 42-34 aparece uma identificação: houtos estín (v. 30 e v. 34): “Este é de quem eu disse ...”, “Este é o Filho de Deus”.

1,29-31 Os vv. 29-31 podem ser intitulados “O Cordeiro de Deus”. A secção começa no v. 29 com a indicação temporal “na manhã seguinte”, início de uma nova cena. Pode-se supor que os ouvintes de João não são mais a delegação de Jerusalém. São as multidões populares que vieram até o Jordão para ouvir João e para se fazer batizar por ele. “Ele viu ... e disse: Eis...” é uma fórmula bíblica, como mostra R. E. Brown (ad locum, e cf. 1,47). O “vir” de Jesus pode ter um sentido mais profundo (o “vir” daquele que há de vir, cf. 1,9; 4,35s.). Mas qual é o sentido da palavra “Eis o Cordeiro de Deus”? Com R. E. Brown podemos distinguir três significações principais:

- um cordeiro apocalíptico, como mencionado em texto apocalípticos contemporâneos (Test.Jos. 19,8; Hen.Aeth. 90,38 etc.): uma figura escatológica e messiânica do tempo final. Tal interpretação é preferida, sobretudo, por autores que procuram salvar a palavra sobre o cordeiro como dito histórico do Batista;

- o cordeiro pascal, por causa da importância da Páscoa durante a vida e a paixão de Jesus segundo João (assim C. K. Barrett);

- o cordeiro mencionado no quarto cântico do Servo de Deus (Is 53,7), que diante dos tosquiadores não abre a boca e que simboliza o próprio Servo. Esta interpretação se recomenda por causa da importância do Servo de Deus para o quarto evangelista, sobretudo em Jo 12,20-4364. Combina bem com esta interpretação o tema da expiação do pecado, visto que, no quarto canto do Servo, este toma sobre si a culpa de muitos (referência alegada por R. E. Brown, que acolhe esta interpretação). Quando se assume esta interpretação, fica mais compreensível a lição “este é o eleito de Deus” no v. 34 (cf. adiante).

À diferença do texto de Isaías, Jesus, o cordeiro verdadeiro, não leva os pecados, mas o pecado do mundo. O singular escolhido pelo evangelista João corresponde ao de Paulo. O quarto evangelista prefere este modo de falar, porque, no fim das contas, só há um pecado, a incredulidade, que consiste em não acreditar em Jesus e sua missão (cf. Jo 16,9). Este é “o pecado do mundo”65.

O v. 30 se liga ao anterior pelo termo “vir”. Segundo o v. 29, João viu Jesus “vindo” e deu seu testemunho sobre sua obra salvadora. Agora interpreta-se o “vir” de Jesus no sentido da anterioridade de Jesus em relação ao Batista. O versículo é semelhante a 1,15, que até parecia pressupor o v. 30. Mas no v. 30 pressupõe-se a referência a um testemunho anterior do Batista quanto à precedência temporal de Jesus em relação a ele.

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O enigma pode se resolver pela hipótese de que as tradições sobre João Batista já pertenciam à tradição oral da comunidade joanina66.

Quando o Batista, no v. 31, afirma que ele não conheceu Jesus antes de eles se encontraram, ele retoma o motivo do messias desconhecido do v. 26. A única tarefa de João consiste em tornar Jesus conhecido. Mesmo sua atividade como Batista não teria outra finalidade senão de tornar Jesus conhecido ao povo de Israel. Compreensão semelhante já se encontrava nos vv. 24-27, nos quais o Batista, interrogado acerca do sentido de sua atividade batismal, respondeu com uma palavra sobre Jesus, que devia vir e cuja correia da sandália ele não era digno de soltar. O tema do batizar “com água” fornece um elemento linguístico que une as duas secções.

1,32-34 Os últimos três versículos da secção poderiam ser intitulados “O filho (eleito) de Deus”. Deixamos para depois o problema textual-crítico de escolher qual dos dois títulos cristológicos. Em comparação com os versículos anteriores, o testemunho do Batista torna-se, aqui, mas concreto. Retoma-se a palavra dos dois batismos: o do Batista, com água, e o batismo com Espírito Santo, que Jesus proporcionará. A condição para este batismo era a descida deste Espírito sobre Jesus. João participou desse evento e pode testemunhar a respeito. A imagem da pomba como símbolo do Espírito Santo é tradicional e mostra novamente a dependência do evangelista de tradições semelhantes.

Segundo o v. 33, retomando um motivo do v. 31, João não conhecia Jesus antes de eles se encontrarem. Seu conhecimento a respeito de Jesus foi-lhe dado e revelado por Deus, isto é, por aquele que lhe incumbira de batizar com água. Agora ele deve anunciar ao povo um batismo novo, administrado por Jesus, um batismo com espírito santo. A condição para esse batismo era, como ele acentua novamente, que o Espírito descesse sobre Jesus e permanecesse sobre ele. Notável é que em todo este primeiro capítulo nunca se diz que João batizou Jesus. A escuta da voz celestial, segundo o QUARTO EVANGELHO, também não é relacionado com a cena do batismo, como nos sinópticos. O quarto evangelista restringe o papel do “Batista” a ser testemunha de Jesus, pagando para tanto o preço de não chamá-lo de “Batista”. Para ele, seria mais adequado falar em “João, a testemunha”.

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Quando o Espirito Santo desce sobre Jesus e permanece sobre ele, segue-se disso que Jesus deve ser o Filho de Deus. Embora o título tenha sua origem na tradição, ele tem seu fundo na experiência de fé do Batista [[106]]: ele “viu”, com os olhos da fé, que Jesus é o Filho de Deus e pode testemunhar disso.

No fim do v. 34 há um problema de crítica textual. Nestle-Aland (28ª ed.) lê, com a maioria dos manuscritos antigos e as edições modernas, bem como os tradutores e comentadores, ho hyiós tou theóu, mas existe uma lição variante ho eklektós tou theóu (b e *א ff2 sys.c). Esta variante tem menor atestação, mas merece atenção67. Não há grande diferença quanto ao sentido. Ambos os títulos parecem apontar para o Servo de Deus, pelo menos, se se supõe por trás do texto joaneu a cena do batismo de Jesus segundo os sinópticos (Mc 1,11 par.), onde, de acordo com Is 42,1, se lê sy ei ho hyiós mou ho agapētós, en soi eudókēsa (cf. Is 42,1 LXX; {{p. 106 gr.}}. Exatamente por causa da proximidade do texto de Isaías, o termo eklektós pode ter entrado no texto, se não for original. Objetivamente é importante que, em todo o caso, a confissão cristológica do Batista é influenciada pela figura do Servo de Deus. No decorrer do EVANGELHO DE JOÃO encontraremos repetidamente esta cristologia68.

III

A secção introdutória do EVANGELHO DE JOÃO, depois do Prólogo, está sob o tema do “testemunho”. Para leitoras e leitores de hoje abrem-se, a partir daqui, perspectiva importantes.

No primeiro lugar, lembra-se ao público leitor que sua fé repousa sobre um fundamento firme. Para o quarto evangelista, João Batista é testemunha de Jesus, testemunha de sua origem e missão divinas. Assim o Batista representa outras testemunhas de Jesus, que acrescerão no decorrer o evangelho. A corrente se estende desde o Discípulo Amado e autor do Evangelho (Jo 21,24) até o círculo inteiro dos discípulos (Jo 15,26s.). A mensagem do evangelho é fidedigna.

Na medida em que as leitoras e leitores vivem seu discipulado, eles mesmos são integrados nesta fileira de testemunhas. Não basta que tenham condições e disposição para falar de sua fé, mas eles devem também testemunhá-la, isto é, falar dela de tgal modo que eles mesmo estEvangelho de Joãoam por trás.

Isso, então, conduz à confissão de fé. Assim como de João se disse: “Ele confessou e não negou, ele confessou ...” (Jo 1,20), eles também devem sentir-se chamados a confessar. E como isso no caso de João aconteceu diante de uma delegação crítica, também as leitoras e os leitores de hoje devem confessar sua fé diante de um foro que nem sempre se mostra simpático e aberto para a fé cristã. Nisso pode consistir a atualidade da secção que foi aqui tratada.

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6 O diálogo com Nicodemos em Jerusalém (3,1-21)

1 Havia um homem dentre os fariseus, chamado Nicodemos, um chefe dos judeus. 2 À noite, ele foi se encontrar com Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que vieste como mestre da parte de Deus, pois ninguém é capaz de fazer os sinais que tu fazes, se Deus não está com ele”. 3 Jesus respondeu: “Amém, amém, te digo: se alguém não nascer de novo, não poderá ver o Reino de Deus!” 4 Nicodemos disse: “Como pode alguém nascer, se já é velho? Acaso poderá entrar uma segunda vez no ventre de sua mãe para nascer?” 5 Jesus respondeu: “Amém, amém, te digo: se alguém não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus. 6 O que nasceu da carne é carne; o que nasceu do Espírito é espírito. 7 Não te admires do que eu te disse: É necessário para vós nascer de novo. 8 O vento sopra onde quer, e tu ouves sua voz, mas não sabes de onde ele vem, nem para onde vai. Assim é também todo aquele que nasceu do Espírito”. 9 Nicodemos, então, perguntou: “Como pode isso acontecer?” 10 Jesus respondeu: “Tu és o mestre de Israel e não conheces estas coisas? 11 Amém, amém, te digo: nós falamos do que conhecemos e damos testemunho do que vimos, mas vós não aceitais o nosso testemunho. 12 Se não acreditais quando vos falo das coisas da terra, como ireis crer quando eu vos falar das coisas do céu? 13 Ninguém subiu ao céu, senão aquele que desceu do céu: o Filho do homem. 14 Como Moisés enalteceu a serpente no deserto, assim também deve ser enaltecido o Filho do homem, 15 a fim de que todo o que crer tenha, nele, vida eterna”. 16 De fato, Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha vida eterna. 17 Pois Deus enviou o seu Filho ao mundo, não para julgar o mundo, mas para que o mundo sEvangelho de Joãoa salvo por ele. 18 Quem crê nele não será julgado, mas quem não crê já está julgado, porque não creu no nome do Filho unigênito de Deus. 19 Ora, o julgamento consiste nisto: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. 20 Pois todo o que pratica o mal odeia a luz e não vai até a luz, para que suas ações não sEvangelho de Joãoam denunciadas. 21 Mas quem pratica a verdade vai até a luz, para que sEvangelho de Joãoa manifesto que suas obras são praticadas em Deus.

O diálogo com Nicodemos se delimita claramente do texto anterior. Há quem proponha ver o começo em 2,23, porque Nicodemos aparentemente pertence àqueles judeus que acreditam [[134]] em Jesus por causa de seus sinais69. Mas isso não se encontra explicitamente no texto. Parece, portanto, seguro deixar começar a perícope em 3,1. Depois de sua última resposta no v. 9 Nicodemos não é mais mencionado e parece, portanto, sair de cena como parceiro de diálogo de Jesus. O diálogo se transforma, aos poucos, num monólogo, que finalmente parece virar um discurso do evangelista. Por essa razão, muitos autores vêem o fim do diálogo no v. 12, onde, pela última vez, Jesus responde na segunda pessoa (desta vez, no plural). R. Schnackenburg vai ainda mais longe e percebe em Jo 3,13-21 e 3,31-36 “fragmentos de discurso não situados”70, ligados ao diálogo com Nicodemos secundariamente. Com base na análise literária e teológica, Schnackenburg conclui que Jo 3,31-36, anteriormente, seguia imediatamente depois do 3,1-12 e tinha continuação em 3,13-21. Segundo R. Bultmann71, Jo 3,31-36 69 70 71

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era, originalmente, a continuação de 3,1-21. A pesquisa sobre João não acolheu estas propostas, e assim mantemos a ordem tradicional de Jo 3. Com O. Hofius72 podemos ver em Jo 3,13-21 a continuação da resposta de Jesus à última pergunta de Nicodemos no v. 9.

