vieira,carlosalbertocordovano
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Universidade Estadual de Campinas Instituto de Economia
Mestrado em Histria Econmica Dissertao de Mestrado
Interpretaes da Colnia
leitura do debate brasileiro de inspirao marxista
Orientador: Prof. Dr. Plnio de Arruda Sampaio Jnior Autor: Carlos Alberto Cordovano Vieira
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A Waldemar Cordovano, meu av
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Agradecimentos
Presto agradecimentos. Ao professor Plnio de Arruda Sampaio Jnior, orientador rigoroso e figura exemplar, na intransigncia com que vincula a vida intelectual e o compromisso poltico. Agradeo-lhe pela orientao profunda e precisa, e sobretudo pelo estmulo ao enfrentamento das grandes questes, que so, enfim, relativas aos dilemas do Brasil contemporneo. Ao professor Flavio Saes que, desde os tempos da graduao, orienta meus estudos, compartilhando seu conhecimento profundo dos problemas da histria econmica. Acompanhou tambm este trabalho e lhe sou grato pelas preciosas sugestes. professor a Lgia Osrio, cujo texto e seminrio feudalismo, capital mercantil, colonizao inspirou a dissertao, pelas observaes ao longo do percurso, inclusive no exame de qualificao.
Presto agradecimentos. minha famlia. Nadiejda, que acompanhou de perto a jornada, desde o incio. Aos meus amigos Thomaz e Daniel, com quem compartilho esta e outras liras. A outros tantos amigos. Aos colegas do Instituto. Compartilho com todos eles os eventuais mritos deste trabalho. Assumo a responsabilidade pelos problemas que certamente contm.
Presto agradecimentos. Lina, que esteve ao meu lado, com muito carinho e pacincia, durante o ltimo ano.
E peo perdo pelas ausncias, companheira, que escrever compromisso importante; e aos amigos de sempre, que a tese moa muito ciumenta.
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Sumrio
Introduo.................................................................................................................1 Parte I: A colnia na transio do feudalismo ao capitalismo Nota introdutria.......................................................................................................13 Captulo I: Crise do feudalismo e desenvolvimento mercantil....................................27 Captulo II: A sociedade do Antigo Regime e o substrato do Estado Absolutista........51 Parte II: Interpretaes da colnia Nota introdutria........................................................................................................85 Captulo III: Sentido da colonizao e antigo sistema colonial....................................91 Captulo IV: Escravismo, feudalismo e formas hbridas ............................................121 Captulo V: Escravismo colonial..............................................................................137 Consideraes finais................................................................................. ............171 Bibliografia.........................................................................................................................175
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Resumo A presente dissertao pretende discutir as interpretaes da colnia elaboradas pelo
pensamento brasileiro, referido aos marcos do materialismo histrico. O estudo organiza-se
circunscrito em particular s obras de Caio Prado Jnior, Nelson Werneck Sodr, Alberto
Passos Guimares, Fernando Novais, Ciro Flamarion Cardoso e Jacob Gorender e procura
considerar a questo luz da problemtica mais abrangente que diz respeito aos dilemas do
Brasil contemporneo. Nesse percurso, pretendemos discutir o modo de insero do objeto,
a saber, a estrutura e dinmica da sociedade colonial, na totalidade histrica a que se refere,
e para tanto procuramos investigar o modo como as interpretaes mobilizam as categorias
do materialismo histrico e o modo como enfrentam a problemtica europia da transio
do feudalismo ao capitalismo.
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A violncia a parteira de toda a velha sociedade que est prenhe de uma nova
Karl Marx
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Introduo
O presente trabalho prope uma discusso sobre as interpretaes da colnia de
historiadores brasileiros de fundamentao no materialismo histrico, quais sejam, Caio
Prado Jnior, Nelson Werneck Sodr, Alberto Passos Guimares, Fernando Novais, Jacob
Gorender e Ciro Flamarion Cardoso. So historiadores que apresentaram grandes snteses
que se tornaram referncias de carter estrutural nos debates sobre o passado colonial da
sociedade brasileira. Ademais, a inspirao marxista de suas obras conforma um campo
comum no qual se pode estabelecer dilogos mais imediatos, no obstante a variedade de
matizes que constituem o corpo do marxismo. So historiadores que buscaram a
compreenso dos processos histricos em sua totalidade, embora, cada qual a seu modo,
conferissem centralidade histria econmica. Assim, subjacente diversidade de suas
reflexes, h uma unidade que estabelece os marcos para um dilogo. Um dilogo, em certa
medida, j sedimentado sob algumas dcadas de historiografia, mas que continua a suscitar
novas questes, que, de resto, referem-se aos dilemas do Brasil contemporneo. Por essas
razes, o presente trabalho apresenta um estudo das interpretaes da colnia, circunscrito
leitura desses autores. Naturalmente, um estudo que no pretende esgotar dis cusso to
vasta, seno sistematizar os traos mais essenciais do debate, qualificando algumas
posies e crticas.1
O debate sobre a sociedade colonial o debate sobre o sentido das transformaes
estruturais subjacentes ao desenvolvimento da sociedade brasileira. A comear por Jos
Bonifcio, passando por Alberto Torres e Oliveira Vianna, at autores modernos, como
1 Portanto, uma gama de contribuies de diversos autores no ser estudada de modo sistemtico, embora algumas dessas leituras estejam presentes de modo menos explcito. Em primeiro lugar, grandes interpretaes do Brasil, exteriores ao campo do marxismo ou da historiografia econmica, como por exemplo Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda, Roberto Simonsen, Igncio Rangel ou Celso Furtado, entre outros. Inclui-se nessa lista de ausncias a contribuio de Florestan Fernandes, cuja leitura inspirou o presente trabalho na sistematizao do debate, embora a necessidade de explicitar os dilogos entre suas influncias marxistas e weberianas estivesse alm das possibilidades desta dissertao. Tambm furtamo-nos de discusses explcitas sobre as contribuies de Luiz Felipe de Alencastro, Charles Boxer, Stuart Schwartz, Joo Fragoso ou Manolo Florentino, porque, posto o atual estado das artes do debate, sua incorporao exigiria um esforo de sntese, hoje, alm de nossas possibilidades. Assim tambm, os trabalhos de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Iraci del Nero da Costa, bem como do ncleo de estudos de demografia histrica da USP. Entre outras, justificamos a ausncia de todos os trabalhos monogrficos sobre o perodo colonial, pois que, o propsito dessa dissertao a apreciao de trabalhos de sntese.
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Gilberto Freyre, Srgio Buarque de Holanda e Antonio Candido, os pensadores que se
debruaram sobre os dilemas da formao ressaltaram basicamente os mesmos problemas.
As dificuldades para a afirmao da nao decorrem das terrveis contradies de uma
formao social marcada pelo genocdio da civilizao pr-cabralina; pelo ultra-elitismo de
uma sociedade incapaz de resolver suas pendncias com o passado escravista; pelo carter
predatrio assumido pela atividade econmica em relao ao meio ambiente; pela extrema
vulnerabilidade do pas s vicissitudes do capital internacional e ao arbtrio do sistema
imperialista; pela inadequao da base produtiva para atender as necessidades do povo;
pelos obstculos encontrados para afirmar o domnio sobre um territrio continental,
composto de regies mal articuladas e desconexas entre si; pela falta de identidade nacional
de um aglomerado humano recente, oriundo de diferentes partes do globo; pela
precariedade das instituies administrativas e polticas que compem o aparelho do
Estado; e, finalmente, pelo arraigado colonialismo cultural de nossas elites.2 Sem postular
uma teia de conexes imediatas, pode-se dizer que o debate de orientao marxista sobre a
sociedade colonial constituiu-se, em sua origem, no interior do Partido Comunista, como
parte dos debates sobre o sentido da revoluo no Brasil.
No contexto da ascendncia da orientao poltica e terica dos soviticos sobre os
partidos comunistas, o VI Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1928, em
Moscou, incluiu o Brasil na resoluo acerca dos pases dependentes, aos quais seria
atribuda a vigncia, no passado, de um modo de produo feudal ou asitico. Sabe-se, tal
resoluo implicava nas tarefas da revoluo democrtico-burguesa. J em 1927, o Partido
Comunista do Brasil incorporava, em seu III Congresso, a tese da economia brasileira
agrria, semifeudal e semicolonial. Os problemas do tratamento dogmtico e mecnico
daquelas categorias so conhecidos e foram admitidos, mais tarde, inclusive por Astrogildo
Pereira e Octvio Brando. Mas, no obstante oscilaes mais ou menos explcitas, o
sentido geral daquelas concepes, prticas e tericas, permaneceria como orientao aos
comunistas. O debate marxista, objeto deste estudo, surge no interior do Partido Comunista,
2 Plnio de Arruda Sampaio Jnior, Os impasses da formao nacional, in Jos Lus Fiori (org.). Estados e Moedas no desenvolvimento das naes. Petrpolis, Vozes , 1999, pg. 416. Ver tambm Octvio Ianni, O ciclo da revoluo burguesa no Brasil, in Temas de Cincias Humanas, out. 1981.
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nas interpretaes de Werneck Sodr e Alberto Passos, e nas crticas de Caio Prado.
Desenvolve-se, pois, nesse contexto poltico e terico.3
Assim, nesse debate os problemas do atraso econmico, sobretudo no campo; do
padro de relao da economia brasileira com o capital estrangeiro; da posio da burguesia
brasileira no desenvolvimento nacional; da misria do povo guardavam profunda relao
com as interpretaes sobre o passado colonial. Werneck Sodr, de forma muito mais
sofisticada do que lhe atribuem seus crticos, prope interpretar o processo de revoluo
burguesa brasileira como um acmulo progressivo e gradual de transformaes que
apontam no sentido da consolidao do capitalismo em bases nacionais, marcado pelo
choque, latente ou aberto, contra obstculos definidos. A imagem que oferece de uma
roda quadrada que vai se arredondando conforme rola. Esse movimento choca-se contra a
resistncia do latifndio, aqui entendido como um elemento residual, conformado pelo
modo de produo feudal que teria surgido, sobre o declnio do escravismo, como processo
regressivo, desde os tempos coloniais. Essas formas arcaicas, expressas nas relaes de
produo, seriam um entrave generalizao de relaes propriamente capitalistas, isto ,
generalizao do trabalho livre e assalariado, e, sobre essa base, ao desenvolvimento das
foras produtivas. Em paralelo, a tendncia extroverso do latifndio, essencialmente
exportador, representa motivo de instabilidade por conta, de um lado, da tendncia
superproduo no mercado externo e, de outro, do estreitamento do mercado interno. O
descolamento do latifndio em relao causa do desenvolvimento nacional estaria
refletido no predomnio do capital estrangeiro sobre as linhas de comercializao e
financiamento. O quadro da aliana entre imperialismo e latifndio feudal, como entrave ao
desenvolvimento nacional, torna-se mais complexo quando o capital estrangeiro avana
sobre o processo de industrializao e embaraa o processo de acumulao, em virtude de
uma capitalizao dirigida para o exterior, em prejuzo dos recursos internos, aprofundando
os desequilbrios e o endividamento.
