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VIDEOGRAMAS DE UMA REVOLUÇÃO: MONTAGEM, PROXIMIDADE E DISTÂNCIA NAS IMAGENS DE FUTURO NO AGORA Dinah de Oliveira / Universidade Federal do Rio de Janeiro Comitê de Poéticas Artísticas
VIDEOGRAMAS DE UMA REVOLUÇÃO: MONTAGEM, PROXIMIDADE E DISTÂNCIA NAS IMAGENS DE FUTURO NO AGORA Dinah de Oliveira / Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO Neste artigo abordamos alguns aspectos significativos dos procedimentos da técnica de montagem que constituem o filme documentário Videogramas de uma revolução de Harun
Farocki como gesto artístico que evoca uma tomada de posição política. Analisaremos as-pectos do filme de Farocki importantes para a construção de um objeto que imprime um problema para a recepção das imagens factuais como documento de verdade, na medida em que são colocadas em uma nova série de reorganização visual conferindo outros modos de significação histórica. PALAVRAS-CHAVE
montagem; cinema documentário; imagem dialética; Harun Farocki; Walter Benjamin. ABSTRACT
In this article we approach some meaningful aspects of the procedures of the montage tech-nique that constitute Harun Farocki’s documentary film, Videograms of a Revolution, as an
artistic act that evokes the taking of a political stance. We shall examine aspects of Farocki’s film that are important to the construction of an object that poses a problem to the reception of the factual images, as a truth document, insofar they are put in a new series of visual rear-rangement, producing other forms of historic significance. KEYWORDS Mounting; documentary film; dialectical images; HarunFarocki; Walter Benjamin.
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O cinema documental herdou das práticas arquivistas a característica fundamental
de expor um modo de conhecimento do mundo que mostra uma tomada de posição,
sobretudo, por seu procedimento de montagem. Artista e historiador misturam suas
técnicas. Assim, tão acostumados que fomos a lidar distraidamente com a falsifica-
ção do fluxo das imagens cinematográficas, a recepção do filme documental é repe-
tidamente apreendida por meio de operações semelhantes às dos filmes ficcionais.
Alguns realizadores procuram estabelecer seus trabalhos justamente na contramão
de tal hábito recepcional e investem na mostragem da própria montagem como ele-
mento dinamizador de uma recepção reflexiva. É possível dizer que este é o caso de
Harun Farocki, sobretudo, pelos deslocamentos no estatuto do olhar que se realizam
em seus filmes, como força intempestiva sobre os modos de produção de poderes
econômicos e políticos que se realizam nos corpos. A montagem como elemento
intempestivo em Farocki corrói, destrói a fabulação linear em favor de possibilidades
de sentidos que não foram previstos.
Na tentativa de esboçar um pensamento sobre as relações entre a noção de docu-
mento imbricada no tratamento dado no cinema documental de Farocki e sua rela-
ção com a idéia de acontecimento histórico como uma tomada de posição relativa à
escolha de uma constelação de gestos de montagem operados pelo realizador, o
objeto-afeto deste trabalho tomará momentos ditos pregnantes do filme Videogra-
mas de uma revolução (1992), realizado conjuntamente com Andrei Ujica.
A motivação para um olhar sobre tal filme, parte paradoxalmente de uma espécie de
afeto fotográfico – a escolha do “ponto notável ou singular” dentro do fluxo de acon-
tecimentos da revolução que derrotou o regime comunista de quatro décadas na
Romênia – a imagem televisiva dos cadáveres de Nicolai Ceausescu e sua mulher
Elena, imediatamente após seu fuzilamento pelas forças do exército. Em meio a um
contexto histórico que podia ser reconhecido como forças de progresso, a desarticu-
lação do bloco comunista do leste europeu com o desdobramento do marco promo-
vido pela derrubada do muro de Berlin – ocorrido sete semanas antes do evento na
Romênia – as imagens de tais cadáveres se pronunciavam e se projetavam para
fora de nossos aparelhos televisivos como um monumento de barbárie nos termos
do filósofo Walter Benjamin.