Por vezes nega-se a unidade literária e teológica desta perícope. Bultmann atribui à “redação eclesial”, que ele postula, a expressão que fala do novo nascimento não só do espírito, mas “da água”, em Jo 3,573. A escola bultmanniana considerou também os vv. 19-21 parcialmente como secundários, visto que neles as obras humanas aparecem como condição para a salvação. Segundo J. Becker74, esses versos demonstram também um dualismo que diverge do evangelista: uma separação horizontal entre pessoas boas e más, em vez da demarcação vertical, característica do evangelista, que distingue entre o mundo “em cima”, o mundo da salvação de Deus, e o mundo “embaixo”, no qual as pessoas, por enquanto, vivem para a salvação. Acrescentam-se outros problemas: a escatologia presumida e a relação de cristologia e soteriologia. Mas também aqui mantemos a unidade literária da perícope, pelas razões que mostraremos na exegese contínua.

A construção da perícope até o v. 12 pode ser determinada com base na análise narrativa. A introdução, nos vv. 1-2b, fornece a apresentação dos personagens do diálogo [[135]] e a indicação do tempo (era noite). Os versículos seguintes articulam-se em três turnos de diálogo entre Nicodemos e Jesus: vv. 2c-3, 4-8 e 9-12 (ou 21); a resposta de Jesus é cada vez introduzida pelo “amém, amém” (3c, 5b e 10c). Onde termina exatamente a terceira resposta de Jesus não se deixa dizer com certeza, porque as palavras de Jesus, neste caso, se transformam progressivamente nas palavras do evangelista, que fala de Jesus na terceira pessoa. Do v. 12 até o v. 17 constata-se um encadeamento por palavras-gancho, semelhante ao que percebemos no início do Prólogo (Jo 1,1-5):12 “coisas do céu” 13 “céu”13 “céu” 13 “Filho do homem”14 “Filho do homem” 15 “vida eterna”16 “vida eterna” 16 “Filho”17 “Filho” 17 “julgar”18 “julgar”

Nos vv. 18-21 não se percebe tal conexão. Ali, o movimento vai do “julgamento” (18-19) para as “obras” (19-21), Como o tema do “julgar” já foi introduzido no v. 17, não é possível atribuir sem problema os vv. 18-21 ou 19-21 a uma outra camada literária que os vv. 12-17(18).

II

3,1-3 No início do capítulo, o evangelista introduz o leitor na situação do diálogo (v. 1-2b) e relata o primeiro turno do diálogo entre Jesus e Nicodemos (v. 2c-3). A maneira como Nicodemos é introduzido lembra a Septuaginta (cf. 1Sm 1,1). Ele pertence ao grupo dos fariseus e é chamado “um dos chefes dos judeus”. Esta designação não é bem exata, mas faz pensar num membro do sinédrio, como se confirmará no cap. 7 (v. 48 e 50). João nunca apresenta a composição do sinédrio de maneira exata (ao contrário de Mc 11,27), mas fala de modo um tanto anacrônico de “sumos sacerdotes e fariseus” (cf. 7,45). Um membro desse grupo se dirige, de noite, a Jesus para interrogá-lo. Não é

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provável que tenha escolhido esse horário porque os rabinos recomendaram o estudo noturno da Torá. É mais provável que tenha escolhido esse momento para não ser observado75. Isso combina perfeitamente com a imagem que o conjunto do evangelho de João apresenta dele76. Primeiro Nicodemos vem até Jesus de noite, mas depois, no sinédrio, se posiciona abertamente [[136]] a favor de Jesus (7,50) e, no fim, mostra a coragem de requerer de Pilatos o corpo de Jesus, que acaba de ser condenado por alta traição (10,39). Desde o início do diálogo fica claro que Nicodemos representa o povo judeu e sua religião. Dirige-se a Jesus com o título “rabi”. Sua expressão “(nós) sabemos” mostra que ele pensa poder integrar Jesus direitinho. Considera Jesus um profeta, como aparece através de suas palavras: “Sabemos que vieste como mestre da parte de Deus”. Segundo O. Hofius77, Nicodemos mostra assim, desde as primeiras palavras, que ele não entendeu a missão de Jesus: Jesus não “veio da parte de Deus”, ele se originou de Deus (exêlthon ek ... apo ... para tou theóu; Jo 8,42; 13,3; 16,27s). Deus não apenas está “com ele”, ele é Deus (cf. 1,18; 10,30). Seu valor se compreende não apenas em virtude dos “sinais” que ele realiza, mas também, e antes de tudo, pela acolhida de sua palavra. Esperar-se-ia, nesta altura, uma pergunta explícita de Nicodemos, mas não aparece no relato. Hofius pensa que tal pergunta deveria referir-se à salvação, como aparece pela resposta de Jesus78. Na sua resposta (v. 2c-3), Jesus capta a pergunta não expressa de Nicodemos e declara, depois de uma solene fórmula introdutória, que é preciso nascer de novo para ver o Reino de Deus. A expressão γεννηθhnai ἄνωθεν é ambígua e pode significar tanto “nascer de novo” como “nascer do alto”. Pensa-se geralmente que João escolheu conscientemente tal expressão. Provavelmente significa o novo nascimento, que o discurso leva à tona imediatamente a seguir. A expressão “ver o Reino de Deus” não é tipicamente joanina, mas tem paralelos nos evangelhos sinópticos (Mc 9,1 par. Lc 9,27). Nestes textos já se apresenta o pensamento da necessidade de se tornar como criança para entrar no Reino de Deus (cf. Mt 18,3; cf. Mc 10,15)79. No evangelho de João a expressão “Reino de Deus” só aparece no cap. 3 (3,3.5). E só em 18,36s o Jesus joanino fala de “seu” reinado. O conceito determinante para falar da salvação, em João, é “vida”. Se, neste texto, se diz que é preciso nascer de novo, tornar-se homem novo, para ver o Reino de Deus, participar da salvação escatológica, esta visão se distingue da do judaísmo, segundo a qual a participação da salvação depende essencialmente da ação humana.

3,4-8 A pergunta de Nicodemos no v. 4 recebeu diversas explicações. Segundo alguns, Nicodemos expressa um grotesco mal-entendido: ele pensa que a pessoa que quer nascer de novo deve voltar para dentro do seio da mãe. Outros acham que a pergunta de Nicodemos apenas demonstra que a palavra de Jesus sobre a necessidade do novo nascimento lhe permanece incompreensível80. Esta interpretação é preferível. Fora da fé, o acesso à mensagem de Jesus a respeito do novo nascimento lhe permanece fechado.

A resposta de Jesus recomeça no v.5 com a fórmula de afirmação “amém, amém, te digo”. Os versículos seguintes são marcados por uma dupla oposição: nascimento x novo nascimento, carne x espírito. No início, o tema é o novo nascimento. Segundo a palavra de Jesus, só pode entrar no Reino de Deus quem é renascido da água e do espírito. O elemento água não é retomado a seguir; segundo Bultmann, é um acréscimo

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da redação eclesial81. Mas o elemento água deixa-se explicar por duas razões. Por um lado, pertence aos elementos ligados à Nova Aliança segundo Ex 36,25-27. Por outro lado, muitos comentadores, e não só da IgrEvangelho de Joãoa católica, vêem aí uma referência ao batismo. É verdade que, na retomada do tema no v. 8, a água não mais é mencionada. No lugar dele está uma imagem que já se encontra no Eclesiastes (Ecl 1,15): ninguém sabe de onde vem o vento, nem para onde vai. Quando se entende espírito literalmente como sopro, pode-se dizer coisa semelhante de quem nasceu de novo, de quem nasceu do Espírito82. Este espírito é contraposto à carne, que nada vale (cf. Jo 6,63). Ambos estes conceitos marcam mais a antropologia de Paulo que a de João. A “carne” significa, nesta oposição, o sr humano como criatura ainda não salva.

3,9-12 Nicodemos toma a palavra pela terceira vez no v. 9. Por sua pergunta ele demonstra que não entendeu as palavras de Jesus. Ele continua numa visão meramente humana e, daí, é incapaz de compreender as palavras de Jesus sobre o novo nascimento. Não seria suficiente dar-lhe maior explicação, pois só na fé é que se tem acesso à palavra de revelação de Jesus.

Na sua fala do v. 10, Jesus admira que Nicodemos não entende suas palavras. Afinal, ele é “mestre de Israel”, mais, “o mestre de Israel”. Podemos ver aqui uma alusão à designação [[138]] de Jesus como “mestre” no início do diálogo (v. 2). De toda maneira, para as leitoras e os leitores é claro quem é o “mestre” de verdade. Neste sentido, o plural “nós falamos do que conhecemos”, no v. 11, bem pode ser um eco do “sabemos” do v. 2 [em grego, o verbo é o mesmo]. Mais uma vez, a frase é introduzida pela fórmula de afirmação “amém, amém, te digo”; quanto ao conteúdo, Jesus se refere a si mesmo pelo verbo no plural83. Pela primeira vez, no evangelho de João, Jesus aparece aqui como testemunha. Não dá um testemunho a respeito de si mesmo, mas de coisas do céu. Isso pode mostrar influencia do pensamento apocalíptico84. Assim como, no Prólogo, a luz não foi acolhida, acontece agora com o testemunho que Jesus dá a respeito das coisas do céu, que ele viu (junto de Deus). Quando ele fala de coisas da terra – provavelmente, o discurso sobre a necessidade do novo nascimento – e eles não acreditam nele, muito menos acreditarão quando falar das coisas do céu. Estas, segundo Hofius85, seriam as verdades a respeito de Jesus Cristo e que serão desdobradas nos versículos a seguir. O que está em jogo é, decisivamente, a fé. Quem vai a Jesus sem a fé, não entenderá nem as coisas da terra, nem as do céu. Somente na fé é que se abre o mistério da salvação em Cristo.

3,13-17 Nos cinco versículos seguintes, ocorre um deslocamento das fórmulas querigmáticas da fé em Cristo em direção da soteriologia. No fim do v. 17 aparece, de fato, a forma verbal sōthênai “ser salvo”. Temos boas razões, segundo Hofius86, para ver nestes versículos a continuação do diálogo de Jesus com Nicodemos sobre a salvação, mesmo se esse diálogo não e mais mencionado e as palavras de Jesus gradativamente se transformam em monólogo. Ao contrário dos vv. 1-12, nos vv. 13-17 mal se reconhece alguma tradição sinóptica subjacente. Só se fazem notar algumas tradições veterotestamentárias e protocristãs, às quais dedicaremos nossa atenção in loco.

No v. 13, Jesus fala pela primeira vez de si mesmo na terceira pessoa. Aplica a si mesmo a expressão “Filho do homem”. Segundo a tradição apocalíptica do livro de

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Daniel (Dn 7,14), este Filho do homem é uma figura do além. Há autores que vêem nesta tradição veterotestamentária a base para o Filho do homem joanino, que sobe ao céu87. Medeia entre o Antigo Testamento e João a tradição sinóptica do Filho do homem. Os sinópticos conhecem três tipos de sentenças sobre o FH: o FH que vem para julgar, o FH presente sobre a terra e o FH que sofrerá, morrerá [[139]] e ressuscitará. Este último tipo parece ter exercido maior influência em João. É patente que João liga o título FH a enunciados que, em Is 42–53, se referem ao Servo de Deus, especialmente em Is 52,13–53,12, o “quarto cântico do Servo”88. Pense-se, sobretudo, em Is 52,13 LXX, onde lemos que o FH “é enaltecido e glorificado”. Também Jo 3,13 parece supor esta visão, mesmo se os versículos seguintes aludem a Nm 21,8s, a narrativa da serpente no deserto. Em Jo 3,13 ainda não se exprime o “enaltecimento” do FH, mas somente sua subida. No v. 14, porém, o tema aparece. Para a “subida” de Jesus ao Pai vEvangelho de Joãoa-se Jo 6,62; 20,17. Em Jo 3,13 o tema da subida é introduzido em vista da revelação. É o início do discurso sobre as “coisas do céu”. Só tem acesso a elas aquele que desceu, de junto de Deus, do céu: o FH. É provável que por trás disso se esconde uma polêmica em relação a outras grandes figuras da história de israel, às quais, nos tempos da literatura apocalíptica, se atribuíam viagens celestiais para receber revelações divinas: Henoc, Moisés, Elias, Isaías, Baruc, Esdras...

