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17 capítulo o judiciário na ditadura

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17captuloo judicirio na ditadura93417 o judicirio na ditaduraPerguntada respondeu mais o seguinte: que respondeu a dois processos cri-minais perante a Justia Militar neste estado, um dos quais tramitou pela 3a Auditoria do Exrcito, e o outro pela 1aAuditoria da Aeronutica; que, naprimeiradentreascitadasauditorias,quandointerrogada,pretendeu relatar ao auditor Oswaldo Lima Rodrigues os maus-tratos recebidos durante a sua priso, mas foi por ele obstada de faz-lo sob o fundamento de que tudo j constava de volumes que se achavam sobre a sua mesa [...]; que,nosegundoprocessoaquerespondeuinformouaoauditorMrio Moreira, sucintamente, as torturas suportadas, tendo S. Exa. feito constar do processo notcia desta informao.[ArquivoCNV,00092_000660_2013_31,p.13.DepoimentodeIns Etienne Romeu em 5 de setembro de 1979 na sede do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.] 1.AresponsabilidadedoEstadobrasileiropelaocorrnciadegravesviolaesdedireitos humanosaolongodoperodoinvestigadopelaComissoNacionaldaVerdade(CNV),de1946a 1988, decorreu fundamentalmente de aes ou da omisso de rgos do Poder Executivo. Como se demonstrou neste Relatrio, um conjunto de rgos vinculados essencialmente s Foras Armadas, mas com cadeias de comando que se prolongavam at a Presidncia da Repblica atuou de maneira intensa e sistemtica, especialmente no perodo ditatorial, de modo a ocasionar prises ilegais, tortura, mortes, desaparecimentos forados e ocultao de cadveres.2. No entanto, essa poltica de Estado teve repercusso nos outros poderes notadamente, noJudicirio,que,porforadesuasatribuiesconstitucionais,tiveramdelidarcomasgraves violaesdedireitoshumanos,examinando,pormeiodeprocedimentosprprios,situaesdessa natureza. Para a CNV, relevante a constatao de que, em que pesem o carter antidemocrtico do regime, com a consequente hipertrofa do Executivo e a censura que se estabeleceu sobre os meios de comunicaosocial,nombitodoPoderJudiciriosedeu,pocaemqueocorriam,aapreciao dessas condutas ilcitas por parte de agentes pblicos. No se trata, aqui, de examinar a fundo o avil-tamento das prerrogativas do Judicirio, ou mesmo as violaes de direitos humanos que se abateram sobre seus servidores, mas de, nos termos estritos do mandato concedido CNV, investigar e registrar como esse poder se dedicou apurao de graves violaes de direitos humanos. 3. Este captulo tem por intuito abordar a atuao do Poder Judicirio, mais especifcamente do Supremo Tribunal Federal (STF), da Justia Militar e da justia comum federal e estadual no curso do perodo ditatorial, compreendido entre 1964 e 1985. Para tanto, fez-se uso de pesquisa biblio-grfca e documental. No primeiro tpico, so analisadas decises do STF relacionadas s denncias de graves violaes de direitos humanos, em segmentao cronolgica, balizadas, majoritariamente, em habeas corpus e recursos ordinrios criminais, no curso dos Atos Institucionais no1/1964 a no 6/1969. Emseguida,enfoca-seaJustiaMilitar,destacando-seaampliaodesuascompetncias,apartir do Ato Institucional no 2/1965, seu papel nas punies polticas e como instituio perpetradora de omisses e legitimaes sistemticas para com as denncias de graves violaes de direitos humanos. Discorre-se,ainda,sobreajustiacomum,sublinhando-seasaesdeclaratriasecondenatrias propostasporvtimasefamiliaresemfacedaUnioeemdesfavordeagentesdarepresso.Por comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014935derradeiro,seroapresentadasconsideraesfnaissobreocontexto,aextensoeasatividadesque caracterizaram o Poder Judicirio durante a ditadura.A) A ATUAO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL4. No curso do regime ditatorial, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi levado a pronunciar-se a respeito de graves violaes de direitos humanos, especialmente por meio de recursos ordinrios criminais(RC)edepedidosdehabeascorpus(HC)impetradosemfavordepessoasdetidassoba acusaodecrimespolticos.1Orecortetemporalrelativoaoshabeascorpusvaide31demarode 1964, data da ascenso dos militares ao poder, a 13 de dezembro de 1968, quando foi editado o Ato Institucional no 5 (AI-5), em cujos termos fcou suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de cri-mes polticos, contra a segurana nacional, a ordem econmica e social e a economia popular (artigo 10). A partir desse momento, o STF no mais conheceu das aes ou recursos de HC, nos quais a priso do paciente termo tcnico para designar aquele que sofre violncia ou coao em sua liberdade de locomoo, compreendidos aqui os casos de ameaa tivesse sido em decorrncia de indiciamento por algum desses delitos. Continuou, porm, apreciando recursos criminais em processos sobre crimes polticos, tramitados desde o AI-2 na Justia Militar.5. Entre 1964 e 1968, h registro de vrias concesses e de denegaes de habeas corpus. Como veremos, nos primeiros anos do regime militar, o STF mostrou um comportamento errtico, ora se decla-rando incompetente para julgar habeas corpus impetrados por adversrios do regime militar; ora julgando e deferindo os pedidos. Nas pginas que seguem, sero descritas as condies em que foram tomadas essas decises contraditrias. Em primeiro lugar, sero colocados em evidncia os elementos do ordenamento jurdico do regime militar que diretamente contriburam para o fenmeno. Em seguida, sero analisadas algumas decises do STF que ilustram essa mudana de atitude, bem como os fatores que nela interfe-riram. Sero, ento, comentadas algumas decises do STF posteriores a 1969, em recursos ordinrios criminais, nas quais h meno violncia cometida contra presos polticos na fase do inqurito. 1. O ORDENAMENTO JURDICO DO REGIME MILITAR6. A ordem jurdica do regime militar era hbrida: ainda vigorava a Constituio de 1946, porm, nos limites estabelecidos pelos atos institucionais que passaram a ser editados. Em outras pala-vras, ao lado de uma ordem de base constitucional, de carter permanente, havia uma ordem de base institucional, de carter transitrio, que vigoraria o tempo que fosse necessrio para consolidar o pro-jeto poltico dos militares. As Constituies de 1946 e de 1967 alterada pela Emenda Constitucional no1/1969 e os atos institucionais editados durante o regime eram tidos pelos militares como normas fundacionais, a partir das quais se construiu o ordenamento jurdico da ditadura.7. Nesse contexto, o ato institucional datado de 9 de abril de 1964 (depois designado como AI-1) foi editado pelo Comando Supremo da Revoluo (CSR) sob o fundamento de que a revolu-o se legitimava por si prpria, sem a participao do Congresso Nacional ou de nenhuma outra instncia de representao poltica. Os atos subsequentes, at o AI-11, foram editados pelo presidente da Repblica. Em virtude da enfermidade e posterior afastamento do ento presidente Costa e Silva, 93617 o judicirio na ditaduraem 1969, os seis ltimos atos institucionais, do AI-12 ao AI-17, foram editados conjuntamente pelos ministrosdaMarinha,doExrcitoedaAeronutica.Oconjuntodos17atosinstitucionaisrevela um processo de fortalecimento do Poder Executivo, que gradualmente foi se sobrepondo aos demais poderes, especialmente ao Judicirio. De fato, j com o advento do AI-1, as restries aos poderes do Judicirio foram sendo formalizadas, na medida em que, aps suspender por seis meses as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade e estabilidade, o seu artigo 7o, pargrafo 1o, tornou possvel aposentaroudemitir,pordecretopresidencial,servidoresfederais,rolqueincluaosmembrosda magistratura. O AI-1 disciplinou a eleio do novo presidente da Repblica, em 3 de outubro de 1965 (com posse em 31 de janeiro de 1966), sem nenhuma referncia ao presidente da Repblica anterior, Joo Goulart, que havia sido legitimamente eleito em votao popular ou ao presidente da Repblica que se intitulava em exerccio, o general Humberto de Alencar Castelo Branco. Ocorreram dispensas, reformas, aposentadorias ou demisses sumrias de quem, a juzo da ditadura militar, tivesse atentado contra a segurana do pas, o regime democrtico e a probidade da administrao pblica. Ao presi-dente da Repblica, o AI-1 conferia poderes largussimos, incluindo o de cassar mandatos, suspender direitos polticos, intervir nos estados, decretar estado de stio e emendar a prpria Constituio. O controle judicial manteve-se restrito a formalidades, fcando excludos de qualquer apreciao judicial os atos praticados com fundamento no ato institucional.8. Com a edio do AI-2, em 27 de outubro de 1965, foi declarada mantida a Constituio de1946.Foramextintosospartidospolticos,preservaram-seasregrasdaeleiopresidencial,nos termos do AI-1, e os poderes do presidente da Repblica que passava, tambm, a decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Cmaras dos Vereadores. O AI-2 permitiu a edio de atos complementares aos atos institucionais e leis, alm de decretos-lei sobre matria de segurana nacional (no incio, apenas durante o recesso do Congresso Nacional). Promoveu-se uma interveno direta na estrutura do Judicirio: suspenderam-se as garantias dos juzes de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, e aumentou-se o nmero de ministros do STF de 11 (nmero fxado pelo Decreto no 19.656/1931) para 16, dividindo-se a corte em plenrio e trs turmas de cinco ministros cada uma. Ampliou-se a competncia da Justia Militar sobre os civis antes prevista para a represso de crimes contra a segurana externa do pas ou as instituies militares aos crimes contra a segurana nacional ou as instituies militares; estabeleceu-se que a competncia da Justia Militar nesses crimes deveria prevalecer sobre qualquer outra defnida em leis ordinrias; imps-se o julgamento prvio, pelo Superior Tribunal Militar (STM), dos HC impetrados pelos acusados desses crimes; e extinguiu-se o foro privilegiado de governadores de estado e de seus secretrios. Ainda no que concerne s modi-fcaes implementadas na estrutura do Poder Judicirio pelo AI-2, faz-se meno ao artigo 6o, que, ao alterar o inciso II do artigo 94 da Constituio de 1946, restabeleceu a Justia Federal de primeira instncia,2 cujo provimento inicial deveria se dar por nomeao, pelo presidente da Repblica, dentre cinco cidados indicados na forma da lei pelo Supremo Tribunal Federal. Tais alteraes, somadas s empreendidas pelo artigo 6o do AI-2 ao pargrafo 3o do artigo 105 da Constituio de 1946, demons-tram o intento deliberado do regime ditatorial de alinhar a magistratura federal de primeira instncia com a ideologia e a burocracia do regime. No por acaso, a magistratura federal tinha por atribuio julgar, mesmo que no exaustivamente, as seguintes matrias: os crimes polticos e os praticados em detrimentodebens,serviosouinteressedaUniooudesuasentidadesautrquicas,ressalvadaa competncia da Justia Militar e da Justia Eleitoral; os crimes contra a organizao do trabalho e o exerccio do direito de greve e os HC em matria criminal de sua competncia ou quando a coao comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014937proviesse