usado no tratamento de doenças mentais

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Usado No Tratamento de Doenças Mentais

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HomeDireto ao PontoHistria em ImagensEntrevistaBa de PresidentesSanatrio GeralO Pas quer SaberHomem Sem VisoOpinioFeira Livre16/12/2013 s 12:01 \ Feira LivreGrandes Textos: Com a mo na massa (cerebral), de Dorrit HarazimPublicado na edio 58 da revista PiaupiauiDORRIT HARAZIMExiste um quadro do holands Hieronymus Bosch, no Museu do Prado, em Madri, chamado A Extrao da Pedra da Loucura, que foi pintado no fim do sculo XV. Quatro personagens compem a cena campestre. De p, um cirurgio, retratado como charlato, porta um funil invertido guisa de chapu. A seu lado, h um ajudante e uma anci pensativa, com um livro na cabea, talvez simbolizando a verdadeira cincia. Sentado, um doente incauto e assustado submetido a uma trepanao, a perfurao do crnio por um trpano, instrumento cirrgico com a funo de uma furadeira.Referncias a esse procedimento, usado no tratamento de doenas mentais ou epilepsia, remontam era neoltica, quando foi desenhado em pinturas rupestres. Na Idade Mdia, curandeiros garantiam ter extrado de dentro da cabea do demente as pedras que estariam causando sua loucura. E se guardava o pedao de crnio retirado, como amuleto contra o mau-olhado. Essa operao de emergncia primitiva, talvez a mais antiga de que se tem registro forense, consta do Livro da Cirurgia de 1497, de Hieronymus Braunschweig.Nas primeiras horas da madrugada de uma tera-feira de fevereiro, Thiago deBellis optou por fazer algo parecido num paciente depositado na emergncia do Hospital Municipal Miguel Couto, na Zona Sul do Rio. Foi uma deciso de alta proficincia, destreza e autoconfiana para um carioca de apenas 29 anos.Entre os seus companheiros de gerao, Thiago de Bellis tido pelo chefe do Servio de Neurocirurgia do Miguel Couto, o doutor Ruy Monteiro, como mais do que hbil na realizao da craniotomia descompressiva a retirada parcial do crnio de uma pessoa com trauma e leso cerebral provocados por acidente.Embora o procedimento esteja a cinco sculos de distncia da trepanao retratada no quadro de Bosch, ele continua a ser feito com instrumentos iguais, estruturalmente, s ferramentas medievais: uma broca e uma serra, s que com materiais e tecnologia contemporneos.O osso do crnio retirado para abrir espao aos edemas cerebrais provocados pelo trauma, e para que se possa estancar eventuais hemorragias internas. O osso guardado, no mais como amuleto contra o mau-olhado, mas, para um leigo, de maneira talvez mais surpreendente. A equipe composta naquela madrugada por Thiago de Bellis implantou o osso craniano de 13 centmetros de dimetro no abdmen do prprio paciente.Como so excelentes a vascularizao e a taxa de gordura do abdmen, o pedao de osso fica bem conservado ali, sem risco de se deteriorar, at vir a ser reimplantado na cabea do operado, quando os efeitos do trauma tiverem diminudo e seu quadro geral tiver estabilizado.O Miguel Couto faz cerca de 800 atendimentos de pronto-socorro por dia. Quem chega andando deve preencher uma ficha de atendimento e passar por uma sala de triagem, onde se decide o que fazer com ele. Se o risco for baixo, o paciente atendido numa sala do trreo, medicado, observado ali mesmo e despachado. Em caso de risco mdio, ele encaminhado ao 2 andar, onde funciona a emergncia clnica. Pessoas com crise hipertensiva, asma aguda ou clica nefrtica devem seguir o traado de uma linha amarela pintada no cho at chegar ao setor de emergncias no cirrgicas.Para o paciente que chega de ambulncia, quem carrega a sua maca deve seguir a linha vermelha. Ela o levar ao elevador, ao 