valor146-opinião pública e política externa

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  • 7/29/2019 Valor146-Opinio pblica e poltica externa

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    Opinio pblica e poltica externa

    Fbio Wanderley Reis

    Em artigo na Folha de S. Paulo de 22 de maro, HlioSchwartsman examina trabalhos recentes de especialistas estadunidensesem psicologia e cincia cognitiva (especialmente George Lakoff, de quemme ocupei aqui h algum tempo, a propsito de conselhos dados campanha de Obama), os quais demonstrariam que, na escolha doscandidatos pelos eleitores, as emoes so significativamente maisimportantes que a razo. A ideia de metforas ou de framing ou

    enquadramento (esta ltima devida, na verdade, ao trabalho anterior deoutros estudiosos), com seu substrato de conexes neuronais, envolvem a

    percepo dos mesmos objetos com sentimentos positivos ou negativos quecondicionariam fortemente as decises, e a possibilidade de racionalidadena poltica seria posta em xeque, bem como, eventualmente, a viabilidadeda prpria democracia.

    A discusso de Schwartsman, de maneira afim s nfases de Lakoff,

    no considera as ramificaes sociolgicas do tema. A questo daracionalidade do eleitor, vista em ligao com as informaes de quedispe ou sua sofisticao intelectual geral e com o condicionamento porfatores de estratificao social, h muito tomada por especialistas decincia poltica ou sociologia dedicados ao processo poltico-eleitoral.Provavelmente o nome de maior destaque a ser associado a uma posiorestritiva a respeito do assunto o de Philip Converse: desde os anos 1960,Converse aponta as deficincias de estruturao ideolgica, e a

    dificuldade de situar-se diante de rtulos como progressista econservador ou esquerda e direita, em parcelas substanciais noapenas do eleitorado dos Estados Unidos, pas com respeito ao qual issotalvez soe menos surpreendente, mas mesmo do eleitorado francs. E sua

    perspectiva bsica, como revelam balanos de que ele mesmo participa empublicaes recentes (como o Oxford Handbook of Political Behavior, de2007, editado por R. J. Dalton e H.-D. Klingemann), resiste bem a revisesde seu trabalho que outros tm procurado fazer.

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    Uma rea especfica em que surge o tema da informao e daracionalidade do eleitorado diz respeito poltica externa, que me teminteressado aqui. No mesmo volume de Dalton e Klingemann, R.Eichenberg trata de avaliar, em perspectiva transnacional, os embaraos e

    avanos no estudo da opinio dos cidados sobre a poltica externa. Suaavaliao mostra disposies gerais da opinio pblica (moods, comoas chama J. Stimson) que surgiriam em diferentes contextos nacionais einternacionais e cujos vaivns podem ser relacionados de formasignificativa a consideraes relevantes em qualquer momento dado. Esse

    padro de movimentos estveis e sensatos da opinio dos cidados servede base tese central de Eichenberg: enquanto haveria, at os anos 1980,um consenso entre os estudiosos segundo o qual um pblico desinformado

    e desinteressado seria quase por definio incapaz de produzir umaopinio pblica racional em questes de poltica externa, estudos maisrecentes em vrios pases, com mtodos supostamente mais apropriados,

    permitiram falar agora de uma opinio pblica no s racional por suaestabilidade e coerncia, mas tambm plausvel, isto , cujas variaesseriam respostas razoveis a ocorrncias no ambiente global ou a polticasgovernamentais.

    Apesar dos supostos avanos metodolgicos mencionados, emparticular o empenho das pesquisas em diversificar tanto quanto possvel asquestes com referncia s quais se procuraria apreender a opinio

    pblica, o balano de Eichenberg tampouco destaca, bem como os estudosde que trata, a provvel importncia da dimenso relativa estratificaosocial para o tema geral da racionalidade. notvel, por exemplo, quehaja a assimilao tranquila entre a ideia de opinio pblica e o queresulta de pesquisas com amostras do eleitorado em geral, sem que

    qualquer informao seja dada sobre possveis variaes na racionalidadede diferentes categorias socioeconmicas (ou educacionais) de eleitores.Em sntese, qual ser a contribuio do eleitorado mais pobre esabidamente mais politicamente desatento, em particular quanto aos temasde poltica internacional e poltica externa, na conformao dessa novaopinio pblica vista como sensata e racional? No caso do Brasil daatualidade, por exemplo, patente o contraste entre as disposies doeleitorado popular majoritrio e o que costumamos designar por opinio

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    pblica, conformada amplamente pela elite de maior interesse poltico einformao e pela imprensa que politicamente se dirige sobretudo a ela.

    Seja como for, uma constatao particular produzida em pesquisas

    do prprio Eichenberg me parece de grande interesse. Fechei minha ltimacoluna com a meno ao imperativo de construo de uma legalidadetransnacional e mundial, eventualmente capaz de mitigar o peso das merasassimetrias de poder nacional no terreno baldio em que as relaesinternacionais sempre se desenrolam. O exemplo mais dramtico daimportncia desse aspecto na histria recente pode ter sido a Guerra doGolfo, talvez a guerra mais legal jamais ocorrida, em que, no obstanteos elemenos de realkpolitik certamente presentes, o respaldo legimitador

    da ONU permitiu aos Estados Unidos exercerem poder de polcia diante daflagrante violao das normas internacionais pelo Iraque de SaddamHussein. Pois os dados de Eichenberg mostram os nveis inditos deaprovao com que a ao militar contou ento em populaes de pasesmuulmanos (Barein, Oman, Arbia Saudita, Turquia e Emirados rabesUnidos): o nvel de aprovao oscila entre 50% e 60% em mdia, contramdias correspondentes que no vo alm de 25% em outrascircunstncias. Enquadramento, sem dvida. Mas no parece haver por

    que contrapor, nele, a adeso a normas, e seu necessrio componenteemocional, racionalidade.

    Valor Econmico, 29/3/2010

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