valadao_claudiaindependenciaoumorte

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  • Copyright 1999by Cecilia Helena de SallesOliveira &Claudia Valladode Maltas (orgs.)

    Dados Internacionaisde Catalogaona Publicao(CIP)(CmaraBrasileirado Livro, SP, Brasil)

    O Bradodo IpirangaI Cecilia Helena de SallesOliveira, Claudia Valladode Mattos (orgs.).- So Paulo:Editora da Universidadede So Paulo: Museu Paulistada

    Universidadede So Paulo, 1999. (Acervo,2).

    Vrios autores.

    ISBN 85-314-0518-1 (Edusp)

    1. Brasil - Histria - Independncia,1822 2. Brasil- Histria - Perododa IndependnciaL Oliveira,CeciliaHelenade Salles. 11.Maltas, ClaudiaValladode.

    99-2882 CDD-981.034

    fndicesparacatlogosistemtico:1. Independncia:Brasil: Histria

    2. Perododa Independncia:Brasil: Histtia

    Direitos reservados

    981.034

    981.034

    Edusp- Editora da Universidadede So PauloAv. Prof. Luciano Gualbeno, TravessaJ, 374, 6 andarEdifcio da Antiga Reitoria,Cidade Universitria,Butant05508-900,So Paulo, SP, BrasilFones: (OXX11) 818.4008, 818.4150 - Fax: (OXX11) 818.4151

    www.Sp.br/edusp~.e-mail: [email protected]

    Museu Paulistada Universidadede So Paulo

    Parqueda Independncia,s/n., Ipiranga04299-970, So Paulo, SP, BrasilFones: (OXXl1) 275.5165

    Fone-Fax: (OXX11) 273,9165

    E-mai!: [email protected]

    Impressono Brasil 1999

    Foi feitoo depsitolegal

  • Independncia ou Morte!:O Quadro, a Academia e o

    ProjetoNacionalistadoImprio1

    Em nossahist6riaainda curtaabundamjdos jeitosgloriososqueexcitamostalentoseinspiram

    ognio [o..]preparai-vospara transmitiraosvindourosessamem6riagloriosaevossasobrasde

    arteseroao mesmotempograndesobrasdepatriotismo.

    Thomaz GomesdosSantos

    Ata da SessoPblica da AcademiaImperialde 05/05/1864

    \II

    quadroIndependgnciaouMorte!dePedroAmrica,

    pintadoem 1888(19),um dosprincipaisexem-

    plosdepinturaacadmicabrasileiraedesuaestreita

    vinculaocomo imaginriodo ltimoperododo

    Imprio. PedroAmrica, queem 1865tornou-se

    :Jrofessordaacademia,foi o artistamaisprximodo

    mperador,esuaspinturas,especialmente~eusqua-lroshistricos,revelammuitoacercado mecenato

    [omonarcaedo papelpolticoatribudopintura

    oficialnaquelemomento.A histriadapinturaaca-

    dmica,comoveremos,marcadapor umaestreita

    relaocomo projetopessoaldo imperadordecons-

    truodeumaidentidadenacional,queeleacredi-

    tavapoderdesenvolverpeloincentivoscinciase

    sartes2. Seugrandeinteressenasatividadesdaaca-

    demiaeseumecenato,quepossibilitoua inmeros

    artistas- inclusivePedraAmrico- completarsua

    formaona Europa, so'bastanteconhecidos3

    oBradadoIpiranga

    \

    Agradeo a Rafael Vieira Souto, do Museu Nacional de Belas-artesdo Rio de Janeiro, pela sua amvel acolhida durante as

    ,squisas que realizei para lins deste trabalho naquela instituio. Agradeo igualmente a Luiz Antnio Ewbank do Museu

    'strico do Itamaraty, por sua ateno e preciosas informaes.

    A anlise que desenvolveremos a seguir deve muito leitura do livro de Lilia Moritz Schwarcz, As Barbas do Imperador

    Pedra 11:Um Monarca nos Trpicos, So Paulo, Companhia das Letras, 1998. Agradeo Prof'. Dr'. Helosa Pontes por esta

    liosa indicao bibliogrfica.

    CI., entre outros, Jos (arlos Duran, Arte, Privilgio e Distino: Artes Plsticas,Arquitetura e Classe Dirigente no Brasil,

    55/1985, So Paulo, Perspectiva, 1989.

  • Porm,gostaramosderessaltaraquiqueo projeto

    deconstruodeumimaginrionacional,aindaque

    tenhasidoacalentadodurantetodoo mandatodo

    monarca,adquiriucoloridosdiferentesaolongodos

    maisde quarentaanosde seureinado.O quadro

    IndependnciaouMorte!dePedroAmrico,quenos

    interessamaisdiretamenteaqui,pertenceaum mo-

    mentoespecficodessahistria,queseiniciouaps

    osacontecimentosdaGuerrado Paraguaieprovo-

    cou, por assimdizer,umaguinadanasestratgias

    deproduodeimagenspatriticaspostasempr-

    ticapelaacademiaeseuprincipalmecenas.

    Como PeterBurke to bem analisouem seu

    livro sobrea construoda imagemdo rei Lus

    XIV4, a sustenraode um regimemonrquico

    dependeriaemgrandepartedo imensoteatroque

    eleencenaa seuredor.O poder do rei derivaria,

    assim,emlargamedida,daeficciadeseusmeios

    de persuaso,ou seja,da funcionalidade d~seu

    sistemade"propaganda".No ,portanto,desca-

    bidaaafirmaodequeum novocontextohistri-

    co inaugura-seno BrasilcomachegadadeD. Joo

    VI esuacorte(contandoaproximadamente20 mil

    pessoas),em 1808,impulsionadapelasinvestidas

    expansionistasdeNapoleonapennsulaIbrica.

    Poucoapsatransfernciadacorte,inicia-sea

    montagemdetodo um sistemadeproduosim-

    blicaquevisavalegitimara novaimagemdo Im-

    prioportugus.Como partedaestruturaodes-

    sasinstnciasde"propaganda",chegaaoBrasil,em

    1816,aMissoArtstica Francesa,encomendada

    pelo prprio rei,a fim deviabilizara formaode

    artistas,arquitetoseartesoslocais,quepudessem

    imprimir o esplendornecessrio nova sededa

    corte e com isso impulsionar a continuidade da

    monarquia.Tal misso,queseencontranaorigem

    daAcademiaImperialdeBelas-artes,marcouuma

    novaatitudediantedaproduovisuallocal,trans-

    formando-a em um dosrgosfundamentaisde

    legitimaodo sistemavigente.A AcademiaImpe-

    rial deBelas-artes,nasceu,portanto,esedesenvol-

    veuaolongodetodoo Imprio, como um projeto

    poltico-esttico.

    Apesar da potencial funo poltica de uma

    academiabrasileiratersidoum dosprincipaisest-

    mulosparao famosodecretodeD. Joo VI de 12

    deagostode 1816,viabilizandoavindadaMisso

    Francesa,o desenvolvimentoefetivode um siste-

    madeproduodeimagensadaptadosnecessi-

    dadespolticas do Imprio fez-seainda esperar.

    EnquantoreinaramD. JooVI eseuftlhoD. PedroI,

    aacademianofoi capazdeimpor comcoernciao

    80

    4. Peter Burke, A Fabricao do Rei: A Construo da Imagem Pblica de Luis XIV, Rio de Janeiro, Zahar, 1994.

  • 5. Logo aps a chegada da Misso Artstica Francesa,morrem o seu diretor Lebreton e o ministro conde da Barca, protetor doJrimeiro diretor da academia, Nicolas-Antoine Taunay.Em conseqncia, Taunay afastado do cargo. assumindo a direo da

    'ecm-fundada instituio um portugus, Henrique Jos da Silva, que ao longo de seus dezoito anos de mandato, combateria

    )s ideais da Misso Francesa,criando uma situao turbulenta e impedindo. na prtica, a implementao da academia cornonstituio de ensino. Cf. Alfredo Galvo, "Resumo Histrico do Ensino das Artes Plsticas durante o Imprio", artigo

    Ipresentado nos Anais do Congresso de Histria do Segundo Reinado, Comisso de Histria Artstica, publicado na Revistado1stituto Histrico e GeogrfiCOBrasileiro, vaI. 1, pp. 49-91, 1984.

    . Na verdade, j desde a morte de Henrique Jos da Silva e a tomada de posse do novo diretor da academia Flix-Emile

    ,unay, em 1834, podemos falar de uma revitalizao do seu projeto: "A rigor, foi Flix Emilio Taunay quem estruturou a

    cademia criando as Exposies Gerais de Belas-artes com suas premiaes, os Prmios de Viagem Europa. acabando as

    bras do edifcio projetado por Grandjean de Montigny, tendo preparado o primeiro catlogo do acervo artstico da mesma,

    ,ndo orientado alguns artistas na sua cadeira de paisagem, tendo conseguido criar o cargo honorfico de 'Membro Corres-

    lndente' e de 'Membro Honorrio'. Foi ele quem prirnelrosugeriu a criao da cadeira de Histria da Arte, em 1848". Porm,

    passo fundamental foi dado a seguir, corno ainda veremos, com a implementao da "Reforma Pedreira" (Mello Jnior,

    )nato, "Manuel de Arajo Porto-Alegre e a Reforma da Academia Imperial das Belas-artesem 1855: A Reforma Pedreira",

    n CriticadeArte,n. 4, p. 27, 1981). Flx-Emileera filho de Nicolas-Antoine Taunay,o primeiro diretor da Academiaque viera,Brasil como parte da Misso Francesa, retornando Frana em 1821, aps ter sido demitido de seu cargo em 1919.

