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VI FALA ESCOLA Diálogo e conflito: por uma escuta alteritária 1 MANIFESTO DE REVERÊNCIA AO MESTRE PAULO FREIRE 2013-2014 Palavrinha No início de 2013, a equipe de organização do VI FALA outra ESCOLA, seminário bianual que acontece na Faculdade de Educação da Unicamp, organizado pelo GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, propôs que eu criasse uma página informativa sobre o Professor Paulo Freire, homenageado especial do VI FALA. Com esta proposta, surgiu a ideia de organizar um manifesto com depoimentos de todos os que quisessem narrar o que aprenderam com Paulo Freire. Fiquei responsável pela reunião e publicação do manifesto que é, por enquanto, este texto parcial e aberto a outras contribuições. Futuramente é provável que venha a se constituir numa publicação impressa, mas isto ainda não sabemos. Escreva também você, se desejar, publique na página www.facebook.com/groups/FALAoutraESCOLAeFALAMtodosc omPAULOFREIRE e envie para este endereço eletrônico: [email protected] Saudações pedagógicas! Rosaura Soligo

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VI FALA ESCOLA

Diálogo e conflito: por uma escuta alteritária

1

MANIFESTO DE REVERÊNCIA AO MESTRE PAULO FREIRE

2013-2014

Palavrinha

No início de 2013, a equipe de organização do VI FALA outra ESCOLA, seminário bianual que acontece na Faculdade de Educação da Unicamp, organizado pelo GEPEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Continuada, propôs que eu criasse uma página informativa sobre o Professor Paulo Freire, homenageado especial do VI FALA.

Com esta proposta, surgiu a ideia de organizar um manifesto com depoimentos de todos os que quisessem narrar o que aprenderam com Paulo Freire. Fiquei responsável pela reunião e publicação do manifesto que é, por enquanto, este texto parcial e aberto a outras contribuições.

Futuramente é provável que venha a se constituir numa publicação impressa, mas isto ainda não sabemos.

Escreva também você, se desejar, publique na página www.facebook.com/groups/FALAoutraESCOLAeFALAMtodoscomPAULOFREIRE e envie para este endereço eletrônico: [email protected]

Saudações pedagógicas!

Rosaura Soligo

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Diálogo e conflito: por uma escuta alteritária

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Abrimos este manifesto com as belezuras nos enviou o professor e escritor Carlos Skliar. Vieram em espanhol e aqui estão em nossas duas línguas, para que não fiquem dúvidas sobre as ideias que compartilhamos.

Educar como caminhar. Encontrar o próprio passo, o próprio peso e a própria leveza, a breve e fugaz

medida dos átomos, as circunferências e as páginas escritas ou ainda em branco. Apartar-se de si

mesmo, daquilo que se é, daquilo que se sabe: o idêntico a si mesmo provoca apenas asneiras e

saturação. Ir para o mundo: às tumbas dos poetas, aos céus próximos, ao passado menos recente, à

duração do frágil, aos gestos que ainda estão imóveis. Educar como retirar-se, afastar-se de casa, longe

de todo ponto de partida. Educar como respirar: nada se aprende da asfixia. Educar como escapar: da

apatia, da tirania, da intimidação. Educar como voltar a um lugar onde nunca estivemos antes.

Educar como caminar. Encontrar el propio paso, el propio peso y la propia liviandad, la breve y fugaz medida de los átomos, las circunferencias y las páginas escritas o todavía blancas. Quitarse de uno, de lo que yo se es, de lo que yo se sabe: lo idéntico a sí mismo no provoca sino necedad y hartazgo. Irse al mundo: a las tumbas de los poetas, a los cielos próximos, al pasado menos reciente, a la duración de lo frágil, a los gestos que todavía están inmóviles. Educar como retirarse, irse lejos de casa, lejos de todo punto de partida. Educar como respiración: nada se aprende del ahogo. Educar como escapar: de la apatía, de la tiranía, del vozarrón. Educar como regresar a ese sitio donde nunca estuvimos antes.

Ensinar como mostrar, não como torção que leve à dor: mostrar a árvore que ainda não existe, a

trajetória invisível de um som até sua inesperada palavra, a rebelião de uma ideia e suas cinzas, o

instante em que a chuva é posterior à sua pronúncia. Ensinar como demonstrar, não como acusação de

ignorância: demonstrar até o mais distante e o mais próximo, dar-se conta do mínimo e esquecer o

absoluto, olhar para os lados como quem submerge em turbulências. Ensinar como dar, não como

mesquinhez desfeita: dar o que chega a nós, o que não é nosso, o que ainda não nasce nem morre, dar a

voz que já se tinha no instante que não se sabia. Ensinar como partir, não como chegada a um porto.

Enseñar como mostrar, no como torsión hacia el dolor: mostrar el árbol que aún no existe, la trayectoria invisible de un sonido hasta su inesperada palabra, la rebelión de una idea y sus cenizas, el instante en que la lluvia es posterior a su semblanza. Enseñar como señalar, no como acusación de ignorancia: señalar hacia lo más lejano y lo más próximo, darse cuenta de lo mínimo y olvidar lo absoluto, mirar hacia los lados como quien se sumerge en turbulencias. Enseñar como dar, no como mezquindad partida: dar lo que nos viene, lo que no es nuestro, lo que todavía no nace ni muere, dar la voz que ya se tenía en el instante que no se sabía. Enseñar como partir, no como llegada a puerto.

Nota: Carlos Skliar escreveu e Adail Sobral foi o tradutor que trouxe os textos para o português.

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Diálogo e conflito: por uma escuta alteritária

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Li Paulo Freire quando estava na Faculdade. Estávamos em 1975 e eu tinha 17 anos. Quando terminei

a graduação me dediquei vários anos à educação popular, à alfabetização de adultos e Freire estava

sempre com a gente. Agora, passados tantos anos, Freire continua presente, de maneiras distintas. Em

novembro do ano passado no Rio, na UERJ, tive a oportunidade de mostrar, a alguns colegas belgas,

uma exposição fotográfica das campanhas de alfabetização na qual aparecia, às vezes, a figura de Freire.

Naturalmente, foi uma boa oportunidade para discutir alguns aspectos da sua obra e da sua enorme

influência na nossa geração, não só na América Latina, inclusive. Faz poucos meses, na minha casa em

Barcelona, lendo algumas entrevistas com Ivan Illich, a amizade entre Ivan e Freire, apesar das

diferenças, me fez pensar outra vez nesta época maravilhosa em que pensamento, militância e a

capacidade de experimentação caminhavam numa só direção – aquela época de mulheres e de homens

valentes e generosos, que se atreviam. Faz poucas semanas em São Paulo, conversando com Madalena

Freire, lhe falei do que para mim, continua vivo da obra de seu pai, o pensamento profundo das

relações entre a linguagem e as formas de “fazer mundo” e, sobretudo, de “ampliar possibilidades do

mundo”. Também o modo como a língua constitui subjetividades e formas de vida. As relações entre

linguagem, experiência e subjetividade, que tenho trabalhado, foram pensadas seriamente por Paulo

Freire. E agora que percebo, cada vez com mais clareza, que estamos assistindo o final da era alfabética,

portanto, o final da utopia ilustrada de uma sociedade de leitores e, por isso mesmo, o fim da instituição

que se encarregou – ou se pretendia que se encarregasse – desta utopia, o fim da escola – da escola

pública – e o fim também da educação popular, a figura de Freire se dilui e se engrandece a um só

tempo. Não só foi, quem sabe, o último pedagogo de raça (antes que os discursos educativos caíssem

nas mãos dos experts, especialistas e professores; antes que a experimentação se convertesse em

inovação e, portanto em mercadoria; antes que a questão política, em educação, se desvirtuasse em

educação para a cidadania e, portanto se anunciasse a partir do Estado), mas também foi o último para

o qual a leitura e escrita constituíam ainda o cerne de uma aposta política, uma aposta vital e uma

aposta, definitivamente, humana. Existe uma parte da obra de Paulo Freire que está completamente

datada e que, por isso, está desgastada. Já é, claramente, histórica. Mas existe outra parte, provavelmente

mais nobre, que continua sendo jovem, inteligente, sensível, generosa, corajosa, e felizmente

inspiradora. É preciso voltar a ler Paulo Freire! Melhor dizendo, e mais humildemente, é preciso

colocar-se em condições de voltar a compreender Paulo Freire! Ainda que eu duvide que estejamos à

altura.