No v. 14, o discurso passa da “subida” para o “enaltecimento”. Assim o olhar se desloca da encarnação para a soteriologia. Contudo, o sentido do “enaltecimento” continua discutível. Uns pensam que João, aqui, fala apenas do enaltecimento na cruz, a ser seguido da glorificação89. Outros acham que o enaltecimento, aqui, tem um sentido mais amplo, que incluiria também o enaltecimento de Jesus junto ao Pai e sua glorificação90. Esta opinião parece mais de acordo com a visão joanina. Em Jo 3,14 trata-se do “enaltecimento” (alteamento) da serpente no deserto como apotropaico para os osraelitas contra as serpentes venenosa. O ponto de comparação, para João, está no enaltecimento para a salvação do povo. Aqui há um encontro entre as duas tradições veterotestamentarias, a do êxodo e a do Servo de Deus (Is 52,13 LXX). A ideia da salvação se exprime também no dei (“deve”) divino, que aponta para a necessidade segundo o plano salvífico de Deus.

A humanidade não encontra a salvação automaticamente, ex opere operato, sem colaboração própria. Esta colaboração, segundo o v. 15, subsiste na fé em Jesus. O en autōi, “nele”, deve ser ligado, aqui, à recepção da vida e não ao “crer em” Jesus: “a fim de que todo o que crer tenha, nele, vida eterna”91. [[140]] Os vv. 14-15 constiuem uma unidade sintática, como mostgra o estudo de R. H. Gundry92, e têm seu ponto culminante na oração final do v. 15. O enaltecimento da serpente no deserto prepara o enaltecimento do FH, que conduz à vida eterna de todos os que crêem nele.

A construção do v. 16 é semelhante à dos vv. 14-15; o v. 16cd corresponde ao v. 15. O que Jesus significa uma promessa de vida eterna a todos os que crêem no FD (aqui encontra-se a expressão pistéuein eis, que faltava no v. 15). Este dom deve-se ao amor de Deus para o mundo. Este pensamente surpreende, porque em João “o mundo” geralmente é contraposto a Deus e seu Enviado (cf. Jo 1,10!). De Jo 3,16 pode-se concluir que o amor de Deus à humanidade não conhece limite e que sua vontade

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salvífica não exclui ninguém93. E em que consiste esta “dom” do Filho? Poder-se-ia pensar na entrega do Filho em sua morte na cruz, mas neste caso seria de se esperar o verbo parédōken. Por isso, parece mais indicado pensar no “dom” do Filho que é seu envio à humanidade.

E qual a continuidade no v. 17? Segundo Hofius94, os vv. 13-17 apresentam um quiasmo: no v. 13 observa-se o tema da encarnação, nos vv. 14-16 trata-se do envio do Filho na sua morte salvífica, e o v.17 retoma o tema da encarnação. Mas esta proposta é falha, porque entende o édōken do v. 16 no sentido de parédōken, o que não parece aconselhável. SEvangelho de Joãoa como for, existe uma conexão entre o “envio” do Filho segundo o v. 17 e a descida do FH no v. 13. O sentido deste envio é claro: trata-se da salvação do mundo enquanto família humana.

3,18-21 O grupo de versículos subsequente não se separa completamente do anterior – ao contrário da opinião de Bultmann e de sua escola. Mostra isso o fato de, já no v. 17, aparecer o temo do “julgar”, bem como o acento posto na necessidade da fé, não só no v. 18, mas já nos vv. 15 e 16. Quando se propõe ver em Jo 3,13-21 a continuação e desdobramento do diálogo com Nicodemos, os vv. 13-17 podem intitular-se “o novo nascimento em virtude da fé no Filho enviado pelo Pai”, e os vv. 18-21, “o novo nascimento em virtude das obras da verdade”.

O v. 18 retoma o versículo anterior e o interpreta, assim como antes o v. 15 completou o v. 14, e o v. 16cd o enunciado de 16ad. O que há de novo é [[141]] o tema do julgamento: quem não “crê no nome do Filho unigênito de Deus” já está julgado. Neste lugar encontramos, pela primeira vez, a escatologia joanina como ela foi, ultimamente, analisada e apresentada por J. Frey95. É característico, para João, a convicção de que o julgamento final tem lugar já na hora da fé ou da recusa da fé. Esta visão, porém, é completada por outra, segunda a qual haverá um julgamento no fim (compare Jo 5,25-27 com 5,28-29). Recomenda-se explicar esta tensão antes a partir de tradições diversas do que a partir de camadas literárias divergentes, como fazem Bultmann e sua escola.

O v. 19 pressupõe o anterior (v. 18) e continua a ideia de que o julgamento acontece no momento presente, e não em algum último dia96. Indica o fundamento do pecado do mundo e do julgamento: as pessoas amaram mais as trevas do que a luz, porque suas ações eram más. Estes dois enunciados se interpretam mutuamente. As “más ações” não significam ações condenáveis moralmente, mas a rEvangelho de Joãoeição da luz, que desde o Prólogo é descrita como sendo dada com o Logos divino.

O mesmo pensamento volta no v. 20. Todo aquele que faz o mal, odeia a luz e não vai até a luz. Caso contrário, suas más ações são denunciadas. Os comentadores discutem se se encontram desde o início, aqui na terra, homens maus e homens da luz no sentido do evangelista. De um lado, acentua-se o significado da predestinação para a salvação, do outro, que todos os humanos, como tais, necessitam da graça para o perdão dos pecados e a salvação. Na exegese de Jo 3,18-21 cabe prudência, porque este texto não apresenta perspectiva suficiente para solucionar a relação difícil da predestinação divina e da liberdade humana97. Assim como aquele que comete ações más evita a luz, também os filhos da luz procuram a luz, para que suas ações, como tais, se tornem manifestas. A expressão “fazer a verdade” não é grega, é hebraica. Encontra-se também em 1Jo 1,6,

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comentada por R. E. Brown98, com alegação de exemplos da literatura hebraica, da Septuaginta e da literatura intertestamentária. A expressão encontra-se nos trextos de Qumrã, e.o. (cf. 1Q S 8,1-2). No uso [[142]] lingüístico hebraico, “verdade” (émet) não significa o acesso à realidade empírica ou teórica, mas antes a realidade como se manifesta a partir da revelação de Deus. Quem “faz a verdade” é aquele que se abre à palavra de Deus. Como filho da luz, chega à luz, e seus atos podem manifestar-se como bons.

III

O pensamento do novo nascimento tem raízes bíblicas, mas não se deixa deduzir delas completamente. Na parte Jo 1,19-34, o Batista anuncia um batismo vindouro na água e com o Espírito Santo, a ser administrado por Jesus (Jo 1,33). En Ez 36,25-27 encontramos a purificação escatológica com água e uma renovação pelo Espírito. O novo nascimento é mais afim com textos sincretistas do fim da Antiguidade. É de se considerar sobretudo o Tratado XIII “De regeneratione” do Corpus Hermeticum. Em relação a isso, C. H. Dodd elaborou as correspondências e as diferenças em comparação com o evangelho de João99. Em ambos os escritos o ser humano chega à vida eterna mediante uma forma de conhecimento em virtude de um novo nascimento, que faz a pessoa sair do domínio do corpo ou da carne para o domínio do Nous ou do Espírito. Ambos os escritos falam da necessidade da purificação, a qual, porém, não é o último passo. Segundo ambos os escritos, o ser humano chega à filiação divina com a ajuda do Logos. O papel de Hermes como Revelador corresponde, nisso, ao de Cristo, o Filho de Deus encarnado100. Mas importa observar as diferenças. Os leitores cristãos do Quarto Evangelho chegam à salvação não somente por um conhecimento outorgado por Deus, mas pela fé. É exatamente isso que a continuação de Jo 3,1-12 coloca na luz. Na fé, eles não se confessam simplesmente a favor do Logos, mas do Logos encarnado, que deve seguir um caminho de sofrimento. Tudo isso é alheio ao pensamento helenístico: precisa ser pregado, e crido.

7. Jesus na Judeia. Novo testemunho do Batista (3,22-36)

22 Depois disso, Jesus foi com seus discípulos para a terra da Judéia. Ele ficava lá com eles e batizava. 23 João também estava batizando, em Enon, perto de Salim, onde havia muita água. Eles iam lá para serem batizadas. 24 João ainda não tinha sido lançado na prisão. 25 Surgiu então, da parte dos discípulos de João, uma discussão, com um judeu, a respeito da purificação. 26 Eles foram até João e disseram-lhe: “Mestre, aquele que estava contigo do outro lado do Jordão, e de quem tu deste testemunho, está batizando, e todos vão a ele”. 27 João respondeu: “Ninguém pode receber coisa alguma, se não lhe for dada do céu. 28 Vós mesmos sois testemunhas daquilo que eu disse: ‘Eu não sou o Cristo, mas fui enviado à sua frente’. 29 Quem recebe a noiva é o noivo, mas o amigo do noivo, que está presente e o escuta, enche-se de alegria por causa da voz do noivo. Esta é a minha alegria, e ela ficou completa. 30 É preciso que ele cresça, e eu diminua”.

31 Aquele que vem do alto está acima de todos. Quem é da terra, pertence à terra e fala coisas da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. 32 Ele dá testemunho do que viu e ouviu, mas ninguém aceita o seu testemunho. 33 Quem aceita o seu testemunho marca com selo que Deus é verdadeiro. 34 De fato, aquele que Deus enviou fala as

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palavras de Deus, pois ele dá o Espírito sem medida. 35 O Pai ama o Filho e pôs tudo em suas mãos. 36 Aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Aquele, porém, que desobedece ao Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele.

I

Jo 3,22-36 apresenta aos exegetas alguns problemas. O início da perícope é claramente demarcado em relação ao diálogo com Nicodemos, por novos indícios de tempo e lugar. Mais difícil é dizer onde termina a perícope que começa em Jo 3,22. No início se destacam os vv. 22-30 como unidade narrativa em forma de diálogo. Do v. 31 até o v. 36 seguem-se enunciados de caráter geral, que lembram a parte discursiva 3,12-31, com a qual, como dissemos, alguns autores os colocam em conexão. Mais raramente se vê em 3,31-36 a continuação das palavras do Batista dos vv. 27-30. Outros ouvem aqui a voz de Jesus. A maioria dos comentadores, porém, percebe aqui enunciados do evangelista, ao qual remontaria este texto evangélico. De toda maneira, estas palavras mostram continuidade antes com o contexto antecedente do que com o subsequente. Possuem também ligações com o contexto antecedente quanto ao conteúdo. Por isso, faz sentido tratá-las junto com este.

Nos vv. 22-30 surpreende a notícia do v. 22, dizendo que Jesus chegou à região de Judá, depois que sua presença nessa região [[144]] fora informada há muito. E como se explica que em 3,22 se afirma que Jesus batizou (v. 22), se no v. 4,3 isso é negado? E quem o “judeu” com o qual os discípulos do Batista, segundo Jo 3,25, se envolvem em discussão? Será que o texto foi corrompido? E qual a conexão entre o tema do batismo e o do esposo e do amigo no v. 29? Até que ponto o texto pode ser considerado unitário e que é que ele apresenta do ponto de vista literário e teológico?

Durante muito tempo, a pesquisa tentou resolver as tensões que aparecem precisamente nesta primeira parte, pela diferenciação entre a tradição e a redação do evangelista. Vale a pena ler, neste respeito, o artigo de J. W. Pryor101, segundo o qual os vv. 22-25 na maior parte remontam à tradição pré-joanina. Só que Jo, no v. 25, transformou um diálogo com Jesus num diálogo com “um judeu”, eliminando assim qualquer concorrência entre o Batista e seus discípulos, por um lado, e Jesus, por outro. Para a tradição pré-joanina, uma atividade batismal de Jesus não constituía problema. No v. 26, então, teríamos a transição para o texto do evangelista.

