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1 VI Seminário do Programa da Pós-Graduação em Ciências Sociais UFRB GT 04 Gênero, Raça e Subalternidades “Tem minha cor?”: Breve estudo sobre raça e o mercado brasileiro de maquiagem Tássio da Silva Santos Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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VI Seminário do Programa da Pós-Graduação em Ciências Sociais – UFRB

GT 04 – Gênero, Raça e Subalternidades

“Tem minha cor?”: Breve estudo sobre raça e o mercado brasileiro de maquiagem

Tássio da Silva Santos

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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“Tem minha cor?”: Breve estudo sobre raça e o mercado brasileiro de

maquiagem1

SANTOS, Tássio da Silva

Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Resumo: Este trabalho pretende situar o corpo negro e perceber quando ele passa a ter

importância para o mercado consumidor, principalmente para a indústria de cosméticos.

Também será discutido como a imprensa juntamente com a cosmetologia foram

responsáveis pela padronização da beleza restrita a tez clara e o significado político dos

produtos destinados a pele negra. Portanto, tenta-se elucidar as seguintes questões:

Quando os negros de classe média contribuem para a segmentação do mercado no Brasil?

Como a valorização da estética negra complementa a luta antirracista? Qual a intenção

dos primeiros cosméticos voltados para afrodescendentes? Qual o panorama do atual

cenário brasileiro de maquiagem?

Palavras-chave: raça, beleza negra, cosméticos, maquiagem

Racismo, miscigenação e cor da pele

Ao entender de Guimarães (1999), podemos usar o termo “racismo” para designar

qualquer tipo de essencialismo ou naturalização que resultem em práticas de

discriminação social. Para tanto, a ideia de “raça”2 precisa estar empiricamente palpável

e não apenas emprestar um sentido figurativo ao discurso discriminatório, ao contrário,

seria mais adequado atribuir termos mais específicos à essas práticas excludentes.

1 Trabalho apresentado no VI Seminário da Pós-Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e

Desenvolvimento - realizado entre os dias 09, 10 e 11 de novembro de 2016, em Cachoeira, BA, Brasil.

2 O termo é utilizado pelas ciências sociais e referenciado pelo autor como um conjunto de diferenças

fenotípicas entre indivíduos e grupos humanos. As diferenças intelectuais, morais e culturais não podem

ser creditadas diretamente as diferenças biológicas, e sim aos as construções socioculturais e as condições

ambientais.

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Pierson (apud Guimarães, 1999) vai responsabilizar a miscigenação por diluir a

linha de cores ainda no período colonial e não deixar tão óbvias as raças no Brasil, como

acontece em outras partes do mundo. Algumas características da miscigenação brasileira

tornam esse processo particular e Pierson atribui isso as características dos portugueses.

A primeira delas seria o fato que portugueses estariam familiarizados com povos escuros

e, em grande parte, mestiços; segundo que havia uma maior tolerância e aceitação por

parte da Igreja aos casamentos inter-raciais; e terceiro que existia maior status social na

pele branca, o que fazia com que homens e mulheres procurassem parceiros mais claros.

Carneiro (2009) também deixa claro que a miscigenação alimenta o mito da

democracia racial brasileira uma vez que o discurso do relacionamento entre brancos,

negros e indígenas esconde o estupro praticado pelo colonizador europeu sobre as

mulheres negras e indígenas. Segundo a autora, a miscigenação ainda tem fortalecido uma

lógica racista de embranquecimento do país, onde se consolida uma hierarquia cromática

que coloca o negro retino na base e o branco, com todos os benefícios da cor da pele, no

topo.

Ter a pele branca significa estar mais próximo do ideal humano. Esse ideal é

referenciado pela indústria para pensar, criar e distribuir artigos que padronizam a cor da

pele e ignoram a diversidade dos tons. Roth (2016) questiona, por exemplo, a crença de

que a ciência e tecnologia são neutras a ponto de não poderem ser influenciadas por

fatores culturais – e aqui principalmente pela química da brancura (ROTH, 2016). Além

da indústria cosmética, que falaremos a seguir, a indústria visual também pode ser citada

como exemplo desse processo de padronização branca da pele.

