utopia mecânica fernando correia de oliveira · o poço e o pêndulo numa prisão da santa...

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Prosseguimos a viagem sem fim pelos mundos cruzados da ficção e da relojoaria.Todo o simbolismo das rodas dentadas, das engrenagens, dos pesados pêndulos, dos tic-tacs a meio da noite suscita, por vezes, sentimentos difusos de ansiedade. Ou até de terror. Mestre Poe sabia disso. O Poço e o Pêndulo Numa prisão da Santa Inquisição, em Toledo, um prisioneiro jaz no fundo de uma cela muito especial – alta, funda, circular. Este é o cenário de um conto de Edgar Allan Poe, «O Poço e o Pêndulo». Nascido em 1809, em Boston, filho de um alcoólico e de uma actriz ambulante, Poe é o grande mestre do terror. A sua própria vida, desregrada, passa-se nos bafonds negros das cidades, tão negros como a cor que escolhe para o vestuário, uma imagem de marca de uma persona- gem tão excêntrica como algumas que cria, a partir de uma imaginação também ela ajudada pelo álcool e pela droga. Em «O Poço e o Pêndulo», adivinha-se a presença de um deus ex machina, de um tempo inexorável, de uma mecânica da fatalidade, de um destino de horrores sem fim. Diz-nos o protagonista: «Ergui os olhos e examinei o tecto da prisão. Ficava a uma altura de 30 ou 40 pés e, devido à sua construção, parecia-se muito com as paredes laterais. Num dos painéis, uma figura das mais singulares atraiu-me a atenção. Era a figura pintada do tempo como é habitualmente represen- tado, mas, em vez de uma foice, segurava um objecto que à primeira vista tomei pela imagem pintada de um pêndulo enorme, como se vêem nos relógios antigos. Não obstante, havia no aspecto desta máquina algo que me fez encará-la com mais atenção. Como a observava directamente, de olhos no ar – porque estava colocada mesmo por cima de mim – julguei vê-la agitar-se. Um instante após, a minha ideia achava-se confirmada. O seu balançar era curto e, naturalmente, muito lento. Espiei-a durante alguns minutos, não sem uma certa desconfiança, mas, sobretudo, com espanto. Cansado, por fim, de vigiar o seu movimento fastidioso, voltei os olhos para os outros objectos da célula. [...] Podia bem ter decorrido uma meia hora, talvez mesmo uma hora – porque só conseguia medir o tempo muito imper- feitamente –, quando voltei a direccionar os olhos para cima de mim. O que então vi confundiu-me e estupidificou-me. O percurso do pêndulo avançara quase uma jarda; a sua velocidade, consequência natural, era também muito maior. Mas o que principalmente me perturbou foi a ideia de que havia descaído visivelmente. Notei então – com que pavor é inútil dizê-lo – que a sua extremidade inferior era formada por um crescente de aço brilhante, com cerca de um pé de compri- mento de um corno ao outro; os cornos estavam dirigidos para cima, e o gume in- ferior evidentemente afiado como o duma navalha. Também como uma navalha parecia pesado e maciço, dilatando-se a partir do fio numa forma larga e sólida. Achava-se ajustado a uma pesada vara de cobre, e o todo assobiava ao balançar-se através do espaço. Não podia duvidar mais tempo da sorte que me havia sido preparada pela enge- nhosidade monacal. [...] Para que serve relatar as compridas, compridas, horas de horror mais que mortal durante as quais contei as os- cilações vibrantes do aço! Polegada a polegada – linha a linha –, operava uma descida graduada e apenas apreciável dentro de intervalos que me pareciam séculos – e continuava a descer – cada vez mais baixo! Passaram dias, podem ter passado vários dias antes de ele vir balançar-se bastante perto de mim para me abanar com o seu hálito acre. O odor do aço afiado introduzia-se nas narinas. Implorei ao céu – macei-o com as minhas orações – para que fizesse descer o aço mais rapidamente. [...] A vibração do pêndulo tinha lugar num plano que fazia ângulo recto com o meu comprimento. Vi que o crescente se achava disposto para atravessar a região do cora- ção. [...]» O final? Obedecendo às leis da física e ao mais exacto mecanismo relojoeiro, o pêndulo seguirá o seu caminho descen- dente. Ou... talvez não. Para quem não conhece, Poe é todo um mundo que se abre. Pode começar por «O Poço e o Pêndulo». Não é tempo perdido. UTOPIA MECÂNICA FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA

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Page 1: uTOPia Mecânica FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA · O Poço e o Pêndulo Numa prisão da Santa Inquisição, em Toledo, um prisioneiro jaz no fundo de uma cela muito especial – alta,

Prosseguimos a viagem sem fim

pelos mundos cruzados da ficção

e da relojoaria.Todo o simbolismo

das rodas dentadas, das engrenagens,

dos pesados pêndulos, dos tic-tacs

a meio da noite suscita, por vezes,

sentimentos difusos de ansiedade.

