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Prefácio A 7ª edição da prova internacional Ultra Trail Atlas Toubkal decorreu entre os dias 29 de Setembro e 4 de Outubro de 2015, em Marrocos. 6 Associados do Clube Millennium BCP estiveram presentes nesta epopeia pelo gigante Atlas, dos quais, Eduardo Ferreira, Vítor Gomes, Pedro Silva, Manuel Pereira, Sandro Jordão e Filipa Vilar. Além dos elementos do nosso clube encontravam-se inscritos mais 8 portugueses, de seus nomes, Paulo Jorge, Neville Suzman, Paulo Pires, Ricardo Diez, Luís Canhão, Filipe de Oliveira, Margarida Ribeiro e Carlos Rodrigues. O Ultra Trail Atlas Toubkal apresenta 4 provas: o Ultra Trail de 105K, a Marathon de L´Atlas de 42K, a Virée d´Ikkiss de 26K e o Challenge de L`Atlas dividida em 2 etapas de 2 dias, respetivamente 42K + 26K. São provas de montanha pura e dura que nos oferecem paisagens sumptuosas com um perfil bastante exigente. Subidas e descidas com diferentes graus de inclinação, trilhos técnicos e agressivos numa grande variedade de pisos, emergir a uma altitude superior a 3200 metros, adaptação aos antagónicos fenómenos climáticos e o reduzido número de postos de abastecimento para a quilometragem das provas. Durante 4 dias, a nossa base foi a estância de ski de Oukaiimeden, a 2600m de altitude (de onde partiam/terminavam as 4 provas) mas, na última noite explorámos o exotismo da vibrante “cidade vermelha”. Ao longo da nossa estadia, as grandes assimetrias deste país eram evidentes. Um país com deserto e com neve e o contraste entre a cosmopolita metrópole e aldeias berberes ermas. O choque cultural, a genuinidade e hospitalidade das gentes, a simplicidade e pacatez das aldeias, a enormidade do cenário, a eficácia da organização, a força e coragem dos voluntários, o exotismo do país, o despojo do materialismo e a inacessibilidade de alguns locais. Neste relato descrevo-vos as vivências dos 6 dias e o Challenge de L`Atlas. Foi o desafio a que me propus e que consegui, vitoriosamente, terminar. Palavras parcas para transmitir a magnitude dessa viagem. Espero que consigam sentir a magia deste espaço sideral e, quem sabe, não se atrevam a desafiar o Atlas em 2016

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Page 1: UTAT 2015 FV2 2 - clubemillenniumbcp.pt · passo por uma aldeia “escavada” na montanha. Atravesso caminhos de cabra, trilhos estreitíssimos, singles, uma zona Atravesso caminhos

Prefácio

A 7ª edição da prova internacional Ultra Trail Atlas Toubkal decorreu entre os dias 29 de Setembro e 4 de Outubro de 2015, em Marrocos. 6 Associados do Clube Millennium BCP estiveram presentes nesta epopeia pelo gigante Atlas, dos quais, Eduardo Ferreira, Vítor Gomes, Pedro Silva, Manuel Pereira, Sandro Jordão e Filipa Vilar. Além dos elementos do nosso clube encontravam-se inscritos mais 8 portugueses, de seus nomes, Paulo Jorge, Neville Suzman, Paulo Pires, Ricardo Diez, Luís Canhão, Filipe de Oliveira, Margarida Ribeiro e Carlos Rodrigues. O Ultra Trail Atlas Toubkal apresenta 4 provas: o Ultra Trail de 105K, a Marathon de L´Atlas de 42K, a Virée d´Ikkiss de 26K e o Challenge de L`Atlas dividida em 2 etapas de 2 dias, respetivamente 42K + 26K. São provas de montanha pura e dura que nos oferecem paisagens sumptuosas com um perfil bastante exigente. Subidas e descidas com diferentes graus de inclinação, trilhos técnicos e agressivos numa grande variedade de pisos, emergir a uma altitude superior a 3200 metros, adaptação aos antagónicos fenómenos climáticos e o reduzido número de postos de abastecimento para a quilometragem das provas. Durante 4 dias, a nossa base foi a estância de ski de Oukaiimeden, a 2600m de altitude (de onde partiam/terminavam as 4 provas) mas, na última noite explorámos o exotismo da vibrante “cidade vermelha”. Ao longo da nossa estadia, as grandes assimetrias deste país eram evidentes. Um país com deserto e com neve e o contraste entre a cosmopolita metrópole e aldeias berberes ermas. O choque cultural, a genuinidade e hospitalidade das gentes, a simplicidade e pacatez das aldeias, a enormidade do cenário, a eficácia da organização, a força e coragem dos voluntários, o exotismo do país, o despojo do materialismo e a inacessibilidade de alguns locais. Neste relato descrevo-vos as vivências dos 6 dias e o Challenge de L`Atlas. Foi o desafio a que me propus e que consegui, vitoriosamente, terminar. Palavras parcas para transmitir a magnitude dessa viagem. Espero que consigam sentir a magia deste espaço sideral e, quem sabe, não se atrevam a desafiar o Atlas em 2016