A calibragem das câmeras fotográficas da Kodak usava apenas modelos brancas

para determinar a exposição e densidade dos tons de pele que seriam impressos. Cartões

acompanhavam os manuais de impressão fotográfica e eram conhecidos como “cartão

Shirley”, pois traziam a imagem de uma mulher de pele clara e vestindo roupas com auto

contraste. Muitas vezes, a palavra “normal” seguia os manuais para orientar os técnicos.

Quanto mais distante do “padrão Shirley”, ou seja, quanto mais escura for a pele, mais

próxima do preto a representação da pele seria.

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Foto 1: Olivier Le Brun, sem ano divulgado.

Esse tipo de preconceito que mensura quão danosa será a agressão levando em

consideração a cor da pele é chamado de colorismo ou pigmentocracia. Para Djokic

(2015), a diferença entre racismo e colorismo é que enquanto um se orienta pela raça, o

outro guia-se através do fenótipo. Mesmo sendo lida como negras, ter a pele mais clara

significa ser mais tolerada aos olhos da branquitude, apesar de não ocupar o lugar e nem

usufruir dos privilégios de uma pessoa caucasiana.

O colorismo dificulta e até mesmo impede completamente o acesso de

pessoas de pele escura a certos lugares da sociedade, o que

consequentemente dana ou impede o acesso delas à serviços que lhes

são de direito, enquanto cidadãos brasileiros. (DJOKIC, 2015, on-line)

Na sociedade racista e discriminatória, para serem toleradas, essas pessoas negras

são constituídas pelo mimetismo, uma espécie de camuflagem no reino animal que

assegura a sobrevivência e garante acesso a lugares aos quais foram antes excluídos.

Djokic (2015) cita como exemplo de mimetismo todas as técnicas para disfarçar a

negritude e torna-la assim menos perceptível, como alisamentos capilares.

Corpo negro consumidor

O corpo é constituído biologicamente e simbolicamente atrelado à cultura e

história, pois a localização social também é dada pela predisposição e manipulação de

diferentes partes do corpo (GOMES, 2002). Portanto, se estabelece aqui uma dialética,

pois ao mesmo tempo que ele carrega características inerentes ao ser humano, também

traz significados. Dessa forma, o corpo é entendido por diferentes crenças e sentimentos

que entregam desde a junção do mundo das representações sociais até o da natureza e

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suas materialidades. Devido a isso, não se deve apagar as motivações biológicas

intrínseca a todos os corpos e às quais a cultura atribui uma significação especial e

diferente: fome, sono, cansaço, sexo, dentre outras.

Segundo Rodrigues (1986), a cultura inibe ou exalta esses impulsos e seleciona os

que merecem importância e os que tendem a permanecer desconhecidos. Assim, à sua

maneira, a cultura dita normas em relação ao corpo que por sua vez será tratado com

castigos ou recompensas, até o ponto desses comportamentos apresentarem-se

naturalmente.

Gomes (2002) exemplifica a diferença cultural dos corpos com a chegada dos

africanos escravizados no Brasil. Como os escravos eram submetidos ao processo de

coisificação (MARTINS, 1999), o corpo negro era objetivado não só a condição escrava,

mas também a forma como os senhores se relacionavam com ele: castigos corporais,

açoites, mutilação, marcas de ferro e abusos sexuais. Para a autora, “a manipulação do

corpo, as danças, os cultos, os penteados, as tranças, a capoeira, o uso de ervas medicinais

para cura de doenças e cicatrização das feridas deixadas pelos açoites foram maneiras

específicas e libertadoras de trabalhar o corpo” (GOMES, 2002, p42).

Se a localização social é dada pela mediação do corpo no espaço e tempo em que

ele está inserido, a relação histórica do escravo com o corpo expressa muito mais do que

a ideia de submissão. Durante séculos de escravidão, a perversidade do regime escravista

materializou a forma como o corpo negro é visto na sociedade. As diferenças fenotípicas

entre os corpos serviram como argumento para que o colonizador branco europeu

justificasse suas intenções econômicas e políticas. Essas mesmas diferenças entre os

corpos de negros e brancos, que foram usadas para submeter o negro a um lugar de abjeto,

serviram para a formulação de um padrão de beleza e fealdade que está impregnada até

hoje.