Ou até de terror. Mestre Poe sabia disso.

O Poço e o Pêndulo

Numa prisão da Santa Inquisição, em Toledo, um prisioneiro jaz no fundo de uma cela muito especial – alta, funda, circular. Este é o cenário de um conto de Edgar Allan Poe, «O Poço e o Pêndulo».

Nascido em 1809, em Boston, filho de um alcoólico e de uma actriz ambulante, Poe é o grande mestre do terror. A sua própria vida, desregrada, passa-se nos bafonds negros das cidades, tão negros como a cor que escolhe para o vestuário, uma imagem de marca de uma persona-gem tão excêntrica como algumas que cria, a partir de uma imaginação também ela ajudada pelo álcool e pela droga.

Em «O Poço e o Pêndulo», adivinha-se a presença de um deus ex machina, de um tempo inexorável, de uma mecânica da fata lidade, de um destino de horrores sem fim.

Diz-nos o protagonista: «Ergui os olhos e examinei o tecto da

prisão. Ficava a uma altura de 30 ou 40 pés e, devido à sua construção, parecia-se muito com as paredes laterais. Num dos painéis, uma figura das mais singulares atraiu-me a atenção. Era a figura pintada do tempo como é habitualmente represen-tado, mas, em vez de uma foice, segurava um objecto que à primeira vista tomei pela imagem pintada de um pêndulo enorme, como se vêem nos relógios antigos. Não obstante, havia no aspecto desta máquina algo que me fez encará-la com mais atenção. Como a observava directamente, de olhos no ar – porque estava colocada mesmo por cima de mim – julguei vê-la agitar-se. Um instante após, a minha ideia achava-se confirmada. O seu balançar era curto e, naturalmente, muito lento. Espiei-a durante alguns minutos, não sem uma certa desconfiança, mas, sobretudo, com espanto. Cansado, por fim, de vigiar o seu movimento fastidioso, voltei os olhos para os outros objectos da célula. [...]

Podia bem ter decorrido uma meia hora, talvez mesmo uma hora – porque só conseguia medir o tempo muito imper-feitamente –, quando voltei a direccionar os olhos para cima de mim. O que então

vi confundiu-me e estupidificou-me. O percurso do pêndulo avançara quase uma jarda; a sua velocidade, consequência natural, era também muito maior. Mas o que principalmente me perturbou foi a ideia de que havia descaído visivelmente.

Notei então – com que pavor é inútil dizê-lo – que a sua extremidade inferior era formada por um crescente de aço brilhante, com cerca de um pé de compri-mento de um corno ao outro; os cornos estavam dirigidos para cima, e o gume in-ferior evidentemente afiado como o duma navalha. Também como uma navalha parecia pesado e maciço, dilatando-se a partir do fio numa forma larga e sólida. Achava-se ajustado a uma pesada vara de cobre, e o todo assobiava ao balançar-se através do espaço.

Não podia duvidar mais tempo da sorte que me havia sido preparada pela enge- nhosidade monacal. [...]

Para que serve relatar as compridas, compridas, horas de horror mais que mortal durante as quais contei as os-cilações vibrantes do aço! Polegada a polegada – linha a linha –, operava uma descida graduada e apenas apreciável dentro de intervalos que me pareciam séculos – e continuava a descer – cada vez mais baixo! Passaram dias, podem ter passado vários dias antes de ele vir balançar-se bastante perto de mim para me abanar com o seu hálito acre. O odor do aço afiado introduzia-se nas narinas. Implorei ao céu – macei-o com as minhas orações – para que fizesse descer o aço mais rapidamente. [...]

A vibração do pêndulo tinha lugar num pla no que fazia ângulo recto com o meu comprimento. Vi que o crescente se achava disposto para atravessar a região do cora-ção. [...]»

O final? Obedecendo às leis da física e ao mais exacto mecanismo relojoeiro, o pêndulo seguirá o seu caminho descen-dente. Ou... talvez não. Para quem não conhece, Poe é todo um mundo que se abre. Pode começar por «O Poço e o Pêndulo». Não é tempo perdido.

uTOPia Mecânica FERNANDO CORREIA DE OLIVEIRA