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Na esteira do pensamento de Benjamin sobre a história, Michel Poivert atesta que a
idéia de evento é justamente um momento que resiste a idéia de progresso, na medi-
da em que causa uma interrupção no fluxo temporal dos acontecimentos, e instala um
tempo lacunar que não se realiza positivamente na causa de momentos anteceden-
tes, bem como não imprime, na mesma medida positivista, ações históricas calcadas
pela inteligibilidade de esperadas reações. Podemos aludir ao que nos aponta Poivert
em conjunto com Deleuze: o evento é alguma coisa que ainda está por vir, “não só é
compreensível na análise determinista de suas causas, mas é condicionado pela sua
iminência” (POIVERT, 2009). O filme de Farocki problematiza a força das imagens
factuais, que poderiam ser vistas na lógica positivista da virada do século XIX para o
século XX como “prova”, na medida em que são colocadas em uma nova série de re-
organização visual que confere outros modos de significação histórica.
Neste sentido, o impacto formal das referidas imagens pode ser reconhecido por
uma constelação que envolve a impressão de congelamento da imagem em movi-
mento, a investida no valor fisionômico como problematização do teor de verdade
documental e uma tomada de posição frente ao evento que tensiona o distancia-
mento e a imersão, proporcionando ao mesmo tempo para o espectador, a reflexão
e a implicação no momento presente.
Montagem – o originário em repetição
A cena de abertura de Videogramas de uma revolução é composta por imagens cu-
jas possibilidades mais profundas de sentido, paradoxalmente, só se realizam ao
longo do deslizamento de nosso olhar pelas superfícies-montagem das imagens do
filme de Farocki. A cena é um plano-sequência de cerca de três minutos que abre
repentinamente, em que uma mulher, ferida pela Securitate (força policial de Ceaus-
cescu), faz uma espécie de discurso acalorado em favor das forças revolucionárias.
A mulher está sendo colocada em uma cama de ferro, grita de dor, porém, nitida-
mente pela presença da câmera que inspeciona tudo de perto, anuncia que quer
dizer alguma coisa. Antes, ela se certifica de que haverá a transmissão de sua ima-
gem juntamente com o áudio – certifica-se da potência da mídia.
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Assim, dois elementos fundadores da ordenação simbólica do real, associados às
imagens, entram em jogo. Um deles é o aparecimento repentino das imagens, niti-
damente mostrando o gesto da montagem, cara ao trabalho do realizador, como
uma nova proposição serial para uma imagem já realizada e consequentemente per-
tencente a um contexto determinado. A intencionalidade do gesto do captador origi-
nal torna-se opaca para o espectador, na medida em que vê alguma coisa surgida
intempestivamente. Pelo menos dois desdobramentos conceituais são possíveis a
partir do gesto intempestivo de montagem dessa primeira cena. O primeiro surge se
o aproximarmos operativamente da colagem cubista, criando uma problematização
para a imagem de arquivos históricos. Marjorie Perloff discute que um dos sentidos
principais que a colagem provoca é justamente a quebra na linearidade dos discur-
sos. Investigando a origem do termo collage, esclarece que este vem do verbo fran-
cês coller e “significa literalmente ‘afixar’, ‘pregar’, ‘colar’”. A inovação da colagem
cubista estaria nas estruturas de justaposição, cuja distinção fundamental é o “fato
de que sempre implica a transferência de materiais de um contexto para outro, ainda
que o contexto original não possa ser apagado” (PERLOFF. 1999: p. 102). Neste
sentido, o elemento colado produz uma “dupla leitura”.
Videogramas de uma revolução (still da cena inicial)
O gesto intempestivo que expõe as imagens iniciais desloca o espectador para uma
apreensão filosófica que situa a noção de contemporaneidade não como uma inser-
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ção no tempo, mas como uma relação com o tempo. O filósofo Giorgio Agamben
antes de realizar qualquer conceituação sobre o contemporâneo sinaliza a implica-
ção da contemporaneidade com o ato da visão. Agamben pergunta: o quê vê o con-
temporâneo, o quê se procura ver e o quê se vê? Indo adiante em suas indagações,
aproxima-se de Nietzsche, na media em que este afirma que ser contemporâneo é
ser intempestivo, problematizando o excesso de cultura histórica de seu tempo na
Alemanha, fazendo uma crítica a própria visão de história predominante numa pers-
pectiva mais cronológica – febre de história –, crença em um aperfeiçoamento ao
longo do tempo. A atualidade, nestes termos, é uma alteridade em relação ao pre-
sente e ser contemporâneo é ser inatual, ou seja, é problematizar criticamente o
tempo presente que se mostra temporalizado, impuro, nunca unívoco e sempre atra-
vessado por outras temporalidades.