Quanto à imagem do esposo em relação a Jesus, no v. 29, os autores costumam lembrar Mc 2,18-20 // Mt 9,14s. Além disso, É. Trocmé102 suspeita que já o Batista tenha usado, para seu anúncio do tempo final, a imagem veterotestamentária de esposo e esposa para indicar a relação de Deus e seu povo. Marcos teria dado a isso uma interpretação cristológica. Jogar mais luz sobre esta questão será difícil; mas também não é necessário para a interpretação do texto joanino em pauta.

Como é construída esta unidade textual e como ela pode ser explicada na imanência do texto? Ajuda-nos aqui o artigo de T. Nicklas103. Segundo este autor, deve-se fazer uma distinção entre a crítica literária antiga, que analisava fontes e camadas, e a nova, que interpreta o texto a partir de seus sinais linguísticos. Exatamente isto se impõe como primeiro passo: muitas tensões que se costumava tomar como ponto de partida para hipóteses diacrônicas revelam-se, numa leitura mais atenta do texto, como tendo perfeito sentido. As tensões podem assim ser concebidas como “brancos” no texto, que

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o autor conscientemente criou ou guardou, para convidar o público leitor a acompanhar o pensamento.

T. Nicklas inclui em sua análise também Jo 4,1-3 e percebe uma construção concêntrica: 3,22-24 e 4,1-3 constituem a “moldura” na qual é incluído o “diálogo” entre o Batista e seus discípulos, 3,25-30.31-36. Parece, contudo, melhor conceber Jo 4,1-3 como unidade textual autônoma, como introdução num novo contexto geográfico; fundamentaremos isso mais adiante.

II

3,22-24 Com um “depois disso” (meta tauta, cf. 5,1; 6,1. 7,1) característico inicia-se uma nova secção narrativa. Como nos relatos joaninos de milagres segue-se a uma parte narrativa (aqui vv. 22-24) um diálogo (aqui vv. 25-30). No v. 22, depois da indicação do tempo, introduzem-se os personagens: Jesus e seus discípulos. Os verbos “foi” e “batizava”, no singular, referem-se em primeiro lugar a Jesus; os discípulos parecem acrescentados posteriormente. Provavelmente servem para constituir um grupo correspondente ao dos discípulos do Batista, que aparecem no v. 25. O texto menciona, sem reticências, que Jesus batizava, embora isso contradiga a correção introduzida no 4,2. Com T. Nicklas pode-se ver aqui uma provocação da curiosidade do público leitor. Pode ser também que diversas camadas literárias aqui se chocam. Teologicamente temos aqui, mais uma vez, a oposição entre o batismo com água e o com o Espírito Santo.

A informação de que Jesus foi para “a Judeia” suscitou muitas perguntas. De fato, em 2,13 mencionou-se, já, a subida a Jerusalém, capital da Judeia. Leiamos, pois, o texto com atenção. Embora Jerusalém sEvangelho de Joãoa a capital, a região como tal não foi mencionada em 2,13–3,21. Parece que o evangelista vê Jesus num movimento que sai de Jerusalém (2,13), passa pela “Judeia” (3,22) e pela “Samaria” (4,4) e desemboca na “Galileia” (4,43). Destarte, sua revelação como Palavra de Deus e Filho de Deus traça círculos sempre maiores, afastando-se sempre mais do centro da fé judaica em direção da periferia. Os habitantes de Sicar vêem nele, com toda a razão, o “salvador do mundo” (4,42). Este movimento corresponderia, assim, à missão que Jesus confia a seus apóstolos em At 1,8, para que sEvangelho de Joãoam suas testemunhas “em Jerusalém e [[145]] em toda a Judeia e em Samaria, e até os confins da terra”. João poria então a “Galileia” no lugar desses “confins da terra”.

No v. 22, o evangelista pensa numa estada mais demorada de Jesus na “terra da Judeia”: a escolha do imperfeito indica isso. A atividade batismal de Jesus deve ser pensada com a mesma extensão temporal. No v. 23 fala-se do mesmo modo a respeito da atividade batismal de João. Quanto à indicação do lugar, até hoje não se conseguiu verificá-la; mais importante que o lugar geográfico preciso é a menção à água abundante no lugar onde João batiza, como acentua, linguisticamente, o nome de “Enon” (= “fonte”). Assim o batismo de João é duplamente evocado como batismo com água, de acordo com o que o próprio Batista declarou como sendo característico para ele (cf. Jo 1,26.33). Os leitores do WE lembrarão que já em 1,33 foi anunciado aquele que batizaria com Espírito Santo. O “branco” completa-se, assim, pela memória do público leitor. O v. 23 menciona explicitamente que “eles”, certamente em grupos, iam até lá para serem batizado pelo Batista. Isso leva então à subsequente interpelação dos discípulos.

Mas, antes que esta sEvangelho de Joãoa relatada, o evangelista introduz, no v. 24, uma informação que antecipa o que acontecerá com o Batista mais tarde. Leitores familiarizados com a tradição sinóptica (cf. Mc 1,14 par.) evidentemente sabem de que se trata. O evangelista, em 5,35, dará a prisão do batista por pressuposto. A antecipação

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aqui em 3,24 serve, ao que parece, para dar peso ao testemunho do Batista a seguir: é palavra de um homem que garante seu testemunho com sua própria vida.

3,25-30 O diálogo seguinte, entre o Batista e os seus discípulos, articula-se em duas secções menores. Nos vv. 25-26 temos a interpelação feita pelos discípulos de João, nols vv. 27-30, a resposta deste – levemente conectada com os vv. 31-36. Os discípulos de João aparentemente vêem no batismo ministrado por Jesus e acolhido com grande sucesso, uma concorrência com o batismo que o mestre deles ministra. Não é claro com quem eles discutem. Segundo o texto, trata-se de “um judeu” – mas que vem fazer um judeu lá onde caberia discurso e resposta de Jesus? Muitos manuscritos apresentam a lição ioudáiōn (“judeus” no plural) em vez de ioudáiou (“judeu”, no singular), mas as mais importantes dentre as testemunhas textuais antigas não sustentam esta lição. Aceite-se, pois, a lição mais difícil, ioudáiou, no v. 25. Se damos ao vocábulo o sentido geográfico, como no caso da ioudáia gê (lit. “a terra judia”), no v. 22, podemos entender que se trata de uma discussão entre os discípulos do Batista e um habitante da Judeia, que podemos imaginar como sendo seguidor de Jesus104.

Surpreende também o objeto da discussão: a purificação. Já em Jo 2,6 falou-se em “purificação segundo o costume dos judeus”. O leitor pode-se perguntar se, aqui, em 3,25, o batismo está sendo incluído nesta categoria.

Jesus é designado, pelos discípulos do Batista, como aquele “de quem tu deste testemunho”. Esta expressão remete claramente a Jo 1,19-34. Assim também a indicação do lugar, “além do Jordão”. Portanto, parece que está sendo retomado e continuado o esse testemunho do Batista a favor de Jesus, no caso, com respeito à relação entre o Batista e Jesus. Esta parece ser considerada criticamente pelos discípulos do Batista. O sucesso de Jesus é considerado prEvangelho de Joãoudicial para o sucesso de João.

A resposta de João, nos vv. 27-30, reata com o testemunho de 1,19-34. Segundo este testemunho, Jesus é superior a João. Quando o sucesso de Jesus supera o seu, é porque Deus o quer assim (v. 27; cf. 6,44; 19,11). João Batista não é, pessoalmente, o Messias; ele apenas foi enviado à frente dele, para lhe preparar o caminho (v. 28; cf. 1,20.23). Ele é apenas o amigo do esposo, que se alegra quando ouve a voz deste no quarto nupcial (v. 29). Este deve crescer, ele, porém, diminuir (v. 30). A alternância das imagens convida os leitores a uma colaboração criativa. Eles se lembrarão das imagens bíblicas da relação nupcial entre Deus e seu povo, e também da cena das bodas de Caná, em Jo 2,1-12, com seu mundo de simbolismo. A alegria que o amigo do esposo sente é experimentada agora pela Batista, no seu último testemunho a favor de Jesus. É uma alegria completa, da qual também o leitor deve poder participar105.

3,31-36 Como anunciado já na explicação introdutória (I), os vv. 31-36 conectam-se com o contexto anterior de modo muito leve apenas. Porém, em vez de mudá-los de lugar, convém explicá-los no lugar onde se encontram, no quadro do contexto maior. Podem ser lidos como “releitura” de Jo 3,1-30, para usar os termos de Jean Zumstein. São continuados sobretudo os enunciados sobre o novo nascimento, de Jo 3,1-21. Já em 3,11s ensEvangelho de Joãoaram enunciados a respeito de Jesus como sendo aquele que traz uma mensagem celestial. Outro tema que se retoma em 3,31-36 é o do dom do Espírito (v. 34), bem como o tema do testemunho (v. 32s). A mudança para a terceira

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pessoa gramatical marca a delimitação em relação ao testemunho do Batista jo 3,27-30: a partir do v. 31, o orador não fala mais de si na primeira pessoa106.

[[148]] Este grupo de versículos mostra correspondências entre os vv. 31-33 por um lado e 34-36 por outro.31  Aquele que vem do alto está acima de todos. Quem é da terra, pertence à terra e fala coisas da terra. Aquele que vem do céu está acima de todos. 32  Ele dá testemunho do que viu e ouviu, mas ninguém aceita o seu testemunho. 33  Quem aceita o seu testemunho atesta que Deus é verdadeiro.

34  De fato, aquele que Deus enviou fala as palavras de Deus, pois ele dá o Espírito sem medida. 35 O Pai ama o Filho e pôs tudo em suas mãos. 36  Aquele que crê no Filho tem a vida eterna. Aquele, porém, que se recusa a crer no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus permanece sobre ele.

No início está um enunciado sobre a mensagem que vem de cima, de Deus, como testemunho ou palavra. A esta palavra ou testemunho segue-se, uma resposta, que pode ser de dois modos: de aceitação ou de rEvangelho de Joãoeição. No primeiro caso, o crente, que aceita a mensagem, atesta (lit. afirma com selo) que Deus é verdadeiro e recebe a promessa da vida eterna (v. 36). Mas àquele que se recusa a crer anuncia-se a ira de Deus no julgamento (ibid.). Estrutura semelhante já encontramos no Prólogo do Quarto Evangelho. A frase dizendo que os seus não acolheram a palavra de Deus (Jo 1,5,9.10) é compensada pela promessa de que todos os que creem neste palavra se tornam filho de Deus (1,12s).

No início da passagem dos vv. 31-33 aparece a contraposição entre aquele que vem de cima/do céu e aquele que é da terra. Já conhecemos a expressão “de cima” (ánōthen) pelo diálogo entre Jesus e Nicodemos em Jo 3,3.7. Ali podia-se interpreta ser nascido “de cima” ou “de novo”. O primeiro sentido poderia ser sustentado pelo texto que ora estamos analisando, mas tal correspondência não deve ser sobreestimada. O “vir” de Jesus já foi mencionado nas palavras do Batista em 1,15.27.30. Este Jesus é aquele que “vem de cima”. Segundo o v. 34, ele foi “enviado por Deus”. A este, que vem de cima, opõe-se aquele que é da terra. Alguns poucos autores veem neste personagem João Batista, o qual, em comparação com Jesus, tinha uma mensagem mais terrena e mais humana (R. E. Brown). Mas é preferível ver naquele que é da terra qualquer um que traz uma mensagem meramente humana. Isso não se pode dizer da mensagem profética de João Batista, o “homem enviado por Deus” (1,6).

Aquele que vem de cima está acima de todos. O agir segue o ser. Visto que está acima de todos, pode falar de cima, com o pleno poder do Altíssimo107. Este embaixador celestial não apenas “fala” de coisas celestiais, ele dá testemunho delas. Este enunciado lembra Jo 3,11, onde [[149]] Jesus diz de si mesmo que ele “dá testemunho daquilo que viu”. Por isso, o que ele diz é fidedigno. A representação de uma testemunha de coisas celestiais ambienta-se nos textos apocalípticos. Deve, porém, ser distinguida da representação, frequente em João, do testemunho a favor de Jesus e de sua missão da parte do Pai108. O texto não diz de modo unívoco qual seria o conteúdo da mensagem celestial trazida por Jesus109. Mas o contexto geral do Quarto Evangelho permite concluir que o conteúdo de seu testemunho é dado com seu envio como revelador da parte do Pai. O que ele deve anunciar e testemunhar é, exatamente, este envio, e só isso.