Jorge Larrosa (texto traduzido por Tânia Villarroel)

Leí a Paulo Freire cuando estudiaba en la Facultad. Era en 1975 y yo tenía 17 años. Cuando acabé la graduación me dediqué varios años a la educación popular, a la alfabetización de adultos, y Freire estaba siempre con nosotros. Ahora, pasados tantos años, Freire continúa presente, de modos diversos. En noviembre pasado en Río, en la UERJ, tuve la oportunidd de mostrar, a unos colegas belgas, una exposición fotográfica sobre las campañas de alfabetización

en el que aparecía, a veces, la figura de Freire. Naturalmente, fue una buena ocasión para discutir algunos aspectos de su obra y de su enorme influencia en nuestra generación, y no sólo en América Latina. Hace pocos meses, en mi casa de Barcelona, leyendo unas entrevistas con Iván Illich, la amistad entre Illich y Freire, a pesar de las diferencias, me hizo pensar otra vez en esa época maravillosa en la que el pensamiento, la militancia y la capacidad de experimentación iban juntas, aquella época de mujeres y de hombres valientes y generosos, y que se atrevían. Hace pocas semanas, en Sao Paulo, conversando con Madalena Freire, le hablé de lo que, para

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mí, continúa vivo de la obra de su padre, el pensamiento profundo de las relaciones entre el lenguaje y las maneras humanas de “hacer mundo” y, sobre todo, de “abrir posibilidades de mundo”. Así como también el modo como la lengua constituye subjetividades y formas de vida. Las relaciones entre lenguaje, experiencia y subjetividad, que yo he trabajado, fueron pensadas rigurosamente por Paulo Freire. Y ahora que veo, cada vez con más claridad, que estamos asistiendo al final de la era alfabética y, por tanto, al final de la utopía ilustrada de una sociedad de lectores y, por tanto, al final de la institución que se encargó, o que se pretendió que se encargara, de esa utopía, al final de la escuela, de la escuela pública, y al final también de la eeducación popular, la figura de Freire se difumina y se agiganta al mismo tiempo. No sólo fue,

tal vez, el último pedagogo de raza (antes de que los discursos educativos cayeran en manos de expertos, especialistas y profesores, antes de que la experimentación se nos convirtiera en innovación y, por tanto, en mercancía, antes de que la cuestión política, en educación, degenerase en educación para la ciudadanía y, por tanto, se enunciase desde el estado), sino que fue también el último para el que la lectura y la escritura constituían aún el corazón de una apuesta política, una apuesta vital y una apuesta, en definitiva, humana. Hay una parte de la obra de Freire que está claramente datada y que, por tanto, ha envejecido. Ya es, claramente, historia. Pero hay otra parte, quizá la más noble, que continúa siendo joven,inteligente, sensible, generosa, valiente y felizmente inspiradora. ¡Hay que volver a leer a Freire! O, mejor dicho, y más humildemente: ¡Hay que ponerse en condiciones de volver a leer a Freire! Aunque dudo de que estemos a la altura.

Jorge Larrosa

Bakhtin, Paulo Freire e os fantasmas da historiadora

Fiquei pensando no que escrever sobre o que aprendi com Paulo Freire, embatucada. Paulo Freire foi

para mim uma referência, como Arraes, que queríamos/esperávamos que voltasse, na Anistia, quando

eu era adolescente. Antes, bem antes, era parte de algumas conversas de minha mãe, e não sei bem

quando, nos anos 70, da biblioteca lá de casa. Li pedaços de Cartas à Guiné Bissau, naqueles anos. E,

principalmente, ele era parte bakhtiniana do meu afeto pela minha professora de Educação Moral e

Cívica, no Ensino Médio, antropóloga, orientanda do Gadotti, lá por volta de 1977, e de meu espanto

continuado em suas aulas, formadas de diálogos horizontais, persistentes, que resistiram a todas as

provocações e restrições imagináveis, durante todos os anos do colegial.

Isso num lugar em que os considerados melhores professores reprovavam alunos por dois décimos

faltantes na nota do exame, e em que podiam assediar os alunos com a maior desfaçatez: eu me lembro

de, em uma manhã, ouvir do professor de química que "você, você, você e você estão na minha lista

negra! não vão passar de ano!". Isso porque, com compromissos no centro cívico da escola, eu andava

chegando atrasada na sua aula, embora fosse uma aluna quieta (demais) e disciplinada.

Já nas primeiras palavras de 'Cartas à Guiné Bissau' encontrei uma fala que me trouxe sentidos

adormecidos, quando ele diz

quão importante foi, para mim, pisar pela primeira vez o chão africano e sentir-me nele como quem

voltava e não como quem chegava. Na verdade, na medida em que, deixando o aeroporto de Dar es

Salaam, há cinco anos passados, em direção ao “campus” da universidade, atravessava a cidade, ela ia se

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desdobrando ante mim como algo que eu revia e em que me reencontrava. Daquele momento em

diante, as mais mínimas coisas – velhas conhecidas – começaram a falar a mim, de mim. A cor do céu, o

verde-azul do mar, os coqueiros, as mangueiras, os cajueiros, o perfume de suas flores, o cheiro da terra;

as bananas, entre elas a minha bem amada banana-maçã; o peixe ao leite de coco; os gafanhotos

pulando na grama rasteira; o gingar do corpo das gentes andando nas ruas, seu sorriso disponível à vida;

os tambores soando no fundo das noites; os corpos bailando e, ao fazê-la, “desenhando o mundo”, a

presença, entre as massas populares, da expressão de sua cultura que os colonizadores não conseguiram

matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo, tudo isso me tomou todo e me fez perceber que eu era

mais africano do que pensava.

Naturalmente, não foram apenas estes aspectos, para alguns puramente sentimentalistas, na verdade,

contudo, muito mais do que isto, que me afetaram naquele encontro que era um reencontro comigo

mesmo.

A vitalidade dos saberes populares, sua dimensão ampla, em que se mesclam afeto, conhecimento e

relação dialógica com a cultura, seu caráter de conhecimento (sem aspas), em nada menor do que o da

então, ainda, chamada alta cultura, saberes muitas vezes milenares, com os quais o pesquisador aprende

e dialoga, esses são os ecos que encontro, nessa leitura de hoje, dessas minhas primeiras experiências

com Paulo Feire.

Aprendizagens políticas, que guiaram todas as minhas escolhas de pesquisa na graduação, e mesmo

antes, na documentação de narrativas históricas populares junto a um grupo do IA-Unicamp. Aí e

depois, essas aprendizagens viveram em muitas conversas, fotos, pesquisas, leituras, primeiro na cantina

e na antropologia (que na História, até lá por 83, o marxismo ortodoxo era rei, até Thompson revirar os

espíritos de uns e outros...) Se a política institucional daqueles dias era hierárquica e opaca, os

agrupamentos populares e de outras vozes culturais eram vivos, fortes, cheios de utopias em meio a suas

contradições e conflitos. Como lembrou Larrosa, também adolescente naqueles dias, essa pergunta

sobre Paulo Freire

me hizo pensar otra vez en esa época maravillosa en la que el pensamiento, la militancia y la capacidad de experimentación iban juntas, aquella época de mujeres y de hombres valientes y generosos, y que se atrevían.

Depois, muito depois, para encurtar a história, reencontrei a voz de Paulo Freire na da minha querida

professora Carolina, e suas vozes me conduziram pelo mestrado-doutorado, a reinventar palavras para

repensar a aula, a leitura e os documentos, dialogicamente, trazendo saberes, memórias, utopias,

reflexão docente, discente e plural, em narrativas e na escrita de histórias e experiências vividas.

Narrativas, escritas e experiências percebidas em suas contradições, ambivalências e conflitos, em suas

dimensões singulares e sociais, dialogando com sujeitos historicamente situados no tempo e no espaço.

E agora, no GEPEC, aprendendo/refletindo sobre como reinventar a aula, e a mim como docente,

encontrei, um tanto espantada, trançado em nossas memórias do passado, e em nossas memórias do

futuro, Paulo Freire, nas palavras da Corinta, na mesa de abertura do FALA OUTRA ESCOLA, que me

fizeram chorar de saudade do tempo dos livros encapadinhos para ficarem discretos, quando era tabu

ler Paulo Freire, em que éramos tão jovens, e também, e principalmente, quando descobri, ao longo

desse encontro, tantas, tantas experiências nas quais, como lembrava Larrosa com saudade,

pensamento, militância e capacidade de experimentação vêm andando juntos, na escola, nessa nossa

época de mulheres e homens valentes e generosos, que estão se atrevendo a reinventar o mundo,

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criando memórias do futuro fortes e plenas de utopias. Então, continuo aprendendo com as palavras de

Paulo Freire, bakhtinianamente, com meus fantasmas que aparecem nas palavras e nas coisas. Coisas de

historiador, que vê fantasmas pra todo lado, o ontem no hoje, o eu no outro, o ausente no atual.