Com a abolição escravocrata em 1888, Souza (1971) explana que o corpo negro

não foi inserido automaticamente na sociedade brasileira, pois não houveram ações para

prover os ex-escravos com recursos que os permitissem usufruir das novas oportunidades

enquanto libertos. O autor diz que a assimetria nas relações entre brancos e negros ainda

mostra quão desigual é o país, mesmo ao levar em conta o considerável número de negros

brasileiros que ascenderam a classe média enfrentando as barreiras impostas por

resquícios escravagistas.

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Com a ascensão social, Sansone (2000) acredita que os negros têm encontrado

uma forte maneira de expressar a cidadania através do consumo, uma vez que, durante

muito tempo, os afrodescendentes foram impossibilitados de concretizar esse ato.

Proibições em relação ao consumo (ostentoso) destinavam-se a

desumanizar e a marcar a exclusão. Não admira que ainda hoje os

direitos civis sejam comumente distribuídos em função do que se pode

consumir (...). O consumo, portanto, também é um marcador étnico,

bem como uma forma de oposição à opressão, uma maneira de, como

negro, fazer-se visto ou mesmo ouvido. (SANSONE, 2000, p2)

Até os anos 1990, Mira (2001) afirma que as variáveis do marketing na

segmentação de produtos delineavam o perfil dos consumidores por idade, sexo, classe

social e localização física, mas não pensavam na etnia. Tanto Mira (2001), quanto

Strozenberg (2007) apontam o início de mudanças quando novos critérios de gênero e

raça proliferam através de movimentos sociais pós-segunda guerra.

O processo de diferenciação do mercado consumidor negro acelerou na segunda

metade da década de 1990, mais precisamente em 1996, quando a agência paulista

Grottera divulga a pesquisa “Qual é o pente que te penteia? Perfil do consumidor negro

no Brasil” estimando haver mais de sete milhões de negros na classe média brasileira.

Nesse mesmo ano, em busca de novos segmentos comerciais, a editora Símbolo lança a

revista Raça Brasil, que se preocupava com o conteúdo afirmativo da questão racial e

reconstruía a autoestima através de textos e imagens positivas de afrodescendentes

(SANTOS, 2004).

Mas Strozenberg (2007) não acredita que a crescente classe média negra brasileira

tenha sido o único motivo para haver uma segmentação mais refinada do consumo. Um

segundo argumento é a importância do valor específico do produto no momento em que

o negro se reconhece nele. A autora ainda acredita que as reivindicações e denúncias das

organizações do Movimento Negro, que só tem ganhado espaço nos meios de

comunicação, pressionam a confecção de novos produtos.

Negritude valorizada

Para autores como Silva (1988), Bacelar (1989), Santos (1999) e Pereira (2010),

as décadas de 1970 e 1980 apontavam para o surgimento de movimentos políticos e

culturais que contemplavam o reconhecimento positivo em ser negro e solidificava o

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discurso de valorização da beleza negra. Aqui a naturalidade é posta em questão no

momento em que se deixa de lado a ideia de beleza cívica (GILL, 2004) e entra em cena

um contexto de afirmação que o belo é inseparável de qualquer raça. Neste momento, a

estética negra expressa intertextualidade em relação às imagens dominantes na estética

ocidental.

A estética negra é correspondente da cultura na construção da representação social

da beleza negra no Brasil. Segundo Gomes (2002), dois ícones são tomados como

expressões da identidade negra, o corpo e o cabelo. Esses ícones não podem ser

considerados simplesmente características biológicas porque possibilitam a construção

social, cultural, política e ideológica de um símbolo que perpassa a comunidade negra.

Portanto, ao referenciar a beleza negra, a discussão se aproxima de identidade negra, que

é vista aqui não só como um processo de percepção do próprio corpo, mas também como

o outro enxerga.