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***** 29.09.2015 *****

Às 15h, o avião TP 1454 aterra no aeroporto Marrakech-Menara com 14 portugueses a bordo. É um aeroporto pequeno e simples, sem mangas de embarque, onde os aviões param à frente do terminal e os passageiros seguem em fila indiana pela pista.

Dirigimo-nos para o posto de controlo com o visto de autorização de entrada preenchido e aguardamos pacientemente que este seja validado. Quarenta minutos após a aterragem reunimo-nos com o membro da organização que nos veio acolher e encaminhar para o transfer que nos levará ao coração do Atlas. A viagem é para Sul, em direção a Oukaiimeden, com paragem no centro alpino francês (CAF), onde pernoitaremos 4 noites. A estadia neste refúgio de montanha era a alternativa "de luxo" a pernoitar em tendas no meio do vale desta estância de ski.

Marrakech está a cerca de 450m de altitude num planalto encostado à cordilheira do Atlas e Oukaiimeden a 2600 metros de altitude. O transfer percorreu aproximadamente 70 Kms em 1h45 minutos. Ao longo da viagem, os cerca de 30ºC de Marrakech esfumaram-se e aguardavam-nos uns 15ºC. Quando chegamos dirigimo-nos ao edifício e somos divididos em duas camaratas (C14 e Ikkis 14). Depois de instalados encontramo-nos na receção e descobrimos que o CAF disponibiliza gratuitamente rede Wi-Fi. Ora o que fomos descobrir... Pelas 19h vamos explorar a área. Telemóveis em punho captam paisagens soberbas com o cuidado de enquadrar tudo o que a vista alcança na imagem.

Findo o reconhecimento, dirigimo-nos para as gigantes tendas que se encontram posicionadas em frente ao CAF, no meio do vale. Uma “passadeira vermelha” guia-nos para uma “cerimónia sofisticada”…o nosso jantar! A decoração é muito simples. Uma mesa gigante no fundo da tenda onde são colocados os pratos e loiças, 40 mesas redondas com capacidade para 8 pessoas, gigantes carpetes de tons avermelhados e 6 caloríficos. Tanto as mesas como as cadeiras estão “forradas” num tecido branco bordado com motivos florais. Sentamo-nos em duas mesas contíguas e aguardamos que os auxiliares de apoio à cozinha tragam o banquete. Primeiro, um panelão de sopa harira, seguido de arroz com frango e legumes. Um pão grande e redondo, feito com uma farinha desconhecida mas saborosa, acompanha a refeição.

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*****30.09.2015*****

As hostes agitam-se na camarata Ikkis incitando-me a levantar. Que noite tenebrosa! 2 panelas de pressão em pleno funcionamento deram-me cabo do sono. De manhã o ritual seria sempre o mesmo…descer do beliche, calçar, apanhar a roupa a vestir (previamente escolhida e disposta num móvel em madeira dividido em 16 quadrados), segurar na bolsa com produtos de higiene e na toalha e dirigir-me ao wc/duches. Descobri que as mulheres tentavam manter a privacidade, resguardando-se numa zona com apenas dois duches e separada com uma cortina. A água era excessivamente quente, de resto, as condições de higiene e instalações sanitárias eram suficientes. O pequeno-almoço pecava na variedade mas era de qualidade (chá marroquino, chá preto, café, pedaços de pão, doce de figo, doce de morango, doce de alperce, mel, figos secos e tâmaras).

