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A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. A propósito da primeira obra de Achilles Statius Lusitanus Autor(es): Branco, José Gomes Publicado por: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Clássicos URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/6782 Accessed : 1-Jul-2021 23:19:35 digitalis.uc.pt

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    documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por

    este aviso.

    A propósito da primeira obra de Achilles Statius Lusitanus

    Autor(es): Branco, José Gomes

    Publicado por: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de EstudosClássicos

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/6782

    Accessed : 1-Jul-2021 23:19:35

    digitalis.uc.pt

  • Vol. II

    IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

  • FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

    INSTITUTO DE ESTUDOS CLÁSSICOS

    H V M A N I T A S

    C O I M B R AM C M X L V I I I - M C M X L I X

    V O L U M E I I

  • A propósito da primeira obra de Achilles Statius Lusitanus

    Podemos considerar rarissimas as obras de Aquiles Estaço (Achilles Statius Lusitanus) e mais do que as outras aquela de que me ocuparei neste pequeno trabalho. De facto as pes- quisas por mim feitas em bibliotecas portuguesas e estrangei- ras levaram-me ao conhecimento da existência de um único exemplar. Conserva־se na Bibliothèque Royale de Belgique, em Bruxelas, com a cota Y. B. 6426, e o seu frontispicio é como segue: Achillis Statii Lusitani Syluulae Duae. Quibus adiuncta sunt, Praefatio in Topica Ciceronis, 0s Oratio Quod- lubetica eiusdem. Nunc primum in lucem aedita. Louanii, Excudebat lacobus Battus, Anno 154γ.

    Tem 28 folhas. O formato do papel é de 158x98““; o da mancha tipográfica, de 125x65mm. No verso do frontis- pício há a advertencia da concessão por três anos do exclusivo da impressão do livro. E feita ((Caesaris priuilegio», e a pena imposta aos infractores consiste na confiscação dos exemplares publicados. Abre o texto pela dedicatoria e vem depois a parte de poesia, formada por duas composições. A primeira inti- tula־se «Deploratio Virginis Mariae Super Passione Filii» e ocupa as folhas 3r a 5r; a segunda, «Monomachia duorum militum hispanorum», e vai da folha 6r à 9r. Segue-se a parte de prosa com «In Topica Ciceronis Praefatio», da folha ior à 1 7 V , e «Oratio quodlubetica», da folha 18r à 2 7 V , a última do opúsculo.

    Esta publicação não foi assinalada por nenhum dos traba- lhos de biobliografia que se ocuparam de Aquiles Estaço, e eu suspeitava da sua existência apenas por uma afirmação que o

  • JOSÉ GOMES BRANCO82

    humanista fizera na carta que abre a edição das Sjluae, de 154g, considerada até agora a sua obra mais antiga. O encontro da publicação em estudo faz pois, em relação ao que até agora se sabia, recuar dois anos a data do inicio da actividade lite- rária de Aquiles Estaço; e, embora não tenha um grande valor absoluto, o livrinho apresenta o mérito de revelar três géneros de actividade literária depois cultivados pelo humanista, além de que nos traz apreciáveis elementos para o conhecimento da sua actividade (ï).

    Um escritor do século xvii, ainda parente do nosso huma- nista(2), diz que ele, ao sair da pátria, fora estudar para Lovaina, e Nicolau António (3) afirma concretamente que foi aluno de Petrus Nannius, naquela cidade. O próprio Aqui- les Estaço na carta-prefácio das Appendiculae Explanationes in Libros Tres M. Tullii Ciceronis, de 1553, editadas em Antuérpia, diz que, depois de ter estado em Paris, voltara à

    (1) O encontro do exemplar das Syluulae foi possível graças ao justo conceito de investigâção bibliográfica corrente na maior parte das biliotecas estrangeiras que tive o prazer de frequentar, e também nalgu- mas portuguesas.

    Infelizmente esse conceito ainda não é pràticamente tido em conta por todas as grandes bibliotecas do País, grave defeito que muito preju- dica os trabalhos de investigação bibliográfica. O regulamento de tais bibliotecas, onde o público apenas pode 1er, como nas de tipo popular, o que de antemão sabe ali existir3 pois é reservada aos funcionários inter- nos a consulta directa dos catálogos, impede, como é óbvio, qualquer tentativa de investigação séria. Ao voltar a ter contacto com as nossas bibliotecas, nas quais felizmente há profissionais competentes, faço votos por que possam pôr em prática aquelas mínimas e imprescindíveis facili- dades de trabalho por eles bem conhecidas e a que têm direito os leito- res de uma biblioteca pública que não abdique de sua função de centro cultural.