A dupla resposta que se pode dar à mensagem celestial já foi apontada no Prólogo, como acima dissemos. A contradição entre a asserção genérica de que “ninguém aceita

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o seu testemunho” e um grupo humano particular que, contudo, o aceita, se deixa resolver com a indicação de que, para a acolhida da mensagem divina, é preciso a predestinação de Deus e sua graça (cf. Jo 6,44). Só a partir de si mesmo, o ser humano não pode entender nem aceitar a revelação divina.

Àquele que acolhe a mensagem divina não se apresenta nenhuma promessa, mas dele se diz que “confirma com selo que Deus é verdadeiro”. O contrário seria fazer de Deus um mentiroso, como se diz em 1Jo 1,10 daqueles que pretendem que não pecam. A expressão “confirmar com selo” (sphragízein) encontra-se ainda uma vez em João, em 6,27, onde é dito que Deus “confirmou com selo” o seu Filho que enviou ao mundo: ele o marcou com o selo da fidedignidade. De acordo com isso, os que aceitam o testemunho do Filho confirmam o envio dele como revelador da parte do Pai e, ao mesmo tempo, a fidedignidade do Pai que o enviou.

Nos vv. 34-36, inicialmente, o “ser enviado por Deus” corresponde ao “vir de cima”. Também no restante, as palavras do v. 34 correspondem às de 31s, ainda que com algumas modificações. A primeira diferença é que se diz de Jesus, o enviado de deus: “ele dá o Espírito sem medida”. A palavra de revelação do Filho é, assim, ligada ao dom do Espírito, e assim se encontra conecta a secção 3,31-36 com o diálogo de Jesus e Nicodemos, em 3,1-12. Na medida em que realça a dimensão pneumática [[150]] da revelação, o autor acentua a dimensão trinitária da salvação e, destarte, encerra o inteiro cap. 3.

A outra diferença em comparação com os vv. 31-33 consiste na afirmação de que o Pai ama o Filho e pôs tudo em suas mãos (v. 35). Do amor do Pai para o Filho falam os discursos de despedida (Jo 17,23.26). No início dos discursos é confirmado que Deus pôs tudo nas mãos do Filho (Jo 13,3). Esta dupla correspondência mostra que nosso texto do cap. 3 se situa na proximidade dos discursos de despedia em sua forma final (Jo 17 provavelmente pertence à última camada desses discursos e também do conjunto do evangelho de João). Quanto ao conteúdo, pode se ver neste motivo a influência da teologia da Aliança do Antigo Testamento: Israel ama a Deus e é amado por ele, na medida em que permanece fiel a seus mandamentos (cf. Dt 7,8s.13).

A promessa de vida eterna feita àqueles que creem no Filho é um motivo central do Quarto Evangelho (cf. desde Jo 3,16.18 até o versículo final 20,31). A alternativa, a incredulidade, é designada como “desobediência”, no v. 36. Essa desobediência leva à “ira” de Deus – termo que ocorre em João só aqui e, em outros lugares, é representado pelo termo “julgamento” (cf. Jo 3,17-21). Na tradição sinóptica, ao contrário, o termo “ira” encontra-se na tradição da pregação penitencial do Batista (Lc 3,7). Alguns autores concluem, desse parentesco linguístico, que Jo 3,31-36 faz parte do discurso do Batista que se inicia em 3,27, mas isso nada mais é do que uma possibilidade.

III

Qual é a mensagem permanente de Jo 3,22-36, válida também para nós? O texto convida a se envolver com um movimento. O ponto de partida é “a Judeia”, a “terra judaica”. Apresenta-se João Batista, dando seu testemunho a respeito de Jesus. Característico é, nestes vv. 22-30, o “antes” é o “depois”. João foi enviado antes do Messias que ele anuncia; disse isso desde antes. Quem vem depois dele é o esposo da noiva que é o povo de Deus. Ele mesmo, João, é apenas o amigo do esposo; ele não entra no quarto nupcial. Jesus deve crescer; ele, João, deve diminuir. Assim, o texto permanece solidamente ancorado dentro do judaísmo de seu tempo com sua expectativa da salvação escatológica, messiânica.

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Nos vv. 31-36 a perspectiva muda. Percebemos neste texto uma “releitura”, leitura renovada da parte precedente. No lugar de um dualismo temporal entra um dualismo espacial. Jesus não vem cronologicamente depois de seu precursor: espacialmente, em virtude de sua origem, ele está acima de todos os que falam da salvação. Ele apresenta uma mensagem celestial. Ele é enviado da parte do Pai. Nisso, ele não traz somente a palavra e a mensagem de Deus, mas também o Espírito de Deus, sem medida. Este pensamento reata com textos anteriores. Por um lado, o evangelista aqui é marcado por representações apocalípticas, que conhecem o “testemunho” do vidente do mundo celestial. Por outro lado, com a mudança da perspectiva temporal para a perspectiva espacial, abre o texto para leitores helenistas, familiarizados com Platão. O mundo autêntico de “cima” é contrastado com o mundo inautêntico de “baixo”. Deste mundo de “cima” vêm a mensagem salvífica e o mensageiro salvador.

A mudança de perspectiva convida a refletir sobre rescritas mais avançadas da mensagem salvadora. Representações espaciais do “mundo celestial” como o mundo verdadeiro e como origem da salvação, frequentemente, causam mal-entendidos. Há muita coisa que sugere que, hoje, é preciso considerar novamente e com mais intensidade a dimensão temporal. O Concílio Vaticano II apropria-se da “alegria e esperança” de toda a família humana. Isso abre novamente a mensagem da salvação em direção ao futuro. E leva de volta para a esperança da salvação de Israel, “Judeia”.

8. Jesus na Samaria (4,1-42)1 Foi quando Jesus soube que os fariseus ouviram dizer que ele reunia mais discípulos e batizava mais do que João 2 (se bem que Jesus mesmo não batizasse, mas os seus discípulos). 3 Jesus então saiu da Judéia e voltou para a Galiléia.4 Era preciso que ele passasse pela Samaria. 5 Chegou, pois, a uma cidade da Samaria, chamada Sicar, perto da propriedade que Jacó tinha dado a seu filho José. 6 Havia ali a fonte de Jacó. Jesus, fatigado da viagem, sentou-se junto à fonte. Era por volta da hora sexta. 7 Veio uma mulher da Samaria tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber!” 8 Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar algo para comer. 9 A samaritana disse a Jesus: “Como é que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim, que sou uma mulher samaritana?” De fato, os judeus não se relacionam com os samaritanos. 10 Jesus respondeu: “Se conhecesses o dom de Deus e quem é aquele que te diz: ‘Dá-me de beber’, tu lhe pedirias, e ele te daria água viva”. 11 A mulher disse: “Senhor, não tens sequer um balde, e o poço é fundo; de onde tens essa água viva? 12 Serás maior que nosso pai Jacó, que nos deu este poço, do qual bebeu ele mesmo, como também seus filhos e seus animais?” 13 Jesus respondeu: “Todo o que bebe dessa água, terá sede de novo; 14 mas quem beber da água que eu darei, nunca mais terá sede: porque a água que eu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando para a vida eterna”. 15 A mulher disse então a Jesus: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir aqui tirar água”. 16 Ele lhe ordenou: “Vai chamar teu marido e volta aqui!” 17 – “Eu não tenho marido”, respondeu a mulher. Ao que Jesus retrucou: “Disseste bem que não tens marido. 18 De fato, cinco maridos tiveste, e o que tens agora não é teu marido. Nisso falaste a verdade”. 19 A mulher lhe disse: “Senhor, vEvangelho de Joãoo que tu és um profeta! 20 Os nossos pais adoraram sobre esta montanha, mas vós dizeis que em Jerusalém está o lugar em que se deve adorar”. 21 Jesus lhe respondeu: “Mulher, acredita-me: vem a hora em que nem nesta montanha, nem em Jerusalém adorareis o Pai. 22 Vós adorais o

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que não conheceis. Nós adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus. 23 Mas vem a hora, e é agora, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade. Estes são os adoradores que o Pai procura. 24 Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade”. 25 A mulher disse-lhe: “Eu sei que virá o Messias (isto é, o Cristo); quando ele vier, nos fará conhecer todas as coisas”. 26 Jesus lhe disse: “Sou eu, que estou falando contigo”.27 Nisto chegaram os discípulos e ficaram admirados ao ver Jesus conversar com uma mulher. Mas ninguém perguntou: “Que procuras?”, nem: “Por que conversas com ela?”. 28 A mulher abandonou a sua bilha e foi à cidade, dizendo às pessoas: 29 “Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será ele o Cristo?” 30 Saíram da cidade ao encontro de Jesus. 31 Enquanto isso, os discípulos insistiam com Jesus: “Rabi, come!” 32 Mas ele lhes disse: “Eu tenho um alimento para comer que vós não conheceis”. 33 Os discípulos comentavam entre si: “Será que alguém lhe trouxe alguma coisa para comer?” 34 Jesus lhes disse: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e realizar plenamente sua obra. 35 Não dizeis vós: ‘Ainda quatro meses, e aí vem a colheita!’ Pois eu vos digo: levantai os olhos e vede os campos, como estão dourados, prontos para a colheita! 36 Aquele que colhe já recebe o salário; ele ajunta fruto para a vida eterna. Assim, o que semeia se alegra junto com o que colhe. 37 Pois nisto está certo o provérbio ‘Um é o que semeia e outro é o que colhe’: 38 eu vos enviei para colher o que não é fruto de vossa fadiga; outros se fatigaram e vós colheis o fruto da sua fadiga”. 39 Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram em Jesus por causa da palavra da mulher que testemunhava: “Ele me disse tudo o que eu fiz”. 40 Os samaritanos foram a ele e pediram que permanecesse com eles; e ele permaneceu lá dois dias. 41 Muitos outros ainda creram por causa de sua palavra. 42 E até disseram à mulher: “Já não é por causa daquilo que contaste que cremos, pois nós mesmos ouvimos e sabemos que este é verdadeiramente o Salvador do mundo”.

I

Com a partida de Jesus da Judeia para a Galileia e sua etapa em Samaria, João inicia, pelo que parece, uma nova secção. Convém delimitá-lo em 4,42, onde termina a presença de Jesus na Samaria. A chegada de Jesus na Galileia, em Jo 4,43-45, representaria uma nova secção, antes do segundo sinal de Jesus em Caná da Galileia em 4,46-54. Depois do começo em Jerusalém (2,13) e na Judeia (3,22) vemos agroa Jesus a caminho para novas paisagens da Terra Santa e para novas coletividades humanas.

A construção da unidade textual acontece segundo pontos de vista narrativos. Os primeiros seis versículos podem ser compreendidos como introdução. Jesus chega à Samaria e, cansado pela viagem, assenta-se junto aa fonte de Jacó. Com a chegada da samaritana, no v. 7, começa um nova secção narrativa, colocando em cena o diálogo de Jesus com a mulher da Samaria (4,7-26). Esta parte pode ser dividida em duas: o diálogo sobre a água que Jesus primeiro pede e depois promete (vv. 7-15); e o diálogo seguinte, sobre o marido da mulher e o verdadeiro lugar do culto, trazendo, no fim, a autorrevelação de Jesus (vv. 16-26). Os vv. 27-30 são caracterizados por um duplo movimento: a volta da mulher para a sua cidade e a saída dos habitantes em direção a Jesus. Os vv. 31-38 descrevem o diálogo de Jesus com os seus discípulos, que haviam saído para comprar pão (v. 8), com o tema do alimento de Jesus e a transição para o tema da obra missionária (vv. 31-38). Com os vv. 39-42, a narrativa alcança seu

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encerramento: o testemunho da samaritana e o anúncio do próprio Jesus levam à fé de muitos em Jesus como “salvador do mundo”.