Adriana Carvalho Koyama - GEPEC

Professor,

Tu me ensinaste uma lição de toda vida, âncora das outras que contigo aprendi depois. Me ensinaste

que respostas para perguntas que não existem raramente são respostas, tampouco tem alguma utilidade

real. Somos feitos, cada qual, da própria história que temos e a partir dela é que aprendemos. Por mais

sublimes que sejam os propósitos, respostas bem intencionadas a perguntas inexistentes podem até soar

generosas, mas a rigor são autoritárias, pois desconsideram o outro que o outro de fato é. Para conhecer

de algum modo o outro, é preciso tentar se deslocar e se pôr em seu lugar. E isso não se faz sem um

olhar sensível, uma escuta atenta e alguma paciência. Se as perguntas não existem como é nosso desejo,

o jogo possível será tentar gestá-las (somente tentar), para que elas nasçam e se multipliquem de modo

que nossas desejadas respostas possam enfim cumprir sua vocação. O desafio em qualquer caso será

sempre saber a hora de dizer, de calar ou de fertilizar possíveis. Isso aprendi contigo, isso tudo me

formou, isso tudo me ajudou a ser quem sou.

Rosaura Soligo - GEPEC

Conheci Paulo Freire quando estudava Pedagogia na Unicamp. Tive a oportunidade de vê-lo e ouvi-lo

em uma aula na graduação. Não da minha turma, mas de uma mais adiantada. Ouvi histórias de suas

vivências na África e nos Estados Unidos. Também tive oportunidade de ouvi-lo e vê-lo, de pertinho,

quando ele foi na escola em que eu trabalhava. Sua fala foi sobre a responsabilidade do ato de educar as

novas gerações e a necessidade de amorosidade no ato educativo. Foi lindo e gratificante ouvi-lo dizer

com tantas palavras cotidianas sobre a importância da ação de educar na condição de professor! Difícil

esquecer, e muito bom lembrar, para este momento, o carinhoso sorriso que ele dirigia a todos que o

escutavam... Singela homenagem a esse grande educador e profissional professor!

Guilherme V. T. Prado - GEPEC

Paulo Freire nos deixou um exemplo de relação entre teoria e prática. Um autor a ser revisitado,

sempre. Desbastados alguns de seus livros das condições imediatas de sua produção, resta um núcleo

duro inspirador e transformador, a nos mostrar que estar atento ao presente visando o futuro – um

modo esperançoso de estar no mundo com os outros – transforma reflexões imediatas e mediatas em

princípios aplicáveis a outros momentos e a outros contextos. Nas horas de desalento, de desesperança,

sempre lembro o homem Paulo Freire, do amigo com quem tive a oportunidade de conviver, de

trabalhar em sala de aula e de estudar o presente vivido como fonte de construção de um futuro outro: a

esperança retorna e vou em frente.

João Wanderley Geraldi

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Paulo Freire e meu pai (José Aloísio Aragão) trabalharam juntos em Brasília, no Ministério da

Educação, logo que a capital federal teve início. Eram coetâneos e partilhavam a defesa pelo ensino

público, laico, gratuito e de qualidade.

Em 1984, tive o privilégio de ser sua aluna em um curso de Pós-graduação que ele ministrou na

Unicamp – Educação Popular e Movimentos Sociais. Éramos aproximadamente 70 alunos entupidos

em uma sala de aula, sentados onde coubesse e, lá vinha ele, cumprimentando a todos e com um belo

sorriso. Entrava na classe, passando por meio daquele público ávido por ouvi-lo, e nos perguntava:

sobre o que iremos discutir hoje? E várias eram as possibilidades e sugestões oferecidas. Parecia que ele

não havia preparado a aula ou a temática que seria discutida? Não havia mesmo! Mas, por 3 horas,

dialogávamos com ele sobre um dos temas sugeridos. Preciso confessar que eu não dialogava sobre

nada: só ficava ali, quietinha, bebendo suas palavras e me sentindo tão abextada por tamanha tietagem a

um ídolo, emudecida, anotando tudo o que ele dizia, tentando, um dia, fazer com que fossem minhas as

suas palavras...

No final do curso de 1984, fomos todos os seus alunos almoçar em um restaurante dentro de um posto

de gasolina nas proximidades da Unicamp, que naquele dia, oferecia feijoada. Só então, tive coragem de

ir ter com ele e conversar sobre meu pai... Que saudade do Aragão, disse ele... E falou, por alguns

minutos o que haviam vivido juntos antes e na época do golpe militar...

Não sei se eu sei focalizar o que aprendi com Paulo Freire... Talvez, a maior aprendizagem que tenha

tido foi mesmo em relação à postura que ele tinha com seus alunos, uma relação de amorosidade, de

respeito e de profunda admiração por tudo o que dizíamos... Isto, ninguém tira de dentro de mim.

Ana Aragão - GEPEC

Paulo Freire: o pensador que eu rejeitei por intransigência descabida!

Falar de Paulo Freire! quem me dera! Não posso mesmo, por absoluta falta de competência e porque

"desprezei" suas ideias, muitas vezes.

Nunca fui estudiosa de sua obra e nem sei dizer bem o por quê disso. É provável que estava muito

confusa com tudo o que se me apresentava naquele momento, pois renegava todo pensamento cristão e

iniciava um engajamento no pensamento político marxista (amplo).

Participava dos CPC's em São Paulo e este tinha uma concepção muito diferente dos MCP, dos quais

Paulo Freire fazia parte. Rejeitava a AP e tudo o que tinha um cunho cristão/católico. Que absurdo! Em

1968, quando acampada na Rua Maria Antonia com os "excedentes" em busca de uma vaga na USP, já

que havíamos sido aprovados no vestibular oral e escrito e não podíamos estudar por falta de vagas, caiu

em minhas mãos um livro de Paulo Freire (Educação como Prática de Liberdade) e eu o passei adiante

por absoluta insensatez, ou melhor, só porque era de Paulo Freire e ele era da "linha de pensamento

cristão" que diferia do que entendíamos como cultura popular (defendida pelo CPC). Quando penso

nessa discriminação fico arrepiada, mas era assim mesmo: os marxistas rejeitavam tantas coisas:

homossexuais e cristãos, principalmente. Quanto se perdeu com isso!

Até 1971 esqueci essas coisas, não só porque tinha sido mãe recentemente e estava às voltas com essa

experiência maravilhosa de amamentar, mas porque temia ser presa e torturada, como muitos amigos e

amigas! Meu marido veio para a Universidade de Mogi das Cruzes para compor a equipe de Psicologia

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Experimental, vindo da USP e trazido por um amigo. Ambos pertenciam a um dos grupos movimento

estudantil. As reuniões aconteciam em minha casa e lá eles discutiam formas de apresentar Paulo Freire

aos alunos da Psicologia.

Juro que eu não entendia nada, mas como estava afastada de tudo o que não se referisse ao doce prazer

de ser mãe, deixava de lado. Muitas estratégias eram adotadas para que não houvesse perigo de

repressão, mas eles trouxeram Paulo Freire para aqueles alunos. Entre Skinner e seus experimentos em

AEC (Análise experimental do comportamento), eles discutiam os princípios da Pedagogia do

Oprimido – o livro, se não me engano, ainda estava proibido no Brasil. Eles usavam uma versão que um

dos professores traduzira do inglês ou do espanhol. E assim, durante alguns anos, foi.

Com esta pequena confissão, quero fazer o meu ato de contrição: "Meu bom Paulo Freire, crucificado

por mim, por minha absoluta insensatez e ignorância, estou muito arrependida por ter feito o que fiz.

Não foi pecado, por isso não mereço ser castigada neste mundo e no outro; mas, mesmo assim,

desculpa-me!".

Mas preciso confessar que dele, pessoa, tenho boas lembranças quando o avistava nos corredores da

PUC-SP, na lanchonete tomando cafezinho com Moacir Gadotti, nos idos 1985-86. Figura capaz de

comover pelo semblante calmo, amigável e de uma abertura incrível para o contato com quem quer que

fosse. Juro que muitas vezes tive o ímpeto de pedir-lhe desculpas pessoalmente, abraçá-lo e dizer o

quanto perdi como ser humano, por essa intransigência descabida. O faço agora!