de autoridade federal no subordinada a rgo superior da Justia da Unio. O AI-2 deveria vigorar at a posse do presidente da Repblica a ser eleito em 3 de outubro de 1966.9. Em 5 de fevereiro de 1966, foi editado o AI-3, que disps sobre a eleio indireta para presidente e vice-presidente da Repblica e para governadores dos estados, e sobre a nomeao para prefeitos municipais das capitais. Os prefeitos dos demais municpios seriam eleitos por voto direto emaioriasimples.Foireiterada,ainda,porforadoseuartigo6o,aexclusodeapreciao,pelo Judicirio, dos atos praticados com fundamento nesse ato institucional e em seus atos complementares.10.Porseuturno,oAI-4,editadoem7dedezembrode1966,convocouoCongresso Nacional a reunir-se, extraordinariamente, entre 12 de dezembro de 1966 e 24 de janeiro de 1967, para discusso, votao e promulgao do projeto de Constituio apresentado pelo presidente da Repblica (aquelaqueviriaaseraConstituiode1967).Dessavez,nofoiprevistoqueosatospraticados com fundamento nesse ato institucional fcariam excludos de apreciao judicial. Nesse contexto, relevante sublinhar que, j em sua exposio de motivos, o redator fnal do projeto da Constituio de 1967, Carlos Medeiros da Silva, ministro da Justia e Negcios Interiores, fez meno especfca ampliao da ao do Executivo, na pessoa do presidente da Repblica, em contrapartida a um supos-to reforo ao Poder Judicirio, para alm do exerccio da funo tradicional de proteo aos direitos individuais, foi garantido o exerccio do controle de constitucionalidade, ou seja, competncia para analisar a compatibilidade entre a constituio e qualquer ato jurdico, cuja efetividade, ainda, estaria condicionada apreciao pelo procurador-geral da Repblica.11. Merecem igual destaque a alterao promovida pela Constituio de 1967 nas atribui-es do STF (artigo 114) e a ratifcao da ampliao de competncias da Justia Militar (artigo 122), outrorafrmadas peloAI-2e, emseguida, modifcadas quando da edio doAI-6. A Constituio de1967enunciouumroldedireitosegarantiasfundamentais,entretanto,decartermeramente formal, porque restritivos em sua aplicao e passveis de suspenso, nos termos do artigo 151: aquele que abusasse dos direitos individuais previstos nos pargrafos 8o, 23o, 27o e 28o do artigo anterior, e dos direitos polticos, para atentar contra a ordem democrtica ou praticar a corrupo, incorreria na suspenso de seus direitos polticos pelo prazo de dois a dez anos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal mediante representao do procurador-geral da Repblica, sem prejuzo de ao civil ou penal cabvel, assegurada ao paciente a mais ampla defesa. Por meio de seu artigo 173, a Constituio de 1967 excluiu de apreciao judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revoluo de 31 de maro de 1964, assim como, de acordo com o inciso I, pelo governo federal, com base nos Atos Institucionais no 1/1964, no 2/1965, no 3/1966 e no 4/1966, e nos atos complementares desses atos ins-titucionais. Verifca-se, portanto, que o ordenamento jurdico urdido pela ditadura, ao subordinar os demais poderes ao Executivo e ao restringir o controle dos atos institucionais e o exerccio dos direitos e garantias fundamentais, fndou por desconsiderar paulatinamente um dos mais basilares preceitos do constitucionalismo moderno: a separao de poderes. 12.OutramatriaincludanaConstituiode1967,refere-senomeaodejuzespara aJustiaFederal.DiferentementedopreceituadopeloAI-2epelaLeino5.010/1966,nosquaisa nomeao era frmada por ato do presidente da Repblica, o novo texto constitucional estabeleceu, em seu artigo 118, que tal expediente deveria ser implementado pelo presidente da Repblica, dentre 93817 o judicirio na ditadurabrasileiros maiores de 30 anos, de cultura e idoneidade moral, mediante concurso de ttulos e provas organizado pelo Tribunal Federal de Recursos, conforme a respectiva jurisdio.13. Quando j composto, majoritariamente, por ministros nomeados pela ditadura, o STF foi chamado a pronunciar-se sobre a alterao promovida pelo artigo 118 da Constituio de 1967, nos autos do Mandado de Segurana no 18.973, ocasio em que negou a segurana, nos termos do voto do ministro relator Temstocles Cavalcanti, com a divergncia dos votos dos ministros Evandro Lins, Hermes Lima e Victor Nunes Leal. Tal mandado de segurana foi impetrado por juzes federais substitutos, que arguiram o seu direito lquido e certo ao provimento do cargo efetivo de juzes federais, em razo de aprovao em concurso de provas e ttulos, tal como exigido pela Constituio de 1967. Os impetrantes defendiam que o presidente da Repblica no poderia utilizar-se de livre nomeao para, nos termos do AI-2, prover o cargo de juzes federais, uma vez que a Constituio de 1967, ento em vigncia, demandava requisito especfco de aprovao em concurso de provas e ttulos e gozava de superioridade hierrquica em relao ao AI-2 e Lei no 5.010/1966. A despeito do argumentado, o STF decidiu, em 22 de junho de 1968, por maioria, que o advento da Constituio, e a adoo de um sistema novo, no justifcaria a interrupo da aplicao de um processo apoiado em um texto legal que tem o seu fundamento no ato institucional, aprovados esses atos pela Constituio que os revigorou. Ou seja, decidiu pela prevalncia do AI-2 e da Lei no 5.010/1966, no caso concreto, em detrimento da Constituio de 1967, desconsiderando, assim, os requisitos hermenuticos pertinentes supremacia e vigncia constitucional.14. Por sua vez, o AI-5, datado de 13 de dezembro de 1968, embora declarasse mantidas aConstituiode1967easconstituiesestaduais,estabeleciaregrasemfagranteviolaoaelas, comoaautorizaoparaqueopresidentedaRepblicapudessedecretarorecessodoCongresso Nacional e a interveno nos estados e municpios; legislar sobre todos os assuntos; cassar mandatos e suspender direitos polticos; demitir, remover, aposentar, reformar, mandar para a reserva ou pr em disponibilidadequalquerservidor;determinaroconfscodebens;decretarestadodestio;eeditar atos complementares. O AI-5 limitou o acesso ao Judicirio, ao suspender a garantia de habeas corpus nos crimes mencionados em seu artigo 10 e ao ratifcar a excluso j expressa nos atos institucionais anteriores de qualquer apreciao judicial de todos os atos praticados de acordo com referido ato institucional e seus atos complementares, bem como os respectivos efeitos (artigo 11). Ademais, o AI-5 permitiu que o presidente da Repblica interferisse diretamente na composio do Judicirio, ao asse-gurar-lhe, assim como j havia sido feito pelo AI-1 e pelo AI-2, o poder de, mediante decreto, demitir, remover, aposentar ou pr em disponibilidade qualquer titular das garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade (artigo 6o). Com isso, deu ensejo edio do decreto de janeiro de 1969 que aposentou compulsoriamente os ministros do STF Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, ao que seguiu a sada voluntria do ento presidente do tribunal, Antnio Gonalves de Oliveira, bem como do ministro Antnio Carlos Lafayette de Andrada. 15. O processo de reforma no Judicirio foi concludo com a edio do AI-6, em 1 de fevereirode1969,quemodifcouacomposiodoSTF,oqualvoltouaserconstitudopor11 ministros, no devendo ser preenchidas as vagas que viessem a ocorrer, at que se chegasse a esse novo nmero de vagas. Redefniu a competncia da Justia Militar e manteve em vigor todas as emendas constitucionais produzidas por atos complementares subsequentes ao AI-5, excluda qual-quer apreciao judicial. comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 201493916. Em sntese: durante o regime militar, num processo iniciado em 1964 e concludo em 1969, restringiu-se, de um lado, o acesso ao Poder Judicirio, ao impedir-se o controle judicial sobre determinadas matrias; de outro, possibilitou-se a interferncia, pelo presidente da Repblica, na estrutura e na compo-sio das instituies judicirias, mediante criao e extino de cargos e aposentadoria de magistrados.2. A JURISPRUDNCIA DO STF INCIDENTE SOBRE O HABEAS CORPUS17. O STF, como colegiado, no questionou a validade dos atos institucionais, nem se insur-giu contra as restries por eles impostas ao controle judicial. Entretanto, j em 1964, quando vigorava apenas o AI-1, o STF inaugurou um perodo marcado por sucessivas concesses de habeas corpus (HC) em favor de civis acusados de crimes contra a segurana nacional, tendo em vista as irregularidades verifcadas nos respectivos inquritos policiais militares, aps uma fase inicial em que a corte se decla-rava incompetente para julgar HC contra atos de autoridades militares e remetia os casos para o STM. Essa mudana ocorreu mediante a utilizao de novos argumentos para justifcar a postura que passou a ser adotada. Em um primeiro momento, os pedidos de HC eram analisados tendo como referncia a autoridade coatora, isto , se a autoridade responsvel pelo ato impugnado era civil ou militar, e, sendo militar, a competncia seria do STM. J em um segundo momento, os ministros do STF que votaram pela concesso da ordem lanaram mo de outras justifcativas. 18. Para ilustrar o incio da primeira alterao mencionada da declarao de incompetn-cia para apreciar os HC ao incio da concesso dos pedidos , traz-se a lume o julgamento do recurso de HC 40.865, de 5 de agosto de 1964, que estabeleceu: No est sujeito jurisdio militar o civil acusadodaprticadedelitocomumnoenquadrvelnashiptesesprevistasnoartigo42,daLei no 1.802, de 5 de janeiro de 1953, que defne os crimes contra o Estado e a ordem poltica e social.3 Assim, o tribunal, por unanimidade de votos, conheceu do recurso e deu-lhe provimento para conceder a ordem requerida. Sob essa perspectiva, ao decidir-se sobre a competncia, se do STF ou do STM, no se analisou o problema tendo como referncia a autoridade coatora, e sim o delito, se comum ou se cometido contra o Estado e a ordem poltica e social. 