O breve esboço do desenvolvimento narrativo mostra uma história bem construída, que, à primeira vista, não revela muito ensEvangelho de Joãoo para hipóteses de fontes e camadas. Contudo, não faltam propostas neste sentido até hoje. Modelos mais antigos de distinção de fontes e camadas foram tratados na dissertação de Andrea Link110. A autora defende pessoalmente um modelo de quatro etapas, distinguindo a fonte dos sēmeia, o escrito básico, a composição do evangelista a e a redação pós-joaneia. Hipóteses semelhantes, sem a etapa do escrito básico, encontram-se em Jürgen Becker111 e Michael Theobald112. Este, porém, vê somente em 4,9c uma possível redação secundária. Ao contrário destes autores, outros partem de um texto unitário, renunciando a hipóteses referentes ao desenvolvimento genético. Entre eles, Birger Olsson113, [[154]] Teresa Okura e J. E. Botha. Sempre de novo aponta-se a importância da tradição bíblica para a compreensão do diálogo de Jesus com a samaritana114. No que segue mostrar-se-á sobretudo este aspecto.

II

A chegada de Jesus à fonte de Jacó (4,1-6)

Os primeiros seis versículos de Jo 4 introduzem os diálogos que vão seguir-se até o v. 42. Descrevem principalmente um movimento topográfico. Jesus deixa a Judeia e vai à Samaria, onde se assenta junto à fonte de Jacó. Olhando de perto, vemos que esta unidade narrativa se divide em duas partes. Os vv. 1-3 versículos descrevem a partida de Jesus da Judeia rumo à Galileia e a justificam. Nos vv. 4-6, Jesus continua seu caminho até a fonte de Jacó, onde, cansado, se senta. Entretanto, os três primeiros versículos podem também ser entendidos como encerramento de uma unidade narrativa maior, que se inicia em 3,22. Sob este aspecto, a descrição da atividade batismal de João em 3,22-24 e em 4,1-3 emoldura a cena de diálogo e discurso de 3,25-36115.

4,1-3 Os vv. 1-3 constituem uma construção com três orações subordinadas (hôs ... hóti ... hóti) no v. 1 e a frase principal no v. 3; o v. 2 é um parêntesis. O enunciado central dos três primeiros versículos encontra-se no v. 3: Jesus deixa a Judeia e parte para a Galileia. A razão de sua partida está no v. 1: Jesus116 ficara sabendo que os fariseus souberam que ele batizava mais que João Batista. Ele percebeu isso como um perigo para sua segurança pessoal e a de seus discípulos; por isso, retirou-se da Judeia. Supõe-se aqui, claramente, que o batismo de Jesus era visto no mesmo nível que o de João: criou-se uma situação de competição. Mas o v. 2 corrige esta impressão: não é Jesus quem batiza, mas seus discípulos. Quando se procura fazer aqui uma separação de fontes ou camadas literárias, parece que o evangelista corrige um texto subjacente. Para ele, o batismo de Jesus é de outra natureza que o de João. Jesus não batiza com água, mas com o Espírito Santo (Jo 1,33). Seu batismo supera o do Batista. Na óptica da análise narrativa, pode-se ver, na correção do v.2 em relação ao v. 1, um elemento de orientação para o leitor. Por um lado fica claro agora de que natureza era o batismo

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administrado por Jesus segundo Jo 3,22-24117. Por outro lado, o público leitor percebe o autor como confiável, porque ele é capaz de corrigir ou de precisar os seus enunciados anteriores. Assim cria-se um “branco” que o leitor pode preencher118.

A origem histórica da notícia acerca da volta de Jesus da Judeia à Galileia não se conhece. Em todo o caso, galileus voltando de Jerusalém para seu lugar é coisa costumeira para os judeus. Na ida, seguem preferencialmente a estrada pelo vale do Jordão, para não se contaminar, no caminho, com o santuário na Samaria. As cenas da passagem de Jesus por Jericó (cf. Mc 10,46-52 par.) ilustram isso. Na volta, não precisam dessa precaução.

4,4-6 Os versículos seguintes podem ser vistos como introdução, propriamente, para o diálogo de Jesus e da samaritana. A paisagem da Samaria aparece no v. 4 pela primeira vez, e isso, não como término da jornada de Jesus, mas como situação de passagem. Contudo, será o cenário de encontros e diálogos importantes. As indicações topográficas, nestes versículos, vão do geral para o particular. Depois da região da Samaria menciona-se a cidade de Sicar, depois, a fonte de Jacó e, finalmente, a beirada da fonte, onde Jesus, cansado da viagem, se senta. Só então vem a nota cronológica: por vota da hora sexta, momento do grande calor do meio-dia. Segundo T. Okure119 percebemos aqui imagens da missão. Jesus está “fatigado” (kekopiakôs) da viagem. O termo escolhido é usado também no resto do NT para o “afadigar-se” a serviço do anúncio e do governo da comunidade (cf. Jo 4,38; 1Ts 5,12; 1Cor 16,16). A cena seguinte serve, inteiramente, para descrever Jesus a serviço do anúncio e para mostrar como outros – a mulher mesma, e também os discípulos – participam desse empenho.

Sicar tornou-se capital dos samaritanos depois da destruição por João Hircano I no ano de 129 a.C.120 Que Jacó deu a seu filho José um campo nesta região se deixa deduzir de indícios do Gênesis e [[155]] de Josué: segundo Gn 33,18s., Jacó adquire um campo na região de Siquém, segundo Gn 48,4 ele dá este terreno a seu filho José, e segundo Jo 24,32, os restos mortais de José são sepultados no campo que Jacó dera a seu filho. M. Theobald121 observa que o termo édōken, “ele deu”, em Jo 4,5, alude ao mesmo verbo em Gn 24,32 LXX.

A fonte de Jacó não se encontra na Bíblia. Segundo J.-L. Ska, M. Theobald e outros, o motivo remete a histórias de fontes que na Bíblia se encontram em três lugares:

- Gn 24,10-21: o servo de Abraão encontra Rebeca junto a uma fonte na proximidade da casa de seu avô Nacor;

- Gn 29,1-13: Jacó encontra Raquel junto à fonte;

- Ex 2,16-22: Moisés encontra, junto à fonte, Séfora com suas irmãs e os pastores de Jetro, seu futuro sogro.

Os elementos de tais histórias de noivado (betrothal scenes) são descritas, na linha de R. Alter122, neste sentido123: o noivo viaja a uma terra distante e aí encontra uma jovem (ou diversas) junto a uma fonte. Tira-se água do poço. A jovem ou as jovens correm para casa, para dar a notícia do encontro. Prepara-se um noivado, geralmente ligado a uma

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refeição. M. W. Martin acrescenta mais elementos: a entrega de um presente à noiva e a autoapresentação do candidato124. E podem acrescentar-se outros elementos. Assim, a influência das histórias bíblicas em Jo 4 parece segura. A partir daí podem ser entendidos os temas dos cinco maridos da samaritana e do verdadeiro lugar de culto, desde que se conheça o valor simbólico do tema das núpcias em Israel. Cf. adiante vv. 16-26.

O diálogo com a samaritana sobre a água viva (4,7-15)

No v. 7 entra em cena a mulher da Samaria. Inicia-se o diálogo de Jesus com a mulher, até o v. 26. Há sólidas razões para subdividir esta secção em 4,7-15, com o tema da água viva, e 4,16-27, com os temas dos maridos da mulher, do verdadeiro culto e da identidade de Jesus.

A construção dos vv. 7-15 aparece na analise do fluxo narrativo. Podem-se distinguir três momentos de discurso entre Jesus e a samaritana: vv. 7-9 (o v. 8 é um parêntesis). vv. 10-12 e vv. 13-15. No fim do v.9 entra um comentário do evangelista. Do ponto de vista da semântica, os vv. 7-15 são dominados pelos temas “água” e “beber”. Os vv. 7 e 15 formam uma inclusão mediante os termos “vir... tirar (água)”. Assim, o conjunto destes versículos mostra-se uma unidade textual fechada.

4,7-9 O pedido de Jesus “Dá-me de beber” corresponde ao gênero literário das histórias de fontes (cf. acima o coment. de vv. 4-6). Em Jo 4, este pedido pode ser visto em conexão com o esforço e a fadiga, a fome e a sede de Jesus durante sua viagem. Sobre o pano de fundo de outros textos do QUARTO EVANGELHO, a sede de Jesus pode ser entendida também como expressão de sua sede pela salvação da humanidade. Recordam-se imediatamente as palavras de Jesus antes de morrer na cruz: “Tenho sede” (Jo 19,28); também estas palavras não exprimem somente a sede física de Jesus. Esta compreensão do pedido de Jesus se confirma pelo v. 8: “Os seus discípulos tinham ido à cidade comprar algo para comer”. Jesus aparece em nossa narrativa como um ser humano que experimenta fome e sede, mas as carências físicas têm também seu lado espiritual. Isso se esclarece, a seguir, quando Jesus significa que seu alimento é fazer a vontade do Pai que o enviou, portanto, realizar a vontade salvífica do Pai (vv. 31-34).

O sentido profundo dessas palavras escapa à mulher da Samaria. Ela nem mesmo atende o pedido de Jesus que pede que lhe dê de beber. Como sempre nesta sequência, ela se desvia ou mostra incompreensão. Em vez de corresponder ao pedido de Jesus, começa a discutir como Jesus, sendo judeu, pede um gole de água a ela que é samaritana. O narrador completa o texto acrescentando que os judeus não se relacionam com os samaritanos125. Do ponto de vista narrativo, o pedido de Jesus não encontra nem compreensão nem atendimento. Ao mesmo tempo, é introduzido um tema importante para o sequência do diálogo: a relação de judeus e samaritanos. Tornaremos a aprofundar este tema (vv. 19-24).

O tema da água se encontra em quase todas as religiões. Bultmann supõe que a origem literária do texto de Jo 4 sEvangelho de Joãoa a fonte gnóstica dos discursos de revelação. Mais próximo, porém, apresenta-se o pano de fundo bíblico do tema da água. Assim, o início do Salmo 42,2-3: “Como a corça almEvangelho de Joãoa as fontes d’água, assim minha alma almEvangelho de Joãoa a ti, ó Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo. Quando irei e verei a face de Deus?” Este salmo aparece citado no

124 125

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EVANGELHO DE JOÃO diversas vezes126. [[158]] Na travessia do deserto Deus aliviou a sede de seu povo com água (Ex 17,1-7); este acontecimento é retomado no Salmo 105,41. O profeta Ezequiel descreve a visão de uma fonte que brota do templo e se torna um rio que faz florescer o deserto (Ez 47). No EVANGELHO DE JOÃO, duas curas de enfermos situam-se na proximidade das águas: a do aleijado em Jo 5 e a do cego de nascença em Jo 9. O tema da água ocupa um papel central em Jo 7, no contexto da festa das Tendas. No auge dessa festa, Jesus proclama solenemente: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba quem crê em mim – conforme diz a Escritura: Do seu interior correrão rios de água viva” (Jo 7,37s.). E lembrano-nos das palavras de despedida de Jesus na cruz: “Tenho sede” (Jo 19,28). Jesus mesmo experimenta sede, mas ao mesmo tempo tem o poder de estancar a sede de seus irmãos humanos. Ele tem sede da salvação deles.

4,10-12 No segundo diálogo de Jesus e a samaritana, apresentam-se dois novos temas: a bebida que Jesus oferece e sua pessoa. Em vez de insistir no seu pedido por água, Jesus agora oferece à mulher uma bebida que ela ainda não conhece e que só se pode conhecer quando se sabe quem Jesus é. No lugar da água da cisterna-fonte, Jesus oferece uma “água viva”, um dom de Deus, cujo sentido por enquanto escapa à mulher (v.10).