Para relembrar

CPC – Centro Popular de Cultura (da UNE, de orientação marxista)

MCP – Movimento de Cultura Popular (pé no chão), tinham uma concepção de cultura diferente da do CPC –

pensadores e artistas católicos em sua grande maioria

AP – Ação popular (cristã)

Jozelia Regina Segabinazzi – Mogi das Cruzes

Fui a uma Conferência Brasileira de Educação no Rio de Janeiro com minha filha no colo para ver

Paulo Freire falar num teatro apinhado de gente, num momento de grande esperança de mudanças em

nosso país. Nossa geração teve esse privilégio de ser contagiada por ele, pelo Darcy Ribeiro e outros

pensadores geniais e comprometidos. Dentre tantos pensamentos de Freire, gosto de pensar com ele

que "se na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo,

se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que

tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes". É o que

procuro fazer na minha profissão de educadora.

Célia Maria Carolino Pires – PUC-SP

Aprendi com Paulo Freire a importância de estabelecer o dialogo... o diálogo que é silencio, que é voz,

que é vez, que é democrático.

Débora Martins – São Bernardo do Campo

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Ao escrever sobre Paulo Freire, tomei consciência de que tudo o que aprendi com ele foi por meio de

leituras. Suas palavras tocam meu ser professora colocando-me à prova e provocando o encontro da

profissional consigo mesma. Em suas palavras há profundidade e verdade experimentadas na militância

pela educação.

Sua escritura é articulada com seu modo de vida: solidário com o gênero humano, preocupado e

ocupado com o „Outro‟, em especial com os excluídos, os discriminados, os que são marcados pela

desigualdade social.

Sua verdade é marcada pela alteridade: o que faz a diferença no mundo e abre a possibilidade à utopia.

Pela coragem de vivê-la, faz suas palavras vibrarem em mim.

Com Paulo Freire aprendi que não há como ser professor sem cuidar de nossos alunos. Não há como

ser professor sem militar por uma educação melhor. Não há como ser professor sem sonhar com um

mundo melhor. Não há como ser professor sem instaurar na sala de aula uma posição essencial de

alteridade. Não há como ser professor sem torná-lo um modo de vida.

Carla Ropelato - GEPEC

Experimentei as aprendizagens de Paulo Freire em uma prática de liberdade: ensaiava o ser professora.

De pronto só pude concordar, seus escritos versaram em minhas crendices como se fossem raízes de

uma mesma árvore. E daí eu conheci o oprimido, a autonomia, a libertação enquanto luta, o tijolo, o

outro, a não existência do homem no vazio, a política, o ajudar o outro a ajudar-se. Entendi e vibrei com

tudo poucos anos antes de entrar de alma e passos para dentro de uma sala de aula. Lá, me desesperei

tantas vezes com tantas coisas, me achei sem rumo em tantas outras, mas, vejo agora, meu movimento

de luta, de desarmamento do que estava há muito construído, persigo Freire em minhas discussões com

as crianças, em meu pensar pedagógico, em minhas andanças com outros, em minha prática de

liberdade que não quer só libertação: quer dar voz e sentidos, alimentar realidades sem desconstruir

sonhos, que quer enxergar além do que se vê.

Patrícia Yumi - USP

Estamos sempre a aprender

Com Paulo Freire aprendi

Que ninguém ignora tudo

Ninguém sabe tudo

Aprendemos sempre juntos!

Mas sempre ignoramos algo

E, por isso, estamos sempre a aprender.

É no diálogo com o outro

É no diálogo com o outro

É no diálogo consigo mesmo

Que é possível aprender sempre juntos!

É na palavra que nos fazemos presente!

É no olhar cuidadoso para o trabalho que nos

fazemos presente!

É na ação-reflexão que nos constituímos

e nos fazemos presente!

É na alegria da busca que encontramos

E revivemos o encontro

Que desperta diferentes saberes

E, por isso, estamos sempre a aprender.

Marissol Prezotto - GEPEC

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A primeira vez que me deparei como uma sala de aula, como professora, havia completado vinte anos.

Egressa da antiga Escola Normal, início dos anos setenta, estava imersa nas múltiplas possibilidades que

as metodologias, da linguagem, da matemática, dos estudos sociais e das ciências poderiam

proporcionar.

Todas as representações que eu tinha estavam ancoradas naquele curso, rico em leituras e reflexões

acerca de vários pensadores e educadores do Brasil e dos mais variados expoentes de outros países;

lembro-me bem que eu achava suas biografias e pensamentos/reflexões muito ricos; Montessori, Jean

Piaget, Rousseau, Decroly, entre outros. Estes eram apresentados como “de renome internacional”.

Dentre os nacionais, lembro-me de Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Lourenço Filho; este, nome dado à

Escola Normal da qual falei no início destes apontamentos; minha inesquecível Escola Normal

Lourenço Filho...quanto aprendizado!

Com certeza, hoje posso afirmar que os meus poucos anos de vida e experiência não possibilitaram um

grande aprofundamento. Este viria posteriormente, na faculdade e nas turmas que assumi ao longo de

minha trajetória como professora. Mas, voltemos ao meu primeiro dia de aula. Uma turma de jovens e

adultos. Se por um lado eu havia participado de leituras, debates e aulas de “prática de ensino”, por

outro lado toda a ênfase era dada aos alunos das séries iniciais, com crianças, antigo primário.

Agora, ali frente aquela turma silenciosa cujas idades variavam entre 16 e 65 anos eu não tinha muita

certeza do que iria fazer. Sim, tenho essas idades na memória, pois, naquele contexto, pude

compreender o quanto rico e proveitoso pode haver na convivência intergeracional. Assim, silenciosos,

olhos atentos, ali estavam; aguardavam algo que eu não sabia ainda ao certo o que era; mas seus

semblantes, uns mais cansados que outros, interrogavam-me! Parei, pensei no rápido planejamento do

qual havia participado. Foram poucos dias, contudo, eu tinha em minhas anotações muitas informações

acerca dos pressupostos do educador Paulo Freire.

Agora, ali, nós precisávamos encontrar o ponto de convergência de nossas vontades; eu queria que eles

encontrassem significados para aquelas horas nos bancos escolares; e eles?...eu ainda precisava

descobrir. Lembro-me como se fosse hoje, meu pensamento enveredou por uma afirmativa do

Pequeno Príncipe: “Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas”. Lembrei-me

rapidamente de meus professores e a voz de uma delas, a minha mestra querida que um dia disse-me

que gostaria de ser lembrada com carinho, como alguém que contribuiu e não com indiferença.

Era isso que eu queria: que para aqueles alunos eu fosse uma agradável lembrança. Assim, encorajada

pelas leituras reflexivas dos textos de Paulo Freire, e interessada pelas histórias de vida daqueles alunos,

apresentei-me, contei um pouco de mim e dos meus sonhos. Naquele primeiro dia alguns contaram

também sobre seus sonhos e suas dificuldades com a parte normativa da língua materna e da linguagem

matemática, o código, pois de cabeça faziam inúmeras operações. Essa noite deu início a uma

significativa e produtiva convivência.

Há poucos dias encontrei com um desses alunos, 41 anos depois. Nosso encontro? Contarei detalhes

em outro momento.

Gertrudes Silva – Secretaria de Estado da Educação do Acre

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Diálogo e conflito: por uma escuta alteritária

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Minhas memórias a respeito do Educador Paulo Freire se misturam com história, política, militância,

educação, juventude, diversidade e encontro de saberes. Estou falando do período de 1980 em diante.

Quase duas décadas depois da experiência de seus “círculos de cultura”. Isso se explica pelo meu

ingresso na universidade em 1981, envolvimento com militâncias várias e início da profissão como

professora.

Naqueles borbulhantes anos oitenta os livros de Paulo Freire se colavam às contestações e busca de

novos modelos de ser, se expressar, viver e educar. Era fonte de renovação e revolução do pensar e agir.

Os grupos dos quais eu fazia parte tendiam a se utilizar fortemente de alguns conceitos freireanos. A

consciência política, conscientização, consciência ingênua e consciência crítica eram, pretensamente,

base para as práticas políticas entre estudantes, professores, comunidades de periferia.

Buscar entender o saber e educação popular também se constituía em preocupação do Projeto

Seringueiro. Fiz parte da equipe de educadores deste Projeto realizado por uma ONG chamada CTA

(Centro dos Trabalhadores da Amazônia) com tradição de criar escolas no interior dos seringais e se

utilizando do “Método Paulo Freire”. Nesta experiência o encontro, respeito e troca de saberes era uma

premissa definidora dos diálogos, negociação e construção do aprender.