Nos passos da revoluo burguesa, expressos na Independncia, que possibilita a
internalizao da acumulao na economia cafeeira; na Abolio, que representa o
3 Edgar Carone. O PCB, 3 vols., So Paulo, Difel, 1982; Jos Antonio Segatto. Breve histria do PCB, 2 edio. Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1989; Michel Zaidan Filho. O PCB e a Internacional Comunista (1922-1929). So Paulo, Vrtice, 1988; Michel Zaidan Filho. PCB (1922-1929): na busca das origens de um marxismo nacional. So Paulo, Global, 1985.
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predomnio do trabalho assalariado; nos acontecimentos de 1914 e 1929, que permitem
intensificar a industrializao substitutiva de importaes, assentada no mercado interno; e
nos acontecimentos polticos de 1930 e 1937, a burguesia brasileira, aqui considerada
portadora do projeto de desenvolvimento nacional, tende a tornar-se hegemnica. Nesse
movimento, o atraso brasileiro ser compreendido como resistncia de elementos pr-
capitalistas residuais, em convergncia com as foras do imperialismo. E o sentido das
transformaes em curso na sociedade brasileira seria o choque das foras burguesas,
portadoras do progresso capitalista contra os resduos pr-capitalistas, feudais e
semifeudais, em aliana com o imperialismo. No quadro dessa interpretao, as foras
burguesas adquirem o contedo de uma burguesia nacional, cujo embrio mais remoto o
autor encontra j no seio da economia colonial mineira, que haveria de se apoiar num
campesinato empenhado na transformao de relaes de produo arcaicas, e no
proletariado, espera de sua hora e vez. Porque no o proletariado, nem o campesinato
que est com sua sorte de classe em jogo. a burguesia que est decidindo seu prprio
destino.4
Caio Prado, sabe-se, formularia o contraponto, dentro do partido, daquelas teses.
Sobretudo nas pginas da Revista Brasiliense, reafirmando a crtica ampliao do raio de
ao do capital estrangeiro, desferia sua crtica aproximao tcita dos comunistas a
Juscelino Kubitschek. Mais adiante, faria a crtica a Joo Goulart e ao movimento em torno
das reformas de base, que classificava como produto de uma agitao superficial.
Novamente, no pouparia os comunistas que, no obstante as tenses, teriam tambm se
aproximado de Joo Goulart. Mas consolidou sua crtica poltica dos comunistas com a
publicao de A Revoluo Brasileira, em que atribui poltica do partido e expectativa
em torno de uma certa ousadia da burguesia brasileira a derrota em 1964.5
A interpretao do sentido das transformaes da sociedade brasileira identifica um
processo de transio de uma sociedade colonial a uma sociedade nacional, ou seja, uma
economia colonial em transio, em processo de diferenciao. Isso implica em
estabelecer uma linha de continuidade que perpassa o processo de formao nacional, da
4 Nelson Werneck Sodr. Histria da burguesia brasileira. 2 edio. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1967, pg. 379. Ver tambm Nelson Werneck Sodr. Capitalismo e revoluo burguesa no Brasil . Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990. 5 Jacob Gorender, Do pecado original ao desastre de 1964, in Maria ngela dIncao (org.). Histria e ideal: ensaios sobre Caio Prado Jr. So Paulo, UNESP, 1989.
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poca colonial ao Brasil contemporneo. Uma linha de continuidade que revela o carter
contraditrio do movimento, porquanto a formao nacional afirma-se a partir da colnia e,
ao mesmo tempo, em oposio colnia. A conjuntura revolucionria emerge quando a
contradio entre colnia e nao converte-se em antagonismo, ou seja, no momento de
superao da contradio, a sociedade brasileira enfrenta o dilema entre a afirmao da
sociedade nacional pela ruptura do passado colonial, ou a reverso neo-colonial. 6 Assim,
nessa perspectiva, trata-se de reconsiderar a idia do choque entre foras portadoras de
modos de produo distintos, o novo contra o arcaico, a burguesia nacional contra os
resduos feudais e semifeudais. Na verdade, esse choque evoca a idia de Werneck Sodr
de contemporaneidade do no coetneo, isto , da coexistncia e dilogo, por todo o espao
geogrfico, de realidades sociais diferentes que encarnam etapas histricas distintas, como
um mosaico de formas desconexas. Enfim, a idia de transio e diferenciao reorienta a
interpretao. Pois aqui, a formao naciona l e o passado colonial, o novo e o velho
conformam uma contradio e portanto pressupem uma unidade.7
Com efeito, no fundamento dessa crtica subjaz uma interpretao da colnia, j
profundamente elaborada em Evoluo Poltica do Brasil, de 1933 e, posteriormente, em
Formao do Brasil Contemporneo, de 1942. Aqui, a sociedade colonial apresenta-se
como pea organicamente integrada numa dinmica sistmica definida j nos marcos do
capitalismo em formao. Imediatamente evidenciam-se nexos mercantis que conferem
sentido formao e ao desenvolvimento da colnia, como uma socidade marcada pela
precariedade e instabilidade da vida material e pela desestruturao e anomia social. Uma
interpretao da colnia que lana razes profundas na reorientao do debate. Pois, em
contraste com sociedades milenares, que na aurora dos descobrimentos so tocadas pela
civilizao ocidental, as sociedades latino-americanas, e em particular a brasileira, so
formadas pela expanso europia, como extenso de seus domnios. Nesse movimento,
surgiriam sociedades conformadas pela expanso europia, nos marcos do capitalismo em
formao, como plo colonial, reflexo e complementar, cujo processo de formao nacional
6 Fernando Novais, Caio Prado Jr. na historiografia brasileira, in Reginaldo Moraes e t alli (orgs.). Inteligncia Brasileira. So Paulo, Brasiliense, 1986; Plnio de Arruda Sampaio Jnior. Entre a nao e a barbrie: os dilemas do capitalismo dependente . Petrpolis, Vozes , 1999. 7 Jaques dHondt. Ideologa de la ruptura , trad. Esteban Inciarte. Ciudad de Mxico, Premi, 1983.
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consubstancia-se num processo de diferenciao, a partir da condio colonial e em
oposio a ela. A posio dessas sociedades nos marcos do imperialismo seria
desdobramento, de certa forma, linear do seu processo de gnese. A especficidade de sua
estrutura socioeconmica denotaria uma forma particular de estruturao do capitalismo no
plo, digamos, colonial, em contraste com a imagem das foras burguesas tolhidas pela
resistncia do arcaico em aliana com o imperialismo. Desse modo, a sociedade brasileira
no poderia produzir uma burguesia portadora do projeto de desenvolvimento nacional,
seno uma burguesia geneticamente vinculada ao capitalismo mundial, que reproduz, nessa
forma especfica de estruturao do capitalismo, a extroverso estrutural herdada do
passado colonial. Naturalmente, esse diagnstico implica na reformulao do arco de
alianas dos comunistas, que exclui a burguesia brasileira, e na reelaborao do programa
da revoluo brasileira. Um programa de reformas estruturais, de controles sobre o capital
estrangeiro, de reorientao da iniciativa privada e de melhoria da relao entre capital e
trabalho, sobretudo no campo, que viria fundar as bases para a consolidao do Estado
nacional. Estes seriam os marcos de uma revoluo nacional que, no curso de seu
desenvolvimento histrico, deveriam significar a primeira etapa de uma revoluo mais
profunda, de carter socialista. 8
A obra de Caio Prado teve ampliado o seu raio de influncia quando o marxismo
penetrou, com mais evidncia, na Universidade. Em particular, para fazer referncia ao
dilogo sobre o sentido da colonizao na obra de Fernando Novais, h que considerar a
influncia do grupo de estudos d O Capital, de 1958. Naquele momento, o movimento
comunista internacional enfrentava os abalos profundos produzidos pelas denncias
contidas no informe secreto de Nikita Khruschev, no XX Congresso do PCUS, em 1956.
Portanto, no contexto de crise da ortodoxia, o grupo procurava estabelecer um espao de
reflexo independente em relao ao partido e, naturalmente, s teses vindas da Unio
Sovitica. Provavelmente, as inclinaes heterodoxia das interpretaes de Caio Prado
ampliaram as possibilidades de dilogo. Fernando Novais prope incorporar o sentido geral
da interpretao da colnia de Caio Prado numa formulao mais abrangente, que situe o
antigo sistema colonial como pea da acumulao primitiva de capital no quadro da
transio do feudalismo ao capitalismo. Em que medida a reformulao do problema
8 Caio Prado Jnior. A revoluo brasileira , 6 edio, So Paulo, Brasiliense, 1978.
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implica necessariamente numa reorientao da interpretao geral de Caio Prado sobre o
sentido do desenvolvimento da sociedade brasileira, no pretendemos responder neste
trabalho reunimos as duas contribuies no mesmo quadro interpretativo da colnia, a
que chamamos interpretaes sistmicas. No entanto, numa breve referncia ao perodo
posterior emancipao, Fernando Novais remete o leitor a Florestan Fernandes.9
Mais adiante, sua contribuio seria incorporada na interpretao dO Capitalismo
Tardio, de Joo Manuel, que prope uma reviso crtica da tradio da CEPAL. Aqui,
reorienta-se a problemtica bsica, da antinomia entre a plena constituio da nao e uma
certa diviso internacional do trabalho, para o problema da formao e desenvolvimento
de um certo capitalismo, o capitalismo tardio.10 Por certo, uma reviso crtica da CEPAL,
que se afasta tambm da interpretao geral elaborada por Caio Prado. Isso, no momento
em que comea a desestruturar-se a regulao do capitalismo internacional do ps-guerra,
que permitiu certa autonomia ao desenvolvimento dos pases perifricos, demarcando um
contexto mais geral de fortalecimento das posies nacionalistas, por exemplo, no prprio
PCB, ou no ISEB, de Werneck Sodr.
