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inda no curso da PM, a ordem é dada: “toda vez que estiver no confronto com os traficantes, guarde sempre a última bala para você. Se os ban- didos te pegam, te esculacham, tiram tua roupa, te colocam uma calcinha, depois arrancam tuas p e rnas, braços, te deixam vivo o maior tempo possível. É melhor você mesmo se matar do que ser ridicularizado e esquartejado na f rente de toda a favela”. A fala é do policial J. A. que, por questões de segurança, não será identifi- cado. Membro da corporação há três anos, J. A. hoje em dia, tra- balha na segurança – principal- mente noturna – da Av. Atlân- tica, em Copacabana. Seu depoi- mento – junto com o do parc e i ro de viatura, B. C. – revela o lado esquecido e marginalizado do policial da noite. O preconceito e o pré-conceito da população fazem com que os responsáveis pela segurança pública sintam- se tão oprimidos que, quando vêem uma oportunidade de con- tar suas histórias, falam sem parar. “Eram duas horas da manhã, estávamos eu e mais três policiais em um Gol, subindo o Morro do Querosene pra prender um trafi- cante local. Logo que chegamos, os tiros começaram. Subimos até onde deu, descemos do carro e começamos a atirar. Não dava pra ver de onde vinham os dis- paros. Estava escuro, só se via as luzes dos barracos. Mesmo assim, não paramos de atirar. Está- vamos cercados, e a nossa mu- nição já estava no fim. Peguei o rádio e pedi prioridade, não ha- via saída. Tomei um tiro na perna. As balas não paravam de passar por nós e estouravam na parede de trás. Meu amigo não esperou o reforço, quando viu que não tinha saída, atirou a última bala contra a própria cabeça. Alguns minutos depois, patrulhas vieram nos socorrer”. J. A. tem 28 anos, fala inglês e é formado em administração. B. C., também com 28 anos, está no quarto período da faculdade de direito. Ambos acreditam que para um policial atuar bem, a instrução é fundamental. “Estou na PM por vocação, mas gosto de estudar. Sem estudo e conheci- mento a gente não sai do lugar. O soldado tem que conhecer as leis, saber o que está fazendo. Em um tiroteio, por exemplo, se eu acertar o bandido pelas costas vou preso. O pior é que eles sabem disso e, em algumas situ- ações, dão as costas para que a gente não atire”, afirma J. A. Seu companheiro de vigília noturna disse que, em 14 meses de PM, nunca precisou utilizar sua pisto- la Taurus 40, cedida pelo Estado. B. C. gosta de trabalhar na noite de Copacabana por achar que neste bairro as principais ocor- rências são leves. “Aqui é fácil, não há coisa pesada. Os proble- mas dessa região são furtos aos turistas, confusão com prostitutas e drogas que, nesses apartamen- tos de luxo, são consumidas em bandeja de prata”, relata. Já J. A., que se auto-nomeia um “ s u p e r-homem”, pre f e re a agi- tação do subúrbio. “Não gosto Julho/Dezembro de 2003 18 ANDRÉ WAINER, EDUARDO FREIRE, JÚLIA ENNE E NATASHA MONTEIRO Vida de polícia Agentes da lei falam de suas experiências noturnas “A gente até tenta fazer nosso trabalho, mas com esse governo não há espaço para uma polícia que não seja corrupta” J.A., policial militar

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inda no curso daPM, a ordem édada: “toda vezque estiver noc o n f ronto com

os traficantes, guarde sempre aúltima bala para você. Se os ban-didos te pegam, te esculacham,tiram tua roupa, te colocam umacalcinha, depois arrancam tuasp e rnas, braços, te deixam vivo omaior tempo possível. É melhorvocê mesmo se matar do que serridicularizado e esquartejado naf rente de toda a favela”. A fala édo policial J. A. que, por questõesde segurança, não será identifi-cado. Membro da corporação hátrês anos, J. A. hoje em dia, tra-balha na segurança – principal-mente noturna – da Av. Atlân-tica, em Copacabana. Seu depoi-mento – junto com o do parc e i rode viatura, B. C. – revela o ladoesquecido e marginalizado dopolicial da noite. O preconceito eo pré-conceito da populaçãofazem com que os re s p o n s á v e i spela segurança pública sintam-se tão oprimidos que, quandovêem uma oportunidade de con-tar suas histórias, falam semp a r a r.