Mas, só agora fazendo esta pequena pausa para pensar a respeito é que percebo a dimensão dessas

leituras e experiências. De algum modo ficaram entranhadas nos acúmulos ocorridos ao longo dos anos,

nem sempre perceptível.

Quinha Bezerra – Secretaria de Estado da Educação do Acre

Somos todos culturais

No debate sobre cultura, somos todos “culturais”: artistas, políticos, gestores, intelectuais, militantes,

público, educadores. Ninguém está nele como consumidor, mas como produtor. O mundo no qual uns

inventam e outros degustam já não existe mais. O mundo da educação como ato vertical, faliu. Com o

acesso, produção e difusão de conhecimento cada vez mais pulverizados, é urgente garantir espaço para

as experiências eivadas de sentido, que tensionam valores e indiferenças, que se oferecem em relações

dialógicas e não impositivas.

Paulo Freire, já nos indicou esse caminho muito antes da internet, e o fez dizendo que a educação

deveria estar articulada em uma ação político-cultural de emancipação mais ampla, propondo que se

estabelecesse como ferramenta para novas “leituras de mundo” e de tomada de consciência crítica do

cotidiano opressivo vivido pelos setores populares.

Estruturada como uma teoria pedagógico-política, suas propostas estão em plena sintonia com a

ebulição vivida pelo Brasil em 2013. Ao lutar para que a educação popular se convertesse num

instrumento de democratização radical do saber, estava estimulando a cooperação, a decisão autônoma

e a participação política, ou seja, propondo o alargamento das tendas da cidadania. Desde Paulo Freire

que educação e cultura são braços da mesma luta. Por isso, estamos convocados a criar, propor e tornar

acessíveis códigos de sentido concretos, visões de mundo distintas da visão pasteurizadora e

homogeneizante proposta pelo mercado. Precisamos ter sentido identitário e ser inventivos, atraentes,

inquietantes. Só assim nossas experiências serão vitais.

Glauber Piva - Sorocaba

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Cordel: Pedagogia da Autonomia

Wilson Queiroz – 2010

Há dias estou pensando

Hoje comecei a escrever

Sobre educação e poesia

E agora vou lhes dizer

Que muito me desperta

O modo de Freire fazer

E agora sobre este livro

Um cordel quero escrever.

Pedagogia da autonomia

Escrito por Paulo Freire

Anuncia aos Educadores

Alguns importantes saberes

Para uma prática educativa

Para todos poderem ser

Educando responsáveis

Inclusive por outros seres.

Um livro pequeno e de bolso

Não fosse seu grande valor

Porém num bolso não cabe

Todo o seu denso teor

Aponta questões importantes

Para assunção da arte-professor.

Agora entendo bem mais

E por que acredito nele

Destaca de fio a pavio

Vinte e sete saberes

Que fala da prática da escola

E do educador com ele

Que acredita na educação

E aposta em todos os seres.

São vinte e sete saberes

Que me dispus a pensar

Em que bem posso fazê-lo

E em cordel apresentar

A obra deste mestre

Na arte do bem educar

Liberta a mente de todos

E propõe a sociedade mudar.

Relendo cada saber

Espero melhor estudar

O que diz o Paulo Freire

Sobre o ser modo de ensinar

Trazendo para o cordel

Uma forma de acessar

Um pouco do que entendi

E um convite para dialogar.

Dividido em três capítulos

Esta pequena obra está

No primeiro ele destaca

Que docência sem discência

não há

O que nos impõe desde o inicio

Sobre os alunos sempre pensar.

Neste segundo capítulo

A questão do ensinamento

Ele destaca já no titulo

Que ensinar não pode ser

Transferência de conhecimento

O que nos convida a estar

Em permanente movimento.

No último capítulo propõe

A reflexão que não engana

A arte de poder ensinar

É uma especificidade humana

Por isso é preciso pensar

Em como o educador leciona.

Além dos três capítulos

Um destaque é preciso fazer

Ainda temos um prefácio

Que muito irá nos dizer

Logo em seguida algumas

Intitulada primeiras palavras

O mestre irá nos surpreender.

Pedagogia da Autonomia

Um livro que me convida

A pensar no Paulo Freire

E na Elza sua esposa querida

Que para muito ainda passa

Quase ou total desconhecida.

Só fui dela saber melhor

Depois de uma dissertação lida.

Começo falando de Elza

Sua esposa e colaboradora

Por que antes dela sabia

Ser apenas educadora

Agora num estudo entendi

Que também foi sonhadora

Junto com Paulo Freire semeou

Uma educação libertadora.

A pedagogia da autonomia

Proposta por Paulo Freire

Considerava os alunos

E o respeito aos seus saberes

Valorizando o que é simples

E todos os seus afazeres

Pensando numa educação

Com plenos direitos e deveres.

Educação era para Freire

Uma ação, um compromisso

E o professor na sua prática

Responderia por tudo isso

Na sua forma de pensar

De se fazer e de ser dito.

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RIGOROSIDADE METÓDICA

Em sua teoria da pedagogia

Paulo Freire então anuncia

Que três aspectos da educação

Requer que se tenha em dia

Sobre a importância do rigor

E da especificidade que anuncia

Ensinar é uma prática humana

E que para o homem tem valia

Porém ensinar não é transferir

E esta prática ele repudia.

Subdividida em várias partes

Esta pedagogia ele anuncia

Considerando alguns aspectos

E cada um ele também avalia

Considerando muitos dos aspectos

Que esta prática evidencia

Para construir uma educação

Que valorize a autonomia

*Ensinar exige: Pesquisa-Respeito aos Saberes dos Educandos-Criticidade-Estética e Ética-Corporificação das

Palavras Pelo Exemplo-Risco-Aceitação do Novo e Rejeição a Qualquer Forma de Discriminação-Reflexão Crítica

Sobre a Prática-O Reconhecimento e a Assunção da Identidade Cultural-Ensinar não é Transferir Conhecimento-

Consciência do Inacabamento - O Reconhecimento de Ser Condicionado-Respeito à Autonomia do Ser

Educando - Bom Senso-Humildade-Tolerância e luta em Defesa dos Direitos dos Educadores-Apreensão da

Realidade-Alegria e Esperança - A Convicção de que a Mudança é Possível-Curiosidade-Ensinar é uma

Especificidade Humana-Segurança-Competência Profissional e Generosidade-Comprometimento-Compreender

que a Educação é uma Forma de Intervenção no Mundo-Liberdade e Autoridade-Tomada Consciente de

Decisões-Saber Escutar-Reconhecer que a Educação é Ideológica-Disponibilidade para o Diálogo-Querer Bem os

Educandos.

Wilson Queiroz - GEPEC

...Cursava o último ano da Pedagogia, ingressava docência em EJA, começava a trabalhar... Nesse

contexto, redigi o meu Trabalho de Conclusão de Curso, em formato de cartas endereçadas a Paulo

Freire. Na escolha pelo texto narrativo produzi reflexões sobre minha prática docente nos dois

primeiros anos da carreira.

Campinas, setembro de 2001.

Querido professor Paulo Freire,

É com muita emoção e carinho que escrevo esta carta. Preciso imaginar que talvez a receba um

dia. Tem coisas que só você pode me responder, pois inicialmente as perguntas aqui colocadas

também são/foram suas. São suas muitas das palavras que me alimentam e me movem. (...) Por

que, por incrível que pareça, há algum tempo fiz a escolha consciente de caminhar ao teu lado...

Hoje, preciso te sentir ao meu lado...

Bem, apresento-me. Aqui começo a apresentar, também você, na minha história...

Meu nome é Maria Fernanda, professora em formação na EMEF “Edson Luis Lima Souto”

onde assumo este papel no exercício do trabalho docente e na Faculdade de Educação da

UNICAMP, tendo curso de magistério em nível médio concluído em 1996. Esta carta tem a

intenção de abrir um diálogo sincero com uma das pessoas também responsável por minha

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formação, aliás, não só pela minha, como também pela de muitos outros e outras profissionais

da Educação. Sob tanta responsabilidade, tornou-se referência. Acredito que suas obras

caberiam como parte da bibliografia de plano de curso de muitas disciplinas que compõem a

formação institucional de professores.

Infelizmente este não foi o caso do meu curso de formação superior. Conheci você, Paulo

Freire, no curso de magistério, em Santos (cidade onde nasci e cresci até os 18 anos), graças às

professoras apaixonadas por seu trabalho, duas delas ex-alunas suas. Em torno do ano de 1996,

li “O que é método Paulo Freire”, escrito por Carlos Rodrigues Brandão.