    A Biblioteca Vallicelliana, de Roma, que justamente considera Aquiles Estaço como seu fundador, comemorou em 1947, por sugestão do Leito- rado de Português da Universidade de Roma, o quarto centenário do início da actividade cultural do humanista. Na secção «Notas histó- ricas» deste número de Humanitas faz-se pormenorizada referencia a essa comemoração.

    (2) Varias Antiguidades de Portugal. Gaspar Estaço. Lisboa. 1625. Pág. 166.

    (3) Bibliotheca Hispana. Roma. 1672. Tomo 1, pág 2.

  • A PRIMEIRA OBRA DE ACHILLES STATIVS LVSITANVS 83

    Bélgica, onde já havia vivido algum tempo. Tendo presentes estas afirmações, pode concluir־se que as Syluulae foram edi- tadas por ocasião da primeira estadia de Aquiles Estaço na Bélgica, quando em Lovaina estudava com Nannius. O período do professorado deste humanista naquela antiga cidade belga é conhecido—153g a 1556 — (1), e este dado cronológico não se opõe ao que fica dito. De resto, Estaço nas Syluae (1549) tem um ((Encomium Petri Nanni Alcmariani», no qual mani- festa a sua admiração pela eloquência de Nannius com um entusiasmo que bem pode ser o de um discípulo reconhecido. Nannius ensinava os autores latinos, e Estaço, embora então especialmente ligado a estudos de teologia, não perderia a opor- tunidade para se dedicar também aos de carácter literário. Recebia assim aquela dupla preparação, teológica e humanís- tica, revelada depois na sua actividade na Itália.

    Desejando obter informações mais exactas sobre os anos da estadia do humanista em Lovaina e admitindo a hipótese de que ele tivesse frequentado a Universidade, fiz pesquisas nos Archi- ves Générales de Bruxelas, especialmente no fundo relativo àquela escola (2). Não encontrei uma só vez o nome de Estaço, se bem que tivesse encontrado o de outros portugueses. Dado que a inscrição era obrigatória, como é natural, para todos os estudantes que quisessem apresentar-se como tal (e nisso não poucas vantagens havia), o caso parece um pouco singular (3), mas explica־se pelo que o próprio Estaço informa no opúsculo em estudo.

    Os elementos de que já dispunha, e sobretudo os fornecidos pelo discurso sobre os Topica e que adiante apresentarei com pormenor, levam-me assim à convicção de que Estaço. pos- sivelmente já graduado em Artes pela Universidade de Paris, não teve a preocupação de frequentar regularmente os cursos de Lovaina, mas apenas a de aproveitar livremente o ambiente cultural da cidade. Depois teria apresentado, como que para

    (1) Une gloire de l'humanisme belge — Petrus Nannius. Amédée Polet. Louvain. 1936.

    (2) Vol. 24, Quartus Liber lntitulatorum.(3) L'Université de Louvain. Léon van der Es?en, Bruxelles. 1945.

    Pág. 214.

  • JOSÉ GOMES BRANCO84

    legalizar a sùa situação universitária, as duas orações insertas neste opúsculo.

    Este caso não seria, de resto, único na vida da Universi- dade, segundo o parecer do Prof. Henri de Vocht, pessoa de excepcional competência no que se refere à história da vida universitária de Lovaina, como bem prova o seu Inventaire des Archives de V Université de Louvain aux Archives Géné- raies du Royaume à Bruxelles, Louvain, 1927, e que conhece outros casos, também do século xvi, de estudantes cuja inseri- ção não aparece nos competentes registos, mas que, sem dúvida alguma, frequentaram os colégios universitários de Lovaina.

    Inscrito ou não regularmente na Universidade, o certo é Estaço ter publicado em Lovaina, apenas com 23 anos (1), o seu livrinho, que testemunha uma participação relativamente importante na vida universitária local e demonstra certa cota- ção em tal ambiente. Vejamos agora os vários elementos do opúsculo (a dedicatória, as poesias e os trabalhos em prosa), para depois estudarmos a sua projecção na futura actividade de Estaço.

    A dedicatória é dirigida a um D. João de Portugal, que qualifica de «illustrissimus ac literatissimus». Foi amigo do humanista desde a sua meninice, benévolamente o educou e zelosamente o protegeu até à maioridade. Por isso, já homem, oferecia os primeiros frutos da actividade literária a quem com tanto amor o tratara. E nota o autor que o opúsculo é uma amostra das suas possibilidades em prosa e em verso. Por ora, não conheço nas obras de Estaço outras referências que permitam identificar melhor este protector.

    A parte poética abre com a já referida poesia, que tem por

    (1) Aquiles Estaço, segundo uma nota deixada nos seus manuscritos (códice B 102, f. 180 v, Biblioteca Vallicelliana, Roma), nasceu em 12 de Junho de 1524· O nosso autor nem sequer tinha, portanto, 23 anos com- pletos.