Enfim, fora do espao da Universidade e depois de ter rompido com o PCB, que se
fragmentou nos anos sessenta, Jacob Gorender elabora a interpretao do escravismo
colonial. O livro A burguesia brasileira, embora no constitua um estudo sistemtico,
apresenta os traos mais gerais de uma interpretao do desenvolvimento derivado do
escravismo colonial. O ponto central dessa concepo reside na transio do escravismo
colonial ao capitalismo, demarcada pela Abolio, (...) a nica revoluo social jamais
9 No queremos, evidentemente, com isso, dizer que, com o advento da emancipao poltica, tenha desaparecido o carter dependente (colonial) da vida econmica das antigas colnias: ele assume, porm, novas formas. Veja-se a anlise das fases e formas de dominao externa, em Florestan Fernandes Capitalismo dependente e classes sociais na Amrica Latina (...). Tambm Hector Malav Mota Reflexes sobre o modo de produo colonial latino-americano (...). Fernando Antnio Novais. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. edio. So Paulo, Hucitec, 1995, pg. 4, nota 4. Flarestan Fernandes sintetiza o dilema latino-americano da seguinte forma: Os pases latino-americanos enfrentam duas realidades speras: 1) estruturas econmicas, socioculturais e polticas internas que podem absorver as transformaes do capitalismo, mas que inibem a integrao nacional e o desenvolvimento autnomo; 2) dominao externa que estimula a modernizao e o crescimento, nos estgios mais avanados do capitalismo, mas que impede a revoluo nacional e uma autonomia real. Os dois aspectos so faces opostas da mesma moeda. (...) sob as condies histricas atuais, o novo padro de imperialismo e a hegemonia dos Estados Unidos colocam uma questo dramtica: podem os pases latino-americanos atingir realmente a integrao nacional e a autonomia econmica sociocultural e poltica atravs do capitalismo? Florestan Fernandes. Capitalismo dependente e classes sociais na Amrica Latina. 2. edio. Rio de Janeiro, Zahar, 1975, pg. 26. 10 Joo Manuel Cardoso de Mello. O capitalismo tardio. 9. edio. So Paulo, Brasiliense, 1998.
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ocorrida na Histria de nosso Pas.11 Mas a transio ao capitalismo quase um processo
linear, de desobstruo, porquanto o escravismo colonial, como segunda variante na
formao do capitalismo, engendra uma acumulao interna e possibilidades ao
desenvolvimento posterior. Removidos os entraves constitudos pelas relaes de produo
escravistas, o capitalismo brasileiro pode desenvolver-se sem maiores percalos. Ou seja, a
revoluo burguesa, no Brasil, no existe. No curso do desenvolvimento do capitalismo
brasileiro, prevalece a dupla determinao entre condicionantes internos e externos, de
modo que os resultados da introduo do capital estrangeiro numa economia dependeria
sobretudo de suas estruturas internas. Na economia brasileira, no obstante verificarem-se
tendncias desestabilizadoras, o resultado seria potencializar as possibilidades de
desenvolvimento. Assim, a articulao entre capital nacional e estrangeiro teria
possibilitado a instalao de um departamento produtor de bens de produo, com
predomnio do capital privado nacional. E, embora se reconhea a ausncia de um capital
financeiro brasileiro, assentado na fuso do capital industrial e bancrio, chega-se a
vislumbrar, em 1981, a possibilidade de um imperialismo brasileiro: (...) o ovo da serpente
est chocando. Se houver tempo, ainda veremos um imperialismo brasileiro. 12
Assim, o debate sobre as interpretaes da colnia parte dessa problemtica mais
abrangente, desenvolvida em contextos especficos. Essa perspectiva orienta enfim a
estrutura da presente leitura, porquanto prope certas questes fundamentais a serem
discutidas. O trabalho divide-se em duas partes. Na primeira, procuramos estabelecer as
conexes entre o debate brasileiro sobre a colnia e o debate europeu sobre a transio,
com a inteno de definir os marcos estruturais em que cada interpretao pretende situar o
sistema colonial. Portanto, no se trata de uma sistematizao exaustiva do debate europeu,
mas de certos dilogos em torno de questes determinadas que esto postas para o debate
brasileiro. Esta parte divide-se em dois captulos, relativos s dicusses sobre a crise do
feudalismo e o desenvolvimento mercantil e sobre o contedo social e econmico do
Antigo Regime, como substrato do Estado absolutista. Na segunda parte, pontuamos a
leitura das interpretaes da colnia, procurando qualificar certas posies e crticas. luz
11 Jacob Gorender. A burguesia brasileira . 3. edio. So Paulo, Brasiliense, 1990, pg. 21. 12 Idem, pg. 107.
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desta breve int roduo, pensamos ser possvel delimitar os marcos mais gerais em que se
inscreve esta problemtica.
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Parte I
A colnia na transio do feudalismo ao capitalismo
Eppur, si muove
Galileu
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Nota introdutria
Os debates sobre a crise do feudalismo e a transio ao capitalismo foram objeto de
muitos estudos, e no pretendemos retom- los numa sntese exaustiva, seno apenas
discutir algumas questes fundamentais, presentes, de forma mais ou menos explcita, no
debate sobre a sociedade colonial. Por certo, o problema da transio do feudalismo ao
capitalismo, do carter da sociedade europia na poca do Antigo Regime no aparece com
o mesmo rigor ou a mesma insistncia no conjunto das grandes interpretaes da colnia de
inspirao marxista, pelo menos aparentemente, porque estas refletiram o estado das artes
do prprio debate europeu no momento em que foram construdas. Isto , o problema estar
mais presente nos debates mais recentes, quando as discusses europias parecem, sob o
peso de algumas dcadas, mais sedimentadas. No entanto, a discusso da estrutura da
sociedade europia e a dinmica da transio do feudalismo ao capitalismo momento
fundamental para situar a posio das colnias no quadro geral da poca e a natureza de
suas relaes com o espao metropolitano. A considerao do quadro histrico mais geral
quase sempre est presente nos estudos da sociedade colonial em grande parte das
interpretaes. Assim, alguns temas do debate so passos fundamentais na discusso sobre
a colnia: a crise do feudalismo, a estrutura da sociedade europia e a dinmica da
transio, o carter das monarquias absolutistas e a posio do capital mercantil.
Naturalmente, o objetivo da primeira parte deste trabalho no ser, como dissemos,
reelaborar uma sntese exaustiva do debate europeu, mas trat-lo somente em seus pontos
fundamentais, como aparecem nas interpretaes da colnia.
O debate brasileiro de inspirao marxista tem como eixo o problema do modo de
produo como categoria explicativa das estruturas e dinmicas em que est inserida a
sociedade colonial. Em particular, compreender a colnia a partir de suas conexes
mercantis sistmicas ou de suas estruturas ditas internas implica, em ltima instncia, em
considerar de modo diverso a natureza dos nexos que vinculam espaos coloniais e
metropolitanos e, portanto, a estrutura da sociedade europia e a dinmica da transio. A
idia de sistema colonial pressupe uma articulao entre os dois plos, como partes
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organicamente integradas numa nica totalidade, que no podem ser compreendidas em si
mesmas, isoladamente. Ou seja, a estrutura e dinmica do antigo sistema colonial remete a
uma compreenso da transio do feudalismo ao capitalismo e da acumulao primitiva de
capital, que confere centralidade ao desenvolvimento do capital mercantil, em conexo com
a afirmao das monarquias absolutistas. Assim, em ltima instncia, trata-se de uma
dinmica orientada no sentido da acumulao de capital em sua forma mercantil. Mas as
interpretaes que procuram sublinhar a existncia de uma dinmica em parte situada nas
estruturas internas ao espao colonial devero reconsiderar a idia de unidade sistmica e
assim relativizar a centralidade do capital mercantil nesse processo. Vale dizer, a formao
do capitalismo e a acumulao primitiva sero vistas sobretudo a partir dos movimentos
situados no interior da sociedade europia, assim como a colnia apresentar seus
elementos dinmicos internos. Portanto, considerando as diversas possibilidades de
gradaes e ponderaes que todo debate complexo apresenta, a questo central reside em
compreender o capital mercantil como nexo fundamental de uma nica totalidade sistmica
ou como vnculo mediador entre duas estruturas definidas em parte a partir de seus nexos
internos. Com isso, desde logo, a discusso desloca-se para o debate europeu sobre a
transio.13
A referncia primeira que aparece nos debates sobre a crise do feudalismo e a
transio ao capitalismo remete s interpretaes consolidadas nos trabalhos de Henri
Pirenne que, no debate brasileiro, ecoam com forte influncia sobretudo nos estudos de
Roberto Simonsen e Celso Furtado.14 Trata-se de compreender a crise e a dissoluo dos
laos feudais pela fora dos desenvolvimentos mercantis, desde a abertura do comrcio
mediterrneo. Nessa leitura, est implcita uma concepo da sociedade feudal situada,
essencialmente, ao nvel das relaes econmicas de circulao, ou seja, a compreenso do
13 Uma das dificuldades reside no peso que se atribui ao sistema colonial na definio das estruturas internas das colnias. Por sua vez, a interpretao do sistema colonial mercantilista depender, no essencial, de como se interpretar a natureza da economia da poca Moderna. (...) No resta dvida que, para os autores marxistas brasileiros a discusso da questo colonial comea na anlise das transformaes ocorridas na sociedade europia em decorrncia da crise do feudalismo. Lgia Osrio Silva, Feudalismo, capital mercantil, colonizao, in Joo Quartim de Moraes e Marcos del Roio (orgs.). Histria do Marxismo no Brasil , 4 vols., vol IV: Vises do Brasil. Campinas, Editora da UNICAMP, 1998, pg. 20. 14 Henri Pirenne. Histria econmica e social da Idade Mdia, trad. Lycurgo Motta. 6. edio. So Paulo, Mestre Jou, 1982; Roberto Simonsen. Histria econmica do Brasil (1500/1820). 7. edio. So Paulo, Editora Nacional, 1977; Celso Furtado. Economia colonial no Brasil nos sculos XVI e XVII. So Paulo, Hucitec, 2001; Celso Furtado. Formao econmica do Brasil. 25. edio. So Paulo, Nacional, 1995; Celso Furtado. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 2. edio. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1963.