Na faculdade de Educação da Unicamp, li “Pedagogia do Oprimido” logo no primeiro

semestre, não acredito que tenha sido o melhor momento, muito menos a melhor forma de

trabalhar com o conteúdo que nos oferece: fiz uma resenha desta obra e entreguei. Mas lembro

de ter sido uma das primeiras e poucas obras completas que li em minha formação acadêmica.

Em 1999, na disciplina de Prática de Ensino, a professora Corinta Geraldi, sua amiga e colega

de trabalho no tempo em que foi docente da UNICAMP, retomou seu nome e obra, ao lado de

Freinet e Pistrak (educador russo). Eu escolhi conhecer Pistrak, já que nunca tinha ouvido falar,

e vindo como recomendação da Corinta, já imaginava que fosse um outro possível educador

significativo para minha formação. Então, naquele momento, não li suas obras, mas participei

de discussões sobre estas, com as intervenções da profa. Corinta contando detalhes sobre sua

passagem pela UNICAMP. Ainda em 1999, ainda aluna da Corinta, em Metodologia de

Pesquisa no Ensino Fundamental, li “Extensão ou Comunicação”... (...)Em 2000, na disciplina

de Estágio Supervisionado II, li “Pedagogia da Autonomia”, na época era aluna, pelo segundo

semestre consecutivo, do professor Guilherme do Val. Toledo Prado (nossa! Agora pensando...

não foi seu aluno?), que me orienta até hoje, acompanhando, então, todas as crises com a Mafê

(assim me chamam por aqui) professora, desde a época em que era estagiária e tinha arrepios

com essa ideia...

Achei pouco “Paulo Freire” no meu curso de pedagogia, como disse anteriormente, seu

conteúdo caberia em qualquer disciplina, já que a VIDA cabe em qualquer lugar. Como disse

professor Ernani Maria Fiori em suas primeiras palavras, prefaciando a 23a. reimpressão de

“Pedagogia do Oprimido”: “Paulo Freire é um pensador comprometido com a vida: não pensa

ideias, pensa a existência”... Vejo Paulo Freire conciliando lugares como academia e

movimentos sociais de base, também escreveu História, levando consigo outras pessoas à

conscientemente escrevê-la e fazê-la. Por considerar-se um ser humano inacabado, dizia-se

“sendo” historicamente, assumindo assim sua responsabilidade ética na assunção de suas

crenças religiosas e político-partidárias. “Inteiro”, Paulo Freire registrou saberes constituídos de

consciência e emoção.

Estou sempre brincando com amigos e amigas da faculdade sobre o meu desejo de que

estivesse vivo, daria tudo para que me acompanhasse até a minha sala de aula. Gostaria de ver

como responderia aos meus alunos como Seu Sebastião, e alunas como dona Margareti, tantas

questões...

Nessa carta „endereçada‟ a Paulo Freire, escrevia também para mim.

Maria Fernanda Pereira Buciano - GEPEC

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A minha formação em Pedagogia, na PUC-Campinas, só reforçou o propósito e a escolha que havia

feito. Foi apresentado um sujeito, um educador que me encantou imediatamente: Paulo Freire.

Em Pedagogia do Oprimido (1987) e na Educação como Prática da Liberdade (1989), conheci os

fundamentos e o pensamento desse autor. Li e entendi que a sua convicção era no homem como um

ser de diálogo constituído pela palavra. Para Freire (1989) existir humanamente é pronunciar o mundo,

é modificá-lo. Não é no silêncio que os homens se fazem, é no encontro. O diálogo se

impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Uma exigência

existencial. Portanto, o diálogo é um dos pilares da pedagogia libertadora de Paulo Freire. O

diálogo como posição diante da vida e do mundo, e dialogando com o mundo para entendê-lo e re-

interpretá-lo estaria passando pelo processo de conscientização.

Segundo ele, a conscientização ocorre quando o oprimido chega à convicção da luta pela transformação

social como sujeitos, não como objetos. E assim essa luta começa pelo auto-reconhecimento de homens

que são e oprimidos que são. Por isso, para Paulo Freire, participação é engajamento.

O silêncio da outra parte é a denúncia viva do escândalo que é um povo silenciado, marginalizado e

imerso na passividade. Outra condição para o diálogo é que ninguém, numa sociedade que diz ser

democrática, seja excluído ou posto à margem da vida social. Ou seja, uma educação como prática da

liberdade será possível quando se realizar numa sociedade onde existem condições econômicas, sociais

e políticas de uma existência em liberdade.

(...) A literatura mais marcante na minha formação acadêmica foi a literatura e o ideário freireano. A

compreensão de que o professor também é sujeito que se constitui nas relações e interações com o

outro possibilitava repensar os lugares de “aluna” e de professora que pretendia e que estava me

propondo ser. Como diz FREIRE (1997 p. 16): Mulheres e homens somos os únicos seres que,

social e historicamente, nos tornamos capazes de apreender. Por isso, somos únicos em quem aprender

é uma aventura criadora, algo, por isso mesmo, muito mais rico do que meramente repetir a lição dada.

Aprender para nós é construir, reconstruir, constatar para mudar, o que não se faz sem abertura ao

risco e à aventura do espírito. (...)

Natalina de Oliveira - GEPEC

Simplicidade. Amor ao trabalho. Respeito. Luta pela dignidade própria e alheia. Fala mansa para

dizeres fortes. Autonomia. Algumas das principais lições que com Paulo Freire aprendi. A importância

do ato de ler em três artigos que se completam, foi o primeiro texto que li. Ainda muito menina, com

quinze anos aproximadamente, já me encantei com o mestre. Com esta leitura aprendi que educar é um

ato político e que a escola pode colaborar na transformação do mundo. Aprendi também que não há

neutralidade em nenhuma escolha pedagógica e todas as opções estão carregadas de ideologia, mesmo

quando não temos consciência disso. Hoje, revisitando a menina, reencontro o encantamento pela

aprendizagem que se dá com o outro. O mestre vive em cada um de nós que lutamos por uma Escola

Outra.

Heloísa H. D. Martins Proença - GEPEC

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Prezado Paulo Freire,

Em certas circunstâncias da vida o agradecimento é imprescindível. Neste caso, eu diria,

correspondente. Dizer “Obrigada, Mestre” é inevitável. Meu agradecimento se pergunta “O que a vida

quer da gente na condição de professor?”. As compreensões eu encontrei em teus ensinamentos. A vida

quer da nossa docência o diálogo, a amorosidade, a escuta qualificada, a luta pela humanização do ser

humano. Sendo professora, minha profissão se constitui com esses princípios, que pareciam tão

certeiros, e até evidentes, desde o início do aprendizado do meu/nosso ofício.

Aprendi que dialogar, amar, escutar e humanizar, de acordo com o que ensinas, significa travar uma luta

no dia a dia por uma aprendizagem outra, por todos e por cada um dos estudantes.

Sou grata por lutar junto comigo e com tantas outras professoras que se humanizam um pouco mais a

partir das lições de teus escritos e de tua coerência, teu pensamento, tua ação no mundo. Contigo nossa

coragem se fortalece. Contigo nosso saber e fazer não se esvaziam diante do discurso artificial daqueles

que agem nos desmandos da educação. Contigo me recomeço.

Adriana Alves Fernandes Vicentini - GEPEC

Eu me encontrei (e ainda me encontro) com você na busca da autonomia, Paulo. E agora, mais

especificamente, na busca da alegria na escola. E do lugar de onde falo (falava e ainda falarei por algum

tempo), vou defender a autonomia e a alegria também para os profissionais que nela estão. Porque não

posso me pautar na incoerência de compreendê-la diferentemente para seus sujeitos, sejam eles quem

forem.

Disse-me você, Paulo:

A minha abertura ao querer bem significa a minha disponibilidade à alegria de viver. Justa alegria de

viver, que assumida plenamente, não permite que me transforme num ser “adocicado” nem tampouco

num ser arestoso e amargo.

Estive e ainda estou eu cá, a perseguir suas palavras, professor, porque nelas acredito. Porque sei que

não se pautam tão somente na negação, mas acenam com a possibilidade de „saídas‟, de brechas

possíveis. Porque não se caracterizam por ingênuo otimismo infundado, mas sustentam-se em princípios

que consideram as contradições como possibilidades. Porque não compreendem a verdade como via de

mão única. Porque enxergam e consideram as muitas mãos.