A colagem e o intempestivo no contexto discutido sobre a obra de Farocki nos reme-
tem ao modelo de temporalidade que Benjamin propõe para a história que se solida-
riza ao caráter destrutivo (artificial) das obras de artes ao “interromper o curso do
mundo”, como em Baudelaire para inaugurar sua própria tradição. Fazer da destrui-
ção, seu clássico. A temporalidade descortinada já na estrutura de montagem da
cena inicial de Videogramas é intensiva, em contraponto com o modelo histórico ex-
tensivo.
Ainda podemos enxergar um procedimento formal dessas imagens iniciais escolhi-
das por Farocki que privilegia um olhar junto ao evento. O uso da câmara na mão
que investiga em dado momento as marcas do incidente no rosto da mulher, que
cria closes, provocando o deslocamento do espectador indelevelmente para “dentro”
da situação, como se o espectador fizesse parte do contexto. Porém, esta intenção é
relativizada em outros momentos no que seria quase o seu oposto, ou seja, um mo-
vimento de distanciamento do espectador que vê uma imagem em movimento pela
impressão de imobilidade da câmera. É possível pensar aqui na aproximação de
Farocki com a figura do “Colecionador” de Benjamin. Um dos modos de perceber-
mos o “Colecionador” é por meio de uma figuração do sentimento de melancolia
que, “enfermo com o pormenor” (BENJAMIN, apud BÜRGER, 2008, p. 142) retira o
elemento de seu desejo do fio narrativo e o imobiliza em uma coleção.
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A colocação do espectador no centro do acontecimento revela uma estratégia visual
que instala a instância subjetiva indexada na leitura das imagens. Como nos diz Bill
Nichols “não nos atarem tanto os personagens documentais e seu destino como ato-
res sociais e o destino em si (a práxis social)”, compreendemos a história na relação
“com as sonoridades e imagens que têm um nexo característico com o mundo que
compartilhamos” (NICHOLS, 1997, p. 34). Existe, portanto, uma convocação dos sen-
tidos na realização do fato histórico que, aliado ao campo do visual faz insurgir neces-
sariamente a ideia de imaginário que se trata da instância que Farocki almeja tocar.
A operação própria da imaginação é uma relação entre um distanciar e um aproxi-
mar. Nas palavras de Vilém Flusser a imaginação “é a singular capacidade de dis-
tanciamento do mundo dos objetos e de recuo para a subjetividade, é a capacidade
de se tornar sujeito de um mundo objetivo” (FLUSSER, 2007, p. 163). Mas a questão
que se instaura aqui é um problema que não parece se equacionar facilmente entre
objetividade e subjetividade. O recuo para a subjetividade abre uma lacuna que não
traça uma legibilidade confortável para o mundo dos objetos. As imagens são ele-
mentos com inegável indexação, mas ao mesmo tempo, são produtos dos aparelhos
utilizados.
O gesto da captação amadora das imagens em Videogramas se indexa aos modos
representativos de significação das imagens no fotojornalismo, por exemplo, por meio
da captação do instante decisivo que só é possível pela proximidade do fotógrafo no
evento, assim como as fotografias de guerra de Robert Capa. Ou ainda uma certa
intenção de absorção e teatralidade, como desenvolve Michael Fried. O modo quase
fotográfico (efeito de fixidez de imagem imóvel da mulher na cama), alude aos modos
da fotografia fotojornalística e que, somadas ao pensamento crítico de Fried, impõe o
direcionamento a um espectador, ao mesmo tempo em que descortina um fluxo dis-
cursivo semelhante a uma escrita automática. Pelo menos dois movimentos em ten-
são se apresentam ao olhar: a proximidade do rosto da mulher em imersão na dor
física e moral – e consequentemente um efeito semelhante no espectador – e a evi-
dência da mídia que faz com que a mulher se distancia de certa forma de seu estado
limite e invoque um discurso em nome de forças que a ultrapassam.
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Videogramas de uma revoluçã (still)
A evidência da mídia em Videogramas desdobra os sintomas da história como ins-
tâncias do evento nos termos que Michel Poivert invoca, na medida em que suas
diferentes apresentações não obscurecem a afirmação de alguns motivos iconográ-
ficos que se repetem em seus lugares históricos. Este pode ser visto, por exemplo,
nas diversas tomadas de movimento de câmera que se aproximam do rosto dos ato-
res da revolução nas transmissões do canal oficial romeno tomado pelas forças po-
pulares. Nestes mesmos momentos o corte vai para imagens que fazem passeios e
closes dos rostos dos espectadores em suas casas. Como diz uma das legendas
colocadas por Farocki a câmera procura pelos responsáveis e aponta para reper-
cussões futuras. O gesto do captador das imagens próximo aos rostos é como o de-
sejo de uma investigação, porém, que deixa outros lugares ocultos, obscuros.