19. Essa alterao no entendimento da suprema corte brasileira fca clara no HC 41.879 julgado em 17 de maro de 1965, portanto, antes do AI-2. Nele, Mrio Roriz Soares de Carvalho havia sidoindiciadoeminquritopolicialmilitar(IPM)instauradoemGois.Aautoridaderesponsvel determinou sua priso e remeteu o inqurito para a Justia Militar. Diante da iminncia de ser preso e processado, o paciente entrou com pedido de HC, alegando no somente inexistncia de crime e de indcios sufcientes de autoria, mas tambm incompetncia da Justia Militar e, consequentemente, a competncia do STF. Em resumo, afrmou que seu ato no era criminalmente tipifcado, que ele no eramilitarequeseuenquadramentonaLeideSeguranaNacionalviolavapreceitoconstitucional que garantia aos civis responder perante o foro comum. No que diz respeito competncia do tribu-nal, afrmou o ministro relator Hermes Lima que, sendo autoridade coatora a Auditoria da 4a Regio Militar, o STF no era competente para tomar conhecimento do habeas corpus. J o ministro Evandro Lins afrmou que o status da autoridade coatora serviria como critrio em face de situaes duvidosas, equvocas, quando, ainda no nascedouro da acusao, a autoridade policial militar informava que ha-via uma infrao militar e no dispnhamos de meios para verifcar a procedncia ou improcedncia da infrao de natureza militar. Para a confrmao da natureza da infrao, porm, outros elementos 94017 o judicirio na ditaduradeveriam ser considerados. E um deles poderia ser a tipifcao do ato imputado ao paciente. Conforme a acusao, o paciente seria um comunista agitador, tendo participado, como estudante, de todos os movimentos subversivos de sua poca. Em cerimnia de formatura, teria pronunciado, na condio de orador de turma, violento discurso de contedo ideolgico. Em seu voto preliminar, o ministro Antnio Martins Vilas Boas afrmou, no entanto, que:[...] ningum deve ser processado e condenado pelas ideias que professa. So necessrios atos positivos, ou seja, que o indivduo tente mudar a ordem poltica e social, mediante ajuda de Estado estrangeiro ou de carter internacional. Pensar desta ou daquela forma no crime. Quando a pessoa d corpo a esse seu pensamento, ligando-se a um Estado estrangeiro ou de carter internacional, a sim, cabe a sua autuao no artigo 2o, da Lei 1.802, seria um crime de competncia da Justia Militar.420. No mesmo sentido, manifestou-se o ministro Victor Nunes Leal: [...] as concluses do inqurito, aqui mencionadas, no descrevem fato delituoso; se houvesse delito,noseriadacompetnciadaJustiaMilitar.Acolho,portanto,opedidopelosdois fundamentos:porfaltadejustacausaeporincompetnciadaJustiaMilitar.Setodosos processos em que se alega subverso da ordem poltica e social pudessem envolver, ao arbtrio do acusador, problemas de segurana externa, praticamente desapareceria quase toda a com-petncia da justia comum em crime poltico. Com critrio to elstico, difcilmente, hoje em dia,qualqueraosubversivaescapariadapechadecomprometernossaseguranaexterna, seja de um lado, seja de outro.5 21. Nesse momento, vigorava a redao do artigo 108, pargrafo 1o, da Constituio de 1946, na qual a competncia da Justia Militar se estendia aos civis, nos casos, expressos em lei, de represso a crimes contra a segurana externa do pas ou contra as instituies militares. Tal dispo-sitivo, entretanto, fndou por ser alterado pelo AI-2, de forma que a Justia Militar passou tambm a assumir a atribuio de julgar os crimes contra a segurana nacional cometidos por civis. O HC 41.879 foi conhecido graas ao voto de desempate do presidente do STF, ministro lvaro Moutinho Ribeiro da Costa, em que se l:Embora,nocaso,aautoridadecoatorasejamilitar,decorrendodaoentendimento, alislgico,dequecaberia,noaoSupremoTribunalFederal,mas,sim,aoSuperior Tribunal Militar conhecer do pedido, pela natureza do delito militar, observe-se que no se confgura, na espcie, a tipicidade delituosa militar [...]. Se esse moo ideologicamente alardeia convices sobre a doutrina poltica comunista, o seu ponto de vista est defendido pela Constituio federal: livre no cidado pensar, politicamente, como bem entender. O que a Lei de Segurana impede, o que o Cdigo Penal probe e pune severamente que o cidado pratique atos subversivos da ordem legal constituda. E este aspecto no se v demonstrado no caso dos autos.622. Se a deciso de conhecer do HC 41.879 foi tomada por maioria estreita, a deciso de, no julgamento de mrito, deferir o pedido e conceder a ordem foi tomada por unanimidade. Disso resulta o seguinte quadro: de um lado, o STF mostrou-se, nesse acrdo, ainda dividido no que diz comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014941respeito utilizao da autoridade coatora como critrio para defnir competncia e conhecer do pro-cesso; de outro, porm, revelou-se unssono no momento de estabelecer limites para o alcance da Lei de Segurana Nacional. O tribunal entendeu que no havia tipicidade de delito no qual se pudesse considerar o paciente como incurso. O presidente do STF, inclusive, fez referncia em seu voto a uma autoridade militar que se tornou, infelizmente, notria nos seus excessos, nos seus pruridos de defesa da legalidade, entretanto, sem base real, sem base convincente. 23. Outro critrio utilizado com certa frequncia e que permitiu ao STF conhecer e decidir sobre pedidos de HC impetrados por presos polticos foi o tempo de durao da priso processual. Frequentementeeradesrespeitadooprazoprevistoemleiparaaprisoprocessual.Comoapurou Otvio Valrio em pesquisa sobre o tema, embora o prazo mximo para a priso durante a instruo do processo fosse de 60 dias, em geral, os habeas corpus chegavam ao STF com pessoas presas h trs, quatro ou at mais meses.7 Aos poucos, o STF consolidou o entendimento de que a supresso da liber-dade alheia h de ser rigorosamente limitada, porque se somos ciosos de nossa prpria liberdade, tam-bm o devemos ser em relao liberdade dos outros, mesmo que no estejamos de acordo com suas ideias ou com o crime que hajam cometido (HC 42.560). Nesses termos, quando do julgamento do j referido HC 41.879, o presidente do STF, em seu voto de desempate, afrmou que cabe ao Supremo Tribunal Federal, nos casos excepcionais em que a demora no julgamento do habeas corpus importa em coao ilegal expressiva, conhecer antes que outra autoridade dela possa tomar conhecimento.24. Tambm foi considerada a existncia de lei especfca, eventualmente mais benfca ao impetrante. No HC 40.976, por exemplo, em que o paciente era o jornalista Carlos Heitor Cony, l-se, na ementa, que esse profssional, [...] pela publicao de seus artigos, responde pela Lei de Imprensa. A propaganda de proces-sos violentos para subverter a ordem pblica, mesmo estabelecendo animosidade entre classes armadas, tida como prevista na Lei de Imprensa, punida por este ltimo diploma, que, re-produzindo disposies da Lei de Segurana, a revogou, nesta parte. Habeas corpus concedido para que o processo prossiga pela Lei de Imprensa.25. A existncia de foro privilegiado passou igualmente a integrar os critrios utilizados para conhecer e julgar os pedidos de HC. Nesse sentido, no HC 41.296, em que o paciente era o ento governador de Gois, Mauro Borges Teixeira, foi deferida liminar, alegando-se queos governadores dos estados, nos crimes de responsabilidade, fcam sujeitos ao processo de impeachment, nos termos da Constituio do Estado, respeitado o modelo de Constituio federal. Os governadores respondem criminalmente perante o Tribunal de Justia, depois de julgada procedente a acusao pela Assembleia Legislativa. Nos crimes comuns, a que se refere a Constituio, se incluem todos e quaisquer delitos da jurisdio penal ordinria ou da jurisdio militar. Os crimes militares, a que os civis respondem, na Justia Militar, so osprevistosnoartigo108daConstituiofederal.Oscrimesderesponsabilidadesoos previstos no artigo 89 da Constituio federal defnidos na Lei no 1.079, de 1950. A ordem foi, portanto, concedida para que o governador Mauro Borges fosse processado, aps julgada procedente a acusao pela Assembleia Legislativa de seu estado.94217 o judicirio na ditadura27.Sobomesmofundamento,foiconcedidaordememfavordeoutrosgovernadores, comoPlnioCoelho,doAmazonas(HC41.049);JosParsifalBarroso,doCear(HC41.609); eMiguelArraes,dePernambuco(HC42.108).NesteltimoHC,reafrmou-seoentendimento quejseconsolidava:Nohquedistinguirentrecrimecomumecrimemilitarparadefnira competncia, ratione personae e no ratione materiae, quando se trata de julgamento de titulares que tm direito a foro especial em decorrncia da eminncia da funo que desempenharam. Em suma, eis o quadro do STF s vsperas da edio do AI-2: uma corte que se mostrou hesitante no que diz respeito ao critrio a ser utilizado na defnio de competncia para julgar crimes polticos cometi-dos por civis, mas preocupou-se em controlar algumas das arbitrariedades e excessos praticados no mbito do inqurito policial-militar. 28.ComaentradaemvigordoAI-2,em1965,foramintroduzidosdispositivosque,se noimpediram,aomenosdifcultaramnovasdecisesdoSTFnomesmosentido:aextensoda competnciadaJustiaMilitarparajulgarcivisacusadosdecrimescontraasegurananacional,a determinao de que essa competncia prevalece sobre qualquer outra estabelecida em leis ordinrias (a Lei de Segurana Nacional Decreto-Lei no 314, de 13 de maro de 1967 viria a fazer referncia expressa aos crimes cometidos por meio da imprensa) e a atribuio ao Superior Tribunal Militar da funo de processar e julgar os governadores de estado e seus secretrios. Ainda, com a ampliao das competncias da Justia Militar para julgar civis e autoridades acusadas de crime contra a segurana nacional, aumentou o nmero de casos em que o STF julgou prejudicado o pedido de HC. Isso, porm, no signifca que no houvesse concesso de ordem para que pacientes pudessem responder ao processo em liberdade ou que no se tenha mais julgado falta de justa causa para a ao penal.29. Nesse sentido, veja-se, por exemplo, o HC 43.696, de 4 de novembro de 1966, em que se concedeu ordem para que estudantes presos, acusados de crime contra a segurana nacional, res-pondessem em liberdade; o HC 44.002, de 3 de abril de 1967, em que o STF interpretou o sentido de crime contra a segurana para conceder a ordem por falta de justa causa para a ao penal, pois aquilo que se atribua ao paciente, o discurso ofensivo, nada mais era do que o uso da liberdade de expresso, e no crime contra a segurana; e o HC 45.060, de 1o de maro de 1968, em que a ordem foi igualmente concedida para o trancamento da ao penal por falta de justa causa, pois a denncia no narra fatos que confgurassem o enquadramento do paciente nos artigos da Lei no 1.802 por ela invocados. Em outro HC concedido (HC 43.734), o paciente Henrique de Carvalho Matos fora preso, acusado do crime de reorganizar ou fliar-se a partido dissolvido ou suspenso, previsto nos artigos 9 e 10 da Lei no 1.802/1953. Na ementa do acrdo, l-se que[...] supe a lei, nos dois referidos artigos, que o partido tenha sido organizado, registrado e, de-pois, dissolvido ou suspenso. Ora, alega, com razo, o impetrante, juntando o documento de f. 4, que jamais foi organizado ou registrado no Brasil o Partido Operrio Trotskista. No havia, assim, justa causa para a condenao imposta ao paciente. Habeas corpus concedido. 