    Cf. Schwarcz, op. cit

    Porto-Alegre havia pedido demisso da academia devido a desentendimentos com Flix-Emile Taunay,ento seu diretor.

    A carta de Porto-Alegre encontra-se hoje no Arquivo Nacional, e foi reproduzida na revista CriticadeArte,op.cit.,pp. 30-Porto-Alegre via na aliana entre academia e Estado, antes de tudo, urna soluo para o problema da insero social do

    sta no Brasil.

    seuprojetos.Foi necessrioqueD. PedroII assu-

    misseo poderem 1840,paraqueestasituaose

    revertesseeseiniciasseumacolaboraomaisefeti-

    vaentreaacademiaeo governoGO novomonarca

    haviarecebidoumaeducaocunhadaemmoldes

    europeuseocupava-seseriamentecom aquesto

    do papelqueasartesdeveriamassumirnaconstru-

    odo imaginriodanao,refletindo,nessecon-

    texto,tambmsobrea importnciafundamental

    deseumecenato.Assim, logo depoisdesuamaio-

    ridade,eletomao fomentoedesenvolvimentode

    instituiescomoo InstitutoHistricoeGeogrfi-

    co,aAcademiadeBelas-arteseo Colgio PedroII

    como tarefapessoal,participandoativamentede

    seusencontrosedemaisatividades7.

    Aproveitando-sedasnovascondiescriadas

    por esseinteressepessoaldeD. PedroII pelasartes,

    o ex-professordaacademia,Manuel Arajo Porto-

    AlegreS,enviou-lhe,em 1853,umacartasugerin-

    do transformaesurgentesnaquelainstituio,de

    forma aviabilizarasidias,acalentadaspelopr-

    prio monarca,de um estreitamentodasrelaes

    entreaproduoiconogrficageridapelainstitui-

    oe o governo9.Os termosda cartaexpunham

    abertamentetal propostade aproximaoentre

    academiaeEstado.Nela, Porto-Alegreenfatizava

    o Bradadolpiranza

    -,

    \

  • 1. D. PEDRa SAGRADO PORINDfGENAS DA TERRA E DIV1NDADES

    Litogravura,c. 1840FundaoBibliotecaNacional

    I

    2. D. PEDRO lI, IMPERADOR,DEfENSOR PERPTUO DO BRASIL

    Xilogravura,1869BibliotecaNacional

  • justamenteautilidadedasartesparaaconstruo

    de um Estadoforte no imaginriodo povo brasi-

    leiro:

    "O Chefe da naono tem um palcio,e o

    Governo, ostribunais,easescolasdo altoensino

    soinquilinos, quemudamdedomiclio continu-

    amente.Esteestadoprovisrio devesercombati-

    do, porqueinfundeno moraldo cidadoaconvic-

    odequenohestabilidade."

    E continuandomaisadiante:

    "Paraqueasartescomecematerumavidare-

    gularefloresampouco apouco,paraqueelases-

    palhemo seubenignoinsuflo namoralpblica,e

    na indstria,necessrioqueafamliaartsticate-

    nha um ponto de constanteapoio no pas,eeste

    ponto o Governo [00']" 10.

    ._-------,-,....',,,'.,',:,,'.'"

    A conseqnciado empreendimentodePorto-

    Alegrefoi suanomeao,em 1855,paraadireo

    daacademia,aoqueseguiuumaprofundareforma

    emseusestatutos,hojeconhecidacomoaReforma

    Pedreira11.Inaugura-se,portanto,comelaum pro-

    jeto comum, queporiaaacademiadiretamentea

    serviodaconstruodo imaginriodo Imprio12.

    PedroAmricoingressacomoalunonaAcade-

    mia Imperial deBelas-artesem 1855,exatamente

    no anodaReformaPedreira,pertencendo,portan-

    to, primeira geraode artistasformadasob a

    novafilosofiadaescola13.

    Antes,porm,depassarmosparaumadiscus-

    somaisdiretadaobradePedroAmrico edesua

    ligaocom o projeto nacionalistado imperador,

    faz-senecessrioaindaexaminarmaisdepertoas

    oBradodoIpiranga

    -,

    10, Porto-Alegre. Crtca de Arte. op, ct.. pp, 31-32,

    11. A reforma leva o nome do ento ministro do Imprro, Luiz Pedreira do Couto Ferraz. que a assinou.

    12, Aps '1855. vrros discursos dos diretores da academia. pronunciados nas sesses pblicas desta instituio por ocasio

    da entrega de prmios ao final das Exposies Gerais, insistem neste ponto, Em 1856. Porto-Alegre evocaria a ligao entre

    academia e imperador, ao procurar fortalecer-se diante das foras de oposio reforma: "Os nossos inimigos so estriges quepiam nas prprias runas e debaixo da noite que os envolve e os faz sonhar em triunfos impossiveis:o Imperador est conoscoe com ele a paternal influncia de sua poderosa real'ldadee de seu ministro. que para ns tem sido um verdadeiro mecenas"

    (CI Ata da Sesso Pblica da Academia de 28/11/1856, documento indito que se encontra no arquivo da Academia, hOJe no

    Museu D.Joo VI, Universidade Federal do Rio de Janeiro), Oito anos mais tarde, o discurso do ento diretor Thomaz Gomes

    dos Santos tambm faz meno a esta "aliana" entre imperador e academia: "Todos ns sabemos que V.M. Imperial no vnas produes da arte meras criaes do engenho destinadas aos deleites dos sentidos. mas um dos mais poderosos incentivosdo progresso humanitrio, um dos mais ativos promotores dos nobres sentidos dos impulsores mais valentes do amor Ptria.

    Esta apreciao dos destinos da arte ser o nosso norte.[..,] preparai-vos para transmitir aos vindouros essa memria gloriosa,

    e vossas obras de arte sero ao mesmo tempo grandes obras de patriot'lsmo," (Cf. Ata da Sesso Pblica da Academia de

    05/05/1864, idem).

    13. A identificao do artista com a idia fundamental de uma aproximao entre governo e academia pode ser ainda

    reforada por sua estreita ligao com o idealizador da reforma, seu futuro sogro Manuel Arajo Porto-Alegre.

    Q

  • "";':~,'~iitZ:;::;;: 1ilJt\j'?1;.hY?iY:0~:;~::t::;';,'; -11I_._ _ -I

    formasconcretasqueesseprojetoadquiriuaolongo

    dosmaisde30anosqueseparamaReformaPedrei-

    radarealizaodo quadraIndependnciaouMorte!.

    Um primeirouniversoiconogrficoassociado

    figuradeD. PedroII comeaatomarformanos

    anosqueseseguiramsuamaioridadeeaoestabe-

    lecimentodeumapoltica maisdefinidaemrela-

    osartes.Essaproduoyisualvoltava-separaa

    construodeimagensda nao- estreitamente

    associadafiguradeD. PedraII edarecm-funda-

    dacasaimperial- por alegoriascapazesdeevocar

    simultaneamenteumaexperinciadaterratropical

    brasileiraesmbolostradicionalmenteassociados

    monarquia.Essavastaiconografia,comobemmos-

    trouSchwarcz,mesclavasmboloseobjetosrituais

    dacasarealportuguesacom elementostpicosda

    paisagemlocal: ndios, abacaxis,folhasde cafe

    tabaco,deformaaconstruirimagensevocativasda

    naol4Assim,por exemplo,D. PedraII aparece-

    ria,emumalitografiadecercade 1840(1), acom-

    panhadopor ndios edivindadese,em 1869,no-

    vamenteentrealegoriaslocaise europiascomo

    DefensorPerptuodo Brasil(2)J 5. Estaiconografia

    inspirava-seemlargamedidanatradioalegrica

    barroca,seguindodepertoo modeloestabelecido

    quasedois sculosantesna Franapor Lus XlV.

    Assim,talqualo reidaFranaqueapareciaemsuas

    representaescercadoporflores-de-liseoutrossm-

    bolosdanaofrancesa(4), PedraII fazia-seretra-

    tarcomoreitropical,incorporandoatributoseale-

    gorias da terra s representaesdo Imprio 16.

    Percebemos,portanto,nesteprimeiro momento,

    umacertaidentificaoentreaiconografiado im-

    perador,um gnerobemestabelecidonahistria

    daarteJ? ocidental,eo projetonacionalistadeD.

    PedrolI, levadoadiantepelaacademia.

    14. Lilia Schwarcz, op. cito A autora. apoiando-se grandemente na prOduo literria da poca, identifica, apressadamente a

    meu ver,esta iconografia com sentimentos romnticos, no a diferenciando, por exemplo, de quadros como Moema (1866) ou

    A Primeira Missa (1860), ambos de Vitor Meireles), esses, sim, correspondendo a um "esprito romntico" propriamente dito.