É possível perceber um movimento dialético na cena que alude às concepções de
imagem dialética conforme Walter Benjamin. Tal concepção, na verdade, perpassa
várias categorias de pensamento do filósofo, mas para esta discussão vale salien-
tar, primeiramente, que Benjamin faz a singular afirmação de que a imagem dialéti-
ca seria imagem autêntica. A função da imagem dialética para o artista/crítico que
vai produzir uma imagem desta mesma natureza é a de manter uma ambigüidade
que inquietará o chamado da razão e exigirá dela o esforço de uma auto-
ultrapassagem de uma auto-ironia. É a posição crítica de nem aderir inteiramente à
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crença na modernidade e nem ao contrário, acreditar inteiramente na necessidade
de recuperar uma origem (ou fonte) em termos de imagem arquetípica ou arcaica,
nem voltar ao sonho mítico, nem acreditar sem desmonte na razão, na consciên-
cia, na razão técnica.
Neste sentido, o momento inicial inicial de Videogramas pode ser tomado como uma
espécie de habitação para uma das formulações de Benjamin no que diz respeito a
noção de aura que sugere um modo de aderir ao problema da dialética: “É uma figu-
ra singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma
coisa distante, por mais perto que ela esteja” (BENJAMIN, 1996, p. 170). Pelos des-
dobramentos do que foi apontado até aqui a imagem de nossa cena funciona como
uma suspensão temporal, anacronicamente colocada na cena inicial do filme, como
uma fratura, ou mais especificamente ainda, como uma forma de cesura nos termos
benjaminianos e em semelhança ao gesto de interrupção de Brecht. O princípio da
interrupção inscreve no cerne da linguagem seu profundo fundamento, justamente
por sua própria supressão. Mas o que seria o ainda não-expresso da história que
Farocki indica com a cena inicial de Videogramas?
Na análise dos aspectos formais de Farocki realizada por Georges Didi-Huberman,
esse autor identifica que seu procedimento consiste em narrar com as imagens para
esmiuçá-las posteriormente, encontrar suas condições de possibilidade e seus cli-
chês em uma montagem analítica. O que será que podemos ver com os sentidos? É
possível validar o caráter empírico, sensível e ao mesmo tempo poético de uma
mostragem em que o corpo superexposto dá a ver o vazio e a indiferença que o
transforma em mercadoria? As condições que acabam por se estabelecer propiciam
uma recepção que desloca “o pensamento político de sua ganga discursiva” e atinge
o “lugar crucial onde a política encarnaria nos corpos, nos gestos e nos desejos de
cada um” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.24).
A dialética que expõe proximidade e distância em Videogramas imprime visualmente
uma tragédia nos corpos. Esfacelados pelo perigo e iminência dos acontecimentos,
mostram-se mais como espólios de futuro, um campo de poder indeterminado que
não consegue estabelecer diferenças fundamentais entre vencedores e vencidos. É
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possível pensar aqui nas argumentações de Agamben sobre o cinema de Guy De-
bord no que diz respeito ao procedimento de parada, de interrupção do fluxo narrati-
vo largamente utilizado como gesto de cesura por Farocki que, para além de criar
uma pausa reflexiva, propicia uma reflexão em ato na medida em que produz uma
não coincidência entre imagem e sentido. Para Farocki o que se coloca em jogo é a
natureza das imagens em sua concepção como formuladoras de sentidos. A potên-
cia de imagem dialética, nos termos benjaminianos, pode ser reconhecida em Fa-
rocki como o teor crítico de uma montagem que desestabiliza o potencial de verdade
e conhecimento das imagens factuais, criando novas combinações e possibilidades
de sentido para o mundo e para a história que se dão por meio de uma série de in-
terrupção em Videogramas, assim como o discurso interrompido de Ceauscescu.
Podemos ainda inferir que o gesto repetitivo dos closes em Videogramas e as ima-
gens de interiores como as do estúdio, das casas das pessoas, dos esconderijos, da
visão da borda de uma escada do metrô evidenciam um desejo de mostrar um regi-
me de ocultação inerente às imagens de arquivo. Ainda em referência às argumen-
tações de Agamben sobre o cinema de Debord, é possível transpor uma relação
para as imagens factuais-obscuras de Videogramas em uma aproximação com o
que ele denomina de imagens puras em que o sentido estaria na superfície das ima-
gens e não no fato de que elas se prestariam a uma representação de algo que está
por trás delas. O escuro, a zona de invisibilidade está na própria imagem.