30.Igualmente,foiconcedidoHCpreventivo(HC46.305)emfavordobancrioCid Pereira, denunciado perante a Justia Militar com mais 21 outros cidados, como incurso nos artigos 21;8 25, pargrafo nico;9 e no artigo 3610 do Decreto-Lei no 314/1967, que, assim como fazia a Lei no 1.802/1953, defnia os crimes contra a segurana nacional e a ordem poltica e social. Embora o juiz comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014943auditor da 4a Regio Militar, ao receber a denncia, tenha excludo o paciente, o Superior Tribunal Militar reformou essa deciso. O bancrio recorreu e solicitou habeas corpus ao STF, que, por unanimi-dade, concedeu a ordem, alegando falta de justa causa: O simples fato de algum aderir ao marxismo, ou ao comunismo, como convico poltica, flosfca, ideolgica, enfm, doutrinria, no por si s crime, enquanto no passa ao comeo de execuo das atividades especfcas catalogadas na lei penal.31.OSTFjhaviaconcedido,tambmporunanimidade,ordemparatrancamentode ao penal perante a Justia Militar, por inpcia da denncia, no HC45.268. Os pacientes, scios e proprietrios de livraria em Juiz de Fora (MG) foram denunciados em virtude de apreenso, nesse esta-belecimento, de jornais, livros e trabalhos acadmicos relativos a comunismo, ao popular, marxismo, histria militar do Brasil e o movimento de 1964, dentre outros temas. No acrdo, afrma o relator que a denncia no s inepta, por deixar de fazer exata narrao da conduta criminosa e da forma de participao de cada um dos acusados, como no assenta em justa causa, falta de tipicidade das infraes enumeradas. V-se, portanto, que, no obstante o AI-2 tenha imposto algumas restries ao STF, elas no o impediram de conceder ordens para que fossem soltos os pacientes e trancadas aes penais em curso na Justia Militar. Destarte, se certo que com o novo ato institucional foi ampliada a competncia da Justia Militar, de forma a evitar intervenes do STF em processos e julgamentos de determinados crimes ampliao cuja validade esse tribunal no questionou , no menos cor-reto dizer que remanesceu alguma margem de manobra para que o STF pudesse interpretar e aplicar a lei num sentido mais favorvel aos pacientes. Pode-se afrmar, ento, que, at as vsperas da edio do AI-5, o tribunal, muitas vezes, conhecia do pedido de HC e, com frequncia, concedia a ordem.32. Com a edio do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, porm, foi suspensa, conforme j observado, a garantia de habeas corpus nos casos de crimes polticos (crimes contra a segurana nacio-nal, contra a ordem poltica e social e contra a economia popular). A partir desse momento, diversos pedidos no foram conhecidos. Criou-se uma situao em que, se a autoridade apontada como coatora considerasse o delito atribudo ao paciente como correspondente a uma das hipteses do artigo 10 do AI-5, o STF se declararia incompetente para conhecer do pedido. No recurso em HC (RHC) 46.881, por exemplo, o tribunal, por unanimidade, mostrou ainda assim ser possvel, ao menos em determi-nados casos, subtrair da Justia Militar processos que a ela encaminhou ou pretendia encaminhar a autoridade responsvel pelo inqurito. Esse recurso referia-se a paciente preso sob acusao de lenoc-nio. A priso, contudo, no foi em fagrante, nem se realizou amparada por mandado expedido pela autoridade competente para prend-lo. Requereu-se habeas corpus contra o delegado de polcia. Este, no entanto, informou ao juiz que o paciente estava disposio do secretrio de Segurana Pblica, general Luiz de Frana Oliveira. O juiz entendeu ter fcado prejudicado o pedido, quando foi encami-nhado um requerimento ao Tribunal de Justia da Guanabara, solicitando informaes ao secretrio de Segurana, o qual comunicou: A priso est vinculada ao Ato Institucional no 5. Diante dessa informao, o Tribunal de Justia no conheceu do pedido. Aparentemente, os desembargadores no sabiam qual era a acusao contra o paciente ou, se o sabiam, aceitaram a tese de que o crime de lenoc-nio poderia ser uma das espcies dos crimes referidos no artigo 10 do AI-5. Em seguida, foi interposto peranteoSTFoRHC46.881.Orelatordoprocesso,ministroLuizGallotti,ordenouquefossem solicitados ao secretrio de Segurana esclarecimentos sobre o crime de que se acusava o paciente. Em resposta, conforme consta nas folhas 984 e 985, foi afrmado, de um lado, que ele era um dos muitos que conseguiram vantagens materiais expressivas, explorando o lenocnio; de outro lado, porm, que, 94417 o judicirio na ditadura[...] ao ser editado o Ato Institucional no 5, em 13 de dezembro de 1968, fora mais uma vez tornadopblicoqueaRevoluoBrasileiranorenunciaraaospropsitosderestabelecer uma ordem econmica, moral e social condizente com a civilizao ptria [...] O inescrupu-loso comrcio de lenocnio, sob o manto protetor de alvars de licena para o funcionamen-to de hotis, um dos fatores que mais degradam a sociedade [...] Informar ao excelso pre-trio qual o crime imputvel ao paciente, em termos da legislao penal comum, parece, data venia, uma fuga realidade revolucionria [...] O crime de Joo Rodrigues Cerqueira, como o de outros, vai alm da norma penal simples, porque exerce uma atividade antissocial genrica, que precisa ser banida [...].33.AProcuradoria-Geral,compartilhandooentendimentodosecretriodeSegurana, opinoupelonoconhecimento,mas,noSTF,orelatordoprocessoentendeuque,naenumerao do artigo 10 do AI-5, no se inclui o delito de lenocnio, imputado ao paciente [...] Por mais srias e respeitveis que sejam as razes invocadas pela autoridade, a garantia de habeas corpus, quanto a esse crime,noestsuspensa.Deu-se,assim,provimentoparaqueoTribunaldeJustiaconhecesseo pedido e o julgasse nos termos da lei.34. Nesse contexto, assevera-se que o AI-5 representou o fm de uma fase do regime militar e, ao mesmo tempo, o incio de outra, em que, alm de impedir que o Supremo conhecesse dos pedidos de habeas corpus nas hipteses previstas, esse ato institucional admitiu, em janeiro de 1969, que, como j comentado, trs ministros fossem aposentados: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Com isso surgiram trs vagas que poderiam ser extintas ou preenchidas com indicaes do regime. A elas se somaram tambm a vaga do ministro Gonalves de Oliveira, presidente do STF, que renunciou em solidariedade aos colegas compulsoriamente aposentados, e a vaga do ministro Lafayette de Andrada, que pediu aposentadoria. Abriram-se, portanto, cinco vagas, o mesmo nmero de vagas criadas pelo AI-2, em 1965, e extintas pelo AI-6, em 1969.3. A JURISPRUDNCIA DO STF EM RECURSOS ORDINRIOS CRIMINAIS A PARTIR DE 196935. Suspensa a garantia de HC, o STF continuou se manifestando a respeito de acusaes de crimes contra a segurana nacional, quando instado por meio de recursos ordinrios criminais (RC). De acordo com pesquisa conduzida por Swensson Junior, durante o regime militar de 1964, o STF julgou 292 recursos ordinrios criminais relativos a 565 rus a grande maioria, recursos apresentados pelos acusados contra decises que lhes eram desfavorveis , negando provimento a 376 rus, na maior parte das vezes por unanimidade. No perodo entre 1969 e 1974, foram 127 os recursos e 222 rus; no perodo de 1975 a 1979, 143 recursos e 312 rus.1136. Com fundamento nesses recursos, o STF estabeleceu o entendimento de que as confsses extrajudiciais aquelas obtidas na fase do inqurito policial militar, muitas vezes sob tortura seriam admissveis como prova quando testemunhadas e no contrariadas por outras provas (RC 1.254, ministro relator Moreira Alves, julgado em 2 de abril de 1976; RC 1.261, ministro relator Moreira Alves, julgado em 10 de fevereiro de 1976). Como assentado no RC 1.255, as confsses judiciais ou extrajudiciais va-lem pela sinceridade com que so feitas ou verdades nelas contidas (RC 1.255, ministro relator Cordeiro Guerra, julgado em 20 de agosto de 1976). Em um dos julgados sobre essa questo (RC 1.234, julgado comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014945em 25 de abril de 1975), embora se tenha entendido que as evidncias existentes contra os acusados no convenciam,oministrorelatorCordeiroGuerranodeixoudesublinharaimportnciaatribudas confsses feitas nos inquritos, mesmo quando houvesse denncia de obteno mediante tortura: Noacolho,porm,aorientaodoutrinriaesposadapeladoutaProcuradoria-Geralda Repblica,dequetodasasconfssesextrajudiciais,pelosimplesfatodeseremrepelidas em juzo, sob a alegao de terem sido prestadas por coao, no comprovada de qualquer modo, devem ser havidas como destitudas de valor probante.[...] O inqurito policial ou militar pode conter provas, diretas ou indiretas, que, no infr-madas por elementos colhidos na instruo criminal, demonstrem a procedncia da acusa-o, justifcando a convico livre do julgador. [fs. 85-86]37. Muitos dos processos contra os perseguidos polticos que tramitaram na Justia Militar com acusaes de crimes contra a segurana nacional continham denncias de tortura apresentadas pelos rus, como constatou a pesquisa Brasil: nunca mais. Alguns votos de ministros do STF em re-cursos criminais mostram que eles tiveram acesso a essas denncias, sem que tomassem providncias a seu respeito e, no mais das vezes, sem que condenassem expressamente o uso da violncia contra os presos polticos. Por exemplo, no RC 1.113, julgado em 3 de setembro de 1971, o voto do ministro relator Raphael de Barros Monteiro indicou que as evidncias de tortura no seriam razo sufciente para a desconsiderao da confsso, se outros elementos a corroborassem:certoqueorecorrente,emseuinterrogatrio,afrmouque,nodiadesuapriso,foi torturadodurantetodaanoitepelosinvestigadoresqueointerrogaram,comameaasde receber novas torturas (f. 248v.)Se se considerar que o termo de apreenso traz a data de 17 de julho de 1969, e, nesse mesmo dia o recorrente Elenaldo e seu companheiro Luiz foram socorridos no Servio de Pronto Socorro do Recife com contuses, equimoses e escoriaes (fs. 250 e 251), o que vem corro-borar o que consta do interrogatrio do primeiro, tal no pode deixar de equiparar-se a uma verdadeira retratao, no se podendo endossar, por essa forma, o que consta do v. acrdo recorrido, de que foi tranquila a confsso de Elenaldo Celso Teixeira.No se deve esquecer, contudo, como mostra o professor Magalhes Noronha, que tem a retratao efeitos relativos, no prevalecendo ela sempre contra a confsso [...]Face a tais consideraes, se no se pode, em s conscincia, afrmar que a confsso do recorrente Elenaldo perante a autoridade policial, feita mais de um ms aps as torturas que diz ter sofrido, acha-se desacompanhada de qualquer outro elemento de convico, mas, ao contrrio [....], no h seno que se concluir pelo reconhecimento de sua cul-pabilidade. [fs. 13-14] 38. Em alguns julgados no sequer dado crdito denncia de tortura. No RC1.122, decididoem29deoutubrode1974,relatadopeloministroEloydaRocha,aalegaodeque as confsses que fundamentaram a condenao pelo STM foram obtidas sob coao fndou por 94617 o judicirio na ditaduraserrejeitadasoboargumentode que a rno ofereceu,porm, qualqueresclarecimentosobre a arguida coao, nem tentou produzir qualquer prova (f. 9). J no RC 1.270, decidido em 14 de setembro de 1976, o ministro relator Carlos Tompson Flores igualmente argumentou haver insufcientedemonstraodequeaconfssodosacusadosteriasedadosobtortura:certo quegrandepartedosacusados,inclusiveorecorrente,invocaterassinadosuasconfssesaps torturas. Mas, embora alguns deles mencionem atitudes que deixariam vestgios, no encontrei nos autos elementos que as comprovassem, como poderia ser feito atravs de percia (f.14). Leia-se, ainda, na mesma linha, o parecer do procurador da Repblica integrado como parte das razes de decidir no voto do ministro relator Djaci Falco, no RC 1.132: A alegao de violncia contra os acusados, no decorrer do inqurito, no resulta provada, harmonizando-se as confsses ento feitas ao conjunto da prova (f. 21).39. Em outros casos, a tortura foi considerada elemento sufciente para tornar imprestvel a confsso. No RC 1.115, relatado pelo ministro Oswaldo Trigueiro e julgado em 5 de agosto de 1971, o parecer da Procuradoria-Geral da Repblica atestava que, conforme alegado pelos rus, a confsso fora extorquida por meio de violncias a que no se tornou possvel resistir. Diante disso, o Ministrio Pblico requereu que fossem ouvidas as autoridades acusadas da prtica de tais violncias e [...] as declaraesporestasprestadasimpressionaramnegativamenteoConselhoPermanentedeJustia, sendo inverossmil a afrmao do delegado de que, trabalhando h 26 anos na polcia, jamais vira um pau de arara (f. 60). O STF acolheu o parecer da Procuradoria-Geral da Repblica, absolvendo os recorrentes por falta de suporte probatrio. De modo semelhante, no RC 1.143, julgado em 29 de maio de 1973, a alegao de tortura foi admitida para o efeito de rejeitar a confsso do ru como prova contra ele. O acusado alegava em seu recurso que a deciso da Justia Militar que o condenou aceitara como vlida confsso policial tomada sob coao no DOPS por autoridades estaduais in-competentes. Conforme o voto do ministro relator Aliomar Baleeiro, o recorrente descreve [...] as vrias e repetidas torturas a que teria sido submetido (choques: nu, amarrado em cadeira de zinco conectadacorrenteeltrica;toresdosmembrosebatidascontraasgradesdocrcere;banho com as roupas sem outras para trocar; sevcias etc.) (f. 18-A). O ministro afrma ainda que outro acusadoreferetratamentoparecido,emboracommenosluxodepormenores(f.19),emostra acreditar na veracidade das alegaes:Pelonoticiriodosjornais,dennciasdebispos,comodoEsquadrodaMorte,processo contra o delegado Fleury, policial Muriel etc. etc., sou ctico a respeito de confsses extra-das de portas fechadas, quase sempre calada da noite, sem assistncia de advogados, apesar de decorridas 24 horas da priso.