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feudalismo como uma economia fechada. Uma economia auto-suficiente em que a
produo e o consumo realizam-se nos limites das prprias unidades produtivas que, de
resto, circunscrevem os marcos de todas as formas de sociabilidade uma economia sem
troca e sem moeda. O renascimento das relaes mercantis seria suficiente para provocar a
corroso das bases da sociedade medieval, possibilitando o desenvolvimento mesmo do
capitalismo.15 Nesse caso, muitas vezes, o prprio desenvolvimento mercantil seria
identificado com o capitalismo e, portanto, a empresa colonial como negcio definido em
marcos ditos capitalistas. Embora distante de um dilogo sem percalos no campo do
marxismo, essa interpretao, tambm chamada modelo mercantil, exerceu forte
influncia no debate de orientao marxista, tanto no europeu sobre a transio quanto no
brasileiro sobre a colnia, como, de resto, em toda a historiografia. Grande parte do debate
brasileiro sobre a sociedade colonial, em particular quanto posio das determinaes
sistmicas, toma como referncia o problema da incompatibilidade do chamado modelo
mercantil com as categorias de Marx.
15 Na Europa, o regime poltico do feudalismo era um entrave expanso econmica. Os feudos quase se bastavam a si prprios e era numa limitada agricultura que se concentrava quase toda a atividade econmica. Era relativamente escasso o uso da moeda como instrumento de troca. Com a insuficincia dos meios de transporte, com a falta de garantias ento existente e com o atraso dos processos de cultura, a produo era feita quase para consumo imediato. (...) A intensificao do comrcio, o barateamento dos produtos e o crescimento das populaes trouxeram um aumento no consumo, o que, por sua vez de tal forma estimulou a produo industrial, que em fins do sculo XVIII assistimos ao surto do seguinte perodo da poca capitalista a revoluo industrial, com suas profundas repercusses no campo econmico-social e a formao do capitalismo industrial. Roberto Simonsen. Histria econmica do Brasil (1500/1820). 7. edio. Col. Brasiliana, So Paulo, Editora Nacional, 1977, pgs. 25 e 28. O feudalismo um fenmeno de regresso que traduz o atrofiamento de uma estrutura econmica. Esse atrofiamento resulta do isolamento imposto a uma economia, isolamento que engendra grande diminuio da produtividade pela impossibilidade em que se encontra o sistema de tirar partido da especializao e da diviso do trabalho que lhe permitem o nvel da tcnica j alcanado. Celso Furtado. Formao econmica do Brasil. 25. edio. So Paulo, Nacional, 1995, pg. 50. (...) pode-se hoje, com alguma segurana, afirmar que, do ponto de vista sociolgico, o feudalismo est ligado a um acentuado processo de isolamento cultural e que, no campo econmico, esse isolamento se traduz sempre em uma atrofia da circulao da riqueza. Pode-se, assim, facilmente, compreender a importncia revolucionria que teve para a sociedade feudal a ecloso do comrcio. Celso Furtado. Economia colonial no Brasil nos sculos XVI e XVII. So Paulo, Hucitec, 2001, pg 25. Noutra passagem, o autor qualifica esse tipo de concepo, mas preserva seus traos bsicos: Segundo a opinio corrente, a economia do feudo era um sistema fechado ou quase fechado. Mas no estava a sua principal caracterstica, e sim no fato de que era uma economia fechada de nvel relativamente elevado de consumo. Celso Furtado. Desenvolvimento e subdesenvolvimento. 2. edio. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1963, pg. 131. E sobre o carter da sociedade colonial, o autor afirma: Parece-nos justo partir da realidade dos fatos, da realidade das capitanias como empreendimentos capitalistas (...). esse ponto de vista que nos leva a abandonar qualquer aproximao das instituies feudais com a realidade histrica brasileira. (...) As capitanias eram simplesmente amplas concesses territoriais feitas a grandes capitalistas para que estes empreendessem a explorao agrcola do pas. Celso Furtado. Economia colonial no Brasil nos sculos XVI e XVII. So Paulo, Hucitec, 2001, pgs. 82 e 83.
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As tenses que emergem do dilogo com a historiografia de orientao marxista
remetem sobretudo a dois problemas profundamente imbricados. Em primeiro lugar,
seguindo a leitura de Ellen Wood, o renascimento do comrcio aparece como abertura de
possibilidades para a realizao de certos impulsos mercantis outrora tolhidos por entraves
impostos sociedade europia medieval. Ou seja, o feudalismo aparece como interldio,
interrupo de um movimento milenar de desenvolvimento das tendncias ao intercmbio,
que remonta antigidade clssica, seno a tempos mais remotos. E assim, o
desenvolvimento do intercmbio aparece menos como imposio violenta de uma
racionalidade exterior aos indivduos socialmente atomizados, constitutiva de estruturas de
dominao, e mais como produto da escolha dos indivduos, diante da possibilidade de
realizao das trocas. Ora, nesses termos, essa leitura poderia aproximar-se de uma tradio
liberal porquanto em muitos casos tende a situar a anlise na esfera da circulao,
abstraindo a historicidade de determinadas relaes fundamentais para o marxismo. Em
casos extremos, est mesmo em pauta a idia de propenses ao intercmbio inscritas na
natureza humana e, com isso, o risco da teleologia.16 Isso remete ao segundo problema, que
diz respeito ao conceito de capital e especificidade da relao-capital no modo de
produo capitalista. Por certo, a leitura de Marx no permite identificar o predomnio do
capital mercantil com o surgimento do modo de produo capitalista. Ou seja, identificar a
acumulao mercantil com o processo de acumulao de capital como movimento auto-
referido, e de autonomizao relativa da efera econmica, que preside o capitalismo em sua
especificidade. Assim, a incorporao pela historiografia de orientao marxista das
contribuies incontestes dessa tradio ser prenhe de tenses e percalos. E, no entanto,
sua influncia estar presente.
O debate brasileiro de orientao marxista apresentar duas linhas bsicas de
interpretao do problema. Quanto relao entre o renascimento do comrcio e a crise do
feudalismo, os autores, em grande medida, aproximam-se, incorporando a tese de Maurice
Dobb acerca da necessidade de considerar a estrutura feudal sobre a qual se instalam os
desenvolvimentos mercantis. Afastam-se, pois, de Paul Sweezy, em suas afirmaes acerca
do motor externo da transio. Afastam-se tambm da tradio de Henri Pirrene porquanto
16 Ellen Meiksins Wood. A origem do capitalismo. Trad. Vera Ribeiro; apres. Emir Sader. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
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reconhecem a diferena entre a dinmica capital mercantil e o movimento do modo de
produo capitalista plenamente constitudo. Entretanto, divergem quanto ao modo de
compreender a estrutura e dinmica da sociedade do Antigo Regime e, portanto, em certa
medida, quanto ao processo de transio e formao do capitalismo. Nesse plano, pode-se
captar a forma diversa de demarcar a posio do capital mercantil na poca Moderna e de
definir os nexos estruturais que explicam, em ltima instncia, o movimento da sociedade
colonial. Parece possvel organizar o debate, distinguindo uma interpretao que reivindica
o carter feudal do Antigo Regime. Um feudalismo em profunda transformao, em
declnio, que ainda define a estrutura daquela sociedade, embora apresente certos traos
embrionrios de formas capitalistas em ascenso. Noutro plo, uma interpretao que
compreende a sociedade europia como uma sociedade de transio, regida por uma
dinmica prpria, que no poderia ser reduzida ao feudalismo ou capitalismo. O movimento
secular de transio teria como fora dinmica o domnio do capital mercantil, em
progressiva acumulao, em conexo com o processo de formao dos Estados nacionais.
Por isso, definido como capitalismo comercial, nos termos de um predomnio formal do
capital.
Werneck Sodr e Alberto Passos filiam-se primeira tendncia de interpretao e
procuram definir o carter essencialmente feudal da sociedade europia. Werneck Sodr
explica o desenvolvimento do capital mercantil, nos termos de Marx, referindo-se a um
hiato entre a produo e a troca, isto , compreendendo o capital mercantil como um
elemento relativamente autnomo, exterior ao momento da produo, sem determin-la.
Portanto, trata-se da linha de fora que estabelece um vnculo exterior entre dois plos
relativamente apartados, entre dois organismos, entre si, em certa medida, alheios. Isso
posto, o desenvolvimento mercantil, na poca de formao do mercado mundial, ser
insuficiente para explicar a dissoluo das relaes feudais e a formao do capitalismo,
embora seja elemento constitutivo do processo de transio. Aqui, procura-se atribuir
centralidade aos nexos internos ou aos processos endgenos, relativos aos movimentos
impulsionados pelas contradies implcitas nas relaes servis. Naturalmente, o capital
mercantil elemento do processo de transio e vincula-se formao do capitalismo. Mas,
nessa interpretao, seu potencial transformador secundrio e insuficiente. O capital
comercial favorece o processo de formao do capitalismo ao potencializar a
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mercantilizao, alargando os horizontes da circulao mercantil, ampliando o mercado
mundial e criando o sistema colonial. O capital usurrio, ao incrustar-se no interior do
modo de produo, mina suas bases, tornando-o miservel, porquanto arruina senhores e
expropria pequenos produtores. Ambos contribuem para a centralizao de grandes massas
de riqueza, passo fundamental da acumulao primitiva. Mas em ltima instncia, as
transformaes decisivas devem ser gestadas no interior do prprio modo de produo
feudal, isto , no mbito das contradies que constituem as relaes servis como processo
endgeno. Assim, o centro dinmico do processo de transio seria situado no nvel da
transformao das relaes de produo, como desdobramento do conflito de classes e, com
isso, a sociedade europia seria interpretada sob o prisma do modo de produo feudal em
declnio. Sem distinguir com clareza o mercantilismo, processo peculiar ao tempo das
descobertas, do capitalismo, processo e modo de produo posterior quele tempo, o
quadro permanecer confuso e propcio a deformaes. (...) O processo de que surge o
capitalismo , pois, endgeno; ele surge de condies internas do pas ou regio em que se
implanta; no surge de condies externas, no surge do capital comercial, como causa
nica e necessria. Surge na esfera da produo (...). Na poca dos descobrimentos, pois,
no h nenhuma razo para admitir a existncia do capitalismo. A empresa das navegaes
pertinente ao capital comercial.17 Como discutiremos adiante, essa interpretao
identifica-se diretamente com a posio de Maurice Dobb no debate europeu sobre a
transio, em particular no que se refere ao papel do capital mercantil na dissoluo das
relaes feudais e ao debate sobre as duas vias da transio.