    No meu entender, a iconografia mais diretamente vinculada figura do imperador e s imagens do Imprio tem uma estreitarelao com fontes barrocas, vale dizer, com o universo iconogrfico associado ao rei Lus XlV.

    15. As duas gravuras encontram-se hoje na Biblioteca Nacional.

    16. A iconografia do Rei Sol tornou-se uma fonte importante para a iconografia da nobreza europia, incluindo Portugal. Deste

    ponto de vista, podemos afirmar que Pedro II no estabelece, neste momento, nenhum novo padro formal na pintura por seumecenato. Isto pode ser comprovado pelo estudo da iconografia anterior ao Segundo Reinado, como, por exemplo, nostrabalhos de decorao de Debret para o Bailado Histrico.

    17. Os quadros histricos anteriores dcada de 1870 retratam, em sua vasta maioria, os grandes acontecimentos da corte:

    a aclamao do rei, a chegada da futura rainha, a coroao ete.

  • 3.D. PEDRO NA ABERTURADA ASSEMBLIA GERAL

    PedroAmrico,2,88x 2,05 m, 1872MuseuImperialdePetr6polis

    Q::

  • -.~i

    '"~--;"K,,

  • Tal padroiconogrficoquenorteouaprodu-

    oacadmicanasprimeirasdcadasdo Segundo

    Reinado,quandoapreocupaofundamentalc\o

    imperadoredaacademiaeracriaralegoriasqueevo-

    cassemaomesmotempoagrandezaeasingulari-

    dadeda novanao,sersubstitudopor ourro a

    partir dadcadade 1970,impulsionadopeload-

    ventodaGuerrado Paraguai.

    Lilia Schwarcz18chamaaatenoparaamu-

    danade atitude do prprio imperador no mo-

    mentoemqueestouraaguerra.D. PedroII deslo-

    ca-sepessoalmemeparaaregiodeconflitoeacom-

    panhadepertoo desenvolvimentodosaconteci-

    memos.Vestindoseuuniformemilitar,elepassaa

    assumiraatitudede"reiguerreiro",parausarnova-

    menteaspalavrasdaautora,identificando-secom

    a ambiciosaposturaexpansionistade Napoleo.

    N averdadeestanovaatitudedo imperadorinicia

    um processoimportantedemudananacaracte-

    rsticadasimagensqueservirodesubstratoparaa

    construodo imaginrionacional.Severdade,

    comoprocurariosmostrarSchwarcz,queoprimei-

    ro anodaGuerrado Paraguaipeemevidnciaa

    imagemde um "reiguerreiro",aospoucospode-

    mosobservarum deslocamentodo imaginriona-

    cionaldafigurado imperadoremdireoaoshe-

    risnacionaispOStosemevidnciaporseusatosde

    coragemelideranaduranteaguerra.Nestepon-

    to, estamosdeacordocom Schwarcz,quandoela

    afirmaque"aGuerrado Paraguairepresentao apo-

    geu e o comeo da decadncia de D.Pedro"19.

    A partirdestemomento,o imperadorabandonaria

    aospoucosa cenade seuprprio teatroe, ainda

    quecontinuasseacalemandoo mesmoprojetona-

    cionalista,no sesituariamaiscomo umafigura

    centralnesseprocyss020.As cenasdebatalha,que

    setornariamanovafomedeimagensevocativasdo

    Brasil,faziamexignciasinditasestruturaformal

    dosquadrosoficiaisproduzidospelaacademia:im-

    puserama substituiodo modelo alegricopor

    um modelo organizadoa partir do princpio da

    ao,valedizer,narrativo.

    Enquantoaiconograflado imperador(associa-

    daasmbolosdaterra)constituao substratopri-

    meiro paraaproduodo imaginrionacional,a

    questodaao,emseudesdobramemotemporal,

    nosefaziapremente,umavezquea legitimao

    dafigurado imperadornosedavatantopor seus

    oBradodoIpiranga

    I~i~ti1''

    P

    I'

    I '

    18. Op cit.

    19. Op. cit, p. 295.

    20. Schwarcz descrevemuito bem esse processo, ao acompanhar a transformao de D.Pedro 11em um "rei cidado" ao longodo ltimo periodo do Imprio.

  • ....

    atos,masporsuacondiodenascimento.Uma

    novalgica,noentanto,passariaasustentarapro-

    duopictricaapartirdosanossetenta:nomais

    algicadonome,masadofiito glorioso.

    No momentoemqueosgrandesfeitosliga-

    dosGuerradoParaguaipassaramasubstituira

    figurado imperadore deseusatributoscomo

    substratopar~aelaboraodeumimaginriona~

    cionatfoinecessriorecorreraumtipodiferente

    deimagemcapazdedarexpressoaessesfeitos

    que,porsuaprprianatureza,exigiamumaes-.

    truturanarrativa.Estenovomodelofoiencontra-

    do,novamente,napinturaacadmicafrancesa,

    pormnomaisnatradiodo reiabsolutista,

    masnaiconografiaassociadafiguradeNapoleo

    Bonaparre.Estaresgatarao edifcioconcetual

    desenvolvidoporCharlesLebrun,adaptando-o

    representaodeacontecimentoshistricoscon-

    temporneos2i,Talampliao,ou,melhordizen-

    do,transformaodoconceitodepinturahistri-

    ca,forneceuosmoldesparaaconstruodeima-

    gensadaptadasauma"histriadosgrandesvul-

    tos",talcomoelaaparecetambmnahistoriogra-

    fia do mesmoperodo. a essemodeloicono-

    grficoqueseligao projetodaconstruodeum

    imaginrionacionalbrasileiro,apsaGuerrado

    Paraguai.Nomaiso imperadormasasbatalhase

    seusherispassamapovoarascenaspatriticas

    dosquadrosoficiais. estetambmo universo

    imediatonoqualseinsereaobraIndependncia

    ou Morte!, dePedraAmrica.Como veremos,

    aindaqueo quadrosejaumarepresentao'de

    D. PedraI e,portanto,doprimeiroreidoBrasil,

    algicadaimagemencontra-sebastantedistante

    daquelaquemarcouasprimeirasdcadasdoSe-

    gundoReinado,quandoapenasapresenadoim-

    peradorcomseusatributoserao suficientepara

    servirdesuporteconstruodeumimaginrio

    especificamentebrasileiro.Ao contrrio,Pedro

    AmricoapresentaD. PedraI comoum heri,

    explicitandonaobraa grandezadesuaao22.

    Dito isto,passemosanlisedoquadro.

    88

    21. importante lembraraqui que para'Charles Lebrun,o primeirodiretor da Academia Francesa,fundada em 1648 sob o reinado

    de Luis XIV, a representao direta de um acontecimento contempor~neo destitua a composio de seu carter universal,

    transformando-a em simplescr~ica.Desta forma, os grandes feitos de LuisXIV eram sempreapresentadostransvestidosem umevento da histria clssica(ver.e'ntreoutras, a apresentao do rei como Alexandre o Grande na clebre pintura de Lebrun O

    Reino da Prsiaaos ps de Alexandre o Grande). Napole~o, por sua vez, rompe com esta tradio e. em suas pinturas oficiais,

    faz-se retratar em trajes contemporneos. Isso significou uma transformao profunda do campo da pintura histrica, que, aosecularizar-se,deu vazo a uma espcie de culto a personalidades individuais desconhecido do sculo XVII.

    22. Esta questo torna-se mais evidente, quando comparamos o quadro aqui em questo com a tela Proclamao da

    Independncia, de Franois-Ren Moreaux, pintada em 1844. Neste ltimo, como ainda veremos, D.Pedro I no apresentadocomo um heri, mas como o consumador de um ato de carter divino.

  • oQuadro

    Como o prprio ttulo Independnciaou Morte!

    sugere, a tela representao momento em que

    D. Pedro1,levantandosuaespada,proclama,no

    altodacolina do IpirangaemSoPaulo, em7 de

    setembrode 1822,a Independncia do Brasil.

    A composioapresentaumaorganizaorigorosa-

    mentegeomtrica.Dois grandessemicrculos,que

    evoluemrespectivamentedo centrodatelaparaa

    direitaeparaaesquerda,reencontrando-senova-

    mente no ponto em que eixo central tangelimite inferiordamesma,fornecemo esquemab-

    sicoapartirdo qualsedadistribuiodasfiguras

    edemaiselementosno quadro.Deslocadoligeira-

    menteparaaesquerda,emsegundoplano,vemos

    D. Pedro1,levantandosuaespada,ematosimb-

    lico derompimentodoslaosqueuniamo Brasila

    Portugal,seguidoporcavaleirosdeseusquito,que

    sadamo gestoacenandocomchapuselenos23.

    Ao final do squito,duasfiguraschegamagalope

    sobreseuscavalos.Voltadosemdireoaoespecta-

    dor,elesmarcamo incio do percursodescendente

    daestrada,quedelineiao semicrculoesquerda.