A etapa seguinte era efetuar a acreditação nas provas e o controle do material obrigatório (ver o perfil, ficha técnica e material obrigatório das provas). Como anunciado, apresentamo-nos às 9h em frente à tenda montada para o efeito, mas a organização só iniciou os procedimentos pelas 10h. Um controlo bastante rigoroso, contrastante com a despreocupação em seguir os horários estipulados aliado a falhas de comunicação entre os voluntários e membros da organização.

Depois de “matar o vício” comunicacional com o Mundo, o grupo reúne-se e vamos fazer um passeio com o intuito de ambientar o corpo à altitude, vencer o ar rarefeito que teima em dificultar a respiração e conhecer os trilhos de saída e de chegada das diferentes provas.

Os almoços não estavam incluídos no pack da prova, como tal, almoçamos numa tasca da vila, uma bela tajine. Esta é um prato da cozinha típica berbere, produzido de manhã que fica a cozer durante todo o dia e que resulta de uma escrupulosa receita tradicional com um surpreendente tempero. O resto da tarde foi puro lazer!

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Os 14 elementos do grupo com o Atlas por detrás A competição ocupa um lugar quase primordial na rotina dos atletas que passam o ano a saltitar entre provas e países. Mas a competição não era o meu foco. Era sim desbravar o Atlas, contemplar um palco de beleza quase selvagem e usufruir do trail no seu estado mais puro. Um mês após um problema de saúde extremamente grave ir fazer o

Challenge do Atlas poderia ser considerado insano mas, na realidade, eu estava a ouvir o corpo. Ele dizia-me para tentar! E eu sentia que

era capaz. Não era a mesma Filipa que um mês antes tinha aterrado no Aeroporto da Portela nem tão pouco o “corpo débil e enfermo” que

vagueava na mediática Chamonix. Durante este mês recuperei a força extinguida pela doença, tive imensos cuidados alimentares, efetuei

a medicação prescrita, repus as horas de sono, fiz treinos leves e fui-me mentalizando que estas duas provas seriam um teste, uma tentativa, e, se por

algum motivo não conseguisse concluir o Challenge, a experiência valia por tudo.

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*****01.10.2015*****

5H55: Tensão no auge, últimos preparativos...

6H: Soa a partida! Partimos em direção à montanha com as estrelas a vigiarem as nossas passadas. Os atletas dos 105, do Challenge e dos 42...todos juntos. Estava um frio de morte e o vento não ajudava a festa. Seguimos em estradão até ao K11 com D+530. Perto dos 2800 o dia começa a clarear e o sol a nascer. A visão é magnânime! Tons laranja forte contrastam com as diferentes tonalidades das montanhas. As mais próximas castanho escuro num degradé até as mais distantes. Sigo constante e forte. Faço os 11K em 1h35 com trote em alguns troços. Chegada ao primeiro controle é hora de descer 9K com D+1000. Os voluntários são uma animação e incentivam os atletas. Na descida, o sol começa aquecer o corpo. Ainda assim não retiro as camadas, apenas as luvas e buff. Inicialmente seguimos em estradão com muita pedra solta, até a separação das provas. A minha segue pela esquerda e passo por uma aldeia “escavada” na montanha. Atravesso caminhos de cabra, trilhos estreitíssimos, singles, uma zona arborizada e o rio Ourika num sobe e desce adorável! Cumprimento todos os locais e eles respondem afavelmente: "Ça vá? Fatigué?". Homens, mulheres e crianças afastam-se para nos dar passagem. Locais à parte! Ainda me oferecem nozes acabadas de apanhar e tudo! Chego ao primeiro abastecimento dos 20K com 3h de prova certinhas! Preparo-me para demorar! Ataco os alperces e os amendoins salgados. Peço para atestar os soft flask e tiro o softshell. A senhora não está interessada em ser rápida. Conversa e esquece-se de mim. Solicito alguma urgência e fica indignada. Com tudo isto demoro 7 min. Sigo. Não gostei muito do abastecimento. Muito fraco. Tinha apenas água, coca-cola, banana, batatas fritas, alperce seco, amêndoas e amendoins. Quando estou a sair vejo o Paulo Jorge descer. A minha subida é uma parte da descida dos 105K. Encontro atletas com quem me cruzei no caminho, atletas que conheço do CAF, o Filipe e o Ricardo Diez e ainda o Eduardo e o Nevile um pouco mais acima. Todos fortíssimos! Sigo cheia de energia! Uma subida de 8K com D+1300