[...] Vinte sculos de civilizao no bastaram para tornar a polcia uma instituio policia-da, parecendo que o crime dos malfeitores contagia fatalmente o carter dos agentes que a Nao paga para combat-los e corrigi-los.A confsso policial do recorrente longa e permeada de pormenores, sem que se esboce o menor gesto de instinto de defesa, sempre encontradio nas palavras dos acusados. H como queummasoquismodeautoacusaomuitosuspeito.Oconftentequerexpiarocrime, dando s autoridades todas as armas, sem guardar nenhuma. [f. 19]comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 201494740. Nesse caso, no entanto, o STF entendeu que, embora a confsso nessas circunstncias no pudesse fundamentar por si s a condenao, existiriam nos autos outros elementos a corrobor-la, a saber, o material apreendido em poder do ru, de carter nitidamente subversivo: Por essas razes, acho que h prova para a condenao, independentemente das suspeitssimas confsses (f. 20). O recurso do ru foi acolhido em parte, apenas para reduzir a sua pena, em ateno s circunstncias em que o suposto crime fora cometido. Por fm, no RC 1.306, Celso Horta, que foi condenado a 30 anos de priso na 2a Auditoria da 2a Circunscrio Judiciria Militar (CJM) por participao na Aliana Libertadora Nacional (ALN), cuja pena foi reduzida no STM a quinze anos, foi fnalmente absolvido no STF, em 22 de novembro de 1977. O ministro relator acatou integralmente a tese da defesa, sob o fundamento de que somente a prova produzida antes do processo no poderia propiciar condenao.41. Dessa forma, no h dvidas de que as notcias das graves violaes de direitos humanos praticadas pela ditadura militar contra perseguidos polticos chegaram ao conhecimento do STF. Em alguns dos acrdos acima mencionados, a prtica de tortura por agentes do Estado foi expressamente admitida por ministros no contexto dos debates a respeito das provas admissveis para a condenao de pessoas pela prtica de crimes contra a segurana nacional, sem que se determinasse que fossem investigadas as denncias de tortura. B) A ATUAO DA JUSTIA MILITAR42.AJustiaMilitarteveumpapelfundamentalnaexecuodeperseguiesepunies polticas pela ditadura, ganhando especial destaque com o advento do AI-2, de 27 de outubro de 1965, quando foram ampliadas as suas competncias para processar e julgar os crimes contra a segurana na-cional, nos termos da Lei no 1.802/1953 e do Decreto-Lei no 314/1967. Conforme o Decreto-Lei no 1.003, de 21 de outubro de 1969, que instituiu a Lei de Organizao Judiciria Militar, a Justia Militar seria composta por 12 circunscries, tendo por autoridades judicirias: o Superior Tribunal Militar (STM); os Conselhos de Justia Militar; e os auditores. O STM fgurava, precipuamente, como segunda instncia da Justia Militar, que, dentre outras atribuies, era responsvel por apreciar as apelaes e os recursos de decises ou despachos dos juzes; decretar priso preventiva, revog-la ou restabelec-la, por deciso sua, ou por intermdio do relator, em processo originrio ou mediante representao de encarregado de inqurito policial militar; conceder ou revogar liberdade provisria, por despacho seu ou do relator, em processo originrio; e aplicar medida provisria de segurana, por despacho seu ou do relator, em processo originrio. J os Conselhos de Justia Militar tinham por atribuies, dentre outras: processar e julgar os delitos previstos na legislao penal militar ou em lei especial, ressalvada a competncia privativa do STM; decretar a priso preventiva do denunciado, revog-la ou restabelec-la; converter em priso preventiva a deteno de indiciado, ou ordenar-lhe a soltura, desde que no se justifcasse a sua necessidade; e conceder liberdade provisria, bem como revog-la. Em relao aos auditores militares, competia: decidir sobre o recebimento da denncia, pedido de arquivamento do processo ou devoluo do inqurito ou represen-tao; relaxar, em despacho fundamentado, a priso que lhe for comunicada por autoridade encarregada de investigado policial; decretar ou no, em despacho fundamentado, priso preventiva de indiciado em inqurito, a pedido do respectivo encarregado; expedir mandados e alvars de soltura; decidir sobre o recebimento dos recursos interpostos; executar as sentenas, exceto as proferidas em processo originrio do STM; e decidir sobre o livramento condicional, observadas as disposies legais.94817 o judicirio na ditadura43. Com a incorporao das alteraes promovidas pelo Decreto-Lei no1.003/1969, que ins-titucionalizou as punies polticas, a Justia Militar ampliou formalmente suas atribuies, passando a competir-lhe o processamento e o julgamento de civis incursos em crimes contra a segurana nacional e as instituies militares. Com isso, tornou-se uma genuna retaguarda judicial para a burocracia e para a represso ditatoriais, mostrando-se, muitas vezes, conivente ou omissa em relao s denncias de graves violaes de direitos humanos. 44.NosprocessospolticosquetiveramcursonaJustiaMilitar,analisadosnapesquisa Brasil: nunca mais (perodo entre abril de 1964 e maro de 1979), a conivncia com a tortura de presos polticos sobressai nos protestos dos advogados pelas atitudes arbitrrias e cerceadoras dos juzes audi-tores. Segundo a referida pesquisa, era comum que os juzes proibissem que a tortura fosse mencionada pelos rus, ou, ainda, que a meno indicada por estes fosse transcrita em ata. Em alguns casos, essas dennciaseramsubstitudasapenaspeloregistrodequeavtimaalegatersofridocoaofsicae moral.12 A conivncia judicial foi tambm relatada por algumas das vtimas. Nesse sentido, convm sublinhar o relatrio de 1972 da Anistia Internacional, que fez referncia ao caso de Lcio Flvio Ucha Regueira, preso em 1970, no DOI-CODI do Rio de Janeiro, caso em que o juiz tentara por todos os meios impedir que a vtima denunciasse, em juzo, os maus-tratos que havia sofrido, alm de no autorizar que o pblico se fzesse presente durante o seu testemunho.13 45. Ins Etienne Romeu, por sua vez, contou em depoimento ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil que pretendera relatar os maus-tratos sofridos durante sua priso ao juiz au-ditor, no mbito de um dos processos criminais a que respondia perante a Justia Militar (3a Auditoria do Exrcito), [...] mas foi por ele obstada de faz-lo sob o fundamento de que tudo j constava de volumesqueseachavamsobreasuamesa.14Emoutroprocesso,quetramitouna1aAuditoriada Aeronutica, o juiz auditor fez constar do processo notcia dessa informao.1546. Outro caso digno de nota foi mencionado por Anthony W. Pereira, em parecer elaborado a pedido da CNV e enviado em 14 de outubro de 2014, que se refere ao estudante de Geologia da Universidade de So Paulo, Alexandre Vannucchi Leme, que, aos 22 anos, foi preso em 16 de maro de 1973 e, em seguida, levado ao DOI-CODI de So Paulo, por suspeitarem que ele tivesse ligaes comaALN.Conformerelatodeoutrospresospolticosquealiestavam,Vannucchifoitorturado por todo o dia de sua priso e no dia seguinte, quando veio a bito. Os agentes da represso somente tornaram pblica sua morte em 23 de maro de 1973, quando disseram que ele teria sido atropela-do ao tentar fugir dos agentes do DOI-CODI. Apesar de saberem de quem se tratava, uma vez que Alexandre portava carteira de identidade pessoal, os agentes o enterraram como indigente. A famlia do estudante somente teve acesso a seus restos mortais dez anos depois. O advogado da famlia, Mario Simas, requereu 2aAuditoria Militar a abertura de uma investigao para apurar as circunstncias do ocorrido, que restou arquivada sem soluo.47.MerecedestaqueodepoimentoprestadopelojuizauditorNelsondaSilvaMachado Guimares Comisso Nacional da Verdade, em 31 de julho de 2014, quando declarou seu conheci-mento acerca das graves violaes perpetradas em desfavor de presos polticos pelos rgos de represso da ditadura, como tambm procurou justifcar sua omisso em face dessas denncias:comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014949CNV[JosCarlosDias]:Dr.Nelson,osenhormeperdoedizer,vriasvezescomuniqueiao senhor que a pessoa estava presa irregularmente, e o senhor nunca determinou a instaurao de procedimento criminal contra aqueles que praticaram o crime de prender sem comunicar ao juiz. Osr.NelsondaSilvaMachadoGuimares:Dr.JosCarlosDias,osenhoracreditaque havia a possibilidade de se intentar um processo criminal contra uma autoridade policial ou policial militar naquela poca? Eu tive um caso logo que cheguei l, de uns jovens da baixa-da de So Paulo. No eram envolvidos com nenhuma organizao subversiva, no eram. E tinham apanhado na delegacia. Eu era um jovem juiz. Aquilo impressionou no s a mim, mas ao Conselho Militar. Na sentena, isso fcou constando, e eles diziam at o nome do delegadoquetinhasidooautordapancadaria.OSuperiorTribunalMilitar,aojulgara apelao do Ministrio Pblico, em que eles foram absolvidos, mandou que eu tomasse as devidas providncias. Isso a uma pessoa normal faria rir [...]16 48. O dr. Nelson Machado Guimares tambm citou diligncia que fez ao Hospital Militar, para visitar frei Tito, quando constatou sinais de tortura: O sr. Nelson da Silva Machado Guimares: L entrando, surpreendi o mdico de planto e disse: H um preso meu aqui, eu quero v-lo. O mdico era um jovem ofcial. Me levou a um lugar onde estava frei Tito deitado, despido, com evidentes marcas do pau de arara nos pulsos e nos tornozelos. Causou espanto enorme. Eu me dirigi ao mdico: O que houve?. Ele comeou a tergiversar. Frei Domingos estava mais prximo. O rapaz nos