A ideia que um indivíduo faz de si mesmo, de seu “eu”, é intermediada

pelo reconhecimento obtido dos outros em decorrência de sua ação.

Nenhuma identidade é construída no isolamento. Ao contrário, é

negociada durante a vida toda por meio do diálogo, parcialmente

exterior, parcialmente interior, com os outros. Tanto a identidade

pessoal quanto a identidade socialmente derivada são formadas em

diálogo aberto. Estas dependem de maneira vital das relações dialógicas

com os outros. (GOMES, 2002, p3)

Ao considerar a construção histórica do racismo brasileiro, foi determinado ao

corpo negro o polo daquele que sofre o processo de dominação política, econômica e

cultural, enquanto ao branco um lugar dominante. Ler os traços negros como “ruins” e

“feios” é um tentáculo do racismo e da desigualdade social que recai sobre esses sujeitos.

Por isso, disfarçar essas características (com técnicas para afinar o nariz e lábios com

maquiagem, alisar o cabelo com química ou ainda usar cremes para o clareamento da

pele) pode significar a introjeção e tentativa do negro de sair desse lugar subalterno.

A partir desse ponto, Gomes (2002) estabelece uma zona de tensão onde culmina

um padrão corporal real e outro ideal. A autora entende como padrão ideal todas as

características do corpo branco, enquanto o padrão real são todas as características do

corpo negro. Emerge uma tensão ao cruzarmos esses padrões com os números do último

censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2014, que mostra

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53,6% da população brasileira como negra. Devido a essa tensão de padrão ideal e real,

as intervenções no corpo são mais do que uma questão de vaidade ou estética, é uma

questão identitária.

Para Pereira (2010), entre o final da década de 1970 e início de 1980, haviam

grupos que se autodenominavam inflexivelmente políticos e contrários a práticas

culturais, que são legitimamente reconhecidas como instrumentos importantes para a

mobilização política de setores da população negra. Sobre esse conflito de cultura versus

política, o autor traz para o centro da discussão a fala de Antônio Carlos dos Santos, o

Vovô, fundador do Ilê Aiê, o primeiro bloco afro do Brasil, onde ele acredita transmitir

informações através do apelo popular que um bloco de carnaval de rua proporciona. As

próprias lideranças Movimento Negro Unificado (MNU)3 já explicitaram a necessidade

de criar uma luta política “em todo lugar onde o negro vive”, inclusive em nichos culturais

de valorização a estética negra.

De fato, um dos maiores problemas do Brasil ainda é o genocídio do povo negro.

Segundo o relatório Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial

2014, os jovens negros são as principais vítimas de homicídios e, em média, têm 2,5 vezes

mais chance de morrer do que uma pessoa branca. No Nordeste, região com maior

distância entre a taxa de homicídios de jovens negros e brancos, esse número chega a

quase 4 vezes. Porém, tecer críticas de que a valorização da estética negra é superficial e

deixa de lado problemas urgentes, é não compreender a complexidade do racismo que

transpassa várias esferas.

De acordo com Batista (2016), o racismo precisou operar em várias dimensões

para que a negritude virasse sinônimo de feiura e estivesse ligada ao que há de pior no

mundo. Como já apontado por Rodrigues (1986), a cultura impulsiona aspectos relevantes

e desmerece o que não precisa de espaço, assim como o processo de desvalorização do

corpo negro que fixou no imaginário social brasileiro a ideia de que a negritude é

naturalmente inferior e ridícula. “E é aí que entra a importância da valorização da estética

negra, não como algo acessório, mas fundamental e complementar para combater o

racismo.” (BATISTA, 2016, on-line).

3 Em junho de 1978 foi criado por um grupo de militantes, em São Paulo, o Movimento Unificado Contra

a Discriminação Racial. No ano seguinte, ela passou a se chamar apenas Movimento Negro Unificado. A

organização existe em vários estados do país e tem sido responsável pela difusão da noção de “movimento

negro” em diversas entidades e ações.