    Para a biografia e bibliografia de Estaço, ver Un Umanista Porto- ghese in Italia — Aquilles Estaço, J. Gomes Branco, in Relationi Storiche fra Vitalia e il Portogallo. Roma, 1940, págs. 135-148.

  • A PRIMEIRA OBRA DE ACHILLES STATIVS LVSITANVS 85

    tema os lamentos da Virgem Maria sobre a paixão de Cristo. São 97 hexámetros novamente publicados com leves variantes ñas Syluae de 1549(1). E a poesia de urna Mater Dolorosa. Começa a Virgem por perguntar se Cristo nasceu apenas para ser sujeito a suplícios e tormentos. A alegria do nascimento em breve foi toldada por uma série de dores, cujo início é marcado pela fuga para o Egipto. Em síntese, são recordados os passos principais da vida de Jesus e esta evocação feita pela Virgem encerra-se com sentidos lamentos:

    « Ergo ego sola diu sine te dulcissime nate Heu sine te uiuam ? miseram sine te perire.Cui sine te uita haec, haud uita est : cui quoque tecum Mors ipsa haud mors est, sed uitaר heu nate relinquor, Heu sine te nate, heu orba, eheu moesta relinquor.»

    (Vv. 93-97.)

    A segunda poesia é de carácter épico e o assunto está resumido no extenso título que o poeta lhe deu : «Mono- machia duorum militum Hispanorum, quorum uterque Angliae regi militauerat: Sed alter postea Mora nomine, ad Regem Galliae defecit: quem Iulianus commilito post eius belli tem- pora, permissu Angli, prouocandum putauit. Exhibitum est spectaculum in media propemodum Gallia, Rege ac Princi- pibus totius Galliae uiris spectantibus.» E escrita também em hexametros e tem 125 versos.

    A parte em prosa abre com o prefácio aos Topica de Cícero. E um discurso para ser dito em cerca de meia hora e consiste numa análise sumária àquela pouco conhecida obra ciceroniana. Dá a entender no início da exposição que deseja informar o auditório acerca da sua vida. Aparece diante daquela assembleia, diz, em parte para satisfazer os desejos dos que estranhavam não se inscrever ele como estudante da

    (1) Achillis Statii Lusitani Syluae aliquot una cum duobus hymnis Callimachi eodem carminis genere ab eo latine redditis. Parisiis. Apud Thomam Richardum. 1549.

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    Universidade nem haver obtido os direitos de cidadão de Lovaina, quando o podia fácilmente conseguir com a apre- sentação de um trabalho.

    Após este breve exórdio faz o elogio gene'rico de Cícero como autor bem conhecido dos gramáticos, dos retóricos e dos filólogos, e aponta a utilidade da sua obra. Cícero distin- guiu־se pela curiosidade de saber e pela dedicação ao bem público e assim é que, em tudo quanto podia ser útil, a sua eloquência esteve sempre ao serviço do Estado. Estaço apro- veita o ensejo para enaltecer os serviços que as letras prestam às nações com bem maior consistência do que a da glória efe'mera dos feitos militares. Indica seguidamente os tipos de eloquentia (tomada em sentido lato) úteis à respublica e mostra como Cícero foi eminente em qualquer deles. Observa ainda que, ocupando-se dos Topica de Aristóteles, Cícero os completou de tal modo que bem pode dizer-se serem obra dos dois.

    O interesse de Estaço por este opúsculo manifesta-se nova- mente, dois anos mais tarde, numa edição dos Topica publicada em Paris e também hoje bastante rara, onde os subsídios do nosso humanista para a interpretação desta pequena obra cicero- niana aparecem ao lado das explanações de Bartolomeu Látomo, dos escólios de Filipe Melâncton e de Egendórfino, e dos comen- tários de António Gouveia (1), e ainda em edições de 1552(2) e de 1553 (3).

    A última parte do livrinho é, como ficou dito, uma oratio quodlubetica. Léon van der Essen, ao fazer a história da Uni- versidade de Lovaina (4), refere-se às disputationes quolubeticae,

    (1) M. T. Cic. ad Trebatium lurisconsultum Topica. In eadem Barth, Latomi enarrationes. Ph. Melancthonis, & Ch. Hegendorphini scholia. Ant. Goueani Commentarius. Quibus additum est Achillis Statii Lusitani ad aliorum commentationes epidoma. Parisiis, apud Thomam Richardum, 154g.

    (2) Achillis Statii Lusitani Castigationes ac Explanationes in Topica M. Tulli Ciceronis. Louanii, 1552.