    Ao longodesta,acompanhandoadiagonal,vemos

    um caipiradeter-secom seucarrodeboi paraob-

    servara cenahistrica'que toma lugar no ponto

    maisaltodacolina.Suafunoretricano quadro

    evidente:elaafiguradeidentificaodo obser-

    vador,tantopor suaposio,quantoporseutama-

    nho eproximidade24. Atravsdeseusolhos,volta-

    dosparaD. Pedro,participamosdo momentore-

    presentado. elaquemdeterminao pontodevista

    do observador,contribuindoassimparaainterpre-

    taohericaqlle PedroAmrico procurouforne-

    cer do eventoe que marca,como dissemos,sua

    pertenaa umasegundageraode pintoresaca-

    dmicos.

    oBradodoIpiranga

    I

    23. Neste grupo de figuras encontram-se vrios retratos. Pedra Amrica cita os seguintes personagens histricos como

    companheiros de D.Pedro I: "[...] Joaquim Maria da Gama Freitas Berqu, Joo Carlota, Joo de Carvalho Raposo, Francisco

    Gomes da Silvae, prova'Jelmente, o guarda-roupa Joo Maria da Gama FreitasBerqu, depois marqus de Cantagalo, o padre

    Melchior PinheirO, o brigadeiro Manoel Rodrigues Jordo, e alguma outra pessoa atrada pela curiosidade ou pelo desejo deobsequiar o principe" (Cf. "O Brado do Ipiranga ou a Proclamao da Independncia do Brasil", neste mesmo volume, p.16).

    24. A funo de tais figuras retricas, que introduzem o observador no quadro, teorizada desde o Renascimento. Alberti

    alertara para a importncia da mesma em seu livro De Pictura: "Em primeiro lugar, todos os corpos devem movimentar-se de

    acordo com o que est disposto na histria. Agrada-me que nela haja algum que nos advirta e. nos mostre o que est

    ocorrendo, ou nos acene com a mo para ver, ou ameace com a fisionomia irritada e com os oihos .perturbados, para queningum se aproxime, ou aponte para algum perigo ou coisa admirvel, ou nos convide a chorar junto com ele ou rir" (Alberti,

    Da Pintura, Campinas, Editora da Un(camp, 1992, p. 115)

    80

  • Talfunoexplicita-sequandocomparamos

    nossoquadrocomaProclamaodaIndependn-

    cia (1844),deFranois-RenMoreaux(5),hoje

    no MuseuImperialdePetrpolis.Nele,vemos

    D. PedroI, nocentro,acenandocomseuchapu

    erodeadoporfigurasdopovo.A semelhanade

    imagenscomoaSagraodeD. Pedro11(1844),

    domesmoautor(6),etantasoutrasdoperodo

    pr-GuerradoParaguai,vemosaquiumatentati-

    vadelegitimaro governomonrquicopormeio

    deumatodivino25Tantooprncipe,quantov-

    riasdasfigurasqueoacompanhamdirigemseus

    olharesparao cu,deondedesceumraiodeluz

    queiluminaacena.MoreauxapresentaD. Pedrocomooconsumadordeumavontadedivina.Nesta

    represenraonoestemjogoasuahabilidade

    poltica,tampoLlcoo perfildeseucarterousua

    capacidadedeliderana.A imagemenfatizaoeven-

    .'"".~,,,.~.~-------

    toemsualigaocomaprovidnciadivina,dimi-

    nuindocomissoo tomhericoevoluntariosoda

    figuradoprncipeereafirmandoalegitimidade

    dosherdeirosda casadeBraganaaotronodo

    futuroreinorropical.

    PedroAmrico,porsuavez,procuraverem

    D. PedroI o equivalentede um Napole026.

    O artistaapresenta-ocomoumestadistadetermi-

    nado,quenomedeocustodossacrifciosnece~s-

    riosparaarealizaodeseuideal27, elevando-oto-

    somente,pelacoragemdeseuato,acimadaposi-

    oocupadapeloshomenscomuns28. Nacompo-

    siopropriamentedita,arepresentaodesuagran-

    dezaconcretiza-sepelodesnvel(realesimblico)

    criadopeloartistaentrenossafiguradeidentifica-

    oeoprncipe.O simplriocaipira(ecomele,ns

    tambm)v-seforadoavoltarseuolharparao

    altoafimdeenxergarD. Pedra,que,porsuavez,

    o

    25. Refiro-me aqui prpria lgica de legitimao dos sistemas monrquicos europeus. os quais fundamentavam seu podertemporal num direito divino ao trono.

    26. Como veremos adiante, a representao de D.Pedro I no quadro de Pedra Amrico aproxima-se bastante daquelas de

    Napoleo Bonaparte e de Napoleo 111,criadas por Meissonier algumas dcadas antes (7 e 8).

    27. Um equivalente pictrico da descrio dada por Pedro Amrico do ato da proclamao em seu texto "O Brado do Ipiranga

    ou a Proclamao da Independncia do Brasil": ..[...] Apenas os leu [os documentos trazidos pelos seus mensageiros]. como

    que concentrou-se O.Pedro num dessespensamentos cuja impetuosa evoluo mal cabe no curto lapso de tempo que medeia

    entre dOISinstantes quase consecutivos da mesma impresso moral. Depois olhou para seus companheiros de viagem, e disse

    comOVido: 'Tantos sacrifcios pelo Brasil... e entretar,to no cessam de cavar a nossa rulna!'. Ento expande a fisionomia,acende o brilho dos olhos, e, como se houvera descoberto o talism da futura grandeza da sua ptria adotiva, puxa pela

    espada e grita resolutamente: 'Independncia ou Morte! ... (d. neste mesmo volume, p. 17)

    28 Em outras palavras, refiro-me aqui a um processo de secularizao da figura do monarca.

  • 5. PROCLAMAO DA INDEPENDfNCIAFranois-RenMoreal/x.2,44 x 3,83 m, 1844Museu

    Fotografia

  • ti

    II

    I1

    1i

    11

    li

    I

    I i

    maisseassemelhaaumaesttuaeqestre29,emsua

    atitudepomposaeum tantoartificial.Eis tambm

    o porqude D. Pedro encontrar-seem segundo

    planoeapresentar-semenorqueafigurado caipira

    (oudossoldadosemprimeiroplano).S assimfoi

    possvelaoartistaestabelecerahierarquiaentreas

    figuras,necessriaparaavisualizaodesuainter-

    pretaodahistria30.

    A qualidadehericadeD. Pedro,no entanto,

    nosvisvelno desnvelentresoberanoesditos

    quePedroAmrica estabelecenatela,masacima

    detudo apresentadaatravsda estruturanarrativa

    da composio.Como dissemosanteriormente,

    umheridefine-seunicamentepor umaaoheri-

    ca,eestaidia- essenciallgicadascenasdeba-

    talhatpicasdasltimasduasdcadasdo Imprio-

    queserviudeprincpio organizadordaimagemda

    independnciacriadapeloartista.Lanandomo

    dosprincpiosclssicosqueregiam,segundoatradi-

    oda academiafrancesa,a composiode uma

    pinturahistrica,PedroAmrico conta-nosahis-

    triadeum atodebravura,legitimandosomente

    porestaaohericao direitodo prncipeposio

    delderdanaobrasileira.Acompanhemos,por-

    tanto,o desenvolvimentovisualdestanarrativa:

    Frenteafrentecom D. PedroI, um pouco aci-

    mado riachoquemarcaa "barreiraesttica"31do

    quadro,encontramosum cavaleirodasuaGuarda

    deHonra, que,dandoascostasaoespectador,res-

    ponde ao brado do prncipe arrancandode sua

    fardao laovermelhoeazulquesimbolizavaaunio

    entrea colnia esuametrpole. O eixoformado

    por estasduasfigurasconstituio ncleodiscursivo

    bsicoapartirdo qualatemticasedesenvolveno

    quadro.O guardadehonraocupao centrodatela

    eservecomoelementodearticulaoentreasduas

    metadesda composio.Este papel mediador

    acentuadoaindapelo movimento bruscoqueele

    impinge aseucavalo,inclinando-o bruscamente

    paraadireitaa fim dealterarsuadireo32.

    09

    29, A esttua eqestre possui ela rr.esma uma longa tradio iconogrfica, que remonta famosa esttua eqestre do

    imperador romano Marco Aurlio realizada no segundo sculo d,e., tradio essa intimamente associada iconografia de reis,

    30, t: desnecessrio reiterar aqui que tal viso de histria encontrava-se em plena concordncia com a misso patritica queO,Pedro II atribula s artes,

    31, Termo tcnico usado para designar o limite inferior da tela,

    32, Vale notar aqui que, ao compor o quadro, Pedra Amrica explicita seu dilogo com a pintura francesa, O cavaleiro da

    Guarda 'de'Honra; que se encontra no centro da tela, apia-se sem dvida, especialmente no que diz respeito resoluo

    visualdo seu'movimento, nas representaeseqestresde Jacques-Louis Oavide Gricault. Refiro-me aqui mais especificamenteaos quadros Napoleo Cruzando os Alpes (1800), de Oavid (16), e Um Oficial dos Chasseurs (1812), de Gricault (15), Este

    ltimo quadro ser literalmente citado pelo artista em sua A Batalha do A vai, na figura de um oficial que empina seu cavalo

    atrs do grupo principal, na extrema esquerda do quadro.