A partir dessas observaes sobre a transio do feudalismo ao capitalismo, que se
opera no continente europeu, os autores poderiam elaborar suas concepes acerca da
sociedade colonial. Mas o fazem de forma diferente. Werneck Sodr compreende a
formao da sociedade colonial como a elaborao de um modo de produo, enquanto
Alberto Passos a compreende como transplante, em contexto especfico, do modo de
produo vigente na Europa. Assim, a interpretao sobre a transio opera de forma
diferente nas duas formulaes. No primeiro caso, a discusso acerca do capital mercantil
como elemento exterior que vincula duas estruturas relativamente apartadas corrobora com
17 Nelson Werneck Sodr. Formao Histrica do Brasil. 9. edio. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1976, pg. 22.
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19
uma interpretao da sociedade colonial que toma em conta a dimenso de suas estruturas
internas, como um modo de produo elaborado no espao colonial, a partir de suas
relaes de produo. Noutros termos, trata-se de considerar a possibilidade do capital
mercantil mover-se nos marcos de qualquer modo de produo e, enfim, da apreenso das
estruturas determinantes a partir da esfera da produo, em particular, das relaes de
produo. 18 Para Alberto Passos, de outro lado, a formao da sociedade colonial faz-se
pelo transplante do modo de produo vigente na Europa e, portanto, nesse caso, as
implicaes so mais imediatas: o feudalismo portugus ser transplantado para o espao
colonial. Mais precisamente a sociedade europia seria caracterizada por um feudalismo em
declnio e uma contraparte progressiva, dada pelo processo de mercantilizao. Nesse caso,
inscrito o processo no quadro de uma relao de dominao colonial, a metrpole
portuguesa operaria um transplante somente dos elementos mais regressivos, referidos ao
feudalismo em declnio, e precisamente isso possibilitaria o seu domnio.19
Jacob Gorender, noutro momento, embora reconhea o carter limitado da
compatibilidade entre o feudalismo e o desenvolvimento mercantil, tambm retomaria o
argumento inspirado em Maurice Dobb para criticar as teses sobre o carter capitalista da
colonizao, em crtica particular a Eric Williams e Fernando Novais: (...) se se entende o
capitalismo como um modo de produo cujo agente s pode ser o capital industrial, a
categoria capitalismo comercial carece de estatuto terico. (...) O colonialismo contribuiu
em grande proporo, sem dvida, para a acumulao originria de capital e o conseqente
desenvolvimento capitalista no Ocidente europeu. Mas isto sucedeu somente naqueles 18 Fiquemos, apenas, para limitar a controversia, no que diz respeito ao escravismo, aqui instalado desde o primeiro sculo de existncia brasileira. H quem negue a referida tese: no seria escravismo. As razes apresentadas so diversas. Muito bem, que teria sido, ento? Capitalismo, respondem alguns. No estou de modo algum de acordo com tal ponto de vista e creio que a maioria dos estudiosos no aceitar como capitalismo o modo de produo brasileiro quando nem havia capitalismo dominante no prprio Ociente europeu. Teramos sido capitalistas antes do capitalismo? Veja Nelson Werneck Sodr. Capitalismo e revoluo burguesa no Brasil . Belo Horizonte, Oficina de Livros, 1990, pgs. 18 e 19. 19 Desde o instante em que a metrpole se decidira a colocar nas mos da fidalguia os imensos latifndios que surgiram dessa partilha, tornar-se-ia evidente o seu propsito de lanar no Novo Mundo, os fundamentos econmicos da ordem de produo feudal. E no poderia deixar de assim ter procedido, porque o modelo original, de onde necessariamente teria de partir a ordem de produo peninsular no sculo da Descoberta continuava a ser, por suas caractersticas essenciais, a ordem de produo feudal. certo que o feudalismo do Portugal seiscentista no guardava mais o mesmo grau de pureza dos primeiros tempos: j havia passado do estdio da economia natural para o da economia mercantil. Mas nenhuma mudana na estrutura econmica se dera em Portugal que pudesse justificar sua assemelhao a outro regime historicamente mais avanado. Eis porque falharam irrecusavelmente alguns historiadores e economistas notveis ao classificarem como capitalista o regime econmico colonial implantado no continente americano. Veja Alberto Passos Guimares. Quatro sculos de latifndio. 5. edio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1981, pgs. 24 e 25.
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pases cuja estrutura socioeconmica j vinha sendo antes trabalhada por fatores
revolucionrios internos conducentes ao modo de produo capitalista. Tais fatores internos
que so fundamentais no processo. 20 Isso implica numa discusso conceitual acerca do
feudalismo, em que Jacob Gorender procura partir de Maurice Dobb, mas reconsiderando
sua tendncia reduo do conceito s relaes de servido e propondo um conjunto de
relaes mais abrangentes. E este ponto parece ter particular importncia no debate
brasileiro pois, a partir dessa mesma observao, pode-se elaborar, como veremos, uma
leitura crtica de Werneck Sodr. Assim, prope incorporar na definio de feudalismo,
alm da coao extra-econmica, elementos como o carter da propriedade da terra, o
direito eminente do senhor dominial e direito usufruturio do campons; a identidade entre
renda da terra e a totalidade do sobreproduto produzido pelo campons; uma economia
agrcola familiar e um pequeno artesanato independente, como formas de organizao da
produo; a posse comunal das pastagens e bosques, como complemento necessrio
produo.
Na mesma linha, Ciro Cardoso compreende o processo de transio sugerindo a
coexistncia do modo de produo feudal ainda dominante com o modo de produo
capitalista em ascenso no-linear.21 De um lado, procura relativizar a importncia do
capital mercantil no processo de formao do capitalismo e sua posio como ncleo
dinmico da transio, atentando para a possibilidade de haver funcionado como entrave.
De outro, reconsidera os ecos da contribuio de Marc Bloch, criticando uma tendncia
separao entre regime feudal e dominial que teria conduzido certas definies do
feudalismo situadas em dimenses scio-polticas ou jurdicas. Assim, os processos de
comutao e de centralizao monrquica aparecem como novas formas de organizao do
modo de produo feudal, e menos como elementos de sua transformao estrutural, numa
formulao semelhante, como veremos, s teses de Perry Anderson. Com isso, novamente,
o movimento de acumulao primitiva e de formao do capitalismo teria como eixo
fundamental os processos de proleterizao e expropriao internos prpria sociedade
20 Jacob Gorender. O escravismo colonial . 6. edio. So Paulo, tica, 1992, pgs. 113 e 114. 21 Ciro Flamarion Cardoso, Severo Martinez Pelez y el carcter del rgimen colonial, in Ciro Flamarion Cardoso, et alli , Modos de produccin en Amrica Latina . 2. edio. Crdoba, Passado y Presente, 1974. Noutra passagem, o autor acrescenta a esta duas foras uma pequena produo mercantil. Veja Ciro Flamarion Cardoso, Sobre os modos de produo coloniais da Amrica, in Tho Santiago (org.). Amrica colonial. Rio de Janeiro, Pallas, 1975.
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21
europia. Ciro Cardoso, noutro estudo, desenvolve a mesma idia referindo-se s
contribuies de Robert Brenner e, acentuando o peso das contradies internas ao espao
europeu no processo de formao do capitalismo, estabelece explicitamente uma conexo
entre esse tipo de interpretao e suas implicaes para a anlise dos espaos coloniais.
falsa a crena de que as transferncias de excedente ao ncleo da semiperiferia e da
periferia foram o fator central no surgimento do capitalismo. Ao identificar capitalismo e
relaes de mercado, a articulao centro-periferia coloca-se s em termos de circulao
(troca desigual), e a conseqncia obrigatria disto uma teoria que faz total abstrao da
estrutura e das lutas de classes nas definies bsicas (e isto tanto no que diz respeito aos
pases metropolitanos quanto aos perifricos).22
Noutro plo, situa -se o conjunto das interpretaes sistmicas. Aqui, a compreenso
da sociedade colonial a partir de seus nexos mercantis sistmicos pressupe uma
interpretao particular acerca da estrutura e dinmica do antigo sistema colonial e do
processo de transio do feudalismo ao capitalismo. Ou seja, a economia colonial no seria
um organismo relativamente autnomo estruturado a partir de suas relaes internas,
vinculado ao espao metropolitano pela fora do capital mercantil. Isso significa que o
capital mercantil no apareceria na forma do elemento exterior esfera da produo e nem
o vnculo mercantil, como nexo exterior entre dois plos. Ou seja, no seria elemento
exterior e alheio ao movimento desses plos, entre os quais flutuaria de forma autnoma.
Na apreenso do processo de transio, as interpretaes sistmicas consideram o capital
mercantil como fora que cria e recria determinadas relaes de produo, produz, reproduz
e dinamiza a economia colonial e nesse sentido, pode-se dizer que concretamente penetra
na produo. Desse modo, o espao colonial no poderia ser compreendido como plo
relativamente autnomo, mas como uma parte organicamente integrada em um sistema,
cujo nexo fundamental situa-se ao nvel do movimento do capital mercantil. Vale dizer,
espaos metropolitanos e coloniais sero compreendidos no quadro de uma nica totalidade
orgnica, em que as partes somente adquirem sentido em sua relao com o todo. Isso
implica em reconsiderar a estrutura e dinmica do processo de transio do feudalismo ao
capitalismo e de formao do capitalismo, acentuando a centralidade do desenvolvimento
22 Ciro Flamarion Cardoso. A afro-amrica: a escravido no novo mundo. 3. edio. So Paulo, Brasiliense, 1982, pg. 77.
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22
do capital mercantil no espao do mercado mundial, como momento fundamental, no
nico, da acumulao primitiva. Vale dizer, cumpre reconsiderar a posio do capital
mercantil no quadro da transio e, portanto, reformular o modo de caracterizar o Antigo
Regime.