falou que ele tinhasidotorturadoetc.FreiDomingosfcavamaisasscomele,aproximou-semais. Ele queria, parece, se confessar. Eu me afastei um pouco com d. Lucas e com o mdico e fcamos conversando. Me lembro de que eu disse ao d. Lucas: Isso uma estupidez, um absurdo!. E era mesmo. Eu disse que tomaria as providncias que estivessem ao meu alcan-ce. Fiz a ele um apelo. Eu entendia, como continuo a entender, que de nada valeria confito de valores, fazer um escndalo a respeito daquilo e sugeri que o cardeal arcebispo de So Paulo, que na poca era d.Agnelo Rossi, que se comunicasse diretamente com o presidente da Repblica, que desse notcia daqueles fatos.17 49. O caso do Riocentro ilustrativo da lenincia da Justia Militar. O episdio (tratado no captulo 13) consistiu em um atentado frustrado ao pavilho de eventos da cidade do Rio de Janeiro, em 30 de abril de 1980. O artefato criminoso (uma bomba) explodiu antes do tempo previsto, dentro de um veculo, onde se encontravam o sargento Guilherme Pereira do Rosrio, que veio a falecer em decorrncia da exploso, e o ento capito Wilson Dias Machado. A representao oriunda do inqu-rito policial militar (IPM) foi arquivada ainda em 1982 pela falta de indcios de autoria do crime. Posteriormente,em1985,foiapresentadopedidodedesarquivamentodoIPM.Arepresentaofoi autuada sob o no 1.061-7/DF e apreciada pelo STM em 15 de maro de 1988. Na ocasio do julga-mento, o STM entendeu que, apesar de haver provas sufcientes sobre o fato e sua autoria em relao aos militares feridos no atentado, no seria o caso de condenao, uma vez que os reprovveis atos ocorridos, na noite de 30 de abril de 1981, no estacionamento do Pavilho do Riocentro, esto alcan-ados pela anistia, [...] e sobre eles dever cair o manto do perptuo silncio, como quis a vontade do 95017 o judicirio na ditaduraEstado, expressa atravs de seus ilustres e eminentes legisladores. Pela primeira vez, um tribunal, por meio de seu colegiado, interpretou e aplicou extensivamente Lei da Anistia aos militares, conferindo incidncia da Lei da Anistia a fatos ocorridos posteriormente sua edio, em 1979. 50. A Justia Militar consolidou-se, sobretudo a partir do AI-2, como verdadeiro arauto da ditadura, na medida em que teve seu raio de atuao ampliado para processar e julgar civis in-cursos em crimes contra a segurana nacional e as instituies militares; colaborou ativamente para a institucionalizao das punies polticas; aplicou extensivamente a Lei da Anistia aos militares; e omitiu-se diante das graves violaes de direitos humanos denunciadas por presos polticos, seus familiares e advogados.C) A ATUAO DA JUSTIA COMUM51. A justia comum federal e estadual foi tambm chamada a pronunciar-se sobre gra-ves violaes de direitos humanos de presos polticos em aes propostas por vtimas ou familiares. A primeira dessas aes foi ajuizada em 13 de agosto de 1973, contra a Unio, pela viva de Manoel Raimundo Soares, Elizabeth Chalupp Soares, que requereu a reparao integral dos danos morais e materiais suportados em decorrncia do assassinato de seu esposo pelos rgos de represso.18 Conforme o relatrio da Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos (CEMDP), Soares foi preso em 11 de maro de 1966, em frente ao auditrio Arajo Vianna, em Porto Alegre, por dois militares paisana que cumpriam ordens do comandante da guarnio, capito Darci Gomes Prange. Foi sub-metido a torturas tanto na Polcia do Exrcito como, em seguida, no DOPS, onde fcou preso at 19 de maro de 1966. Posteriormente, foi encaminhado ilha-presdio do Rio Guaba e, na sequncia, no dia 13 de agosto de 1966, foi levado de volta ao DOPS. Nove dias depois, portanto, em 24 de agosto de 1966, seu corpo foi encontrado boiando, com as mos amarradas, no Rio Jacu, em Porto Alegre, o que fez com que seu caso fcasse conhecido como Caso das Mos Amarradas. Aps diversos recursos interpostos pela Unio, apenas no dia 11 de dezembro de 2000 foi prolatada sentena parcialmente favorvel ao pleito autoral, condenando a r ao pagamento de uma penso vitalcia em favor da viva, com efeitos retroativos ao dia 13 de agosto de 1966, alm de uma indenizao por danos morais e ressarcimento por despesas funerrias. Importante registrar que, a despeito do transcurso temporal e do falecimento da autora originria, em 2009, a deciso condenatria prolatada na primeira instncia ainda no foi integralmente cumprida pela Unio, encontrando-se suspensa, desde maio de 2014, no aguardo do pagamento de precatrio correspondente.52.TambmmerecerelevoaaopropostapelosfamiliaresdeVladimirHerzog,que havia sido preso nas dependncias do DOI-CODI do II Exrcito de So Paulo em 25 de outubro de 1975 e morreu em virtude das torturas a que fora submetido. No mesmo dia do falecimento, o comandodoIIExrcitodivulgounotaafrmandoqueVladimirHerzogteriacometidosuicdio. Sabedora da falsidade da verso ofcial, a esposa, Clarice Herzog, ingressou no Judicirio, em 19 de abril de 1976, em seu nome e no de seus flhos Ivo e Andr, ento menores de idade, com uma ao declaratriaemfacedaUnio.19Nessaao,pleiteouadeclaraodaresponsabilidadedaUnio pela priso ilegal, tortura e assassinato de Vladimir Herzog, bem como a declarao da consequente obrigao de indenizar os autores, em decorrncia dos danos morais e materiais que os fatos lhes causaram. Em 27 de outubro de 1978, foi proferida sentena pelo juiz Mrcio Jos de Moraes, que comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014951acolheu o pedido apresentado na ao, para reconhecer a obrigao da Unio de indenizar os autores pelos danos materiais e morais decorrentes da morte de Herzog. Alm de verifcar que a Unio no comprovou a verso ofcial de suicdio, a sentena apurou existirem [...] revelaes veementes de que teriam sido praticadas torturas no s em Vladimir Herzog, como em outros presos polticos nas dependncias do DOI-CODI do IIExrcito.2053.Emfevereirode1982,JuliaGomesLundeoutros21familiaresdecombatentes mortos e/ou desaparecidos durante a Guerrilha do Araguaia ingressaram com ao junto Justia FederaldoDistritoFederal,objetivandoqueaUniofossecondenadaaforneceraindicao das sepulturas de seus parentes, para consequente expedio de atestados de bito, bem como a entregar o relatrio ofcial do Ministrio da Guerra datado de 5 de janeiro de 1975.21 A defesa da Unio foi apresentada em agosto de 1982, alegando, em sntese, questes tcnicas processuais que supostamente impediriam o prosseguimento do feito (prescrio, impossibilidade jurdica do pedido e falta de interesse de agir dos autores), ao passo que, em relao ao mrito, se limitou a negaraexistnciadeprovassobreaefetivaparticipaodaspessoasemcombatesbeligerantes, evidnciadosbitos,inaplicabilidadedaConvenodeGenebrapostoqueasatividadessub-versivas jamais passaram de sua fase embrionria e a inexistncia do relatrio de 5 de janeiro de 1975. Em novembro de 1985, foi proferida sentena extinguindo o processo sem julgamento de mrito, sob o argumento de impossibilidade jurdica do pedido, diante da inexistncia de norma expressa que estabelecesse a obrigao de indicar o local da sepultura.54.OTribunalRegionalFederal(TRF),entretanto,emacrdode1993,acolheuo pleito dos autores por votao unnime, determinando que a Unio apresentasse o referido relat-rio de 1975. O recurso especial da Unio em face dessa deciso teve seu seguimento negado diante do ntido carter procrastinatrio. Convm sublinhar que esta no foi a nica oportunidade em queaUnioabusoudeseudireitoaampladefesa,fndandoporprejudicarocumprimentoda deciso. O juiz de primeiro grau, ento, determinou o prosseguimento do processo, e reafrmou a necessidade de entrega do relatrio, com a tramitao do feito em segredo de justia. A Unio novamente se manifestou, alegando, por meio de um ofcio do comando do Exrcito de abril de 2000, a inexistncia do Relatrio Araguaia. Assim, em agosto de 2001, o processo foi encami-nhado juza Solange Salgado para sentenciar, o que se deu em junho de 2006, quando foram determinadas, dentre outras providncias:[...] a quebra de sigilo das informaes militares relativas a todas as operaes realizadas no combate Guerrilha do Araguaia; informe ao juzo onde esto sepultados os restos mortais dos familiares dos autores, mortos na Guerrilha do Araguaia, bem como para que proceda ao traslado das ossadas, o sepultamento destas em local a ser indicado pelos autores, forne-cendo-lhes, ainda, as informaes necessrias lavratura das certides de bito; apresente a este juzo todas as informaes relativas totalidade das operaes militares relacionadas Guerrilha, incluindo-se, entre outras, aquelas relativas aos enfrentamentos armados com os guerrilheiros, captura e deteno dos civis com vida, ao recolhimento de corpos de guerri-lheiros mortos, aos procedimentos de identifcao dos guerrilheiros mortos quaisquer que sejameles,incluindo-seasaveriguaesdostcnicos/peritos,mdicosouno,quedesses procedimentos tenham participado, as informaes relativas ao destino dado a esses corpos e todas as informaes relativas transferncia de civis vivos ou mortos para quaisquer reas. 95217 o judicirio na ditadura[...] para o integral cumprimento desta deciso determino r que, sendo necessrio, proce-da a rigorosa investigao, no prazo de 60 (sessenta) dias, no mbito das Foras Armadas, paraconstruir quadro precisoe detalhado dasoperaesrealizadasna Guerrilhado Ara-guaia, devendo para tanto intimar a prestar depoimento todos os agentes militares ainda vi-vos que tenham participado de quaisquer das operaes, independente dos cargos ocupados poca, informando a este juzo o resultado dessa investigao.22 55. A Unio recorreu novamente ao TRF, o qual, mais uma vez, rejeitou o recurso, cabendo destaque s seguintes passagens: [...] Uma nao no pode tentar tornar-se livre, justa e solidria, pretender construir seus alicerces sobre os pilares da democracia e do respeito dignidade da pessoa humana, sem antes enfrentar seu passado. imperioso analisar e tentar compreender os fatos tristes de sua histria que no deseja ver repetidos. [...] A fgura do Estado uma abstrao, que no contm uma fnalidade ou motivao em si mesma. O Estado existe apenas, e to somente, para promover o bem-estar de seu povo, gerenciaravidaemsociedade,perseguirvalorescomoaigualdade,odesenvolvimento,a justia e a liberdade.[...]Osfatosfalamporsi:operododetristeslembranasdahistrianacional,tobem retratado na literatura nacional, deixam certo o uso da fora das armas contra a fora das ideias; o arrasto do poder constitudo e mantido sem o respeito aos princpios democrticos sobre os cidados que ousarem se insurgir contra o governo do medo.