2 piso e a um corredor que desemboca numa porta dupla. Sala de Reanimao, informa o adesivo afixado na madeira. Sala de Ressuscitao, diz um painel mais visvel, afixado na parede do corredor. Atrs dela h uma sala com espao para quatro macas.O paciente que aporta ali pode estar todo sujo, sangrando, estropiado, com as roupas rasgadas, nu, mas antes de qualquer coisa entubado, ventilado, oxigenado e monitorado at ser considerado estabilizado tudo em menos de dez minutos. Feita a primeira avaliao por um cirurgio geral, ou por um residente, chamada uma equipe (neuro, vascular, ortopedia, a que for mais adequada ao caso) e aberto um pronturio mdico.Fernando Vasconcelos est no 3 ano de residncia em neurocirurgia. Aquela era a sua primeira semana do planto na equipe de Thiago de Bellis e Paulo Roberto Lobato, neurocirurgio veterano com trinta anos de emergncia no Miguel Couto. Por mais que se aprume no jaleco de doutor, Vasconcelos parece um garoto imberbe: tem 25 anos.Quando entrei na sala de ressuscitao, vi na maca um senhor agitado, com leso na face, que no mobilizava de um lado; pensei logo que fosse atropelamento, contou o residente, tentando relembrar a primeira impresso que lhe causou um dos muitos pacientes annimos que atendeu naquela semana.O paciente agitado que foi submetido a uma craniotomia descompressiva por um neurocirurgio de 29 anos, um residente de 25 e um veterano que se aposenta no ano que vem era o jornalista Marcos S Correa, editor de Piau. O trio s soube a identidade do paciente quando ele j havia sido transferido para a Clnica So Vicente e entregue aos cuidados do neurocirurgio mais conceituado do Rio, Paulo Niemeyer Filho.Hospitais pblicos de emergncia costumam funcionar bem em qualquer lugar do mundo quando conseguem ignorar ao mximo a notoriedade do paciente. Foi o que ocorreu na capital americana na tarde de 30 de maro de 1981. Com apenas 69 dias desde a sua posse na Casa Branca, o presidente Ronald Reagan sofrera um atentado na sada do Hotel Hilton. Seis minutos depois, dava entrada na sala de emergncia do Hospital Universitrio George Washington com uma bala num dos pulmes, trs intravenosas nos braos e a presso em queda.Ao ser chamado, o residente William ONeill, de 30 anos, desceu correndo para a emergncia, mas foi agarrado por dois agentes de segurana. Quem voc?, rosnaram. Sou o dr. ONeill, da equipe de trauma, respondeu ele, e foi literalmente projetado para dentro da sala, onde deu de cara com um idoso com os lbios cobertos de sangue e a pele acinzentada.Um segundo residente ainda jovem, que acompanhava uma emergncia na baia ao lado, foi convocado. Ele ps a mscara de oxignio no rosto do novo paciente, que o olhou e indagou: Estou morrendo? Sem ter ideia de quem se tratava, respondeu que no. Por fim, o cirurgio-chefe do planto, Wesley Price, tambm ele um residente, ouviu sirenes, algum tumulto e correu para o setor de emergncia. Tinha passado a noite em claro.Quem o paciente?, perguntou.O presidente, respondeu-lhe algum.Topou ento com Ronald Reagan na baia 5, nu, com bolsas de fluidos por todos os lados e um urologista tentando inserir um cateter para a retirada de urina.Quem est no comando?, perguntou Price enfermeira-chefe.A resposta veio cortante: Voc.Segundo o relato eletrizante de Del Quentin Wilber no livro Rawhide Down: The Near Assassination of Ronald Reagan, publicado h trs meses nos Estados Unidos, o diretor-geral do Departamento de Cirurgia chegou sete minutos depois. Empunhou um bisturi nmero 10, no qual no tocava havia tempos, e assumiu a responsabilidade e o risco.O planto de Thiago de Bellis no Miguel Couto, s segundas e sextas-feiras, vai das oito horas da noite s oito da manh. Ele acorda