(K28 D+1785) onde atinjo o altitude de 3230 no colossal Tizi n´Tacheddirt!!! Woww!!! A subida é potente! Extremamente técnica, com diferentes graus de inclinação e num trilho com biliões (quantos biliões...) de pedras, pedrinhas, pedregulhos, rochas, areia...O calor começa apertar! Tenho 1,5 lt água...não me parece que vá chegar! Começo a ouvir uma cascata! Boa! Paro 2x para beber água e em uma delas atesto o soft flask. A água é tão fresca!!! Tive o cuidado de apenas beber água de uma zona mais alta onde não vejo cabras a pastar. Outros atletas fazem o mesmo. Nunca páro. Sempre a subir no

meu passinho. Desde o início da prova que ingiro algo de hora a hora. E resulta na perfeição. O corpo nunca perde energia e consigo manter o ritmo. No topo dos 3230 encontro o posto de controlo médico. Demorei 2h30 a chegar. Agora seguem-se 6K com D-1000! Técnico! Agressivo! Num trilho muito estreito e onde a areia me faz derrapar muitas vezes. Por 2x quase que resvalo. A 3K do abastecimento, numa zona muito perigosa e que me faz saltitar bastante encontro um grupo de caminhantes. O último avisa os da frente que vou passar. Impecáveis! Chegam-se todos para o lado. E começam a aplaudir, dar força, desejar sorte!! Uma festa!! Nem sabia o que dizer! Só sabia dizer "merci!!!" Adorei aquele publico! Tentaram trotar comigo e ainda conseguiram uns metros. Depois deixaram-me seguir e disseram "you are the first"!!!

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Atravessei uma estrada e desci novamente em trilho. Medonho!!! Nem havia quase trilho! Areia para derrapar! 1km bem bem complicado. MIUT? Comparado com esta zona é super seguro! Desemboquei na vila e segui por o caminho até chegar ao segundo abastecimento sito em Tacheddirt. Fizeram uma festa! Demoro 1h30 a fazer esta descida. Comi novamente alperces e amendoins. Atestaram os soft flask rapidamente, perguntaram se queria atestar o camelback e ofereceram queijo e/ou fiambre. Priceless!! O queijo não estava a mostra Foram super atenciosos, cuidadosos e eficientes. Informaram-me que no dia seguinte passaria novamente por ali. Despedi-me "see you tomorrow"! Subi 5 degraus e comecei logo bem!! Uma subida quase vertical! Bom...na verdade seriam 5K com D+600! Demolidora a subida! Calhaus e rochas para trepar!! Tipo Km vertical mais muito mais técnico e num trilho super estreito! As montanhas são rochas autênticas! Agrestes, totalmente expostas ao sol, arenosas e áridas. Esta subida coloca-nos em contacto com a sólida Jebel Anggour (de 3614 metros) mas ficamos pelos 2960 Finda a subida nem queria acreditar! Passei no controle e dei o número de dorsal. Mais umas fotos. Pronto...só faltavam 6K a descer até a meta com D-400. Inicialmente muito técnico nem trotar conseguia. Depois 1.5K de estradão para voar mas as dores no joelho esquerdo não deram tréguas e trotei em câmara lenta. Volto a entrar num trilho técnico mas no qual consigo fazer um trote nalgum troços. Os caminheiros são fantásticos! Deixam sempre passar e dão imensa força. Chego a uma zona plana. O vale tem um trilho pedregoso e o rio segue pelo meio da nossa rota. Faltam 3K. Bora lá correr/trotar menina. Consigo fazer esta proeza até a meta. Nem queria acreditar! Terra molhada em que afundo as sapatilhas, trilho corrível mas com pedrinhas. A 1.5K começo a perceber por onde vou chegar. As marcações são muito espaçadas e não dão confiança. Ocorreu-me N vezes parar e tentar perceber por onde seguir. As marcações são com uma tinta azul na rocha (há imensas rochas mas as marcações são muito espassadas e insuficientes). Avisto ao fundo as casas de Oukaiimeden e mais à frente às bandeiras vermelhas e o pórtico da meta. Sigo constante e umas lágrimas escorrem pela face. Felicidade pura!! Consegui! Venci a altitude, a caixa torácica aguentou, o coração conseguiu bombear o sangue que tinha e as pernas nunca falharam. Uma epopeia! Um Challenge sem dúvida! A 500 mts ouço o speaker dizer que se aproxima uma atleta feminina e colocam uma música para mim! Brutal!!! Nunca tal tinha acontecido. Uma música para a minha chegada! Ver o pórtico...atravessá-lo...priceless!!! Com 9h02 totais terminei 42,67K com D+2385. Orgulho!!!