Nesse movimento, aparecem, de certa forma, com mais evidncia, as influncias da
tradio do chamado modelo mercantil, sobretudo em dilogos sobre colnia com Celso
Furtado. No entanto, de modo algum as interpretaes sistmicas poderiam ser assimiladas
de modo imediato quela tradio. verdade que Caio Prado no oferece uma discusso
exaustiva e especfica sobre a transio e no deixa explcita a influncia, se de fato houve,
do debate dos marxistas europeus, estimulado sobretudo a part ir dos Studies de Maurice
Dobb (publicados depois de Formao do Brasil Contemporneo). Contudo, em suas
referncias, sugere o predomnio do capital, j utilizando a expresso capitalismo
comercial, sobre o movimento de conjunto de formao do capitalismo, no quadro em que
se inscreve a formao da sociedade colonial. Observa a centralidade dessa questo para a
compreenso do desenvolvimento posterior da sociedade brasileira, mesmo depois da
emancipao poltica.23 Os desdobramentos posteriores dessa linha de interpretao viriam
aprofundar a discusso sobre o significado da centralidade do capital mercantil no processo
de transio ao capitalismo e, ao mesmo tempo, atestar com mais evidncia a
impossibilidade de sua assimilao ao modelo mercantil, no obs tante o peso de sua
influncia.
Fernando Novais, em primeiro lugar, sem aprofundar a discusso, incorpora o
argumento de Maurice Dobb quanto ao sentido da interao entre o desenvolvimento do
23 Os pases da Amrica Latina sempre participaram, desde sua origem, na descoberta e colonizao por povos europeus, do mesmo sistema em que se constituram as relaes econmicas que, em ltima instncia, foram dar origem ao imperialismo, a saber, o sistema do capitalismo. Caio Prado Jnior. A revoluo brasileira. 6. edio. So Paulo, Brasiliense, 1978, pg. 68. Coisa muito diferente, est visto, ocorreu no Brasil, em cujo territrio descoberto e colonizado pelos europeus, se constituiu uma nacionalidade cujas razes se situam no prprio complexo cultural que daria origem, mais tarde, ao imperialismo; e cuja organizao econmica, social e poltica se plasmaria, por conseguinte, em funo de circunstncias e padres que so os do mesmo sistema que daria, nos dias de hoje, no imperialismo. Em outras palavras, o processo de colonizao brasileira de que resultou o nosso pas e suas instituies econmicas, sociais e polticas, tem sua origem nessa mesma civilizao e cultura ocidentais que seriam o bero do capitalismo e do imperialismo. So assim as mesmas circunstncias que plasmariam por um lado a nossa formao, e deram de outro no imperialismo. (...) O imperialismo no seno o sistema internacional do capitalismo em sua fase contempornea, e tem suas razes no capitalismo mercantil dentro do qual e por influxo do qual o Brasil e todos os seus elementos constitutivos se plasmaram e evoluram. Idem, pgs. 80 e 81.
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23
comrcio e as estruturas feudais, no contexto da crise do feudalismo. 24 No entanto, aqui, o
marco estrutural em que se inscreve o movimento da sociedade europia e do sistema
colonial no quadro da formao do modo de produo capitalista seria apreendido por uma
dinmica especfica de transio, irredutvel ao feudalismo ou ao capitalismo. Uma
interpretao que, em certo sentido, remete ao carter relativamente autnomo do Estado
absolutista. Trata-se de uma estrutura de transio definida pela relativa autonomia do
Estado absolutista, diante de um processo contnuo de diferenciao de classes da nobreza e
da burguesia, e do desenvolvimento de formas dspares de estratificao social. Ou seja,
sobre certas formas de estratificao de carter feudal, fundadas em relaes pessoais de
privilgio, e outras de carter burgus, dadas pela introduo do princpio de rendas, o
Estado assenta-se sobre o conflito entre foras feudais e burguesas. Nesse quadro, o
elemento dinmico da transio situa-se na relao entre o Estado absolutista e o capital
mercantil, que revela o sentido da acumulao primitiva, sendo um de seus elementos
decisivos. Vale dizer, revela um movimento de acumulao de capital em sua forma
mercantil, dinamizado pela fora extra-econmica, do qual o antigo sistema colonial pea
fundamental. Contemporaneamente, assiste-se ao predomnio das formas polticas do
Absolutismo, no plano poltico, e, no social, a persistncia da sociedade estamental,
fundada nos privilgios jurdicos, como elemento diferenciador. No universo da vida
econmica, entre a dissoluo paulatina da estrutura feudal e a ecloso da produo
capitalista, com persistncias da primeira e elementos peculiares da segunda, configura-se a
etapa intermediria que j se vai tornando usual chamar-se capitalismo mercantil, pois o
capital comercial, gerado mais diretamente na circulao das mercadorias que anima toda a
vida econmica. Estado absolutista, com extrema centralizao do poder real, que de certa
forma unifica e disciplina uma sociedade organizada em ordens, e executa uma poltica
mercantilista de fomento do desenvolvimento da economia de mercado, interna e
externamente no plano externo pela explorao ultramarina tais so as peas do todo
que convm articular.25
24 Seria impraticvel, nos limites que nos propomos, tentar aqui uma anlise da crise do feudalismo. Digamos apenas, acompanhando as anlises de M. Dobb, que, no conjunto, ela deriva no propriamente do renascimento do comrcio em si mesmo, mas da maneira pela qual a estrutura feudal reage ao impacto da economia de mercado. Fernando Novais. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6. edio. So Paulo, Hucitec, 1995, pg. 63. 25 Idem, pgs. 62 e 63.
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24
Cumpre, pois, observar que as referncias dessas interpretaes sobre a poca de
transio no expressam uma indistino em relao especificidade histrica de foras
produtivas constitutivas do modo de produo capitalista, edificadas pela revoluo
industrial, em favor da incorporao imediata do chamado modelo mercantil. Ou seja,
no h, por certo, uma interpretao do capitalismo a partir da esfera da circulao,
maneira da tradio liberal. O que est em causa definir a posio do capital mercantil
como fora dinmica na formao do capitalismo, no quadro concreto de uma sociedade de
transio, regida por um movimento especfico. E aqui, o capital mercantil revela-se no
como nexo exterior entre organismos relativamente apartados, mas como fora que
penetrou na esfera da produo, determinando sua dinmica e conferindo- lhe sentido. Mas
isso, criando e recriando formas compulsrias de trabalho e, portanto, estabelecendo um
domnio de carter formal. O capital mercantil confere organicidade s distintas formas de
produo estabelecidas no interior de uma sociedade segmentada, articulando-as segundo
sua prpria dinmica. Ou seja, nesse momento, os organismos, entrelaados pelas teias do
mercado mundial, constituem, em geral, uma nica totalidade definida pelo domnio formal
do capital, pela subordinao formal do trabalho ao capital. Nesse sentido, tambm o
espao colonial, constitudo pelas formas compulsrias e escravistas de trabalho, como
parte organicamente integrada nessa totalidade, ser objeto do domino formal do capital.26
Esse domnio formal do capital que define o carter do antigo sistema colonial tomado
por Joo Manuel, na referncia seguinte passagem de Marx: Na segunda espcie de
colnias as grandes fazendas (plantations) destinadas desde o incio especulao
comercial e com a produo voltada para o mercado mundial, verifica-se produo
capitalista, embora formalmente apenas, uma vez que a escravatura negra exclui o
26 Se o Antigo Regime, uma estrutura de transio, est na Metrpole, mas, tambm, na Colnia, foroso admitir que se na Metrpole h capitalismo, porque o capital transfere-se para a esfera da produo, subordinando formalmente o trabalho ao capital, seja no putting out system, seja na manufatura, h, tambm, modo de produo colonial ou modos de produo coloniais (...). No o fato de a produo ser mercantil e de o lucro se constituir no motor da atividade econmica que imprime carter formalmente capitalista ao regime colonial de produo. Nem, muito menos, o simples fato de participar a economia colonial do mercado mundial. Ao contrrio, h, formalmente, capitalismo porque a escravido introduzida pelo capital e a gnese da economia colonial recebe todo o peso que lhe devido. H capitalismo, formalmente, porque o capital comercial invadiu a rbita da produo, estabelecendo a empresa colonial. Indo muito alm do simples domnio direto da produo, o capital subordina o trabalho e esta subordinao formal, porque seu domnio exige formas de trabalho compulsrio. Fica claro, enfim, que o decisivo so as articulaes entre capitalismo e colonizao, o carter de instrumento de acumulao primitiva da economia colonial. Joo Manuel Cardoso de Mello. O capitalismo tardio. 9. edio. So Paulo, Brasiliense, 1998, pgs. 43 e 44.
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25
assalariado livre, portanto, o fundamento da produo capitalista. Mas so os capitalistas
que fazem o trfico negreiro. O modo de produo que introduzem no provm da
escravatura, mas nela se enxerta. Nesse caso, capitalista e proprietrio da terra so a mesma
pessoa.27
Com isso, explicitam-se as linhas gerais do dilogo entre o debate europeu sobre a
transio e o debate brasileiro sobre a sociedade colonial, e os traos mais importantes de
suas implicaes. As distintas formas de compreender o movimento da transio, o carter
geral da sociedade europia e, em particular, a posio de Portugal nesse quadro trazem
implicaes decisivas ao debate sobre a colnia e esto presentes, com maior ou menor
evidncia, em todos os autores. Isso posto, cumpriria retomar mais detidamente certos
pontos do debate sobre a crise do feudalismo e a transio ao capitalismo, nos termos
propostos pelo debate europeu. Este o propsito da primeira parte do trabalho. Mas,
insistimos, no se trata de uma sntese exaustiva de todo o debate, que abarque todas as
suas contribuies, elaboradas ao longo de vrias dcadas, em bibliografia to vasta. Muito
menos de esgotar assunto to complexo. Trata-se somente de pontuar, a partir dos autores
europeus, as principais questes que aparecem no debate brasileiro e que so fundamentais
para sua compreenso. Assim, os dois captulos que se seguem estruturam-se em torno da
discusso sobre a crise do feudalismo, em particular sobre as relaes entre renascimento
do comrcio e dissoluo dos laos servis e sobre o carter do Antigo Regime, em
particular a posio do capital mercantil e o contedo do Estado absolutista. Desvendar as
possibilidades de interpretao sobre a estrutura da transio e o sentido de seu movimento,
e dentro dessa problemtica desvendar a posio do capital mercantil e do sistema colonial,
constitui o objetivo fundamental da primeira parte e passo fundamental para a compreenso
do debate brasileiro.