É possível considerar que a revolução romena só se tornou passível de ser legível a
partir da intervenção e difusão midiática. E são as novas recolocações que Farocki
faz destas imagens pela montagem por meio de materiais formais heterogêneos – o
andamento do filme, as cesuras, o retrocesso das imagens para seu esclarecimento,
as tomadas de close em tensão com imagens de perigo captadas atrás de grades,
do interior de residências, a tensão verbo-visual impressa pelas legendas – é que
pode de certo modo conferir algum sentido para o que foi visto.
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Videogramas de uma revolução. Still do filme no momento em que a emissão televisiva transmitida ao vivo do discurso de Ceauşescu é interrompida.
Os últimos quadros, ou dito de outro modo, a última cesura de Videogramas é como
um reverso da história que, associado à fratura da cena inicial compõe sentidos de-
sestabilizadores para a percepção dos espólios do final trágico da revolução. As
imagens são elas mesmas, os despojos de uma guerra que cria um campo de inde-
terminação para o futuro. Como se sabe – esse aspecto já cria uma problematização
de nossas expectativas em relação às verdades das imagens e sua capacidade de
promoção de conhecimento – o último quadro mostra a retenção, o julgamento e o
fuzilamento dos Ceuascescu. O espectador, sem dúvida, já tem em seu imaginário a
imagem que percorreu a mídia no final do ano de 1989 que mostra os cadáveres de
Nicolae Ceauşescu e de sua mulher Elena. A questão fundamental dos gestos da
montagem de Farocki aqui é a de como transformar uma imagem fixa – uma espécie
de fotografia filmada, uma espécie de ponto final do drama dos romenos que a partir
de então rumariam para um futuro glorioso de progresso – em uma imagem-devir,
imagem de indeterminação.
O bloco inicia com o trabalho da legenda que vai perfazendo um percurso de pen-
samento para as imagens. Talvez, parafraseando Deleuze em sua dedicação ao
cinema, as legendas apontem para a tarefa do filme como sendo a de criar imagens
para o pensamento. As legendas esclarecem que as câmeras estão alocadas no
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estúdio e voltam suas lentes para a tela da televisão. Uma primeira tomada de posi-
ção que sinaliza o teor de midiatização das imagens factuais e que pode ser com-
preendido como o gesto do arqueólogo ao qual alude Didi-Huberman, como aquele
que precisa “escavar” o terreno em que as imagens se inserem e então ressaltar os
seus modos-objetos. O espectador do filme é convocado a realizar uma operação
crítica em relação às imagens. Durante todo o quadro se dá uma tensão formal entre
as imagens captadas pelas câmeras amadoras, ou mesmo, entre as que foram co-
optadas do canal de televisão e que agora, paradoxalmente, se prestam a filmar sua
recepção.
A informação esperada virá da mídia, as ruas estão vazias e a população está diante
de seus aparelhos televisivos. Somente uma câmera terá acesso aos acontecimen-
tos in loco. A narração esclarece uma tarefa da câmera, a de tornar visível o aconte-
cimento histórico, “conseguir mostrar o passado e colocar o presente em cena”, ou
seja, a cenarização do presente que inclui necessariamente um modo de represen-
tá-lo, portanto, uma crise aberta no presente. Corte seco e surge a tela preta com a
palavra “comunicado”. Mais uma interrupção no fluxo, mesmo que este indicasse
para uma reflexão – dialética da proximidade e da distância. Mostra-se agora a ins-
tância da mídia, o comunicado, a imagem do âncora que durante anos serviu ao po-
der estabelecido numa inversão: anunciar os momentos finais da força que o manti-
nha e anuncia que a Televisão Romena Livre transmitirá as imagens da execução
no horário vespertino.