Classificação Geral na Marathon de L`Atlas: 34º lugar de entre 58 atletas que concluíram a prova Classificação Feminina na Marathon de L`Atlas: 6º lugar de entre as 12 atletas femininas que concluíram a prova Tempo efetuado pelo primeiro classificado na Marathon de L`Atlas: 04:37:00 Tempo efetuado pela primeira classificada na Marathon de L`Atlas: 06:10:00

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*****02.10.2015*****

08h45: Desço com o Paulo Pires para o pórtico de partida. Esqueci-me dos bastões! Volto a correr para os ir buscar. Reencontrámo-nos e seguimos até à linha de partida. Conversámos com os restantes atletas do grupo que nos vieram acompanhar e com o Eduardo e Neville que tinham terminado a prova dos 105K. Às 9h soa a partida. Corremos quase em plano 3K. Uma autêntica tortura! O coração quase a sair pela boca, os músculos das pernas acusar o empeno do dia anterior...manter a constância foi um teste a minha resistência mental! Até que finalmente o trilho começa a subir e posso dar uso aos bastões. Os meus salvadores! A subida era a descida do dia anterior. 5K com D+400 divididos em 3 níveis. Um trilho estreito arenoso mas de andamento fácil, um trilho pedregoso mais inclinado e por fim um trilho com rochas e troncos para escalar um pouco mais. No topo da subida encontro o primeiro posto de controlo. Dou o número de dorsal, poso para a foto e começo a descer. Uma descida de cortar a respiração, rodeada por imponentes montanhas de cor ocre. Desço a medo porque a inclinação é acentuada. Sou ultrapassada por vários atletas mas não me importo. Prefiro ser cuidadosa e regrada na descida porque a partir dos 17K, necessitarei de toda a força para atingir os 2800 metros sem fraquejar. 4K de uma descida exageradamente técnica e "perigosa" culminam num trilho muito estreito mas corrível. Dou asas as pernas. Chego ao segundo posto de controle (último posto de abastecimento do dia anterior) e sou informada que o abastecimento é a 5K. Duvido logo. O meu GPS contabiliza 10K e segundo o perfil da prova, este situa-se ao K16.5. Sigo sempre a correr. Yeahhhh!!!! Atravesso duas aldeias, cumprimento todos os residentes invejando-lhes a vista, a pacatez, o despojo do materialismo, a simplicidade e constato (novamente) a inacessibilidade das gentes. A terra árida, povoada por pequenas matas, com grupos de cabras a roer o chão, transporta-nos para clássicos do cinema, cujos protagonistas encarnam vidas passadas em locais ermos, palco de aventuras e trilhos pedestres, mas na realidade, os protagonistas deste filme somos nós! Contemplo sobrados coloridos pelas vestes que ao sol secam. E ao K17 encontro a tenda branca onde os voluntários calorosamente aguardam pelos atletas. Cinco crianças estão a chegada do abastecimento a bater palmas e a gritar por nós. Maravilhoso!! O fotógrafo capta este momento. Eu a chegar, sorridente e os miúdos em festa. Para eles deve ser um acontecimento único no ano, ver tantos atletas, roupas diferentes, mochilas, bastões, os nossos procedimentos, rituais...a azáfama Este abastecimento permite-me tomar fôlego antes de prosseguir, hidratar bastante e ingerir suficientes calorias, afinal vou emergir em altitude numa subida difícil de "abarcar". Duas mãos cheias de alperces e uma de amendoins. O voluntário enche-me dois copos de água para ajudar E agora sim, vai começar a verdadeira dureza. 8K D+1000. A início um estradão largo que desemboca num trilho técnico. A paisagem é impactante! Areia fina, rochas escuras (e até lilases), troncos de madeira (alguns formam socalcos/degraus)...uma montanha que se eleva dos 2800 metros de profundidade, um oásis de vida berbere e trilhos vertiginosos. Não temos medo de nos aventurar naqueles colossos? De assentar os pés em zonas quase sem trilho? Claro que sim! Todos nascemos com medo e é bom que o tenhamos. Por isto é que nos aventuramos. Porque conseguimos superar o medo, desafiar a vida, atingir um estado de plenitude imensa, tornar-nos "mais respeitáveis" aos olhos dos outros. Mas houve momentos em que pensei “e se sucedesse algo?...” Um trilho em que só cabe um pé a frente do outro…mete respeito! Avisto as enormes bandeiras vermelhas. Estavam cada vez mais perto! Estas indicavam que o fim da subida estava próximo. A experiência acumulada destes dois dias e a estrondosa força que descobri que residia em mim eram o meu ópio! Avançava forte e constante, capacidade de alerta no máximo e mantinha-me alimentada e hidratada, o que me permitiu passar mais de 10 atletas. A 500 metros de atingir o cume, um atleta senta-se no chão, exausto. Sinto-me impelida a dar-lhe força. E no meu inglês digo-lhe que o final da subida está mesmo ali, que ele a está a ver, que tem