27 Karl Marx. Teorias da mais-valia: histria crtica do pensamento econmico, 3 vols, trad. Reginaldo SantAnna. So Paulo, Difel, 1980, vol. II, pg. 730.
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27
Captulo I
Crise do feudalismo e desenvolvimento mercantil
Nos debates sobre a crise do feudalismo, nos sculos XIV e XV, a problemtica da
recomposio das relaes de intercmbio no espao mediterrnico no quadro da vitria da
cristandade sobre os muulmanos, ou das influncias e efeitos dos desenvolvimentos
comerciais nos espaos exteriores sociedade feudal, tornou-se referncia recorrente e
mesmo um paradigma explicativo, cristalizado nos trabalhos clssicos de Henri Pirenne,
que viriam influenciar de forma decisiva o prprio debate marxista.28 As dicotomias
economia monetria versus economia natural, a cidade contra o campo so motivos
insistentes na historiografia. Outras interpretaes constituem-se, entretanto, para
demonstrar que as relaes entre a crise do feudalismo e o renascimento do comrcio
devem ser compreendidas luz das contradies internas ao prprio modo de produo
feudal, no curso de seu desenvolvimento e crise. Cumpriria, nesse caso, reconhecer e
resgatar, parte o peso dos desenvolvimentos mercantis, o movimento determinado pelas
reales de dominao constitutivas do modo de produo feudal. Portanto, trata-se de
estabelecer, como ponto de partida, o contraponto entre as concepes basilares do
chamado modelo mercantil e as interpretaes construdas a partir de uma estrutura e
dinmica internas ao feudalismo.
A idia de uma tendncia latente ao intercmbio no espao de confluncia dos trs
continentes conforma aquilo que Henri Pirenne denominou carter mediterrneo da Europa
Ocidental e constitui o ponto de partida de sua interpretao. Preservadas, as linhas de
intercmbio, substrato deste carter, ainda aps o declnio de Roma, comeam a desfazer-
se desde a ecloso do mundo islmico, no sculo VII. Sob o domnio islmico o mar deixa
de ser o vnculo entre os mundos ocidentais e orientais, espao milenar do intercmbio
28 O mais controverso problema na polmica entre Dobb e Sweezy refere-se validade das teses de Pirenne sobre o papel desempenhado pelo comrcio, em suas vrias formas, no desenvolvimento e decadncia da sociedade feudal. Giuliano Procacci, Uma sinopse do debate, in Paul Sweezy et alli. A transio do feudalismo para o capitalismo : um debate, trad. Isabel Didonnet. 4. edio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pg. 129.
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econmico e cultural, para se tornar barreira, espao de confronto e antagonismos das duas
civilizaes, que isola a Europa Ocidental, para fazer do Imprio de Carlos Magno um
imprio puramente terrestre ou continental, e de Bagd o centro de todo o movimento
econmico. O que emerge na Europa Ocidental em fins do sculo VIII uma sociedade
essencialmente agrria em que declinam as diversas formas de vida urbana, intercmbio e
comrcio. Esta dimenso, qual seja, a dimenso do intercmbio ou da circulao mercantil,
ser o eixo fundamental do conjunto das interpretaes de Henri Pirenne e, portanto, o
sempre referido estancamento das diversas formas de intercmbio e em particular do
intercmbio mercantil ou o seu renascimento sero os movimentos fundamentais para a
compreenso da emergncia da sociedade feudal tanto quanto de sua crise.
Desse modo, a economia medieval ser definida pelo autor em termos de uma
economia latifundiria fechada29, o que remete no apenas ao carter em larga medida
auto-suficiente das grandes propriedades, mas ao fato de que as formas de existncia nesta
sociedade esto assentadas unicamente na propriedade ou na posse da terra, o que ter
implicaes decisivas sobre as estruturas de poder 30. Essa dimenso parece ter importncia
particular porquanto a prpria definio de feudalismo recai sobre a esfera jurdico-poltica,
expressando a relao entre a relativa independncia e autonomia dos feudos com a
desintegrao do poder pblico ao nvel do Estado, em favor de uma classe de senhores
cujas atribuies jurdico-administrativas no se dissociam das relativas ao seu prprio
patrimnio. E sobre esta dimenso de fragmentao do poder, a Igreja emerge como poder
superior e universal, para articular o conjunto da vida social, este conjunto de ncleos em
grande medida independentes e autnomos, nos limites da cristandade ocidental. Em vista
das consideraes sobre a centralidade das relaes de intercmbio, cumpre observar que a
29 Cumpre observar com alguma ateno o significado atribudo pelo autor expresso economia natural. Aqui essa expresso indica somente a ausncia de moeda nas relaes de intercmbio, em oposio idia de economia monetria. Nesses termos, a utilizao da expresso para qualificar o feudalismo nesta interpretao poderia sugerir erroneamente que, nesta poca, as trocas diretas em espcies substituram a troca monetria com efeito, durante a Idade Mdia, onde houve troca, houve circulao monetria. Na verdade, o declnio da circulao monetria estaria relacionado no com as supostas formas assumidas pelo intercmbio, mas com o declnio do prprio intercmbio. Somente com essas ressalvas poder-se-ia empregar, no quadro desta interpretao, a expresso economia natural. 30 Seja qual for o ponto de vista que se adote, pode-se dizer que a Europa Ocidental, desde o sculo IX, oferece o aspecto de uma sociedade essencialmente rural e na qual o intercmbio e a circulao das utilidades se restringiram ao grau mais baixo a que podiam atingir. A classe mercantil desapareceu nas referidas sociedades. Determina-se, agora, a condio dos homens por sua relao com a terra. Henri Pirenne. Histria econmica e social da Idade Mdia, trad. Lycurgo Motta. 6. edio. So Paulo, Mestre Jou, 1982, pg. 17.
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ideologia da cristandade pode ser compreendida em sua correspondncia com as formas de
organizao da vida econmica medieval, na medida em que se privilegia um dos aspectos
de suas concepes, qual seja, sua oposio ao comrcio e usura o dinheiro afasta a
alma de seus fins ltimos e por isso constitui um perigo. Esta forma de considerar o papel
orgnico que exerce a dimenso ideolgica da cristandade na manuteno da sociedade
revela o eixo fundamental da interpretao. Pois o quadro de uma sociedade fundada na
auto-suficincia dos domnios rurais, em que apenas a extrema necessidade, e muitas vezes
a fome, poderia fazer intensificar relaes de intercmbio e necessidades de emprstimos,
tornava os homens daqueles tempos absolutamente vulnerveis a toda a forma de
especulao e explorao, de modo que a usura e mesmo a explorao comercial
conduziriam, no limite, ao esfacelamento daquelas formas de sociabilidade. Enfim, o
comrcio e o dinheiro dissolveriam a sociedade a caridade e a esmola a preservariam. E,
no entanto, foram precisamente as cruzadas, um movimento de carter militar inspirado por
razes econmicas e religiosas, que reabriram as portas do Mediterrneo Europa
Ocidental, fazendo renascer o comrcio e a vida urbana, principalmente a partir do sculo
XII. Uma tendncia, de certa forma, anuciada nas rotas comerciais desenvolvidas pelos
escandinavos desde o mar do Norte e o mar Bltico, at a Rssia e o mar Negro, j no
sculo X.
Considerada a sociedade feudal a partir da esfera da circulao, do estancamento
das relaes de intercmbio, seria um desdobramento natural considerar o renascimento do
comrcio e das cidades, assim como o aumento da circulao monetria, como elementos
fundamentais nas profundas transformaes que se seguiram na Europa Ocidental. A
antiga organizao senhorial, que convinha a uma poca em que a falta de mercados
exteriores obrigava a consumir os produtos do solo no prprio lugar onde eram cultivados,
teria necessariamente que desmoronar quando se estabelecessem mercados permanentes
que lhes garantissem vendas regulares. Foi isto o que aconteceu no dia em que as referidas
cidades comearam a absorver, por assim dizer, a produo dos campos que assegurava sua
subsistncia.31 O renascimento do comrcio propiciou o desenvolvimento independente
das cidades e de uma classe de gente desvinculada da terra e, portanto, sem vnculos
orgnicos com o conjunto da sociedade feudal, dedicada s ativ idades do artesanato e do
31 Idem, pg. 82.
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comrcio, e que provavelmente provinha das camadas marginais da sociedade. Eram
bandidos, vagabundos, andarilhos, uma gente errante, cujo esprito de aventura, a falta de
escrpulos e muitas vezes a sorte lhes permitia ascender condio de burgueses, de
habitantes da cidade. O desenvolvimento dessas relaes entre a cidade e o campo,
orientado pela especializao e pela diviso do trabalho, promoveria a transformao das
relaes de servido, processo lento, desigual no quadro da geografia europia, e que fora
mais intenso onde a influncia do comrcio foi mais profunda. Henri Pirenne sustenta que o
reflorescimento do intercmbio comercial e cultural, a recomposio do carter
mediterrneo da Europa Ocidental, trouxe consigo uma tendncia para a sofisticao do
consumo da nobreza e, em conseqncia, a necessidade de ampliao da renda feudal.
Diante disso, as formas de organizao da vida econmica, nos limites das tradies,
mostram-se precrias, restritas. No quadro daquelas relaes, um progressivo aumento da
renda feudal no poderia ocorrer sem violentas e imprevisveis conseqncias econmicas e
sociais, de tal sorte que aos nobres restava se afogar em dvidas ou promover
transformaes nas relaes de servido, o que neste caso significaria abrandar ou at
dissolver os laos servis32.