De novo, a mulher é incapaz de entender as palavras de Jesus. A seus olhos, Jesus está doido: ele não tem balde, e o poço é profundo. Assim, a mulher mostra que entende as palavras de Jesus de modo meramente físico, natural, sem contar com um sentido religioso mais profundo destas palavras. Por outro lado, a mulher introduz um novo tema, que será importante para o ulterior desenvolvimento do diálogo: uma comparação entre Jesus e o patriarca Jacó, que fez o poço para seu filho e seu rebanho. Esse desconhecido, que se sentou à beira da fonte de Jacó, acaso será maior que o patriarca Jacó? Os comentadores veem na pergunta da samaritana um exemplo de “ironia joanina”: de fato, para o público leitor ao qual o autor visa, Jesus é de fato maior que o patriarca Jacó, apesar de a mulher que faz a pergunta não ter consciência disso.

4,13-15 A resposta de Jesus não menciona nem o balde, nem sua posição em relação ao patriarca Jacó (que será mencionado mais adiante), mas descreve a natureza própria da água que ele está oferecendo: será de tal natureza que, quem dela beber, não terá mais sede. Essa água se tornará uma fonte cuja água brota para a vida eterna. Esta promessa antecipa a mensagem do discurso do Pão da Vida em Jo 6,35: “Eu sou o pão da vida. Quem vem a mim não terá mais fome, e quem crê em mim nunca mais terá sede”127. Evidentemente, a mulher se encontra ainda longe desta visão de fé. Por isso, ela responde com um pedido que está totalmente enquadrado neste mundo e nas necessidades cotidianas: “Senhor, dá-me dessa água, para que eu não tenha mais sede, nem tenha de vir aqui tirar água” (v. 15). Até agora, o diálogo não trouxe muito progresso. Jesus só conseguirá romper o mal-entendido da mulher passando para um tema radicalmente novo, que determinará o momento seguinte do diálogo (vv. 16-26).

O diálogo de Jesus e a samaritana sobre o verdadeiro culto (4,16-26)

“Vai chamar teu marido e volta aqui!”: esta ordem de >Jesus surpreende neste lugar e pede esclarecimento. Aliás, não é a única surpresa nesta secção. Qual é a conexão entre o tema dos maridos dessa mulher e o do lugar do culto que Deus desEvangelho de Joãoa? E como estas perguntas se ligam à identiddae de jesus como profeta e até

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possivelmente Messias? E, finalmente, como compreender a expressão “a salvação vem dos judeus” na perspectiva do QUARTO EVANGELHO e no contexto de Jo 4?

A exegese histórico-crítica procurou resolver estas questões distinguindo fontes e camadas literárias. Na Europa Central reinou durante muito tempo a influência de Rudolf Bultmann, que distinguia entre um texto-fonte pré-joanino (a Fonte dos sēmeia) e o evangelista, ao qual se acrescenta ainda um redator eclesial (que seria em parte responsável pelo v. 22). As escolas exegéticas evangélica128 e católica129 insistiam, e ainda insistem, nesta linha.

Em tempos recentes, essa “crítica” foi criticada. Julga-se que, enquanto não se apresentam tensões insuperáveis, o texto deve ser explicado como um conjunto que faz sentido. Ora, nossa unidade textual deixa-se explicar muito bem, na forma que temos diante de nós, como um conjunto que faz sentido. Para isso serão mostradas tradições bíblicas que o influenciaram e que ajudam a perceber a coerência interna dos temas muito diversificados desta secção.

A estrutura da secção reflete-se nos turnos do diálogo entre Jesus e a samaritana. Os vv. 16-18 se mostram conectados pelo tema, o que via de regra é reconhecido. Nestes versículos, o tema é a questão do marido (ou dos maridos) da mulher, numa sequência Jesus-mulher-Jesus. Em seguida, a mulher da Samaria troca o tema e passa, nos vv. 19s., para a pergunta do lugar de culto desEvangelho de Joãoado por Deus. Jesus responde a sua pergunta nos vv. 21-24. A isso se segue um último turno de pergunta e resposta entre a mulher e Jesus, nos vv. 25s. Nota-se que, a partir do v. 19, a ordem dos atores nos diálogos se inverte. É a mulher que toma a iniciativa e lança perguntas, às quais Jesus então responde. Nisso se percebe o papel progressivamente mais ativo da mulher samaritana neste diálogo.

4,16-18 A ordem “Vai chamar teu marido e volta aqui!” surpreende leitores. E não faltam explicações. Gail R. O’Day130 vê uma conexão com o versículo anterior na palavra “aqui”. A mulher acabou de pedir a Jesus que lhe desse água viva para que ela não precisasse mais voltar “aqui”. Jesus não reage a seu pedido, mas, ao contrário, ordena à mulher de voltar “aqui” com seu marido. A autora americana vê neste uso repetido do termo um exemplo da “ironia joanina”: Jesus retoma uma palavra que a parceira do diálogo usou, mas num outro campo semântico e com outra finalidade. J. Eugene Botha131 não concorda com esta proposta e lhe opõe uma outra: Jesus, no v. 16, troca o tema conscientemente para, assim, poder continuar a conversa com a mulher . Até este ponto, ele não tinha conseguido entrar num diálogo realmente pessoal com a mulher (“to get through to her”, como diz H. Boers132). Pela troca súbita do tema isso seria possível, pensa Botha, recorrendo à teoria do “ato linguístico”.

Sem questionar essas considerações linguísticas em torno do texto, convém chamar a atenção para o fundo bíblico desta cena. Lembramos um artigo de J.-L. Ska133, que, com outros autores, remete às histórias de encontro junto à fonte que aparecem no AT (Gn 24; o servo de Abraão encontrando Rebeca; Gn 29,1-13: Jacó que encontra Raquel; Ex 2,16-22: Moisés que encontra Séfora e suas irmãs). Essas histórias são sempre histórias de amor. No início o homem ou a mulher pede água, depois segue um diálogo, a mulher leva o homem consigo para casa, fazem uma refeição, ele pede sua mão e eles se casam. 128 129 130 131 132 133

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Pode-se perguntar por que, em nossa história, o final é diferente. Segundo J.-L. Ska, a samaritana em Jo 4 representa o povo dos samaritanos e sua religião. Esta observação é apoiada pela resposta da mulher dizendo que não tem marido. Jesus aproveita esta resposta e esclarece: ela teve cinco maridos e o que ela tem agora não é o seu marido. Ska vê esta resposta de Jesus em conexão com o tema da infidelidade de Israel para com seu Deus. A samaritana aparece no papel da mulher do cap. 2 de Oseias, que se torna infiel a seu “marido” e só é reabilitada quando acontece um novo compromisso matrimonial. Deste modo, não a mulher, mas os samaritanos tornam-se “esposa” de Jesus. E cumpre-se a promessa de nova fecundidade, segundo Os 2.

Para os cinco maridos da mulher alegaram-se diversas explicações. Eis as três mais importantes: 1) Os cinco são os cinco maridos reais da mulher da Samaria. Como os rabinos só permitem três casamentos sucessivos, ela é uma mulher de fama questionável. E seu parceiro atual nem sequer é seu marido. 2) Os cinco maridos significam as divindades dos samaritanos que, segundo 2Rs 17,30-32.41, as tribos estrangeiras que migraram para Samaria trouxeram consigo. Verdade é que o texto de 2Rs fala em sete, mas Flávio Josefo (Ant. IX, 288) só fala em cinco. Os samaritanos cultuaram essas divindades, e agora cultuam o Deus verdadeiro numa maneira que não lhe agrada. 3) Os cinco maridos representam os cinco livros do Pentateuco134. A mulher representa a Samaria, que segue a tradição do Pentateuco, mas não foi fiel a esse laço com Deus.

A primeira proposta hoje em dia pouco se defende. Assim restam a segunda e a terceira. Não se excluem mutuamente, necessariamente. Na cena do diálogo joanino, o tema metafórico da vida matrimonial da mulher prepara a transição para o próximo objeto da conversa, o lugar de culto que Deus desEvangelho de Joãoa.

4,19-24 A partir de agora muda-se a ordem dos participantes do debate. A mulher toma a iniciativa e dirige-se a Jesus com a questão do lugar de culto que Deus desEvangelho de Joãoa135. Dirige sua pergunta respeitosamente a Jesus, ao qual ela chama de “senhor” e no qual ela reconhece um “profeta”. Segundo a fé dos samaritanos, só aos profetas era confiado revelar as coisas secretas. Assim, o diálogo passa da focalização da miulher para a pessoa de Jesus. Não é preciso [[162]] pensar que Jesus tenha revelado à mulher os pecados dela em particular. O que ele disse sobre a vida anterior dela pode explicar-se também por seu conhecimento das experiências mais pessoais da parceiro do diálogo; pensemos em seu conhecimento dos fatos pessoais de Natanael (Jo 1,48) ou em seu conhecimento do ser humano em geral (2,23; cf. 13,21). A mulher pergunta agora a respeito do lugar de culto que Deus desEvangelho de Joãoa. Este tema era um ponto principal de discussão entre judeus e samaritanos. Este novo tema se deixaria esclarecer a partir de uma compreensão metafórica da situação matrimonial da mulher. Uma explicação mais simples pode ser o fato de que o monte Garizim se encontra na proximidade imediata da fonte de Jacó136; assim a transição se entende com facilidade.

Na resposta de Jesus (vv. 21-24) importa distinguir entre o ponto de partida e a finalidade. Jesus parte de um culto que, segundo a vontade de Deus registrada na Escritura, deve acontecer em Jerusalém. Neste sentido, “a salvação vem dos judeus”. Mas o termo final é um culto no qual as diferenças entre os diversos lugares de oração e sacrifício são superadas. E o tempo em que isso acontece é o tempo do fim. João usa para enunciar isso duas expressões: “Vem a hora” (v.21) e “Vem a hora, e é agora” (v.

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23). Ambas as maneiras de ver se complementam e não devem ser atribuídas a dois estágios diferentes da redação137.

E o que significa “em espírito e em verdade”? Não se trata de um culto puramente interior, sem assembleia religiosa da comunidade, ritos e ministros; trata-se do culto do tempo final. O Espírito será o “dom” de Deus no tempo por vir, o tempo da “Nova aliança” (cf. Ex 36,26)138. De acordo com isso, “verdade”, neste texto e contexto, não é a “concordância entre o conceito e a realidade” nem a “manifestação do ser enquanto ser”. O conceito de verdade, na literatura joanina, não é moldado em sentido filosófico, mas teológico, como I. de la Potterie, em sua dissertação139, mostrou de modo esclarecedor em oposição a Bultmann. Em João, a representação da verdade tem feições veterotestamentárias e protojudaicas, com correspondências inclusive nos textos de Qumran. Deriva-se da raiz hebraica émet e descreve antes uma relação entre pessoas (Deus e seu povo) do que entre grandezas abstratas: a saber, a autocomunicação fidedigna de Deus.

A palavra de Jesus “A salvação vem dos judeus” não significa que, até a chegada de Jesus Cristo, a salvação viesse dos judeus, e depois, exclusivamente de Jesus e dos cristãos. A salvação vem sempre dos judeus, como atesta, entre outros, K. Wengst com J. Calvin. Paulo falaria dos ramos que foram enxertados na oliveira de Israel (cf. R, 11,16-20). O ramo não sustenta a raiz, é a raiz que sustenta os ramos.

Como já dissemos, R. Bultmann e sua escola negam que Jo 4,22 venha do evangelista João. A expressão “A salvação vem dos judeus” seria um acréscimo da “redação eclesial” ou “joanina”. Mas é difícil ver por que, no fim do I século, a comunidade, que se tornava cada dia mais gentio-cristã, teria tido interesse em acrescentar uma frase dessas. É melhor abandonar tal hipótese.

O último turno do diálogo entre a samaritana e Jesus aproxima-se ainda mais do mistério de Jesus; o Messias deve vir e instruir o povo a respeito do culto que Deus desEvangelho de Joãoa. Segundo Gail O’Day140 pode-se ver aqui um último exemplo da ironia joanina: a mulher, sem o saber, exprime a convicção de fé da comunidade cristã; com esta diferença, que o Messias não virá, mas já está presente; nem é um desconhecido, mas é Jesus, que está diante dela e conversa com ela. É o que Jesus lhe anuncia: “Sou eu, que estou falando contigo” (v. 26). Jesus é o “Taheb”, aquele, o Messias vindouro dos samaritanos, mas também o Messias dos judeus; e logo mais ele e se revelará como o “salvador do mundo”, como o proclamarão os samaritanos depois do encontro com ele (v. 42).