O próximo quadro inicia com as imagens de uma audição sinfônica intempestiva-
mente cortada. As imagens seguem com os Ceauscesco durante o exame médico a
que foram submetidos e o tribunal militar de exceção montado no que talvez fosse
uma base militar em Targoviste. A captura do casal se deu em circunstâncias obscu-
ras. As imagens são mudas, o âncora faz a narração dos fatos. Relata os pontos de
acusação. Nicolai tem um ar estranho, quase ausente e debochado. As imagens
mostram a reação dos espectadores, a cena do lado dos acusados segue muda. A
imagem que é mostrada enquanto o âncora relata a sentença de morte é a dos acu-
sados em pé, um ao lado do outro, quase como seu último retrato juntos em vida. O
direito de defesa não pode ser ouvido em Videogramas, o que se vê do casal é o
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vazio do corpo morto que já nos intima a vê-los como a mercadoria da famosa foto
de seus cadáveres. Várias sucessões de cortes de imagens mudas do casal. A ima-
gem falha, presença da tela de linhas verticais coloridas. O âncora anuncia para a
manhã seguinte a próxima transmissão.
Próximo quadro – a tela preta abre a imagem azulada captada da tela da televisão
que mostra os corpos a uma certa distância. Um dedo aparece do lado de cá da tela
e aponta o cadáver de Nicolai. Permitindo-nos aqui pensar o punctun da imagem
nos termos de Roland Barthes, o que impressiona é o chão de placas de cimento.
Durante anos, até que pudesse rever essas imagens, tive a nitidez de que este ci-
mento se tratava, na verdade, de um campo branco congelado. Os corpos como
studiun nos alertam para o assassinato como uma paisagem opaca do que está por
vir. É a força imagética daquilo em que não há mais nada para se ver contrariando o
absolutismo das palavras do testemunho nos moldes de Claude Lanzmann, em que
seu ponto é o absolutamente outro – o que não pode ser desencadeado pelo o que
está disponível de ser compartilhado no comum. A temporalidade de repetidos pre-
sentes da imagem de memória no pensamento que as primeiras imagens dos cadá-
veres Ceauscescu imprimiram em milhões de espectadores, como nos diz Benjamin,
pôde registrar a impressão do ato do assassinato como um lugar petrificado de mor-
te. Pensando o gesto do cinegrafista, pode-se ter em conta a sensação de captar a
imagem imediatamente após o fuzilamento, ainda de modo vacilante e impregnado
dos fatos da revolução e do rastro de genocídio impetrado pela ditadura de Ceaus-
cescu. Corte seco. Surge a imagem azulada da tela da televisão mantendo outro
plano de recorte – sobredeterminação de tempos e espaços. A imagem agora é do
cadáver de Nicolai, pode-se ver seu rosto, a cabeça pendente para nossa esquerda
e premida pelo muro de pedras, a parede do fuzilamento. Alguém diz na sala: “É
ele!”. A Imagem da captação do filme se afasta da tela e se abre deixando ver a sala
e as pessoas. Ao mesmo tempo a imagem da televisão se fecha em um close do
rosto do cadáver. Aproximação e distância. A audiência aplaude. Alguém diz Elena e
a captação retorna a tela da televisão. Alguém diz: “Acabou, desliga”. Entram os
créditos.
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Videogramas de uma revolução (still de uma das últimas cenas do filme)
O confronto com a imagem em close de Ceauscescu morto nos faz voltar de alguma
forma para o início de Videogramas. Agora o intempestivo não se dá com o surgi-
mento de uma imagem em uma série da qual ainda nada se pode saber, mas com a
abrupta interrupção na história, da qual pensávamos saber, que o desaparecimento
da imagem do líder romeno provoca. Abre-se um campo de possibilidades para a
leitura posterior destas imagens que se aproximam pela exposição dos corpos em
atrito por meio de uma montagem combinatória de tempos em nosso imaginário que
não apontam para uma progressão pura. O que virá será a barbárie? Não sabemos
mais, pois o elo de evolução das imagens foi rompido, ou melhor, talvez nunca tenha
existido. Videogramas, do modo como foi visto aqui, propõe uma nova forma de en-
tendimento para o incômodo que a fotografia fílmica dos Ceauscescu mortos provo-
cou na ocasião. Neste sentido podemos vê-lo como produtor de imagens para o
pensamento na medida em que estruturalmente sua montagem nos “mostra o modo
pelo qual o Outrora encontra, aí, o nosso Agora para se libertarem constelações ri-
cas de Futuro, então podemos compreender a que ponto esse encontro dos tempos
é decisivo, essa colisão de um presente ativo com seu passado reminiscente” (DIDI-
HUBERMAN, 2011, p. 61).
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Dinah de Oliveira
Doutoranda e Professora Assistente no curso de Artes Visuais na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em suas pesquisas, dedica-se ao estudo das ima-gens nas artes visuais e no teatro. Crítica atuante na revista Questão de Crítica.