valor103-cartolas sem coelhos

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    Cartolas sem coelhos

    Fbio Wanderley Reis

    Em evento universitrio recente, ouvi um filsofo poltico falar daintensidade com que o interesse pela ao poltica motiva o seu trabalho. Adeclarao vinha a propsito das relaes entre a reflexo terica sobrequestes polticas e a bifurcao que contrape a prtica poltica, de umlado, e, de outro, as questes metodolgicas trazidas pela preocupao decorroborao emprica ou factual das proposies que a reflexo produz.Desse ponto de vista, surge a possibilidade de objetar que o interesse pela

    ao poltica, ou o compromisso com ela, pode ligar-se a equvocosvariados e relacionar-se de maneira problemtica com o diagnstico dasituao em que se trata de agir. E a prpria ao, portanto, pode vir a serequivocada e eventualmente carregada de efeitos nefastos.

    Esse , no fundo, o velho tema que associa a ideia de ideologia comdistoro e erro, como se d h muito na chamada sociologia doconhecimento. H um uso nobre de ideologia, frequente no campo da

    poltica, que contrastante com esse, indicando antes a capacidade dereflexo elaborada e tomada de posio sofisticada a respeito dos assuntos

    polticos e pode-se perceber que ideologia poltica envolve, na verdade,os dois elementos, tanto o de construo intelectual mais ou menoscomplexa quanto o de engajamento, parcialidade e rigidez. De todo modo,o componente de rigidez e erro esteve fortemente vinculado, at h pouco,em particular com certas posies mais aguerridas de esquerda, deorientao socializante ou mesmo revolucionria, enquanto as posies

    contrrias se pretendiam pragmticas e realistas ou pelo menos ter osvalores que admitidamente as guiavam fundados na reflexo mais slida e

    bem respaldada nos fatos.

    Com as propores da crise de agora, porm, a conexo entre ideias efatos se tornou objeto de perplexidade geral. Em artigo de dias atrs(Seeds of its own destruction, FT.com, 8 de maro), Martin Wolf dirige-se ideologia como orientao valorativa geral e no deixa por menos: o

    colapso da ideologia do livre mercado equiparado, sem vacilaes, ao daideologia do socialismo revolucionrio. Mas problemas de conhecimento

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    tm lugar de relevo em sua anlise: Wolf no s reconhece ser impossvelsaber, nesta encruzilhada, aonde estamos indo, mas tambm, citando PaulVolcker, aponta a causa crucial da crise no fato de que o novo e sofisticadosistema financeiro, ao contrrio do que se presumia (que sua sofisticao

    mesma transferiria o risco para os mais capazes de administr-lo), falhouno teste de mercado, transferindo o risco aos menos capazes de entend-lo

    e dando razo caracterizao de Warren Buffett dos derivativos comoarmas financeiras de destruio em massa.

    As reavaliaes dos economistas se multiplicam e aprofundam. Emsua coluna de 10 de maro no Valor Econmico, Delfim Netto recorrelongamente crtica dos rumos dominantes da economia como disciplina

    acadmica empreendida em trabalho recente por competentes membros domainstream, como descreve os autores. A se destaca a parcela deresponsabilidade da disciplina na produo da crise, a m alocao derecursos de pesquisa e a falha na relao com a sociedade ao no alertarsobre as limitaes de modelos cuja proliferao ocorre no obstanteignorarem elementos fundamentais na produo dos resultados dosmercados reais.

    Um aspecto saliente quanto aos elementos omitidos se expressa, demaneira s vezes at mesmo desfrutvel, na concepo das relaes entreeconomia e psicologia. Ainda h poucos dias, na televiso, dizia um

    professor de economia que chega um momento em que preciso dispensaros economistas e chamar os psiclogos o que implica, naturalmente, quea economia nada tem a ver com a psicologia, e me faz lembrar IbrahimEris, na presidncia do Banco Central, a declarar a certa altura que ainflao que teimava em subsistir era gratuita ou sem causas, pois todos

    os fatores (econmicos?) se achavam sob controle. Seja como for, temosagora a economia comportamental, com sua nfase nos aspectosirracionais das decises e aes econmicas, e curioso v-la utilizadacom destaque, ao lado da neurocincia e de trabalhos de filosofia da cinciacomo os de Karl Popper e Thomas Kuhn, num volume dirigido sobretudo ainvestidores e de autoria de um administrador de fundos de investimento(Mercados em Coliso, de Mohamed El-Erian, com passagem pela HarvardManagement Company e agora na PIMCO). Mas talvez especialmente

    revelador, a respeito desse volume, que, tendo sido escrito em fins de 2007

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    e comeos de 2008, e portanto a alguns meses da acelerao calamitosa dacrise, posies otimistas e pessimistas (como a de Nouriel Roubini) quantoao rumo a ser tomado pelos acontecimentos so nele confrontadas de

    passagem com a concluso de que s o tempo dir qual das perspectivas

    est certa...

    Comecei com um filsofo, termino com outro. o esloveno SlavojZizek, que apareceu h pouco na Folha de S.Paulo, em entrevista sobre acrise reproduzida do Financial Times. Zizek, que se declara ummarxista modesto, diz ser preciso compreender plenamente o que estacontecendo antes de podermos agir de modo sensato, e recomendaafastamento e reflexo. O papel dos filsofos seria o de ajudar a lanar luz

    sobre as perguntas que as sociedades deveriam formular, em lugar deapresentar solues prontas. Sinto-me como um mgico que mostraapenas cartolas, nunca coelhos. E o pior que, por muito que se reflita,diante da confuso destes tempos extraordinrios e dos especialistas

    perplexos, a competncia com que se faz necessrio contar parece de fatoser a de mgicos capazes de achar coelhos na cartola.

    Valor Econmico, 16/3/2009

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