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Se devido ao processo de dominação do colonizador branco europeu e ao racismo

instaurado em diversas esferas sociais (GOMES, 2002), o corpo negro está situado em

um polo subalterno e a estética negra se reformula para ser usada como instrumento na

luta antirracista (SILVA 1988; BACELAR 1989; SANTOS 1999; e BATISTA, 2016),

vejamos a seguir como o mercado de cosméticos étnicos surgiu e com qual sentido tinha

os produtos destinados ao público negro em seu surgimento.

2.4 Medicalização da beleza

Para Xavier (2012), a indústria da beleza não isolava racialmente suas produções

e a preocupação com a compleição da pele nunca esteve restrita ao mercado consumidor

negro. Portanto, para entender a toda a complexidade da cosmética negra, faz-se

necessário analisar brevemente a mensagem dos artigos que cultivavam a ideia do belo

exclusivo à pele caucasiana.

O capitalismo já enxergava a mulher como consumidora no início do século XX

e, nesse momento, a medicina compactuava com o movimento eugênico, uma filosofia

que mirava na manutenção da pureza racial branca, e com o higienismo, teoria europeia

dedicada a melhorar as condições de salubridade no espaço urbano. Os artigos – sabonetes

faciais principalmente – estavam conectados com as teorias médicas e assim contribuíam

com a criação de uma “nova beleza” através do asseio da tez clara. Desse modo, as

empresas de cosméticos sanitarizavam a beleza e colocavam a questão de ser bonita não

como um capricho, mas como uma questão de limpeza e preservação da raça branca.

A pele era entendida como um sujeito a ser manipulado e limpá-la significava,

mais do que qualquer outra coisa, clareá-la. As propagandas de produtos de cuidados de

pele silenciavam a diversidade racial e direcionavam seu conteúdo para o público

caucasiano. Porém, se para o público branco a principal questão era cuidar, manter e

preservar, os produtos para tez negra serviam para outro propósito: clarear, anular e

remover.

Bleaching

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Foto 2: Propaganda “Removedor de Pele Negra”. Fonte: The Colored American

Magazine: an illustrated monthly devoted to Literature, Science, Music, Art, Religion,

Facts, Fiction and Traditions of the Negro Race, set.-out. 1902, s/p.

Removedor de Pele Negra – Registrado no Serviço de Patentes dos

EUA – um maravilhoso clareador de pele e alisador de cabelo. Um

maravilhoso clareador de pele (sic). Uma compleição COMO

PÊSSEGO obtida se usado de acordo com as instruções. Tornará a pele

de uma pessoa negra ou brown quatro ou cinco tons mais clara e a de

uma mulata perfeitamente branca. Em quarenta e oito horas um ou dois

tons já serão visíveis. O produto (...) realça o branco e a pele permanece

bonita mesmo sem o uso contínuo. Vai remover rugas, sardas, manchas

escuras, espinhas ou inchaços, tornando a pele mais suave e macia.

Pequenos buracos, varíolas (sic), bronzeados (sic) e manchas são

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removidos sem prejuízos para a pele. Quando você conseguir a cor

desejada pare de usar a preparação.

O anúncio acima é referente ao promissor clareador de pele negra da empresa

Crane & Co, que circulava no início do século XX nos jornais estadunidense voltados ao

público afrodescendente. O produto é resultado da síndrome de bleaching, termo cunhado

por Ronald Hall que definia um sistema de valores e linguagem mantidos por uma

economia que propunha o clareamento artificial da pele através do uso sistemático de

químicas a fim de apresentar novas classificações cromáticas. Assim como Removedor

de Pele Negra, vários outros produtos tinham a função de aniquilar a negritude. Ainda

hoje é possível encontrar produtos como o Removedor de Pele Negra. É o caso do

Whitenicious by Dencia, que possui uma fórmula polêmica por ser eficaz no que

promete.4

Devido à falta de referência, não é possível chegar no momento exato do

surgimento de cosméticos para pele negra. Porém, no início do século passado, onde se

concentram as análises, Xavier (2012) afirma que a proposta de corrigir, maquiar, clarear

e remover a tez escura foi uma bandeira hasteada pela indústria cosmética negra e, com

isso, aniquilar todos os problemas que a compleição trazia.