[...] A indefnio quanto ao paradeiro das vtimas, gerada pelo desaparecimento forado, priva os familiares da proteo do direito. Eles tm sua vida transtornada, atormentada, sua integridade psquica e moral agredida.2356. O acrdo determinou o prosseguimento do feito em publicidade, afastando o segredo de justia at a entrega dos documentos, e decidiu que esta deveria ser feita em audincia solene, com a presena de diversos ministros de Estado e comandantes das Foras Armadas. Entretanto, tal au-dincia encontrou bice na liminar proferida em habeas corpus impetrados pelos referidos ministros. Ademais, o acrdo foi objeto de recurso especial, ao qual o Superior Tribunal de Justia (STJ) deu parcial provimento para determinar o restabelecimento integral da sentena de primeiro grau. Assim, retornaram os autos ao juzo de primeira instncia para cumprimento da sentena.57. Em maro de 2009, por deciso proferida pelo juzo da 1a Vara Federal do Distrito Federal, teve incio o cumprimento da sentena. Foi instituda a comisso interministerial com a fnalidade de obter informaes que levassem localizao dos restos mortais de participantes da Guerrilha do Araguaia. Ademais, o Ministrio da Defesa criou grupo de trabalho para investigao dos fatos decorrentes dos combates na regio do Araguaia. Dando continuidade ao cumprimento da sentena, a Unio esclareceu que os trabalhos seriam conduzidos em conjunto com autoridades civis; com a realizao prvia de pesquisas documentais e coleta de depoimentos entre agentes das Foras Armadas, por uma comisso de apurao integrada por membros das Foras Armadas, do Ministrio comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014953PblicoFederalergoscivisdogoverno;ecomarealizaodequalquerdilignciainlococom profssionais de arqueologia e antropologia forenses, acompanhados de observadores da sociedade civil e dos familiares das vtimas. Ainda, a mesma Procuradoria da Unio que anteriormente havia negado a existncia de documentos relacionados Guerrilha do Araguaia juntou ao processo, em 10 de julho de 2009, mais de 20 mil pginas de documentos em poder das Foras Armadas. Medidas adicionais foram tomadas pelo juzo para cumprimento da sentena, como a oitiva dos militares e de testemunhas ainda vivas. Somadas obteno de folhas de alteraes de militares, juntada dos relatrios dos grupos de trabalho, expedies forenses para localizao de restos mortais, exames de DNA utilizando tcnicas at ento inditas em investigaes nacionais, alm de cooperao com equipes tcnicas de outros pases, como Argentina e Holanda.58.Outrasquestespolmicasenvolveramoprocessonessafase.Merecemdestaqueas ameaas sofridas por colaboradores do Grupo de Trabalho do Tocantins, quando da realizao dos trabalhos na regio do Araguaia, o que determinou a abertura de inqurito pela Polcia Federal para apurao de responsabilidade. Da mesma forma, deve ser sublinhada a deciso que decretou o segredo de justia do feito, sob os seguintes fundamentos: [...]pessoasqueviveramnaquelemomentotristedahistrianacionalequehojetentam colaborar com o Poder Judicirio na localizao dos corpos dos familiares dos autores esto sendoameaadasdemorte,razodeestejuzoterofciadoaoDepartamentodePolcia Federalsolicitandoapuraodosfatos.Confere-se,assim,aexcepcionalidadedocasoea relevncia da matria contida nestes autos, a exigir a decretao do segredo de justia, no apenasparagarantirocumprimentodasentenaemexecuo,masparapreservarvidas, matria de interesse pblico.2459. Com relao imprensa, duas decises so dignas de destaque: a deciso que determinou a entrega de documentos em poder do jornal O Estado de S. Paulo para o juzo, diante da prevalncia dos direitos humanos em face de outros direitos. Ainda, a deciso, de outubro de 2012, que vedou a captao pelos rgos da imprensa de imagens dos restos mortais exumados, por entender como pre-ponderante o direito personalidade em relao ao direito da imprensa de acesso aos fatos para conferir efetividade ao direito de acesso informao.60.importantesalientarque,em24denovembrode2010,aCorteInteramericanade Direitos Humanos, ao julgar o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil (ver Captulo 14), condenou o Estado brasileiro a determinar o paradeiro das vtimas desaparecidas e, se for o caso, identifcar e entregar os restos mortais [dos desaparecidos na Guerrilha do Araguaia] a seus familiares. Tambm determinou a continuidade das aes desenvolvidas em matria de capacitao e implementar, em um prazo razovel, um programa ou curso permanente e obrigatrio sobre direitos humanos, dirigido a todos os nveis hie-rrquicos das Foras Armadas. Igualmente, estabeleceu que o Estado deve adotar, em um prazo razo-vel, as medidas que sejam necessrias para tipifcar o delito de desaparecimento forado de pessoas em conformidade com os parmetros interamericanos. At a presente data, entretanto, o Estado brasileiro, a despeito de j ter sido instado execuo de sentena, ainda no cumpriu integralmente o estabelecido no julgado da Corte Interamericana, uma vez que no tipifcou o delito de desaparecimento forado de pessoas em sua codifcao penal, nem determinou o paradeiro das vtimas e desaparecidos na Guerrilha do Araguaia, e tampouco entregou os restos mortais desses resistentes a seus familiares.95417 o judicirio na ditadura61. Outras aes voltadas ao reconhecimento da responsabilidade de agentes pblicos pela prtica de tortura contra presos polticos foram propostas aps o fm do regime militar. Uma delas foi ajuizada por Ins Etienne Romeu em 1999. Antes disso, Ins Etienne j havia denunciado os crimes que sofrera. Diante de seu testemunho, a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de seu Conselho Federal, juntamente com a Associao Brasileira de Imprensa, requereu a abertura de inqurito para apurao dos fatos pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, doMinistriodaJustia,quefndouporarquiv-lo(processoMJ7252/1981).Instambmj haviamovido,semsucesso,umaaodeclaratriaemdesfavordeMarioLodders,proprietrio da casa em Petrpolis onde funcionava o centro clandestino de represso conhecido como Casa daMorte,noqualelahaviasidobarbaramentetorturadaedoqualeraanicasobrevivente. Naquelefeito,ojuiz,emsentenaprolatadade15dejunhode1981,entendeunoterfcado provado o conhecimento, pelo proprietrio, do que se passava na casa ou dos acontecimentos de que a autora foi vtima.25 62. J a ao de 199926 foi movida por Ins Etienne contra a Unio, com o objetivo de ver afrmado judicialmente que agentes ou funcionrios da r foram os autores dos atos de crcere priva-do e de torturas sofridos. A sentena, de 6 de dezembro de 2002, acolheu o pedido de Ins Etienne, afrmando ser [...] notrio que no regime autoritrio militar que vigorou em nosso pas entre 1964 e 1985 direitos e garantias individuais foram suprimidos e as torturas, desaparecimentos e assassinatos ocorreram.27E,almdisso,asentenaconstatouquerestoutambmdevidamentedemonstrado que a autora foi vtima [de] atos de violncia com a fnalidade de obrig-la a fornecer as informaes desejadas pelas autoridades que a interrogavam.28 A Unio recorreu, mas depois apresentou petio nos autos, por meio da qual manifestou sua desistncia do recurso interposto. Nessa petio, a Unio fez referncia ao reconhecimento da condio de anistiada de Ins Etienne pela Comisso de Anistia e concluiu que o pedido principal da apelada nos autos da ao declaratria fora atendido administrati-vamente. Em 8 de agosto de 2007, o Tribunal Regional Federal da 3a Regio homologou o pedido de desistncia apresentado pela Unio.29 63. Posteriormente, forma ajuizados processos para o reconhecimento da responsabilidade de agentes da represso, a exemplo da ao contra Carlos Alberto Brilhante Ustra pela tortura de vtimas da represso. Nesse sentido, um processo importante a ao declaratria em decorrncia de danos mo-rais, ajuizada contra Ustra em 2005 por Janana de Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles, Csar Augusto Teles, Maria Amlia de Almeida Teles e Crimia Alice Schmidt de Almeida.30 O ru, alm de ter chefado a Operao Bandeirante (Oban) e comandado o DOI-CODI do II Exrcito, tambm havia participado pessoalmente da tortura dos autores da ao. Janana e Edson eram, poca, crianas com cinco e quatro anos de idade, respectivamente, e em dezembro de 1972 foram levados ao DOI-CODI do II Exrcito, onde permaneceram por dias para servir de instrumento de tortura psicolgica para seus pais, que estavam sendo torturados naquele local. Crimia tambm foi torturada, chegando a fcar 36 horas sob interrogatrio, mesmo estando grvida de sete meses, como relatou em depoimento CNV: CNV: Voc estava em que ms de gravidez? Sra. Crimia Schmidt de Almeida: Stimo. Sexto para o stimo. CNV: Ento eles sabiam que voc estava grvida? comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 2014955Sra. Crimia Schmidt de Almeida: Visivelmente barriguda. E eles me davam, logo que eles me identifcaram como Crimia, eu passei dia, noite, dia e parte da noite direto em inter-rogatrio. E bvio, me dava cansao e eu dormia, cochilava e era acordada com choques eltricos, com espancamento. Nunca me penduraram num pau de arara, porque acho que a barriga no permitia. Depois desses interrogatrios consecutivos, disseram que eu ia morrer num acidente na Serra das Araras, num acidente com um carro do meu cunhado, que ele teria sido apreendido, e que ele pegaria fogo. Ento todas as noites eu era levada para esse carro e desligavam os motores, e de manh diziam que tinha tido um imprevisto, no po-dem provocar acidente, no entanto que eu fosse para a serra e aguardasse que seria na noite seguinte, e assim era. s vezes eram as roletas russas, s que eu acho que eles me menos-prezavammuito,faziamroleta russa com arma automtica,eless me assustaramcomo primeiro tiro, depois no assustavam mais [...]31 63. A ao judicial proposta visava obter o reconhecimento por meio de sentena judicial de que o ru, agindo de maneira ilcita e com dolo, causou danos morais e integridade fsica de todos os autores. A sentena, prolatada em 1o de outubro de 2008, pelo juzo da 23a Vara Cvel de So Paulo, acolheu o pedido apresentado pelos trs ltimos autores e afrmou existirem provas sufcientes para a responsabilizao de Carlos Alberto Brilhante Ustra pelas torturas sofridas pelos trs primeiros autores. De modo semelhante, destacou que a tortura, como ato ilcito absoluto, faz nascer uma relao jurdica entre eles e Ustra, que pode ser objeto de ao declaratria:Nacontestao,oprprioruinformouquecomandouoDOI-CODIdoII Exrcitoe dirigiu a Oban entre 29 de setembro de 1970 e 23 de janeiro de 1974. Os testemunhos so justamente da poca em que l estavam presos os autores Csar Augusto, Maria Amlia e Crimia. Do que disseram as testemunhas, extrai-se que o local era realmente uma casa de horrores, razo pela qual o ru no poderia ignorar o que ali se passava. Ainda que as testemunhasnotenhamvistotodosessestrsautoresseremtorturadosespecifcamente pelo ru, este no tinha como ignorar os atos ilcitos absolutos que ali se praticavam, pois o comando do DOI-CODI e a direo da Oban estavam a seu cargo. No crvel que os presos ouvissem os gritos dos torturados, mas no o ru.32 64. O Tribunal de Justia de So Paulo, em acrdo de 14 de agosto de 2012, negou pro-vimento apelao de Ustra, confrmando a sentena. Nessa ocasio, foi enfatizado que Ustra, como agente do Estado responsvel pela priso onde os autores foram torturados, violou as normas jurdicas quedeveriacumprir,e,porisso,temodeverderepararosdanosaelescausados,tantoosecon-micos como os morais.32 Ustra ingressou, ento, com recurso especial, cujo julgamento foi iniciado pela 3aTurma do Superior Tribunal de Justia em 21 de agosto de 