  • 6.O ATO DE COROAO DO IMPERADOR D. PEpRO IIleodeFran,ois-RenMoreaux,2,38x 3,1O m, 1844MuseuImperialdePetrpolis

    \~

  • Desenhandoum semicrculodireitado qua-

    dro, vemosaguardadeD.Pedro, que, tomadade

    surpre~apelac~~gadainesperadado prncipe,pro- .

    curarapidamentemontaremseuscavaloseentrar

    emformao.PedroAmricaimpingiugrandemo-

    vimentomassadefigurasquecompemestameta-

    dedatela,procurandocaracterizaraansiedadeea'

    tensoqueprecederamaproclamaodeIndepen-

    dncia,assimcomo o entusiasmocom queelafoi

    recebida.Em termosdaleituradaobra,estegrupo

    ocupaum papelfundamental,servindocomodes-

    dobramentodosdoisplosnarrativoscriadospela

    justaposiodafiguradeD. Pedroedo soldadoao

    centro.Assimtemoso seguintepercursodeleitura:

    nossaidentificaoinicialcomafigurado caipira

    . esquerdanosintroduznacenaeseuolharnosreme-

    teparao grupodeD. PedroI esuacomitiva.A partir

    destegrupo,estabelece-se,p~loposicionamentofren-

    teafrentedo prncipeede'seuguardadehonraao

    centro(decostasparao espectador)um plo narra-

    tivo,quesedesenvolveaseguiraolongodosemicr-

    culoformadodireitapelosdemaissoldados.Neste

    sentidodesenotarcomoo movimentodesramas-

    sadefigurastransportao observadorpaulatinamen-

    te do momento do brado,propriamentedito, de

    D. Pedro:IndependnciaouMorte!- quesaudado

    euforicamentecomo desembainhardasespadasda

    guarda- parasuaconseqncia,asaber,o romp!-

    mentocomPortugal,representadono gestosimb-

    licodossoldadosquearrancamoslaosdesuasfar-

    dasnaparteinferiordatela33.

    Vemos,portanto,representadoo desfechodra-

    mticodeum acontecimentohistrico,concebido

    como o resultadoda bravurade um s homem,

    o qual, com o seuexemplo,fundaria uma nova

    ordempolitica emoral.Estanovaordem,por sua

    vez,tambmj seencontraaquiesboada,corres-

    pondendodepertoaosideaisdaelitedo Imprio e

    sidiasdo prprio imperadorD. Pedro11.A com-

    posiodeixavislumbrarumaestruturapiramidal

    de poder,na qual a noode soberanianacional

    encontra-seassociada preservaode uma elite

    polticaeintelectual,sobalideranadeum sobera-

    no decididoeforteeapoiadapor um exrcitopo-

    deroso,honradoporvitriasefielaocomandodes-

    ta elite34. Nesta estrutura,o "povo brasileiro"-

    33. Aqui tambm a narrativa se desdobra em dois momentos: o primeiro, representado pelo soldado montado sobre o cavalo

    branco direita do eixo central da tela, que arranca seu lao vermelho e azul, seguido pelo ato mais efusivo do soldadlaocentro, que atira o lao ao cho.

    34. A presena efetiva do Exrcito na poltica do Imprio e seu correspondente espao no imaginrio da nao dilata-se de

    forma significativa durante e aps a Guerra do Paraguai.

  • ?::c~'"'8CI

    ~~~5"

  • -------------~--~---.~..

    representadono quadr:opelocaipiraepor outras

    duas figurasmarginais esquerda35- no teria

    qualquerpapelativoadesempenhar,depositando,

    no entanto,debomgradoseudestinonasmosdo

    soberanodanao(no quadrosuaposiodees-

    pectadoreadmiradordo eventoevidente).

    Os recursosusadospor PedraAmrica para

    comporumaimagemconvincentedaindependn-

    ciado Brasil, queveiculasseao mesmotempo os

    ideaisdenaoconstruidosaolongo do Segundo

    Reinado,noterminamaqui.As refernciascons-

    tantesa imagensdeNapoleo,encontradasnapin-

    turaoficialfrancesado sculoXIX 36, tambmcon-

    triburam para reforar a imagem herica de

    D. PedraI construdapor PedraAmrica na tela".

    J h bastantetemporeconhece-se,por exel~lplo,

    umadasfontesprivilegiadasdo Independnciaou

    Morte!nastelasdebatalhadeErnestMeissonier37.

    De fato,o artistaestudoudetalhadamenrequadros

    como.a Batalha deFriedland (1875)38(7), ou o

    clebreNapoleo111naBatalhadeSo/ferino(1863)

    (8) e no h como negara semelhanaentreos

    traosessenciaisdessasduasobraseatelaaquiem

    questo.Um dosprincpiosbsicosdacomposio

    de PedraAmrica: o confronto da majestadede

    D. PedraI com aagitaodossoldados direita,

    assemelha-semuito estrutura da Batalha de

    Friedland39.Reportando-sedestaformaaoj bem

    estabelecido"mito"Napole040, o artistatranspor-

    tavasuasqualidadesdeestadistaparao perfil que

    delineavadeD. PedraL As ambiesdeexpanso

    territarialemjogo no conflito como Paraguai,as-

    oBradodo!piranga

    35. t Interessante notar ainda a total ausnCiade negros nesta representao da independncia. Possivelmenteo caipira pode

    estar sendo usado".comosmbolo do trabalho livre. Vale lembrar que o quadro foi pintado depois da abolio da escravaturano Brasil.

    36. Como J dissemos acima o modelo de pintura histrica da era de Napoleo serviude base, por assimdizer,ao novo universode pinturas histricas produzidas pela Academia Imperial, aps a Guerra do Paraguai. Como ainda veremos, Pedro Amrica

    utiliza este princpio composicional em uma grande parte de seus quadros desse perlodo. especialmente em suas cenas debatalha.

    37. Em 15/11/1982, o jornalista tlio Gaspari da revsta Veja acusa Pedra Amrica de plgio do quadro Batalha de Friedlandde Meissonier na composio do Independncia ou Morte!. De fato Pedra Amrica usou este e outros quadros do artista

    francs camareferncia para sua composio, porm, acus-Ia de plgio no compreender os pressupostos de sua arte.

    38. Batalha comandada por Napoleo I em 1807. O quadro encontra-se hoje no Museu Metropolitan de Nova York.

    39. Tambm no quadro de Meissonier os soldados esto desembainhando suas espadas diante de seu lder,no caso, Napoleo.

    40. t importante ressaltar aqui que o modelo de pintura histrica inaugurado na era de Napoleo Banaparte foi adotadotambm na pintura oficial ligada a Napoleo 111.

    C1l7

  • sim comoavit6ria do Brasil, forneciamo suporte

    necessrioparaessesparalelos.

    Apesar disso, h diferenas notveis entre

    ascomposiesde PedroAmrico eMeissonier.

    N ossoartistafariamenosconcessesqueestelti-

    modescriodetalhadado fatohist6rico,talcomo

    ele vinha sendo popularizado na Frana ap6s

    o incio da monarquia liberal de Lus Filipe41

    Suacomposioequacionadaemcadadetalhe,

    denotandoabuscadeum equilbrio estvelentre

    osdiversoselementosdaobra,a fim degeraruma

    forte impressode unidade. Enquanto, no seu

    Napoleo111..(8), Meissonier produz uma ima-

    gemque,por assimdizer,simula uma fotografia

    instantneado real42 - notem-se,por exemplo,os

    cortesnasfigurasdaextremalateralesquerdado

    quadro-no IndependnciaouMorte!,cadafigura

    cuidadosamentecompostademaneiraaencontrar

    seulugar pr6prio e confortvelno agrupamento

    maior da cena,formando um conjunto disposto

    deformaclaramente"legvel"parao observador43.

    Nesteponto, vemosPedroAmrico voltar-se

    paraoutrasfontes,reafirmandoosvaloresdatradi-

    o acadmicana qual eleseformara.Aqui vale

    arriscar,por exemplo,uma aproximaoentreo

    Independnciaou Morte! e uma das pinturas de

    Rafael,realizadasno famosoquartodeHeliodoro

    no palciodoVaticano,representandoO Encontro

    deLeoX etila (1512-1514), especialmenteno

    quesereferedistribuioearticulaodasfiguras

    no espao(9). O movimento dos dois cavalos

    direita dapintura de Rafael,postosemcontraste

    comaatitudeserenado Papa,assemelha-sebastan-

    tesoluoencontradapor nossoartista44. justa-

    mente esteaspectocuidadosamentecomposto,

    nadaacidental,do quadro,queapontaparaaclara

    intenodePedroAmrica deveicular,paraalm

    do fatohist6rico,ideaispatri6ticos,que,comovi-

    o Brado doIpiranga

    41. Ver neste mesmovolume a minha anlise do texto" O Brado do !piranga" de Pedra Amrica, em que eu discuto em maioresdetalhes os fundamentos tericas de sua pintura.

    42. Sobre a relao de Ernest Meissonier cam a fotografia ver: Alain Sayag, "Meissonier et Ia photographie", em ErnestMeissonierRetrospective,Lyon, Muse des Beaux-Arts, 25/03 a 27/06 de 1993 (Catlogo).

    43. Outra diferena importante a ser notada diz respeito dimenso dessas obras. Enquanto Meissonier pintava quadros de

    temas histricos em dimenses de pintura de cavalete(o seu Napalea 11,... mede apenas 44 X 76 cm), desprezando a vocao

    ostentativa do gnero. Pedro Amrica, ao contrrio, buscava dar a suas obras a maior dimenso possivel. Seu quadroIndependncia ou Mortel mede, por exemplo, 4,15 X 7,60 m e A Batalha do Aval nada menos que 5 X 10m.