Os primeiros cosméticos destinados a mulher negra5 estavam baseados na

perspectiva de autoestima como responsável pelo sucesso profissional, acadêmico e nas

relações interpessoais (Rosernberg apud Trzesniewski, Donnellan & Robins, 2003).

Surge então uma proposta de criação de “beleza cívica” (Gill, 2004), um conceito calçado

pelo objetivo de revitalização da imagem e melhora da aparência. Nas propagandas, as

empresas de cosméticos colocavam as mulheres negras numa luta por uma ascensão

social e respeitabilidade por intermédio da reconstrução da beleza física e moral

referenciadas pela pele clara e cabelo bem penteado.

Dois artigos eram muito comuns nos anúncios dessas marcas: cremes de

clareamento para o rosto e corpo e tônicos de crescimento capilar. A ideia era divulgar o

4 Frank White ficou conhecido na internet por ter embranquecido usando o creme e apresentado os

resultados em seu canal no YouTube: https://youtu.be/iXQlEeGJ04w

5 A conjugação do gênero feminino e as ilustrações de mulheres revelava o público alvo das campanhas,

mas não descarta a possibilidade de qualquer outro gênero usufruir dos artigos.

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que havia de mais novo, moderno, civilizado e adequado para as negras da pós-abolição.

Por trás dos produtos, os comerciais ofereciam respeitabilidade através da boa aparência

e deixava claro que quanto mais claro a consumidora pudesse ficar, menos discriminação

ela iria sofrer. A beleza deixa então de ser um atributo natural e torna-se um bem

adquirido.

Os produtos sugeriam a solução para o problema da feiura apresentando artigos

para as mulheres tornarem-se mais bonitas e coloca isto como aspecto primordial na vida

delas. Aqui é interessante pensar que as marcas nunca estiveram dispostas ao

aperfeiçoamento ou potencialização dos traços da negritude, e sim, garantir o

embelezamento eliminando a cor escura. Dessa forma, os anúncios permitiam as leitoras

sonharem com um futuro melhor, livre de todos os problemas que a epiderme negra

trazia6.

Cabe novamente reconhecer que, diante dessa abordagem transversal entre beleza,

raça e gênero, a busca do belo nunca caminhou ao lado da futilidade, pois a história da

indústria cosmética destinada aos negros mostra questões políticas. Portanto, mais de um

século depois de seu surgimento, faz-se necessário traçar um perfil do mercado de beleza

no Brasil, mais precisamente sobre maquiagem.

“Tem minha cor?”

Essa é uma pergunta comum que uma pessoa negra faz ao entrar em uma loja de

maquiagem. Enquanto dono de uma loja virtual e também consumidor negro, sei que, às

vezes, a resposta negativa vem acompanhada do constrangimento de não poder consumir.

O mercado de embelezamento do corpo apresentou um crescimento vigoroso em relação

aos outros setores da economia nacional. Os dados da Associação Brasileira da Indústria

de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (ABIHPEC) mostram que, nos últimos

cinco anos, a indústria geral recuou 1,9%, enquanto o segmento de beleza evoluiu 7%. O

relatório também mostra que essa fração do mercado lucrou 20 vezes mais o PIB

brasileiro no mesmo período. Segundo a Euromonitor, o Brasil aparece em 4° no ranking

mundial de consumidores desses artigos e maquiagem é o 5° item mais adquirido dentro

do segmento.

6 A pele escura privava os indivíduos de exercerem direitos básicos de cidadania, como frequentar

restaurante, sentar-se à praça, estudar, utilizar transportes, banheiros e bebedouros públicos, entre outros.