s 5h30, toma banho, faz a barba, toma caf e vai no seu Ford Focus de Copacabana at o Hospital Municipal do Andara, na Zona Norte, onde faz o 4 ano de residncia. Chega antes das sete da manh e sai na hora que d. Pode ser s duas da tarde ou meia-noite, voc acostuma, explicou.Nas quartas-feiras, d outro planto de 24 horas, tambm em Andara. Aos sbados, ajuda colegas que operam no hospital pblico de Saracuruna, em Duque de Caxias. E como domingo dia da namorada, anestesiologista, estar de planto, ele estuda e prepara as cirurgias eletivas marcadas sempre para as segundas-feiras, no Andara. uma rotina extenuante, mas corriqueira para quem faz neurocirurgia, a nica rea da medicina que exige cinco anos de residncia as demais se liquidam em trs anos.Quando d tempo de passar em casa, entre um planto e outro, Thiago traa um bife parmegiana com batata palha, esquentados no micro-ondas do apartamento de dois quartos onde mora com a me e o irmo. Quando no d, funciona base de copos de Nescau, po careca com manteiga e queijo de minas.De Bellis acredita ter batido algum recorde, numa sexta-feira recente, quando fez uma cirurgia das nove da manh s cinco da tarde, outras duas no seu planto noturno no Miguel Couto, e dali seguiu direto para Saracuruna, onde operou trs pacientes na parte da tarde. A mandei colocar air bags no meu carro, por precauo, contou.Tambm tem tomado mais cuidado consigo mesmo. At o ano passado eu ainda fazia wakeboard na Lagoa Rodrigo de Freitas com meu irmo, admitiu, meio constrangido. (O wakeboard uma espcie de jet ski, s que sobre uma prancha.) Fui dar um salto, me arrebentei todo e percebi que no posso quebrar o brao, e muito menos a mo, acrescentou. Como no ofcio indispensvel trabalhar com as duas mos, e ser quase ambidestro, ele faz exerccios dirios com os dedos. Um pouco como o pianista que, para encarar algumas sonatas de Beethoven, precisa cruzar as mos no teclado para no interromper a fluidez da melodia e do acompanhamento.Thiago, alis, na tradio da av que fizera conservatrio, tocou piano at o estgio em que se aprende a Marcha Turca, de Mozart. A abandonou o instrumento, assim como abandonou o sonho de ser piloto de avio.Neto, filho e sobrinho de anestesiologistas (a me advogada), no se lembra de quando nem como caiu na neurocirurgia. Voc j se apaixonou por algum?, perguntou, para explicar a opo. Pois a sensao foi a mesma. Foi de um dia para o outro. com ela que vou casar.Ruy Monteiro, que trabalhou quinze anos na emergncia neurocirrgica do Miguel Couto antes de assumir a chefia do departamento, teve olho clnico quando viu De Bellis pela primeira vez. Disse-lhe, de cara: Quero algum para ensinar e para me ajudar. Se for essa sua inteno, bem-vindo. Mas se voc for um curioso, que quer passar no hospital de vez em quando para ver coisas interessantes, no me interessa. Se estudar, vai entrar na cirurgia comigo. Se no estudar, danou.Isso foi dito em 28 de setembro de 2002, data que Thiago lembra mais rpido do que o prprio aniversrio. capaz de descrever sensorialmente a euforia de vestir o avental cirrgico, aprender a escovar unha, mo e brao, e adentrar o centro onde Ruy Monteiro operou um hematoma cerebral e depois um baleado na cabea.Dali em diante, toda a sua vida acadmica, parte o curso regular de seis anos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi no Miguel Couto. Fez ali os seis meses obrigatrios de emergncia e a prova do Centro de Terapia Intensiva, que poca no era obrigatria, mas quis fazer assim mesmo. No adianta nada fazer um trabalho brilhante na sala de cirurgia e mandar o paciente para um CTI ruim, explicou. No h boa cirurgia sem um bom ps-operatrio, e achei que devia conhecer melhor o outro lado.