    44. Cardoso de Oliveira menciona explicitamentea admirao de Pedro Amrica por Rafael e Michelangelo: "Foi seu modelo

    predileto o divino RafaelSncio, e Miguel ngelo tornou-se objeto de suas incansveiscontemplaes estticas", op.cit.,p. 39.

    99

  • moscabiamexemplarmentenocontextodarela-

    oentreaacademiaeo imperador45

    Ainda um ltimoaspectodo quadroInde-

    pendnciaouMorte!merecemeno,noquediz

    respeitosuavinculaoaoprojetoacadmicode

    construodeumimaginrioespecificamentebra-

    sileiro.SenasprimeirasdcadasdoSegundoRei-

    nado,existiaummovimentodecaracterizaodo

    contextonacionalpelainclusodeatributoses-

    pecficosqueremetessemaouniversoexticodos

    trpicos(procedimentoquesecoadunavaperfei-

    tamentecomalgicadasimagensoficiaisprodu-

    zidasento),apsaGuerradoParaguai,abando-

    na-seestaestratgiaemproldaconstruodeuma

    atmosfera,quepontuasseocontextobrasileirosem

    quefossenecessriorecorreraatributos.Estanova

    estruturavisualaparecepelaprimeiraveznaobra

    deVtorMeireles,aindanadcadade1960,mais

    especificamenteemseusquadrosA PrimeiraMis-

    sa no Brasil (1861)(10)e Moema (1866)(11),

    nosquaisnoexistemaisarefernciapontualao

    mundoexticotropical,masestemundoapre-

    sentadocomoo prpriocenriodanarrativa46,

    O mesmoocorrenoquadrodePedroAmrica,no

    qualpodemosnotarumasobteposiodesenti-

    mentospatriticossqualidadesespecficasdapai-

    sagempaulista.H umadramaticidade,encena-

    danosacidentesdoterreno,queassociaclaramente

    ostioaoacontecimentohistricorepresentad047

    e,porsuavez,acaracterizaodaatmosferalocal,

    construdaessencialmentepelotrabalhocoma

    cor,forneceotompsicolgiconoqualtalaconte-

    oBradodoIpiranga

    fliII

    45. Vale lembrarque o quadro foi pintado no ocaso do Imprio, quando D.Pedro 11e toda'a velha estrutura de Estado tornaram-se alvo de intensas criticas e mesmo de ridicularizao. A seriedade cQm que Pedro Amrico apresenta sua imagem davinculao essencial entre Imprio e Nao, nesse contexto, denota o nlvel de envolvimento de artistas acadmicos como ele

    na propaganda oficial do Imprio..

    46. A busca da representao de sentimentos nacionais atravs da prpria paisagem e do colorido local tem raizes nomovimento romntico, que passou a compreender a paisagem como veiculo de expresso de sentimentos subjetivos. Refiro-me aqui, por exemplo, s paisagens sublimes de Caspar David Friedrich.

    47. Pedro Amrico fez modificaQes significativas na situao geogrfica da colina do Ipiranga, visando conseguir tal efeito

    expressivo. Essasmodificaes evidenciam-se, por exemplo, quando comparamos o quadro com um desenho que M. Dutra fez

    do stio (d. Pedro Correia do Lagb, lconografia Paulista do Sculo XIX, So Paulo, Metalivros, 1998,p. 131).Sobre a questodiz, por sua vez, o prprio artista: "Para satisfazer o geral desejo de ver representado o clebre riacho do Ipiranga - o qualna realidade passaria distncia de alguns metros atrs de quem observa o painel -, forcei a perspectiva pintando um

    simulacro de corrente aos ps dos cavaleiros do primeiro plano. Desculpe-me o pblico essa quase insignificante violncia

    topografia, considerando a necessidade de consagrar na pintura a idia do ribeiro cujo nome to intimamente ligou-se ao

    glorioso fato da nossa emancipao poltica" (d. "O Brado do Ipiranga ou a Proclamao da Independncia do Brasil",reproduzido neste volume, pp. 26-27).

    Hll

  • ---

  • cimentodeveriaserrecebido48Assim, oselemen-

    tos tpicos dapaisagembrasileira:avegetao,o

    casebre,osnativos, tornam-seessenciaisinter-

    pretaodo acontecimentohistricocomoevento

    intrinsecamentevinculado terrae a seudestino

    oLugardoIndependnciaouMorte!naObradePedro

    Apontamentossobredo.Artistaao

    doImperador

    ;1

    It~'

    oBradodolpiranga

    oquadroda Independnciaocupaaindaum lugarprecisodentrodaproduodePedroAmricacomo

    um todo.Observandoatentamenteasvriasrepre-

    sentaesdecenasdebatalhaquesesucederamao

    longodesuacarreira- comeandocomA Batalha

    deCampoGrande,em 1871(12) epassandopeLi

    sua famosarepresentaode A Batalha doAva

    (1877) (14) - percebemosque, aos poucos, ele

    desenvolveumaespciedeesquemacomposicional

    queserutilizado como baseparaa realizaode

    vriosdeseusquadroshistricos,entreosquaiso

    prprio IndependnciaouMorte!.Sendoqueeste

    percursoformaldo artistacentralparacompreen-

    dermossuainseronosdebatesartsticosdeen-

    to,elaserexaminadadepertoaseguir.Procura-

    remos revelar uma dimenso, por assim dizer,

    como nao.Ocorre nestapassagemumaestreita

    aproximaoentrenaturezaehistria,quecontri-

    bui grandementeparaaretricado quadro.

    Por meio de tantosartifcios, PedroAmrico

    conseguiuproduzir umaimagemdegrandeapelo

    patritico naqual,outravez,tornava-seprotago-

    nistao rei. Interessante,no emanto,notaradis-

    tnciaexistenteentreessarepresentaoeasima-

    gensoficiaiscriadasno comeodo SegundoReina-

    do. Ao final do Imprio, como imaginrionacio-

    nal estrutLlradoa partir de um modelo que tinha

    como ncleo afigura do heri, o rei no poderia

    maisseimpor puramentepor suapresena,mas

    ~penasassumindoeletambmum papelherico.

    Secularizou-seo monarcae desmontou-seo seu

    teatro.No por acasoestamossportasda Rep-

    blica49

    48. O uso da cor apresenta-se como um meio efetivo de estabelecimento da unidade composicional do quadro e espelha o

    estudo detalhado que pedro Amrica fez de pintores como Delacroix e Gricault, de artistas juste mil/eu, como Meissonier,

    Henri Regnault (1843-1871), mas tambm de pintores belgas e holandeses, como Edouard Biefve (1808-1882), Louis Gallait(1810-1887) e Jan Willem Pieneman (1779-1853), o qual pintou sua importante A Batalha de Waterloo em 1824.

    49. O modelo de imagens oficiais produzidas durante os ltimos anos do Imprio receber continuidade durante os primrdios

    da Repblica. Ao retirar-sedo centro das imagens patriticas a partir da dcada de 1870, D. Pedro II contribuia, sem saber,para a desmontagem do teatro da corte que, por sua vez, era um dos sustentculos do sistema monrquico.

    108

  • programticado quadroIndependnciaouMorte!,

    que,a nossover,origina-sena reaodo artista

    fmosapolmicageradapelaexposioconjunta

    deseuquadroA BatalhadoAva edeA Batalhade

    GuararapesdeVtor Meirelesnaexposiogeralda

    academiaem 187950

    Quando PedroAmrico concebeuseuprimei-

    ro quadrodebatalhaem 187151,elelanou mo,

    emlargamedida,dasliesqueaprenderacomsua

    cpia de A Balsa da Medusa (13) de Thodore

    Gricault.Assim, maneirado artistaromntico,

    eleadotouno quadroumaestruturapiramidalque

    permitisseintensificaro sentimentodetensoen-

    volvidonoepisdiorepresentado52. Nestaobratudo

    seagitae,senofossepeloarranjodostrscavalos

    queocupamo centrodo quadroeelevamo conde

    D'Eu acimadacenadebatalhapropriamentedita,

    esteseveriacompletamentesubmersona turbu-

    lnciada luta53.Em seuconjunto, acomposio

    eraengenhosaefoi muito discutidanosmeiosin-

    telectuaisdapoca.Com o sucessodesteseupri-

    meiroquadrahistrico, o artistaganhourenome

    comopintor do gneroe,jem 1872,foi procura-

    do peloministrodo Imprio comaencomendade

    um quadrodebatalhadegrandesdimenses.

    Em 1873,portanto, PedraAmrica embarca

    paraaEuropacomo objetivoderealizarA Batalha

    doAva (14),lpermanecendoatterminaraobra

    em 1877.Como j vimos, Meissonier,quehavia

    pintado seuNapoleo111na BatalhadeSo!ferno

    (7), em 1863, realiza, em 1875, a Batalha de

    Priedland(8),usandocomposiesbastanteseme-

    lhantes.A partir destasduaspinturas,quePedro

    Amrico certamenteestudouem detalh'e,nosso

    artista desenvolvepara A Batalha do Ava um

    esquemacomposicional bsicoque elepassara

    J~

    50. Sobre a Exposio Geral de 1879, consultar Donato Mello Jr., na Revistado Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, op.

    cit., especialmente pp. 317-328. Ver ainda, do mesmo autor, Pedra Amrico de Figueiredo e MeIo 1843-1905: Algumas

    Singularidades de sua Vida e de sua Obra, Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1983.