2014. A ministra relatora, Nancy Andrighi, pronunciou-se a favor do acolhimento do recurso de Ustra porque, em seu entender, o ru teria um direito ao esquecimento dos seus atos, em decorrncia da Lei da Anistia. O voto da ministra relatora foi acompanhado pelo ministro Joo Otvio de Noronha e o julgamento foi suspenso em razo do pedido de vista do ministro Paulo de Tarso Sanseverino.33 65. Uma ao semelhante em face de Carlos Alberto Brilhante Ustra foi ajuizada por ngela Maria Mendes de Almeida e por Regina Maria Merlino Dias de Almeida, respectivamente, compa-nheira e irm de Luiz Eduardo da Rocha Merlino. Merlino, poca com 23 anos, foi detido em 15 de 95617 o judicirio na ditadurajulho de 1971 e levado ao DOI-CODI de So Paulo, onde foi torturado por cerca de 24 horas inin-terruptas e, em seguida, abandonado em uma cela solitria. Seu estado de sade agravou-se e, poucos dias depois, sem tratamento mdico adequado, morreu no Hospital Geral do Exrcito, para onde havia sido levado s pressas. Em seu atestado de bito, consta como data de bito 19 de julho de 1971, com a informao de que Merlino teria falecido em razo de atropelamento sofrido ao fugir de uma escolta que o levaria a Porto Alegre. A falsidade da verso constante desse laudo foi constatada pela CEMDP, que concluiu por unanimidade que Luiz Eduardo morrera em funo das torturas sofridas.34 Seu corpo com as marcas da tortura foi, inclusive, visto pelo marido de sua irm, que conseguiu ultrapassar a vi-gilncia e entrar no Instituto Mdico-Legal de So Paulo por ser delegado de polcia (ver Captulo 11).66. A primeira ao da companheira e da irm de Merlino contra Ustra uma ao me-ramente declaratria , proposta em 2007, no foi conhecida, por deciso do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, que, em 15 de setembro de 2008, entendeu no ser a ao declaratria o instru-mentoprocessualadequadoparaoatendimentodoobjetivoperseguidopelasautoras.35Foi,ento, ajuizada pelas mesmas autoras, contra o mesmo ru, uma ao ordinria de indenizao de dano moral. Nessa segunda ao, as autoras pediam que, uma vez que o ru fora responsvel direto pela morte sob tortura de Merlino e que, em razo disso, elas sofriam graves danos psicolgicos e morais, fosse o ru condenado a ressarci-las pelos danos sofridos. O processo teve sentena favorvel proferida em 25dejunhode2012.Ajuzaverifcouqueaprovaoralproduzidaconfrmaaresponsabilidadede Ustra pelas torturas que levaram Merlino morte, seja no exerccio do comando do DOI-CODI e da operao Oban, seja por meio de participao direta nas sesses de tortura: o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infigidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opo do prprio demandado [...].36 Ustra apelou e seu recurso aguarda deciso pelo Tribunal de Justia do Estado de So Paulo.37 D)CONSIDERAESFINAISSOBREAAPRECIAOJUDICIALACERCADEGRAVESVIOLAESDE DIREITOS HUMANOS67. Os dados coligidos pela CNV permitem avaliar como o Poder Judicirio, mais especif-camente o Supremo Tribunal Federal (STF), a Justia Militar e a justia comum federal e estadual , se comportou quando chamado a pronunciar-se a respeito de graves violaes de direitos humanos.68. No mbito do STF, verifcaram-se trs tipos de atitudes: num primeiro momento, o STF omitiu-se, no conhecendo pedidos de habeas corpus em que a autoridade coatora fosse militar; em etapa posterior, porm, passou no somente a conhec-los como tambm, no mrito, a conceder a ordem, de-ferindo, entre o golpe de 1964 e as vsperas da entrada em vigor do AI-5, a maioria dos pedidos. Com a vigncia do AI-5, porm, o STF, impossibilitado agora de conhecer pedidos de habeas corpus impetrados por acusados dos crimes previstos no ato institucional, foi reduzido, nessa matria, condio de ator secundrio, a quem, quando provocado, na maioria das vezes se declarava incompetente. No sistema de justia do regime inaugurado em 1964, o protagonismo em tudo que dissesse respeito aos crimes contra a segurana nacional passou a ser, depois do AI-5, da Justia Militar. Isso signifcou submeter as pessoas acusadas de crimes previstos no artigo 10 do AI-5 ao julgamento por juzes que tendiam a orientar-se por aquilo que julgavam ser interessante, conveniente e oportuno para a dita revoluo.comisso nacional da verdade relatrio volume i dezembro de 201495769. De modo semelhante, observou-se que a Justia Militar se consolidou como a principal instncia punitiva poltica da ditadura, especialmente com o advento do AI-2, na medida em que suas atribuies foram ampliadas para processar e julgar civis incursos em crimes contra a segurana na-cional e as instituies militares; aplicou extensivamente e a fatos posteriores a Lei da Anistia aos militares; e perpetrou uma omisso e legitimao sistemtica em relao s graves violaes de direitos humanos denunciadas por presos polticos, seus familiares e advogados.70. Na Justia comum federal e estadual, vislumbrou-se um signifcativo abuso do direito de defesa por parte da Unio e dos agentes da represso processados. Observou-se, tambm, um compor-tamento dos rgos judicantes notadamente, das instncias superiores , no mais das vezes, pautado na interpretao do STF, que persiste, ainda na atualidade, por entender a Lei da Anistia como um bice ao processamento e apurao de graves violaes de direitos humanos perpetradas pelos agentes da represso durante a ditadura.71.Destarte,sublinha-seque,emconjunto,asdecisesdoPoderJudicirio,quandodo perododitatorial,refetem,muitasvezes,seutempoeseussenhores;soexpressesdaditadurae de seu contexto de represso e violncia. Os magistrados que ali estiveram ou melhor, que ali per-maneceram frequentemente eram parte dessa conjuntura, inclusive porque, por meio da ditadura militar, foi-lhes garantido um assento naqueles tribunais. Quem quer que tenha sido nomeado para o STF, por exemplo, durante a ditadura, tinha clareza das circunstncias a que estavam jungidos e quais votos eram esperados da sua lavra; sabiam da ausncia de garantias dos magistrados; conheciam as reformas promovidas na composio e atribuies do tribunal; e, sobretudo, eram cnscios acerca de quem deveriam servir. Nesse contexto, conclui-se que a omisso e a legitimao institucionais do Poder Judicirio em relao s graves violaes de direitos humanos, ento denunciadas, faziam parte de um sistema hermtico mais amplo, cautelosamente urdido para criar obstculos a toda e qualquer resistn-cia ao regime ditatorial, que tinha como ponto de partida a burocracia autoritria do Poder Executivo, passava por um Legislativo leniente e fndava em um Judicirio majoritariamente comprometido em interpretar e aplicar o ordenamento em inequvoca consonncia com os ditames da ditadura.1 A expresso crime poltico est inserida na Lei no 6.683/79 (Lei da Anistia) e aplica-se aos casos previstos, especial-mente, no Decreto-Lei no 314/67 (Lei de Segurana Nacional), que versa sobre os crimes contra a segurana nacional e a ordem poltica e social.2 A Justia Federal havia sido extinta em 1937, quando da ditadura do Estado Novo de Getlio Vargas. Foi recriada, somente no mbito de sua segunda instncia, pela Constituio de 1946. Em seguida, coube ao Ato Institucional no 2/65 recri-la, tambm, no mbito da primeira instncia.3 Lei no 1.802/53, artigo 42: Competem Justia Militar, na forma da legislao processual respectiva, o processo e julgamento dos crimes previstos nos artigos 2o, incisos I a III, 6o, quando a vitima for autoridade militar e, fnalmente, 24, 25, 26, 27, 28 e 29.4 Arquivo STF, HC 41.879.5 Ibid.6 Ibid.7 VALRIO, Otvio L. S. A toga e a farda: o Supremo Tribunal Federal e o regime militar (1964-1969). Dissertao de mestrado apresentada Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo. So Paulo, 2010, p. 101.8 Artigo 21: Tentar subverter a ordem ou estrutura poltico-social vigente no Brasil, com o fm de estabelecer ditadura de classe, de partido poltico, de grupo ou de indivduo.95817 o judicirio na ditadura9Artigo25:Praticarmassacre,devastao,saque,roubo,sequestro,incndiooudepredao,atentadopessoal,ato de sabotagem ou terrorismo; impedir ou difcultar o funcionamento de servios essenciais administrados pelo Estado ou mediante concesso ou autorizao: pena recluso, de dois a seis anos. Pargrafo nico. punvel a tentativa, inclusive os atos preparatrios, como delitos autnomos, sempre com reduo da tera parte da pena.10 Artigo 36: Fundar ou manter, sem permisso legal, organizaes de tipo militar, seja qual for o motivo ou pretexto, assim como tentar reorganizar partido poltico cujo registro tenha sido cassado ou fazer funcionar partido sem o respecti-vo registro ou, ainda, associao dissolvida legalmente, ou cujo funcionamento tenha sido suspenso.11 SWENSSON JUNIOR, Walter Cruz. Os limites da liberdade: a atuao do Supremo Tribunal Federal no julgamento de crimes polticos durante o regime militar de 1964 (1964-1979). Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Histria da Faculdade de Filosofa, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo. So Paulo, 2006, pp. 116, 124, 134-135.12 ARQUIDIOCESE DE SO PAULO. Projeto Brasil: nunca mais, projeto A, tomo V, v. 1, p. 15.13 Arquivo Nacional, DSI/MJ: BR_AN_RIO_TT_0_MCP_PRO_0280, pp. 18, 63.14- Arquivo CNV, 00092.000660/2013-31, p. 13.15 Ibid.16 Arquivo CNV, 00092.001698/2014-11.17 Ibid.18 TELES, Janana de Almeida. Os familiares de mortos e desparecidos polticos e a luta por verdade e justia no Brasil. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (coord.). O que resta da ditadura: a exceo brasileira. So Paulo: Boi-tempo, 2010, pp. 272-273.19 Arquivo CNV, 00092.000304/2012-37.20 Arquivo CNV, 00092.000304/2012-37, p. 191.21EmboraesteprocessocorraemsegredodeJustia,talmedidasomentefoiadotadaem16dedezembrode2011, quando a maioria dos documentos e peas processuais j se encontravam em domnio pblico, pelas diversas publicaes acadmicas e nos veculos de comunicao. Ademais, os trabalhos desenvolvidos pela comisso interministerial e grupos de trabalho criados em consequncia dessa ao civil so, em sua maioria, publicados sem restries. As informaes cujo acesso restrito no esto publicadas neste Relatrio.22 Arquivo CNV, 00092.002564/2014-17.23 Arquivo CNV, 00092.002564/2014-17.24 Arquivo CNV, 00092.002564/2014-17.25 Arquivo CNV, 00092.001885/2014-96.26 Ibid.27 Ibid., p. 208.28 Ibid., p. 209.29 Ibid., pp. 423-432.30 Arquivo CNV, 00092.000104/2014-46.31 Arquivo CNV, 00092.001866/2014-60.32 Arquivo CNV, 00092.000104/2014-46. Amlia Teles vs. Ustra, acrdo TJ/SP, pp. 121-155.33 Arquivo CNV, 00092.002268/2014-16. Amlia Teles vs. Ustra, voto da ministra relatora no REsp no 1434498.34 BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comisso Especial sobre Mortos e Desaparecidos Polticos. Direito memria e verdade. Braslia: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007, pp. 169-170.35 Arquivo CNV, 0092.000131/2015-08. Agravo de Instrumento no 568.587-4/5-00, de 20/9/2008.36 Arquivo CNV, 00092.000104/2014-46. Processo no 583.00.2010.175507-9. 20a Vara Cvel do Foro Central, juza Cludia de Lima Menge, p. 11.37 10a Cmara de Direito Privado, relator Joo Carlos Saletti.