O renascimento do comrcio, vinculado sempre expanso da circulao monetria,
identifica-se, nestas interpretaes, com a emergncia do capitalismo. Todavia, posto que o
terreno da semntica movedio, o problema das definies e caracterizaes exige certo
cuidado. Desde logo, para Henri Pirenne, capitalismo o alto comrcio. No se confunde
com a atividade dos pequenos negociantes e artesos, submetidos aos controles rgidos das
cidades e das corporaes estes se ocupam somente de sua subsistncia. O alto comrcio 32 Neste ponto, acreditamos, torna-se explcito que o problema da crise do feudalismo mais complexo do que poderiam sugerir as interpretaes que se pretendem exclusivas, umas em relaes a outras, explicaes que privilegiam, como determinantes da crise, fatores externos ou internos sociedade feudal. Pensamos que concepes unvocas e mesmo mecnicas no so suficientes para abordar este problema e que isto se torna explcito na prpria leitura de Henri Pirenne. Antes o autor afirma: No se compreenderia como a Europa Ocidental, imobilizada em sua civilizao agrcola, pudesse, por si s, iniciar-se, to rapidamente, em uma vida nova, sem um estmulo e um exemplo vindos de fora. Idem, pg. 53. Adiante, no entanto, aparecem referncias ao que poderiam ser considerados condicionantes internos: Nos lugares onde se difundia o comrcio, nascia o desejo dos objetos novos de consumo que com ele se introduziam. Como freqentemente acontece a aristocracia quis rodear-se de luxo, ou, pelo menos, das comodidades que convinham sua condio social. (...) Sem dvida os proprietrios recebiam dos seus homens o necessrio para continuar vivendo como antes, porm no como desejariam viver, ento. Eram vtimas de um sistema econmico antiquado que lhes impedia tirar de seu capital fundirio uma renda proporcional ao seu valor. A tradio proibia-lhes a possibilidade e at a idia de aumentar os censos dos seus dependentes ou as corvias dos seus servos, consagrados por um uso secular e que se converteram em direitos que no poderiam ser modificados sem provocar as mais perigosas repercusses econmicas e sociais. Idem, pgs. 84 e 85.
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de longa distncia, que transcende o espao das cidades como o mar que estende as guas
entre as ilhas, que domina o espao da grande navegao e as linhas do transporte terrestre,
que controla o grande comrcio de exportao e importao, provedor das grandes fortunas,
esta a esfera do capitalismo. Os altos lucros deste comrcio que, insistimos, tambm o
comrcio de dinheiro advm do monoplio, da especulao, da manipulao das distintas
condies de compra e venda, da misria de compradores ou vendedores vulnerveis s
mazelas de uma vida econmica incerta. O capitalista viria firmar definitivamente seus
vnculos com o prncipe nos sculos XIV e XV, quando os primeiros traos do
mercantilismo e de uma poltica econmica nacional, contra os particularismos das cidades,
comeariam a se esboar. Estes homens de grandes fortunas so imbudos do esprito da
aventura, da pilhagem, animados pelo lucro fcil e rpido; tipos desenraizados, errantes,
emersos da marginalidade. No quadro dessas definies, Henri Pirenne no ter
dificuldades de reconhecer capitalismo e capitalistas no apenas a partir do sculo XII,
quando estes lhe parecem mais evidentes, mas, em maior ou menor grau de
desenvolvimento, em todas as pocas da histria33.
As teses de Henri Pirenne, certamente clssicas, vieram inspirar, alm de vasta
bibliografia de histria econmica, certas interpretaes marxistas dos problemas da crise
do feudalismo e da transio ao capitalismo, desenvolvidas, sobretudo, nos artigos de Paul
Sweezy34. maneira das concepes de seu precursor clssico, estes procuram desvendar
uma dinmica interior ao espao definido nos termos de uma economia europeu-
mediterrnea, em que est imerso o feudalismo europeu ocidental. O feudalismo seria 33 Aquilo que Henri Pirenne denomina capitalismo no est muito distante daquilo que Marx definiu como a dinmica capital mercantil . Como veremos adiante, o capital que se valoriza na esfera da circulao valendo-se de mecanismos e circunstncias extra-econmicas, algo essencialmente distinto das formas de valorizao do capital no quadro do modo de produo capitalista plenamente constitudo. Da mesma forma, o esprito do capitalismo de Henri Pirenne no expressa o processo histrico de racionalizao da conduta que caracteriza o desenvolvimento do capitalismo, como nas interpretaes de Weber para utilizar as expresses familiares, define-se muito mais na figura do aventureiro do que na do trabalhador. Para Henri Pirenne, no plano das definies, as expresses capitalismo e capitalismo comercial no se distinguem, aparecem como sinnimos. Portanto, entendemos que estas discusses, em princpio semnticas, trazem problemas que dizem respeito prpria historicidade do capitalismo e dificultam a compreenso do capitalismo como uma totalidade histrica especfica. Como desdobramento desta idia, o que o autor define como esprito do capitalista termina por ser remetido natureza humana, em formulaes que podem ressonar como ecos da Riqueza das naes e at conduzir aos caminhos perigosos da teleologia: No so estas as caractersticas desse capitalismo a respeito do qual certa escola fez tanto mistrio, mas que, no obstante, se encontra com idntico fundamento em todas as pocas, conquanto difira de uma a outra pelo grau de seu desenvolvimento, pois corresponde tendncia natural do homem em enriquecer-se?. Idem, pg. 163. 34 Paul Sweezy: Uma crtica e Uma trplica, in Paul Sweezy et alli. A transio do feudalismo para o capitalismo: um debate, trad. Isabel Didonnet. 4. edio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
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definido como um sistema de produo para uso, como antes fora definido como uma
economia latifundiria fechada. Essa definio parece ser distinta da categoria modo de
produo, porquanto mais do que a amplas articulaes constitutivas de uma totalidade
histrica, confere centralidade esfera da circulao e s relaes de troca. Neste caso, a
caracterstica fundamental desse sistema ser a produo de valores de uso, isto , a
produo orientada e limitada pela satisfao das necessidades de consumo da sociedade.
Decorre disso o referido imobilismo da sociedade feudal, sua tendncia a preservar a vida
estabelecida nos marcos das tradies e das rotinas; sua tendncia a preservar as formas de
organizao da vida econmica, as tcnicas e mtodos de produo. Enfim, uma sociedade
destituda de movimento prprio, cujos impulsos transformadores haveriam de brotar do
exterior, com o reflorescimento do comrcio ainda que este possa ser considerado interno
ao espao mais amplo da economia europeu-mediterrnea.
Nesta linha, o renascimento do comrcio e da vida urbana aparece relacionado com
o desenvolvimento de um sistema de produo para troca que viria estabelecer vnculos
com o sistema preexistente e enfim, transform-lo. Retoma, pois, as discusses anteriores
acerca do desenvolvimento das cidades como centros do comrcio que progressivamente
tomam feio prpria, definindo-se como centros produtores de mercadorias e irradiando
linhas de intercmbio pelos domnios rurais circunvizinhos. Em curso, os progressos da
diviso do trabalho e da especializao viriam imprimir formas mais racionais da produo,
conduzindo para a rbita das trocas a economia dos domnios rurais. Portanto, o campo,
diante do desenvolvimento das cidades, tende a se tornar cada vez menos auto -suficiente,
mais especializado e adaptado explorao econmica racional orientada para o lucro. Essa
dimenso econmica apresenta seus reflexos ao nvel psicolgico, porquanto a ampliao
da esfera da troca e da circulao monetria a ela vinculada torna mais racional (ou menos
perecvel) o acmulo de riqueza, de tal sorte que a acumulao se converte em um fim em
si mesmo, e aproxima a conduta dos nobres dos homens de negcio precisamente
quando est em curso, por conta do mesmo movimento de ampliao do comrcio, o j
referido processo de sofisticao das necessidades de consumo da nobreza.
Esse impulso acumulao pesaria sobre os camponeses. Mas o prprio
desenvolvimento das cidades abre- lhes possibilidades reais de libertao do jugo dos
senhores ou ento, diante dessas possibilidades, imprime uma tendncia a atenuar os laos
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de servido, entendida aqui como a comutao das prestaes em servios por prestaes
em dinheiro35. Por isso, a prpria reao dos camponeses pode ser explicada pela
confluncia de fatores internos, relativos s contradies do feudalismo e prpria luta de
classes, e fatores externos, relativos ao renascimento da vida urbana. Essas consideraes
conduzem concluso de que o renascimento do comrcio conformou uma esfera
econmica orientada para a produo de mercadorias e que essa esfera em contato com o
sistema preexistente orientado para a produo de valores de uso, tende a transform-lo, a
convert-lo em um sistema de produo para troca, em que devero ser removidas as
velhas formas feudais de organizao da vida econmica, precrias, limitadas pelos usos e
tradies36.
As implicaes e os problemas implcitos nesta forma de estabelecer conexes entre
a esfera das relaes de intercmbio e os processos histricos especficos parecero mais
profundos e complexos numa leitura mais atenta, quando levamos ao limite alguns
35 O problema do carter da comutao da prestao das obrigaes servis trouxe certas polmicas ao debate marxista. No conjunto, dois argumentos mais freqentes parecem delinear os contornos dentro dos quais se pode situar o debate, expressando formas distintas de fazer uso das categorias sistema de produo ou modo de produo , em vista do que se pretende enfatizar. Paul Sweezy, em interpretao muito comum, considera equivocado (...) tratar a substituio de prestao de servios ou pagamentos em espcie por rendas em dinheiro como principalmente uma questo de forma, desprezando o fato de que essa mudana s pode ocorrer em escala considervel com base numa bem desenvolvida produo de mercadorias. Paul Sweezy: Uma trplica, in Paul Sweezy et alli. A transio do feudalismo para o capitalismo: um debate, trad. Isabel Didonnet. 4. edio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pg. 105. Em contraposio, Rodney Hilton, como outros, argumentaria que (...) o trabalho excedente poderia ser utilizado diretamente nos domnios do senhor, (...) ou seu produto poderia ser transferido sob a forma de renda em espcie ou em dinheiro, por parte da famlia serva, para o senhor. (...) Aceita esta definio geral de servido como transferncia forada de trabalho excedente ou do seu produto, podem existir muitas formas jurdicas e institucionais diferentes de servido (...) a histria geral do feudalismo europeu mostra com clareza que a renda-trabalho no era um elemento essencial nas relaes feudais de produo, ainda que o carter coercitivo dessas relaes transparea talvez mais nitidamente na organizao do trabalho obrigatrio no domnio senhorial. Rodney Hilton: Introduo, in Paul Sweezy et alli. A transio do feudalismo para o capitalismo : um debate, trad. Isabel Didonnet. 4. edio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pg. 13. 36 Novamente, as relaes entre os determinantes da crise, internos ou externos sociedade feudal, no se ap