    51. Sua deciso de pintar um quadro histrico certamente est associada ao fato de ele ter, entre 1870 e 1871, substitudo

    Vitor Meireles, por algum tempo, na cadeira de Pintura Histrica da Academia de Belas-artes.

    52. A composio piramidal tem uma longa trajetria dentro da tradio de pintura histrica; j Giovanni Paolo Lomazzo (1538-

    1600) apontava para as possibilidades de expresso de movimento dada por esta forma composicional (d.Hubertus Kohle, UtPictura poesis non erit. Denis Diderots Kunstbegriff, Zurique, Hildesheim e Nova York, Georg Olms, 1989, p. 27). TambmG.E.Lessing(1729-1781) faz uma meno ao "aguamento em pirmide", encontrado no grupo do Laocoonte, "to agradvel

    aos olhos" (d. Lessing, Laocoonte: Ou sobre as Fronteiras da Pintura e da Poesia, traduo, introduo e notas de MrcioSeligmann-Silva, So Paulo, lIuminuras, 1998, p. 120),

    53. O grupo dos trs cavaleirosao centro do quadro de Pedro Amrica deriva da disposio dos trs homens que formam o topoda pirmide no quadro de Grcault.

  • empregaremsuassubseqentescenasdebatalha,e

    igualmenteno quadroda Independncia.Tal estra-

    tgiaconsistiaemcontrastaramajestadeeaausn-

    cia de movimento do grupo principal - situado

    sempreemum stio elevadoemsegundoplano-

    com aagitaodasmassasdesoldadosalutarem.

    Estaorganizaodasfiguraspermitia estabelecer

    visualmentenatelaaidiadeumahierarquiaentre

    comandantesecomandados,ou seja,entreosque

    viam nos combatesuma cinciada estratgia(e

    aquiPedroAmrico jogava,diretamente,com os

    mitoscriadosemtorno deNapoleoBonaparte)e

    situavam-se,portanto,paraalmdaconcepoda

    batalhacomo experinciaimediata,eaquelesque

    seentregavamcegamenteluta,confiandonases-

    tratgiasde seuslderes.Ela fornecia, em outras

    palavras,aestruturaidealparaumanarrativahist-

    rica.A adoodestaestruturaformalnosseusqua-

    drasdebatalhasquesucederamaodoAval,signi-

    ficava,portanto,aadesodePedraAmricoaopro-

    jeto nacionalistadaacademiaedeseusprincipais

    mecenas.Portamo,aexplicitaodeseuprincpio

    composicional, ou, dizendo de outra forma, do

    cartercuidadosamentecompostodeseusquadros,

    ocorre,anossover,noapenasemconseqnciada

    experimentaodo artistacomo mesmoemdife-

    rentestemticas,masemcertamedidaemfuno

    deumaclaratomadadeposiodo artistadiante

    do debatepblicosobrearteno final do Imprio.

    Procuremosesclareceraquesto.

    Quando A BatalhadoAlJal (14) foi exposta

    pela primeira vez, ao lado de A Batalhade

    GuararapesdeVtor Meireles,desenvolveu-seuma

    grandepolmicanaimprensaquemobilizouposi-

    esacadmicaseantiacadmicasdeformainusita-

    da.Estavamemjogo, no entanto,nosquestes

    estticas,mas,devidoaoestreitovnculoentreaca-

    demiaepoltica imperial,tambmum confronto

    veladoentremonarquistaserepublicanos.

    O debatepblico geradoem torno dos dois

    quadros foi impulsionado pelo posicionamento

    abertodaAcademiaImperialdeBelas-artesafavor

    de Vtor Meireles e pelo seusutil ataquecontra

    PedroAmrica,especialmentenoparecerdadopela

    comissojulgadoradaExposioGeral,aofinaldo

    evento54.

    106

    54. Segundo Carlos Roberto M. Levy, mesmo antes da abertura da mostra, "[...] a ReVista Ilustrada recrimina a notria

    vinculao preferencial da Academia ao pintor Vitor Meireles, insinuando que haveria transferncia da data de abertura da

    exposio geral em virtude de ainda no estar concluda A Batalha de Guararapes" (Levy. "A Exposio Geral de 1879 e aCritica de Angelo Agostini (1843-1910)", Revista Critica de Arte, op. cit., p. 55).O parecer da Comisso Julgadora foi o seguinte:

    Sobre A Batalha de Guararapes: " um quadro original de vasta dimenso, que mede uma superfcie de 882 palmos

    quadrados, e que contm centenas de personagens, sendo as do primeiro plano de grandeza natural, e de forte proporo.

  • PedraAmrica, quehaviamuitos anosusava

    desuainflunciajunto ao imperadorparaconse-guir longasdispensasdeseusdeveresdeprofessor

    na academia,no eravisto com bons olhos porvrios deseuscolegas.O fatodeele,almdisso,ter

    buscado usarde suasinfluncias parasubstituir

    definitivamenteVtor MeirelesnacadeiradePin-

    tura Histrica, paraaqualeleseconsideravamais

    bem preparado,tornaraasuasituaonaquelains-

    tituiobastantedelicada55. A exposioladoalado

    dosdoisartistastrazia tona,portanto,um velho

    conflito institucional,eo apoio integraldaacade-

    miaaVtor Meirelessignificavamuito maisdo que

    umaaprovaodeseusprincpiosestilsticos,uma

    tomadadeposiopoltica damesmano sentido

    deenfraqueceraposiodePedroAmrico dentro

    dainstituio.

    A friezacom queaacademiarecebeuA Bata-

    lhadoAva polarizou o apoio da crtica de arteantiacadmicaa PedroAmrica. Ao abrir-seum

    frum dedebatepblicosobreosdoisquadros,as

    questesde politica internada instituiopassa-

    ram,por assimdizer,parasegundoplano,eosdois

    quadrosforamrecebidoscomo representantesde

    duasposturasestticasantagnicas,o quegerou,

    como veremos,uma leiturabastanteequivocada

    deA BatalhadoAva.Destaforma,PedroAmrica,

    um dosartistasmaisprximosdo imperadoreum

    dosmaioresdefensoresdesuaconcepoutilirria

    depintura,viu-se,paradoxalmente,usadonosata-

    oBradadofpiranga

    Inteira concepo do assunto, unidade de composio, correo de desenho, colorido brilhante e harmonioso, efeito completo

    de perspectiva, em que sobressai a verdade das tintas quentes do cu dos trpicos, figuras bem concebidas, bem proporci-'

    onadas, notando-se-Ihes a exatido das expressesfisionmicas, panejamentos escolhidos e executados com aquele gosto e

    aquele talento que distinguem as obras dos mestres;e principalmente a tranqilidade geral da composio to recomendada

    por todos os grandes mestres, e to diflcil de conseguir em quadros de batalhas, so as qualidades principais desta obra

    capital; obra que S ser devidamente adquirida quando com o correr dos tempos, e os progressos da nossa sociedade, soubero nosso pblico conhecer onde na arte reside o verdadeiro merecimento. [...] Sobre A Batalha do Aval do Dr. Pedro Amrica

    de Figueiredo e Meio, quadro de igual dimenso, e no menos trabalho que o precedente, a Comisso julga-se dispensada

    de emitir opinio, visto como j tem sido esta obra muito discutida e analisada; ela tem sem dvida elevado merecimento, pois

    sem isso no conseguiria seu ilustre autor, como conseguiu, galvanizar o habitual indiferentismo do nosso pblico, e obter por

    ela do Governo Imperial uma recompensa pecuniria que honra a arte e o artista. Este fato pois denotando um juizo j feitosobre o valor da obra, justifica a classificao que do seu autor faz a Comisso." (Cf. RevistaCriticadeArte,op. cit.,p. 57).

    55. Segundo Donato Mello Jnior (Pedra Amrica, op. cit.), em 1870 Pedro Amrico transfere-seda cadeira de Desenho para arecm-criada cadeira de Histria da Arte, Estticae Arqueologia. No mesmo ano, substitui Vitor Meireles na cadeira de Pintura

    Histrica, uma das mais prestigiosasda instituio. Essasmudanas denotam o crescenteprestgio de Pedro Amrico junto ao

    imperador e seu ministro, assim como sua ambio de poder. De fato, a encomenda de um quadro histrico sobre a Primeira

    Batalha de Guararapesfoi dada pelo ento ministro do Imprio, Joo Alfredo Correia de Oliveira, inicialmente a Pedro Amrico.Tendo este escolhido um assunto mais contemporneo, a Batalha do Aval, passou-se a primeira encomenda a seu rival Vitor

    Meireles. tportanto, possveldizer que, de certa forma, a intensa competio estabelecidaentre os dois artistasenvolviamuitomais do que uma disputa artstica, mas relacionava-secom uma disputa de poder interna prpria instituio acadmica.