Os exegetas se perguntam se as palavras de Jesus, “Sou eu”, significam mais que sua identificação com o Messias vindouro de que falou a mulher. Parece natural ver nesta expressão um exemplo do “Eu sou” com o qual Deus se autoapresenta no Antigo Testamento (desde Êxodo até Ezequiel). Se esse sentido se confirmar, a palavras de 4,26 transcendem o messianismo e desembocam na cristologia joanina no sentido pleno: Jesus se rfevela como Deus presente no meio dos homens.

A saída da mulher, a chegada dos discípulos e dos samaritanaos (4,27-30)

A breve secção que se segue caracteriza-se pelo “ir/sair” e pelo “vir/chegar”. Distingue-se um movimento triplo: os discípulos chegam a Jesus (êlthan, v. 27), a mulher se vai

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(apêlthen, v. 28-29) para testemunhar acerca de Jesus; e os habites saem da cidade (exêlthon, v. 30) para encontrar Jesus. Este resumo mostra que Jesus está no centro da secção. Dele sai o movimento e reconduz a ele, depois de um primeiro, tímido testemunho da mulher a seu respeito.

No início está a chegada dos discípulos, que tinham ido à cidade para comprar víveres (v.8). Acertadamente, Bultmann observa que os discípulos, voltando nesse momento, ainda são testemunhas da conversa de Jesus e da samaritana. Neste momento ainda não se fala do tema do alimento. Menciona-se que os discípulos se perguntam por que Jesus fala com uma mulher. Para H. Boers141, o fato de Jesus falar com uma mulher não se encaixa na coerência temática da secção; por isso, exclui o tema da sua análise semântica. Contudo, não se deve limitar o arcabouço dos temas que aqui vêm à fala. Em 1,1-42, Jesus aparece como alguém que, de diversos modos, rompe com os costumes de seu povo. A principal ruptura é em relação ao conflito entre judeus e samaritanos, mas também a relação homem-mulher na sociedade do país vem à pauta. Ambos estes aspectos em que Jesus trilha caminhos novos são apontados no v. 9, onde a samaritana exprime sua admiração porque Jesus, um judeu, fala com ela, mulher da Samaria. Assim, a admiração dos discípulos no v. 27 vem preparada desde longe. O texto do v.27 não diz simplesmente “Por que falas com ela?”, mas menciona o conteúdo da pergunta que os discípulos não chegam a formular: “Que procuras?”. E. Cothenet142 vê nestas palavras uma expressão da “procura” de Jesus pela salvação da samaritana, na qual se exprime a procura de Deus pela salvação da humanidade.

Segundo o v. 28 a mulher abandona sua bilha e volta à cidade, para aí anunciar quem ela encontrou. Os exegetas vêem nisso, geralmente, um indício da pressa da mulher ao sair do lugar. Contudo, pode-se ver aqui a expressão do processo de aprendizagem que a mulher percorreu desde o início do encontro com Jesus. As leitoras e leitores percebem que a mulher, não precisa mais da água física que ela fora buscar depois de ter encontrado Jesus, fonte e doador da água viva, que sacia a sede do ser humano num sentido mais profundo. A mensagem da mulher aos habitantes da cidade tem duas partes. Ela encontrou um homem que lhe disse tudo o que ela fez. Esta experiência prova, no mínimo, que ele deve ser um profeta (cf. v. 19). Na segunda parte do testemunho, a mulher transcende esse nível e coloca a pergunta se ele não seria o Messias. Os exegetas não são concordes quanto ao sentido de sua pergunta. Alguns são céticos. O termo mêti, “(acaso) não ?”, faria esperar uma resposta negativa (o mesmo termo ocorre em Jo 8,22; 18,35). Outros julgam que a expressão tem sentido aberto, se não faz pensar num resposta positiva143. À luz da análise narrativa (cf. o testemunho do v. 20), parece mais provável que a mulher suspeita que Jesus é Messias do que o contrário. Exatamente por isso, os habitantes saem da cidade de Sicar em direção a Jesus (v. 30).

O diálogo de Jesus com os discípulos sobre seu alimento e a colheita (4,310-8)

A volta dos discípulos leva a um diálogo deles com Jesus sobre o seu alimento. Ao convite dos discípulos para que Jesus coma (v. 31), conecta-se uma resposta de Jesus a respeito de seu alimento; esta resposta vai até do v. 34. Depois, ela passa para as palavras de Jesus sobre a colheita que está chegando, até o v. 38. Para a exegese

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pormenorizada convém interpretar os vv. 31-34 e 35-38 separadamente, mostrando, porém, a sua coerência.

Os primeiros quatro versículos da secção se referem ao tema do alimento e do comer. Assim como em ambas as secções anteriores do diálogo com a samaritana (cf. a ordem “Dá-me de beber”, v.7; e “Vai chamar teu marido e volta aqui!”, v. 16) também aqui a secção inicia-se com uma ordem. Desta vez, são os discípulos que ordenam a Jesus: “Rabi, come!” Como nos dois exem0plos anteriores, quem recebe a ordem não atende. A reação de Jesus traz à memória a conversa sobre a água nos vv. 9-16. Mas ao contrário dessa conversa (e de 6,35), Jesus não fala aqui de uma bebida ou alimento que ele fornece, mas de uma que ele recebe. Também este alimento deve ser entendido figurativamente: o alimento consiste, para Jesus, no cumprimento da vontade de quem o enviou, a saber, o Pai (v. 34). Os discípulos não são capazes de entender o sentido e e perguntam-se se, entretanto, alguém teria trazido algo para Jesus comer (v. 33). O que é o alimento verdadeiro de Jesus escapa à compreensão dos discípulos (v. 32). A semelhança com o diálogo com a samaritana é evidente. Por outro lado, o tema do alimento verdadeiro mostra parentesco com o de sua sede, em sentido metafórico. Lembramos que, no início da narrativa, Jesus se sentou, sedento e fatigado, na beirada da fonte de Jacó e pediu à mulher da Samaria um gole de água (vv. 6ss.). Aprofundando, percebemos que se tratava de sua sede pela salvação da humanidade, a qual o acompanharia até nas suas últimas palavras na cruz (cf. 19,28).

Jesus tem sede de fazer a vontade do Pai. A vontade do Pai é a salvação dos homens, a “vida eterna” no nome de Jesus. Isso nos conduz [[166]] ao início da oração de despedida de Jesus em Jo 17. Nos primeiros versículos desta oração vem à tona este objetivo da vida e da missão de Jesus. Em Jo 17,4, Jesus fala da “obra” (érgon, no singular) que ele deve “levar a termo” (teleióun) ou “ levou a termo”: são as mesmas palavras de Jo 4,34. Assim já nos encontramos no campo semântico da missão, que determina os quatro versículos seguintes.

4,35-38 O conceito da “colheita”, que domina os próximos versículos, não aparece alhures em João, mas aparece em sentido escatológico ou missionário em outros lugares do NT. Nos evangelhos sinópticos encontra-se, nas parábolas de Jesus, para descrever figurativamente a colheita escatológica dos frutos da salvação ou do julgamento (Mc 4,29; Mt 13,30.39) ou para descrever a missão (Mt 9,37s.//Lc 10,2 = Q). Neste último sentido é que o termo é utilizado por João em 4,35ss., no quadro de um provérbio. Segundo este provérbio calcula-se a distância entre a floração das espigas e seu fruto na hora da colheita. Mas no mundo que Jesus aponta presente, esta distância desapareceu. Com a floração já se apresenta a maturação: chegou o tempo da colheita, em Jesus. No v. 36, o olhar se volta para a distinção entre o semeador e o que recolhe. Ambos se alegrarão. Nesta altura, cita-se outro provérbio, que toca na distinção entre o semeador e quem recolhe (v.37). Jesus aplica esta distinção à atual situação: outros semearam, e os discípulos recolhem um fruto que eles não semearam. Apenas participam da “fadiga” de quem semeou antes deles (v. 38). A terminologia remete à “fadiga” de Jesus no inicio da conversa com a samaritana (4,6: kekopiakôs). Lembramos que em 1Ts 5,12 esta expressão é usada como termo técnico par o empenho pastoral.

Os exegetas têm opiniões diversas a respeito de quem são os que “se fatigaram”. Há quem pense no Pai, outros em João Batista, outros ainda na mulher samaritana. Ao responder a esta questão convém ter presente que o texto pressupõe uma atividade missionária na região dos samaritanos no tempo do evangelista. Neste sentido, poder-se-

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ia pensar também nos primeiros missionários da região – segundo At 8,4-8, Filipe, antes da chegada de Pedro e João (At 8,4-8)144.

Olhando para trás retoma-se a pergunta da unidade temática do diálogo de Jesus com os discípulos em Jo 4,31-38. Segundo nossa interpretação, que se liga à de autoras e autores recentes145, Jo 4,1-42 é uma história simbólica. Sobretudo B. Olsson e T. Okure salientaram o papel central da “obra” de Jesus nesta secção. Pode-se mostrar que o aspecto missionário desde o início ocupa um papel na narrativa de Jo 4, desde o momento em que Jesus, fatigado e sedento, se assenta na beirada da fonte e pede à mulher: “Dá-me de beber” (4,7). Na última secção (4,31-38), esse tema é levado a termo.

Muitos samaritanos passam a crer em Jesus (4,39-42)

4,39-40 Num primeiro momento, os samaritanos passam a crer em Jesus (como se lê com a maioria dos manuscritos) graças ao testemunho da mulher, que anuncia que Jesus lhe disse tudo o que ela fez. Esta fé não é considerada, pelo evangelista, como insatisfatória; todavia, permanece aberta a um progresso na compreensão146. Este progresso torna-se possível graças à estada de dois dias de Jesus na cidade dos samaritanos, mencionada no início do v.43. Nesta estada, Jesus pode dirigir sua palavra aos samaritanos e conduzi-los a uma compreensão mais profunda de sua pessoa e missão.

4,41-42 Esta palavra de Jesus é tomada, na segunda metade da secção, como razão por que uma multidão maior ainda147 passa a crer nele. A palavra de Jesus se substitui à palavra da mulher. Não que a palavra da mulher tenha sido supérflua: isso o texto não o diz. Só diz que os samaritanos “já não” acreditam (como antes) com base nas palavras da mulher, mas (agora) acreditam com base no seu encontro pessoal com Jesus e sua palavra, que os leva à confissão da fé reconhecendo que “ele é verdadeiramente o salvador do mundo”.

III

Também a história de Jesus e da samaritana é marcada por um movimento. Ponto de partida é o pedido de Jesus por um gole de água. Ele precisará também de pão para continuar seu caminho em direção aos homens. Mas, também para João, o homem não vive só de pão e da água potável de cada dia. A samaritana e, com ela, as leitoras e leitores são conduzidos para lá das necessidades cotidianas, à bebida verdadeira: a Jesus como fonte de água viva; e ao alimento verdadeiro: o cumprimento da vontade salvífica do Pai.

Esta vontade salvífica desEvangelho de Joãoa a salvação também para os samaritanos, os “irmãos e irmãs separados” do povo judeu. Santuários separados, tradições separadas não mais os separarão uns dos outros. Sim, aproxima-se um tempo, e com Jesus ele irrompe, em que os verdadeiros adoradores adorarão Deus – sEvangelho de Joãoa onde for. Isso se tornará possível no Espírito e em Jesus, e assim ele é verdadeiramente “o salvador do mundo” (v. 42).

Se Jesus, na Samaria, se revela em primeiro lugar a uma mulher, isso não é insignificante. Já na Antiguidade e no protojudaísmo se podem perceber e observar

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barreiras entre homens e mulheres. Jesus vence essas barreiras, para admiração de seus discípulos. Seu procedimento incomoda, para todos os tempos, no duplo sentido da palavra: primeiro como escândalo, depois como convite para seguir seu exemplo na superação de preconceitos em relação às mulheres. Se a mulher de Sicar é anunciadora da mensagem da salvação para seus compatriotas, então ela permanece exemplo para mulheres a serviço do anuncio até o dia de hoje.