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de pensar que em poucos minutos vai atravessar a meta, vai poder comer cuscuz ou pasta e que vai tomar um banho quente e aromático…e surte efeito!! Fico radiante!! Levanta-se e segue-me deveras debilitado. Finda a subida encho o peito de ar e de orgulho. Troto na descida e olho para o relógio. Vou chegar mais tarde do que previ mas chego bem. A uns metros da meta, a equipa portuguesa aplaude-me, assim como, atletas sentados nas esplanadas e os locais. Chego à base e sou engolida por uma grotesca sensação de missão cumprida. 25,86K terminados em 5H26 com D+1380

Classificação Geral na Virée d´Ikkiss: 44º lugar de entre 66 atletas que concluíram a prova Classificação Feminina na Virée d´Ikkiss: 10º lugar de entre as 18 atletas femininas que concluíram a prova Tempo efetuado pelo primeiro classificado na Virée d´Ikkiss: 02:35:00 Tempo efetuado pela primeira classificada na Virée d´Ikkiss: 03:28:00 Sendo o Challenge de L´Atlas a soma dos tempos obtidos nas duas provas, conclui os 68K com D+4000 em 14:28:00, ocupando o 20º lugar da geral e 6º lugar feminino. O primeiro classificado concluiu o Challenge em 07:30:00 e a primeira classificada em 10:32:00.

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*****03.10.2015*****

Se o pequeno-almoço dos dois dias de provas nos brindou com uma novidade: a banana, no último dia o espanto era ainda maior! Crepes!! Divinais (um pouco açucarados demais para mim mas ainda assim, deliciosos!). Pelas 7h50, o grupo português reúne-se na receção do CAF e encaminhamo-nos para o autocarro que nos levará de volta a Marraquexe. Antes de subir para o autocarro faço uma pausa como que a saborear a recordação. Sinto-me num espaço sideral! De outro planeta! A meio da viagem o autocarro tem um problema mecânico e somos forçados a parar à beira da estrada. O condutor tenta resolver a situação mas ao final de meia hora percebe que não é possível e solicita ajuda. E agora? Quanto tempo teremos de aguardar por outro autocarro?... 2h foi o tempo que aguardamos. Entretanto 2 voluntárias que também seguiam no autocarro, desesperadas com a hora de embarque, pedem boleia a um taxista. Quase ao mesmo tempo chega um jipe 4x4 para levar mais atletas para o aeroporto. Continuamos à espera que nos venham buscar…35 minutos depois chega um mini bus de 14 lugares e encaminhamo- nos todos afoitos para o mesmo. Mas, dois atletas estrangeiros e o vencedor do ultra trail e sua família ocupam 6 lugares. Não existe espaço para todos…desolador! Apesar deste percalço, mantemo-nos "como equipa" e aguardamos a chegada de um transporte que permita que os 14 sigam juntos para Marraquexe. A manhã estava perdida! Enfim…enquanto aguardávamos, a galhofa imperou! Por fim, chega o transporte para “nos salvar”. A carrinha pára na praça central e desperto do meu cochilo matutino. Está um bafo! Ainda ensonada vou buscar a minha samsonite. 14 Portugueses, em fila indiana, rumo ao endereço de um hotel de charme e qualidade, renovado recentemente, que o Paulo Pires fez o favor de arranjar. A 3 minutos da praça mais mediática de África, união e sintonia ao estilo marroquino aliado a uma decoração moderna e possante. O hotel está por nossa conta. Depois de instalada, dirijo-me ao terraço. Que vista de sonho!