    107

  • quesferozesdecrticosrepublicanosacademiaea

    seupatrono.

    Nessecontexto,A BatalhadoAva foi recebi-

    da,antesdetudo, como um quadradeum realis-

    mo brutap6.Gonzaga-Duque,um dosprincipais

    crticos de artede suapocae ferrenhoantiaca-

    dmicoaclamouatelacomo uma dasmaisbem-

    sucedidasdo pintor, justamentepor tervistonela

    umdescasodePedroAmricocomosvalorestradi-

    cionaisdaacademia.Aps umalongadigressoso-

    bre o aspecto cruelmente realista do quadro,

    Gonzaga-Duquecompleta:

    "porestamaneiradeveredesentirquePedra

    Amrica nos ofereceA BatalhadoAva, que to

    grandeceleumadespertounaimprensafluminense

    etantabulhalanouentreoscrticosdiscpulosde

    Ch. Blanc57Desenhadordo movimentoenoda

    linha,deuaseuquadroum brio magistrale triun-

    fante.Estendeuquantolhefoi possvelaao,par-

    tindo do primeiro planoondehfiguraspintadas

    com umvigordignodemestte.E foi precisamente

    esrevigor,esraindependnciadecomposiocom

    queeletratouo quadroqueprovocoualongadis-

    crdiaentreacadmicoseinovadores.

    O artistaabandonouascediasdacomposio

    acadmica,ecompso sujeitocomomelhorenten-

    deu,paratransmitirmaisdiretamentea impresso

    recebida.Paraalgunsconstitui essemodo depro-

    cederum imperdovelerro,porquedesprezaros

    maisausterosprincpiosdaarte.Se,entretanto,in-

    dagarmosbem da causaque provoca a imper-

    sonalidadeem artistasde cuidados estudose de

    intelignciasassinaladas,acharemoscomo causa

    fundamentalessesausterosprincpiosdaarte,que

    tantopreocupamoscrticosconvencionalistas"58.

    E, maisadianteconclui:

    "V-se,claramente,queo movimentoemum

    quadrodebatalhaspode resultardo exagero,mas

    oBradodolpiranga

    !I,

    56. Falando da recepoda obra, diz Donato Mello Jnior: "Quanto a Pedra Amrica [...] observou-se em relao Batalha do

    Aval um certo exagero na dinmica das diversas aes que constituem a composio, a crueza chocante das imagens e aexistnciado estilhaamentoda unidade da obra em diversosquadros isolados, to autnomas se apresentamas diversascenas"

    57. Charles Blanc (1813-1882) escreveu seu Grammaire des arts du dessin em 1867, um manual para artistas que visava

    combater o pluralismo estilstico - nocivo a seu ver - que dominava a pintura histrica de sua poca. No livro, ele procurava

    reafirmar os principias bsicos da doutrina acadmica, acentuando o carter ideal inerente a este gnero e combatendo as

    tendncias realistas da pintura histrica de artistas como Meissonier ou Grome (d. Thomas Gaehtgens e Uwe Fleckner(orgs.), Historienmalerei, Berlim, Reimer, 1996).

    58. Gonzaga-Duque, A Arte Brasileira, introduo e notas de Tadeu Chiarelli, Campinas, Mercado de Letras, 1995, p. 151(Coleo de Arte Ensaios e Documentos).

    109

  • '/"'!9l11i1i!11.. ---------------------------------------

    nuncadaordemestabelecidaentreo contrastedas

    figuras,entresi, e dos grupos, como pretendem

    impor osacadmicos"59.

    No sGonzaga-Duque posiciona-seafavor

    dePedroAmrica, mastambmoutroscrticosda

    instituioacadmica,comoAngeloAgostini- ele

    mesmoartista,caricaturista,jornalistaeferrenho

    republicano (17) - saramem defesado quadro,

    elogiando-o em detrimento da obra de Vtor

    Meireles:

    "D-seum fatosingular,extraordinrioatual-

    menteno Rio deJaneiro,acidadedosbocejoslon-

    gosedosFagundescurtosdeinteligncia:discute-

    se belas-artes.E discute-secom paixo, encar-

    niadamentena imprensa,nos teatros,noscafs,

    naspalestrasfamiliares,eatnaprpriaAcademia

    sediscutebelas-artes!Os crticosdividiram-seem

    partido, contrao Vtor epeloVtor [00']' No con-

    fronto inevitveldasduasgrandestelas,j nose

    procurasaberqualdasduasamelhor,masqual

    apior dasduas,amaischeiadedefeitos,amenos

    original,amaisplagiada;eoscrticosentregam-sea

    escavaesartsticasqueespantamagentedetanta

    erudio,e brevedescobremquePedroAmrica

    plagiou a moldura de A Batalha doAval e Vtor

    Meirelesaspenasdepapagaiocom queenfeitouo

    Sr.FelipeCamaroeasdepavocomqueescondia

    a sua nudez esttica.Admitindo, portanto, que

    ambostenhamroubadoinspiraesparaseusqua-

    dros, restasaberqual o bom e o mau ladro,e

    comparando-osv-se:emA BatalhadoAval,dese-

    nho, movimento, expresso;em A Batalha de

    Guararap:sfaltadedesenho,falcademovimentoe

    ausnciadeexpresso"60.

    Uma anlisemaisdetidadeA BatalhadoAval

    (14) revela,no entanto,que estaapropriaodo

    quadroesuautilizaonaluta contraoscnones

    daacademia(e,portanto,contraapolticacultural

    do Imprio) nopossuanenhumfundamentona

    prpria pintura. Quando bemobservado,o qua-

    dro revelaumacomposiometiculosamenteestu-

    dadae inteiramenterealizadade acordo com as

    convenesestticasdaacademia.Resumidamen-

    te,PedroAmrica concebeuasuacenadebatalha

    apartirdeduasdiagonaisquesecruzamno ponto

    centralda tela,sobreseuauto-retrato.A despeito

    destepequenocapricho,asdiagonaissorigorosa-

    mentepensadasdeformaadefinirasduasposies

    59, Idem, p. 155,

    60. Angelo Angelini, Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, ano 4, n. 158, pp. 2 e 3, 25 de abril de 1879. Apud, Revista Critica deArte, op. cit., p. 66

  • 19

    16. UM OFICIAL DOS CI-lASSEURSGricau/t,3,49 x 2,GGm, 1812Louvre

    PedroAmricousouestequadrocomomodelopara a composiodeum detalhedesuaobraA Batalhado Ava.

  • delutanacenaapresentada:do ladoesquerdo,re-

    presentadopor Caxiasesuacomitiva,osinteresses

    do Brasil,contrapostoposioexatamentesim-

    tricadosparaguaios,demarcadapor umabandeira

    daquelepas.Passoapassoo artistaencaminhao

    observador,pondo-lheahistriadabatalhadiante

    dosolhos:dafiguraesquerda,vestidadeverme-

    lho ereclinada,cujopdireito tangeabarreiraes-

    tticado quadro, PedroAmrica nos conduz ao

    oficialque,montadosobreum canho,acenacom

    seuchapuemcomemoraovitriadabatalhae,

    assimfazendo,apontandoparao grupodosheris

    responsveispelamesma61, Abaixo eaoredordes-

    tesprotagonistas,um grupo deparaguaiosdepe

    armasebandeirasrogandopor clemncia.Os he-

    risdacena,porsuavez,observamatentamenteos

    ltimosmovimentosdabatalhajvencida,acom-

    panhandocomo lentamenteabandeirabrasileira

    avanasobreaposiodo inimigo.

    A dinmicabsicado quadro resume-se,por-

    tanto,no confrontoentreoscomandantesbrasilei-

    ros,quevemsuasestratgiasdeguerracoroarem-

    sedexito,eamassaquesucumbeaoshorroresda

    luta.Reconhecemosaquiaestruturadescritaacima

    naanlisedo quadroda Independncia:destavez

    no contrasteentreamajestadedafigurado Duque

    deCaxiasedeseuestado-maioreo caosquetoma

    contadoscamposdebatalha frenteedireitada

    tela.No entanto,diferentementedo queacontece

    mais tarde em Independnciaou Morte!, Pedro

    Amrica nopontuaratoclaramenteestaestrutu-

    ra,encobrindo-acom um nmero quaseinfinito

    de elementosditos "decorativos".Evidente,no

    entanto,queA BatalhadoAva temumaestrutura

    criteriosamentecompostasegundoprincpiosque

    regiama criaode um quadro de histria e que

    faziamdeste,segundoatradioacadmica,o mais

    nobredosgnerosdapintura.

    A recepoequivocadade seuquadro como

    uma obra anriacadmica,deixou PedroAmrica

    emuma situaobastanteincmoda, pondo po-

    tencialmenteemriscoaprpria ligaoqueeleti-

    nhacom o imperadoreestefatoteriaconseqn-

    ciasparao desenvolvimentoposteriordesuaobra.

    Sabemosque,apsasuaexperinciacomA Bata-

    lha doAva, Pedro Amrico retoma Europa, e

    aprofunda-seno estudodeagumasquestesest-

    ticasdegrandeimportnciaparao mundo acad-

    mico, publicando, ainda em 1879, seu Discurso

    sobreoPldgio na LiteraturaenaArte. Estasrefle-

    oBrado doIpiranga

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