“Eram duas horas da manhã,estávamos eu e mais três policiais

em um Gol, subindo o Morro doQuerosene pra prender um trafi-cante local. Logo que chegamos,os tiros começaram. Subimos atéonde deu, descemos do carro ecomeçamos a atirar. Não davapra ver de onde vinham os dis-paros. Estava escuro, só se via asluzes dos barracos. Mesmo assim,não paramos de atirar. Está-vamos cercados, e a nossa mu-nição já estava no fim. Peguei orádio e pedi prioridade, não ha-

via saída. Tomei um tiro naperna. As balas não paravam depassar por nós e estouravam naparede de trás. Meu amigo nãoesperou o reforço, quando viuque não tinha saída, atirou aúltima bala contra a própriacabeça. Alguns minutos depois,patrulhas vieram nos socorrer”.

J. A. tem 28 anos, fala inglês eé formado em administração. B.C., também com 28 anos, está noquarto período da faculdade ded i reito. Ambos acreditam quepara um policial atuar bem, ainstrução é fundamental. “Estouna PM por vocação, mas gosto deestudar. Sem estudo e conheci-mento a gente não sai do lugar.O soldado tem que conhecer asleis, saber o que está fazendo. Emum tiroteio, por exemplo, se euacertar o bandido pelas costasvou preso. O pior é que elessabem disso e, em algumas situ-ações, dão as costas para que agente não atire”, afirma J. A. Seucompanheiro de vigília noturnadisse que, em 14 meses de PM,nunca precisou utilizar sua pisto-la Taurus 40, cedida pelo Estado.B. C. gosta de trabalhar na noitede Copacabana por achar queneste bairro as principais ocor-rências são leves. “Aqui é fácil,não há coisa pesada. Os proble-mas dessa região são furtos aosturistas, confusão com prostitutase drogas que, nesses apartamen-tos de luxo, são consumidas embandeja de prata”, relata.

Já J. A., que se auto-nomeia um“ s u p e r-homem”, pre f e re a agi-tação do subúrbio. “Não gosto

Julho/Dezembro de 200318

ANDRÉ WAINER, EDUARDO FREIRE, JÚLIA ENNE E NATASHA MONTEIRO

Vida de políciaAgentes da lei falam de suas experiências noturnas

“A gente até tentafazer nosso trabalho,

mas com esse governonão há espaço parauma polícia que não

seja corrupta”J.A., policial militar

desse sossego de Copacabana,não estou acostumado com isso”,explica, lembrando dos dois anosnos quais passou trabalhando nobatalhão de Bonsucesso. “Nãoconsigo ver as coisas aconte-cerem e ficar quieto. Já recebiordem de coronel para não memeter com os playboys que com-pram drogas aqui na praia.Pesquisei com os donos dequiosques e, no dia em que meusuperior veio verificar meu tra-balho mostrei a ele os traficantes.Avisei que iria partir pra dentrometendo bala na frente de todomundo. Hoje recebi uma cartaavisando que, a partir da se-mana que vem, meu ponto detrabalho será outro”. J. A. acres-

centa: “Certa vez, um sargentofez uma apreensão de drogas earmas. Fez tudo certinho, como alei manda. Um coronel chegoupara ele e disse: – Parabéns, vocêfez um bom serviço, mas infeliz-mente será detido por 20 dias

p o rque não estava usando acobertura (nome dado ao quepeutilizado pelos policiais). Távendo? A gente até tenta fazernosso trabalho, mas com esseg o v e rno não há espaço parauma polícia que não seja corrup-ta”.

Pode parecer paradoxal, mas oconfronto é a principal ferramen-ta na luta pela paz. Com isso, omedo parece evidente, mas nãoé. “Se você tem medo é melhorpedir baixa”, concluíram os doisPMs, quase em coro.

Eles são soldados urbanos, trei-nados para assumir situações deviolência e perigo. Muitos exer-cem atividades burocráticas enunca vivenciaram o combate

Boas Noites 19

“Nós somos comoganso, que anda torto, mas anda.

Nada errado, mas nada.