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Entretanto o estômago dá horas, por isso, há que fazer uma paragem obrigatória. Dirigimo-nos para as portas de um dos melhores endereços gastronómicos da cidade. A carta apresenta vários clássicos marroquinos e propostas arrojadas ao paladar. Finda a refeição, vagueamos agora com toda a calma do mundo pela cidade primitiva. Os sorrisos que nos brindam são uma mão cheia de boas recordações.

Marraquexe, a "cidade vermelha" sita no sopé norte do Alto Atlas, é um caldeirão fervente de etnias, religiões, cores, nacionalidades, estratos sociais, comerciantes, sons, cheiros, artefactos, vestes, animais, especialidades alimentares, meios de transporte, hotéis, bancas de rua, frutas... O canto hipnótico dos altifalantes das mesquitas, muralhas e habitações de tons ocre, hotéis a cada esquina, azulejos que decoram as entradas das casas e os pátios interiores, candeeiros arco-íris, uma poeira suspensa no ar...esta cidade é um íman exótico que pulsa os sentidos.

A parte antiga da cidade, vulgo Almedina, são ruas pelejadas de lojas e comerciantes de rua com artes e ofícios tradicionais marroquinos. Desde bijuteria, tapetes e carpetes, tecidos costurados ou bordados, cerâmica e louça berbere de cores, formas e decorações exuberantes, peças esculpidas em madeira, objetos em metal com rendilhados, esculturas, pinturas figurativas, velharias, livros de literatura marroquina imersos em pó, calçado em bico, artigos em pele, blusões de design quase exclusivo, telecomunicações...Há lojas que mais parecem exposições...um incrível espólio marroquino! Nas ruas, uma confusão de pessoas, bicicletas, motoretas e carroças ameaçam, constantemente, a segurança dos peões! Andamos em ziguezague a tentar sobreviver a esta aventura mágica. Uma motoreta apita de um lado, passa um bicicleta a toda a velocidade do outro, aproxima-se uma carroça cheia de fruta, uma banca de pão no meio da rua esburacada, turistas que param bruscamente ao chamamento do comerciante...

A praça mais animada e movimentada de África – Jemaa el-Fna – é uma insana loucura! Encantadores de serpentes, músicos, acrobatas, contadores de histórias, dançarinos, tocadores de instrumentos (do mais banal ao desconhecido, tocam músicas barulhentas e extravagantes) e macacos amestrados animam durante o dia, onde todos os sentidos são apelados ao consumo desenfreado. E ao final da tarde, quando o sol se começa a recolher no horizonte, o coração de

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Marraquexe vibra intensamente. É então que surgem dezenas de restaurantes em bancas no meio da praça e todos reclamam ter a melhor cozinha da cidade. Mas é no Chez Aicha, que descobrimos uma verdadeira instituição gastronómica: uma cozinha variada e fortemente condimentada, com o típico cuscuz, a famosa tajine, a sopa harira, a pastilla, o merguez e o thé à la menthe. Esta viagem jamais será uma memória remota por estas paragens... O UTAT pode estar ofuscado pelo brilho mediático de lugares como Chamonix, Cortina, Zegama, Pirinéu mas quem lá vai descobre uma terra de sonho, uma relíquia marroquina que não se compra com dirhams, a pureza do trail, o vital esforço dos voluntários, um coração árido e ocre que nos impele a voltar. A receita e o retorno mediático desta prova, que está no mapa das provas mundiais mais duras pela dureza do piso, altitude, condições atmosféricas e capacidade de adaptação a uma autonomia quase total, são diminutos comparativamente a provas como UTMB e LUT. As experiências e vivências são igualmente diferentes. Em cada viagem há um prazer no planeamento, uma sensação de prolongamento…a viagem começa a ser vivida antes e ainda temos o durante. Mas esta…assumo dizer que deixará mais “marcas”...será sempre uma viagem exploratória em que se formou uma equipa de 14 pessoas cheia de energia, boa disposição, cordialidade e que partilharam momentos únicos, momentos que muitos mortais nunca experienciarão e, caso lhes contássemos, provavelmente não entenderiam a magnitude do que por lá se viveu. Mas nós sabemos…nós sentimos…e iremos sempre recordar. O “poker face” de cada um denunciava o que nos ia na alma! Todos formos campeões e isso é um feito motivo de grande satisfação.

Um brinde a momentos destes!