Adriana Stella Pierini - GEPEC

O nosso encontro

Encontrei Paulo Freire quando entrei na escola pública, no lugar de estagiária e depois de professora.

Encontrei Paulo Freire nas relações que fui estabelecendo, no outro, no cotidiano da aula, em tudo que

na escola me fazia rir, chorar, me revoltar e, por fim, mover-me em busca de caminhos outros com

meus alunos – caminhos partilhados que construiríamos juntos. Encontrei Paulo Freire em mim, já que

posso dizer que ele também me constitui enquanto professora.

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Desde o momento em que escolhi ser professora da escola pública, que compreendi meu papel político

de professora, que tive um olhar estrangeiro para a escola, desde quando lá vi, escutei e vivenciei muitas

formas de opressão e revoltei-me contra elas – e, também, por isso, tornei-me uma professora que busca

ter práticas para a liberdade dos alunos – Paulo Freire esteve comigo.

Foi assim: dentro da escola pública, na aula, em contato com o outro, buscando trazer a vida para a

escola, o aluno para reconhecer-se autor de sua história e produtor de conhecimento, construindo

práticas e relações que buscassem a educação para a liberdade é que fui experienciando o que o

Professor nos ensinou.

Trago Paulo Freire de novo nos pressupostos, inegociáveis para mim, que me guiam em uma prática

que vá ao encontro do meu discurso. Os ensinamentos de Freire, portanto, estão presente no meu olhar

e escuta sensíveis ao buscar tornar-me professora a cada dia a partir do que me ensinam os alunos; estão

presentes nas perguntas que faço a mim mesma – “Por quê?”, “Para quê?”, “Para quem?”, “Como?” – e

me levam a pensar constantemente na minha prática em favor e em razão das crianças; na indissociação

que faço entre ensino e pesquisa e, assim, na opção por ser uma professora pesquisadora; na busca por

evidenciar que os alunos são sim autores de suas histórias e de conhecimentos e por reconhecer suas

experiências como saberes válidos.

Diante disso, desde o primeiro momento que vivi a escola pública, Paulo Freire esteve comigo e com a

sua ajuda fui também me inventando professora, tentando a cada dia aprender mais com meus alunos.

Esteve comigo sempre que disse não ao que me „mandavam‟ fazer e, em vez disso, a partir do que cada

criança sabia, trabalhávamos com diferentes propostas dentro de uma mesma sala de aula. Sempre que

deixávamos a aula planejada de lado e aprendíamos, com o „professor‟ de seis anos, a fazer capuchetas

ou, com a „professora‟ de oito, dicas para produzir um texto e novas histórias. Sempre que pesquisamos

sobre o que nos interessava e nas organizações e reorganizações das aulas em função das crianças e da

vida que traziam com elas. Enfim, estava ali desde o primeiro momento quando, por causa do que

vivíamos juntos, tínhamos a certeza que ali não só aprenderíamos ou ensinaríamos, mas a cada dia

aprenderíamos e ensinaríamos uns aos outros. E, ainda, quando precisei tomar a decisão mais difícil em

minha profissão – estava ali me ajudando a pensar com clareza e optar por horizontes outros, e estudar,

para depois voltar à sala de aula – ao me mostrar que

A melhor maneira que a gente tem de fazer possível amanhã alguma coisa que

não é possível de ser feita hoje, é fazer hoje aquilo que hoje pode ser feito.

Mas se eu não fizer hoje o que hoje pode ser feito e tentar fazer hoje o que

hoje não pode ser feito, dificilmente eu faço amanhã o que hoje também não

pude fazer. (Paulo Freire in Pedagogia da Indignação, 2000).

Acho que, assim como Guimarães Rosa, Freire nesse momento ensinou-me que “A vida é assim:

esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é

coragem”.

Vanessa F. Simas - GEPEC

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A influência do grande educador Paulo Freire na minha vida profissional se intensificou quando, após

minha aposentadoria, preparava-me para lecionar no CEFAM (Centro Específico de Formação e

Atualização do Magistério) em Mogi das Cruzes.

“A importância do ato de ler” (em três estágios que se completam) foi o primeiro livro que busquei

dentre tantos que havia selecionado para minhas leituras, uma vez que sentia a grande responsabilidade

de me preparar para a tarefa de lecionar para alunas de Magistério, futuras professoras.

Houve um encantamento ao sentir a linguagem de Paulo Freire: “Aprender a ler, a escrever, alfabetizar-

se é antes de tudo, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não numa manipulação

mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade. Ademais, a

aprendizagem da leitura e a alfabetização são atos de educação e educação é um ato fundamentalmente

político.”

E quando nós, professores, nos encantamos e dialogamos com nossos alunos, esse encantamento é

contagiante...

Nos primeiros trabalhos em sala de aula, a leitura, o estudo, os comentários sobre “A importância do

ato de ler” despertaram nos alunos interesse em conhecer, mais e mais, as ideias do mestre Paulo

Freire.

Outro trabalho que desenvolvemos teve como suporte o livro “Professora sim, tia não: Cartas a quem

ousa ensinar”. Muito significativo e envolvente desde a leitura da introdução, que é instigante e

provocou nas alunas o desejo de conhecer o conteúdo.

A proposta foi de que as alunas foram organizassem em grupos, ficando cada grupo com uma carta,

para estudo e exposição para a turma, podendo usar como recursos vídeos, dramatizações, cartazes ou o

que julgassem oportuno. Muito criativas, elas interpretaram com rigor e uma “boniteza” que Paulo

Freire certamente gostaria de ver.

O estudo desses dois livros foi importantíssimo para nossas alunas, que estavam em formação para

serem professoras de crianças das séries iniciais do Ensino Fundamental, tendo assim espaço e

oportunidade de entender as denúncias feitas por Paulo Freire para fortalecer um profissionalismo mais

consciente, mais eficiente.

Nas cartas, o que se vê é a riqueza e a maturidade de sua linguagem de educador político. Com essa

linguagem, simples e profunda, faz entender, por exemplo, o sentido na escola do aparentemente

afetivo tratamento de 'tia', e outros tantos aspectos dos quais o educador precisa ter consciência para

aprimorar sua competência profissional.

Em maio de 1990, tive a oportunidade de ver Paulo Freire na Universidade de Mogi das Cruzes,

quando foi homenageado, e o que ali observei foi um homem de semblante calmo, cabelos longos,

barbas brancas, estatura mediana e gestos expressivos nas mãos quando explicava suas ideias sobre

educação.

A notícia de seu falecimento me comoveu muito, bem como aos meus alunos, que tinham desejo de

conhecê-lo pessoalmente.

Paulo Freire nos deixa lição de vida, de ternura, de coerência, de luta. Para ele não havia inimigos a

vencer, mas situações a se construir..."

Aparecida Costa Soligo (Noninha) - Campinas

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Quando comecei a trabalhar como professora, me inquietava o fato de não ser fácil conjugar alegria e

aprendizagem. Sem entender exatamente o que me movia, buscava mecanismos diversificados para

disfarçar a dor do expor-se nas redações. Procurei, na minha prática docente, fazer da aula o ambiente

alegre em que poderíamos transpor os limites de nossas fomes – físicas, sociais, psicológicas.

Assim, de maneira intuitiva, já que ainda não conhecera ainda as ideias de Paulo Freire, buscava fazer

das aulas o ambiente do desabafo, da catarse do sujeito. Eram momentos de saber-se humano, desigual,

particular e, ao mesmo tempo, comum, apoiado nas semelhanças que se evidenciavam na voz dos

escritores brasileiros. Em 2005, passei a trabalhar com Educação de Jovens e Adultos (EJA) em uma

escolada rede municipal de Porto Alegre. Nessa escola (E.M.E.F. Vereador Antônio Giúdice),aprendi

bem mais do que ensinei. Meus colegas trabalhavam apoiados nos princípios de Paulo Freire a

alfabetização e a educação dos trabalhadores. Obriguei-me a ler mais sobre esse educador, a perceber

nuances da educação popular e a adequar o trabalho com Língua Portuguesa às ideias desenvolvidas em

nosso grupo.

De início, parecia-me antiético aprovar alunos que não dominavam o código escrito de nossa língua, que

ainda não dominavam estruturas frasais mais complexas, que não utilizavam conjunções, ou acentos, ou

não pontuavam seus textos. Para mim, eles não sabiam o mínimo básico para continuar seus estudos ou

para utilizar o que sabiam nas suas práticas diárias. No entanto, foi o tempo que me mostrou o

contrário.