Voa mal, mas voa”J.A., policial militar

direto. No momento em que, por-ventura, isso acontece, algunschegam a repensar a escolha dac a rreira. “Era um oficial, umtenente que nunca tinha ‘en-frentado chumbo’. Foi transferidopara o 1º Batalhão, onde eu tra-balhava. Quando o carro chegouno Morro da Coroa, de madruga-da, os bandidos partiram paracima, meteram bala. O superiorpegou a arma, mas não con-seguia atirar. Um soldado disseque, quando olhou, viu o tenentedefecando atrás da porta daviatura. Um cara desses não temmoral. No dia seguinte, pediubaixa”.

O fato de o governo permitirque dois policiais fiquem de plan-tão no meio da Linha Vermelhatambém é questionado. “Somospeças de reposição, tanto nós,soldados, quanto os traficantes.O governo não está preocupadocom a gente. Põe um carro depolícia lá só para fazer poli-ticagem, mas sabe que se vocênão fizer um “acordo” com ostraficantes, você morre. Não temjeito. Tem casos, como o daRocinha, em que você tem umposto da PM com quatro polici-ais. Só que em volta tem mais decem traficantes fortemente arma-dos com fuzis com luneta devisão noturna e granadas. Émuita covardia. Há carros, comoo que fica sempre parado naPaulo de Frontin que nem motortem, serve só de aparência”.Indignado, J. A. explica: “Nóssomos como ganso, que andatorto, mas anda. Nada errado,mas nada. Voa mal, mas voa.Aqui temos que fazer de tudo,mesmo que sem recursos”.

A imagem do policial grosso,falando português errado e cus-pindo no chão, está consolidada.Ver dois PMs inteligentes e bemarticulados, falando de direitos ede política, causa estranhamentona mente de qualquer pessoaacostumada a ler e ver as notíciasdo crime no Rio de Janeiro. Sinalde que os estereótipos nem sem-pre correspondem à verdade. “Eusinto vergonha quando temosque socorrer algum turista, víti-ma de violência. Peço desculpas”,exclama J. A.

Os PMs do relato anterior pare-cem exceção. Mas na delegacia(13º DP), em Copacabana, nova-mente policiais educados – agoracivis – são encontrados. Advo-gados, jornalistas e até mesmoengenheiros, vítimas do desem-p rego, agora fazem parte docorpo da Polícia Civil (PC). “Oproblema da segurança é a faltade união. Os papéis estão troca-dos. A PC não deveria subirmorro, mas faz porque a PM nãotem condições de agir sozinha. Épapel da Polícia Civil fazer todo otrabalho investigativo, enquanto

a Polícia Federal deveria cuidardo tráfico de entorpecentes”,explica o policial R. D. De acordocom ele, a PC acaba levando aculpa pela incompetência dasoutras polícias.

Já G. V. trabalha na PC há cin-co anos, e, segundo ele, por vo-cação. “Gosto de trabalhar ànoite. Antes de ser policial, eu eramergulhador, costumava descergrandes profundidades onde nãose vê nada. Acho que isso tem aver”, afirma. G. V. já se envolveuem alguns tiroteios, principal-mente ao invadir favelas. “Nadamuito grave. A pior história foiuma troca de tiros em um morro.Eram cerca de 20 traficantes emcima de uma laje. Além de maisbem armados, eles atiram decima pra baixo, o que os põe emextrema vantagem”.

“Em Copacabana a coisa écalma. O bicho pega mesmo éem Bonsucesso, Olaria... O grossoé homicídio, gente encontradanas valas e espancamento. Sequer ver confusão, vá pra lá.Mas se eu fosse vocês não iria aessa hora”, acrescenta G. V.

Apesar de tudo, o sonho dopolicial militar B. C. está noolhar de todos os entre v i s t a d o s :“Eu só quero ter uma chance dee n v e l h e c e r, quero poder chegaraos 60 anos em paz”. A dúvidalevantada pelo ex-chefe daPolícia Civil do Rio de Janeiro ,Hélio Luz, no documentário No-tícias de uma guerra part i c u l a r,continua: será que há intere s s eda sociedade em ter uma polí-cia honesta, que não aceite pro-pina e que puna seriamente ojovem da zona sul usuário ded rogas?

Julho/Dezembro de 200320

“Em Copacabana acoisa é calma. O

bicho pega mesmo éem Bonsucesso,

Olaria... Se quer verconfusão, vá pra lá.Mas se eu fosse vocêsnão iria a essa hora”

G.V., policial militar