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Dada a relevância mercadológica, faz-se importante analisar como esses produtos

tem se apresentado para o público consumidor negro e discutir sobre as principais

questões que eles trazem, como a questão do preço e da enxuta cartela de cores. Para

tanto, foi estudado o mostruário de seis marcas de maquiagem que operam em solo

nacional, sendo elas três brasileiras (Natura, O Boticário e Vult Cosmética), duas

estadunidenses (Avon e Mary Kay) e uma canadense (MAC Cosmetics). A ABIHPEC

não divulga o faturamento das empresas de cosméticos, então, para elegê-las, foi levando

em consideração quão popular são as marcas no sistema de buscas Google.

Através da análise dos artigos de maquiagem disponíveis no mês de junho de 2016

e dos preços no mesmo período, chega-se a seguinte questão: quão mais escura a pele,

maior a dificuldade em comprar um kit básico de maquiagem7, com base, corretivo e pó;

e mais dinheiro precisa-se desembolsar para obter esses produtos. Das seis marcas

examinadas na pesquisa, duas não atendiam às peles retintas e os produtos nas outras

marcas custavam mais caros porque faziam parte de linhas menos acessíveis – com

exceção da MAC Cosmetics, que tem o mesmo preço para peles claras e retintas. Como

pensa Sansone (2000), quanto mais escura for a pele, mais excluído do sistema capitalista

que entende como uma forte maneira de expressar a cidadania consumindo

ostensivamente.

Apesar de fugir da análise em questão, é curioso a gente perceber como as marcas

estrangeiras não trazem para o Brasil a cartela completa de cores. Se Lupita N’yongo,

atriz e garota propaganda da linha de maquiagem da marca francesa Lancôme, chegasse

no Brasil, ela não encontraria a cor da sua base porque a empresa preferiu não trazer o

tom mais escuro do produto. Essa marca é apenas um exemplo do que acontece com

várias outras que ignoram tamanha diversidade de tons existentes no país.

A pesquisa também comprova a modéstia das marcas em distribuir os tons

igualitariamente para peles claras e escuras. Das seis marcas analisadas, apenas a MAC

Cosmetics não oferecia mais opção para peles brancas em todas as linhas. Esse

diagnóstico justifica outro problema de consumidores negros de maquiagem: comprar

mais de um tom para misturar e chegar no tom exato da pele. Essa falta de

7 Não foram analisados outros itens de maquiagem porque, não que outros produtos não estejam no mercado

direcionados a pele negra, mas pelo fato de crer que não há adequada para pele negra. Portanto, a paleta de

corres de batons, blushes ou sombras, por exemplo, foram irrelevantes para a pesquisa.

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representatividade também se aplica aos rostos majoritariamente brancos que aparecem

nas páginas das revistas (para as marcas que trabalham com venda de catálogo).

Também vale ressaltar que as marcas nacionais vêm mudando. Timidamente, elas

têm abrangido a escala de cores de seus produtos para atender desde uma pessoa muito

clara, até uma muito escura. Exemplo desse quadro é o recente lançamento da linha Color

Adapt de Make B. O Boticário que só no fim do ano passado passou a atender as peles

retintas. A reformulação da já existente base Una de Natura no primeiro semestre deste

ano agora disponibiliza igualitariamente 18 tons. A importância de ter muitas cores

disponíveis para pele negra recai no que Carneiro (2004) acredita ser um reconhecimento

da diversidade multicromática da negritude, independentemente da miscigenação de

primeiro grau decorrente de casamentos inter-raciais.

Foto 3: Preços do kit de maquiagem para pele clara.

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Foto 4: Preços do kit de maquiagem para pele escura. Uma pessoa de pele escura

seria impossibilitada de comprar o kit completo na Vult Cosmética porque a marca não

tem corretivo para o tom de pele.

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Foto 5: Preços do kit de maquiagem para pele retinta. Uma pessoa retinta seria

impossibilitada de comprar o kit completo na Vult Cosmética porque a marca não tem

nada para o tom de pele e em O Boticário não encontraria pó.

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Referências:

BACELAR, Jeferson. Etnicidade: ser negro em Salvador. Penba, 1989.

BATISTA, Robin. Estética negra empodera, sim. Porque não dá para enfrentar o racismo

quando você ainda se odeia. Disponível em: http://www.geledes.org.br/estetica-negra-

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