Quando os alunos daquela comunidade buscaram organizar uma cooperativa, a fim de garantirem um

espaço de trabalho onde moravam, observei o quanto a EJA havia feito por todos nós. As reuniões nas

quais se discutia o futuro de suas vidas, as atas que se escreviam nessas reuniões, o nível de

problematizações que se faziam em nossos encontros mostraram o quanto além poderia levar uma

educação voltada para a questão social, o quanto a linguagem ganha sentido a partir da experiência de

cada um e como é indissociável a realidade na qual nos inserimos para construirmos um saber.

Aqueles ex-alunos que haviam saído da escola sem nem um mínimo básico para continuar suas vidas

(era no que eu acreditava), para minha surpresa, organizavam-se em assembleias, escreviam suas atas,

discutiam possibilidades, lutavam por seus interesses. Foi assim que percebi a importância dos

movimentos que fazíamos na EJA. Quando assistiam a um filme e faziam um posterior debate, quando

organizavam seus tempos de estudo, quando eram ouvidos, quando participavam e eram valorizados,

estavam elaborando suas fomes, tentando saná-las, lutando para isso.

Nesse processo, percebi a possibilidade de diálogo entre as ideias de Bakhtin e de Paulo Freire. Para

Bakhtin, “não há atitude indiferente”, ou seja, a tomada de decisão para o estudo e posterior

organização de uma cooperativa já era a construção da linguagem com o mundo e para o mundo. Para

representar esses múltiplos discursos sociais, Bakhtin introduz a expressão vozes sociais: “complexos

semiótico-axiológicos com os quais um determinado grupo humano diz o mundo” (FARACO, 2003,

p.55). Nossos jovens e adultos trabalhadores diziam o mundo e essas vozes eram acionadas a partir da

intenção de interação, a partir de um despertar da conscientização de que Paulo Freire (1987, p.12) nos

fala em “A importância do ato de ler”:“[...] Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A

compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o

texto e o contexto.” Foi assim que Paulo Freire me conquistou e modificou minha prática em sala de

aula para sempre! Ainda Bem!

Deliamaris Acunha

Porto Alegre

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Diálogo e conflito: por uma escuta alteritária

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Minha despedida de Paulo Freire

Estava no velório do Paulo Freire, tentando tratar internamente a sua perda, tão difícil de incorporar

para quem teve o privilégio de conhecer e ter um certo convívio com ele (uma pessoa que provocava

admiração porque procurava viver cotidianamente como pensava e vice-versa). Durante duas horas

ficamos aguardando a chegada de seu corpo no Teatro do TUCA/PUC-SP. Foi um momento de rever

amigos, companheiros nas lutas da educação e da política, encontro propiciado, mais uma vez, por ele.

Poucos minutos depois de sua chegada, juntamente com o tumulto que ela provocara, com flashes e

câmeras para todo o lado, procurando captar todas as cenas de sofrimento, especialmente da família e

de autoridades presentes, mais aturdida ainda eu estava, meditando a frase da Nita (Ana Maria, mulher

de Paulo, que contou ao Wanderley e a mim que o Paulo Freire teria falado em nós uma semana antes

de morrer). Todos os que lá se encontravam, estavam muito emocionados.

Nesse momento, vi passar, de mão em mão, uma barra de giz. Entendi que alguém pedira, não sei

quem... nem para quê... Como ainda estavam arrumando o local, imaginei que fosse para escrever algo

em algum quadro de avisos do Teatro, ou algo parecido. Afastei-me um pouco do burburinho,

observando e tentando ver o Paulo, para acreditar em tudo aquilo.

Fui compreender a finalidade daquela barra de giz certo tempo depois, quando autoridades, jornalistas e

família tinham liberado o espaço para que pudéssemos nos despedir do Paulo. Ao me aproximar de seu

corpo, notei que a barra de giz estava nas mãos de Paulo Freire. Ele foi enterrado com aquela barra de

giz branco na mão. Como o professor que tinha sido durante toda a vida, com sua incomensurável

capacidade de amar seu trabalho, de se apaixonar, de apostar nos oprimidos, mesmo nos momentos

mais adversos.

Seu provável último livro é um pequeno livro, denominado Pedagogia da Autonomia (Paz e Terra,

1997) e trata do ensino. É como um testamento de suas crenças que deixa a todos nós, professores e

professoras do Brasil e do mundo, que compreendemos (com ele), que nosso trabalho é político e que,

contraditoriamente, quanto mais as elites pensam “promover a educação”, menos o fazem se

desconsideram o professor e a professora, aqueles que trabalham cotidianamente, com os educandos na

escola – as crianças, jovens e adultos que, apesar de tudo e da escola que temos em nosso país, ainda

insistem em querer estudar.

Paulo Freire disse, num Seminário na PUC/SP, ano passado, quando foi debatedor de Antonio Nóvoa,

que agora, mais que nunca, sentia-se um socialista, detestava esses valores de mercado com os quais se

pesa o valor das pessoas. Dizia: quanto mais falam que o socialismo terminou, mais o sinto arraigado e renovado nos movimentos ecológicos, das mulheres, dos negros, dos sem-terra... Disse, há pouco, em

entrevista a Fernando Rosseti, dia 27 de março, em Nova York, publicado dia 03 de maio na FSP:

“Você já observou como as autoridades brasileiras, por mais discursos democráticos que elas façam, nunca acreditam na autonomia das educadoras, na possibilidade que as educadoras têm de manejar suas

escolas? Elas entopem as escolas de pacotes, de diretivas, de guias. Isso é uma das tradições histórico-autoritárias desse país, que é o chamado centralismo. Quer dizer, o centro do poder não acredita na periferia, despeja ordens a serem seguidas, que chamam mais discretamente de orientações”.

Em seu último livro, ele declara nas “Primeiras Palavras”: ...‟É nesse sentido que reinsisto em que „formar‟ é muito mais do que puramente „treinar‟ o educando no desempenho de destrezas, e por que não dizer também da quase obstinação com que falo de meu interesse por tudo o que diz respeito aos

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homens e às mulheres, assunto de que saio e que volto com o gosto de quem a ele se dá pela primeira vez. Daí a crítica permanente presente em mim à malvadez neoliberal, ao cinismo de sua ideologia fatalista e a sua recusa inflexível ao sonho e à utopia. Daí o tom de raiva, legítima raiva, que envolve o meu discurso quando me refiro às injustiças a que são submetidos os esfarrapados do mundo. Daí o meu nenhum interesse de, não importa que ordem, assumir um ar de observador imparcial, objetivo, seguro, dos fatos e dos acontecimentos. Em tempo algum pude ser um observador „acinzentadamente‟ imparcial, o que, porém, jamais me afastou de uma posição rigorosamente ética.‟ (p.15)

Uma grande lição que nos deixa é a de nunca ter perdido a humildade, de ter dito sempre não à

arrogância possibilitada pelo acesso privilegiado ao conhecimento, numa sociedade tão desigual. Ele

sempre se irritou com os arrogantes e, por isso mesmo, foi muito criticado nos círculos acadêmicos

brasileiros. E dizia: eu tenho o direito de me sentir orgulhoso, mas nunca de ser arrogante. Lembro-me

muito bem de uma vez que lhe pedi um autógrafo num exemplar de seu livro “Pedagogia do Oprimido”

para dá-lo de presente de formatura no Curso de Pedagogia, a minha querida sobrinha Adriana. Ele

assinou, mas não sem reclamar: „Logo você, Corinta, pedindo que eu pratique esse culto à personalidade? Interessa é o que eu escrevi, não minha assinatura!‟‟ Deu uma risada e assinou...

deixando-me vermelha.

Há pouco mais de um ano perdi meu pai e, com ele, minha principal referência de dignidade e respeito

humanos. Procuro vivê-la como uma forma de preservá-lo para além de seus limites de vida biológica.

Nesse sentido, ele está vivo em mim, como em muitos outros também. Naquele momento tentei tanto

escrever isso e não consegui transformar minhas emoções em texto. Agora perco Paulo Freire e, com

ele, minha principal referência como professor e intelectual/político. Espero ter a humildade e

sabedoria suficientes para tentar vivê-lo em mim, sem reproduzi-lo, o que ele não perdoaria, pois era

contra a transferência e o culto à personalidade (Dizia: tudo contra a transferência cultural, nada contra

a sua reinvenção).

Adeus Professor Paulo Freire.

Corinta Geraldi - GEPEC

Maio/1997

Os diálogos de vários membros do Gepec, quando na forma de dissertações e teses, encontram em http://vifalahomenageiapaulofreire.blogspot.com.br/