    (3) Appendiculae explanationum Achillis Statii Lusitani in libros tres M. Tulli Ciceronis De optimo genere oratorum, Topica, De fato, atque Obseruationes aliarum. Antuerpiae, 1553.

    (4) Ob. cit., pág. 237.

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  • A PRIMEIRA OBRA DE ACHILLES STATIVS LVSITANVS

    discussões que todos os anos por ocasião da festividade de Santa Luzia (13 de Dezembro) se faziam na Faculdade das Artes sobre um tema escolhido por um quodlubetarius, como se chamava ao Magister Artium, que aos seus colegas de grau propunha o assunto a discutir.

    O tema do discurso de Estaço é «animam omnino immorta- lem esse: hoc est, nunquam amittere potentias», ou, como mais claramente diz adiante, «an ubi illa (anima) ex humano corpore euolarit, tota, an dimidiata, an particulis fraudata demigrat», tema tornado ainda mais explícito com esta observação do ora- dor: «Dico autem particulas ipsius animae uires quibus illa abunde instructa totam hanc corporis molem occupatam habuit et ad diuersa munia diuersis modis exercuit.»

    Temos pois Estaço envolvido numa discussão de carácter filosófico, não alheia, mas antes relacionada com os seus estu- dos de teologia, que na própria declaração do humanista eram, pelo menos ainda em 1649, a sua maior ocupação. De facto, quando naquele ano se publicaram em Paris as Sfluae, declara na carta-prefácio ao infante D. Luís que se não dedicava às letras senão «uacuus et a Theologiae studiis aliquantulum feriatus».

    Depois de breve introdução o assunto é enfrentado com uma interrogação um tanto violenta: «Cur autem hoc loco pugnem cum eorum sententiis uel potius amentia?» E logo desdobra este eorum em três grupos : o dos que afirmam serem as almas formadas de corpúsculos denominados atoma; o dos que a consideram como uma harmonia; e o dos que a julgam composta de elementos materiais. Explana a opinião destes filósofos; depois contradi-la, apoiando-se na autoridade de Padres da Igreja, como S. Gregorio e Santo Agostinho, de filósofos pagãos, como Platão, Aristóteles e Cícero, e ainda apresentando argumentos próprios.

    O pequeno trabalho de Estaço que estamos a estudar é como que o gérmen (tenha-se presente a observação nesse sentido por ele próprio feita na dedicatória, como atrás refiro) dos que ocuparam a sua vida. Com efeito deixou, impressos ou manuscritos, trabalhos de poesia, comentários de clássicos latinos e discursos.

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    O que há impresso de poesia e' pouco, talvez porque, tendo enveredado pelo caminho dos trabalhos filológicos (são deste género as mais importantes das suas obras publicadas), que lhe obtiveram ainda em vida um lugar de relevo no mundo culto, não tivesse em tanta conta as composições poéticas e por isso transcurasse a sua publicação. Mas são importantes os seus manuscritos de poesia e não devo perder a presente oportunidade de a eles me referir, pois que o estudo que deles fiz levanta um curioso problema sobre a exacta fixação do espólio poético estaciano.

    Os manuscritos de Estaço encontram-se, na quase totali- dade, na Biblioteca Vallicelliana, de Roma, que é a continua- ção da biblioteca dos Padres Filipinos, cujo primeiro fundo foi a própria biblioteca de Estaço legada pelo humanista aos seus amigos do Oratório de S. Filipe Néri(i). E esta biblioteca, depois da Vaticana, a mais antiga das actuais bibliotecas de Roma, encontrando-se por isso o nome do filólogo português intimamente ligado à história cultural da grande cidade.

    De entre os códices da Vallicelliana atribuídos a Estaço avulta pela importância do conteúdo o B 106. O Prof. Leite de Vasconcelos, que em 1g05 consultara estes manuscritos (2), publicou em 1940, em resposta a uma carta minha (3), os apon- tamentos então colhidos. Cita alguns dos documentos insertos no B 106, qualifica-0 de «códice precioso», mas não faz nenhuma referência às poesias que nele se encontram.

    O códice B 106, encadernado em pergaminho, é constituído por 249 folhas de diversos tamanhos, mas o formato externo é de 295x240mm. O coleccionador das folhas que constituem o códice deu ao conjunto o título de «Achillis Statii Lusitani Orationes, Epistolae et opuscula omnia quae in foliis sparsa habebantur» e compilou o índice, que se encontra nas primeiras folhas e que tem por sua vez este titulo: «Index Opusculorum,

    (1) Este santo foi o testamenteiro de Estaço.(2) Da Numismática em Portugal. Lisboa. 1923.(3) Petrus Nonius. Numa nota deste artigo, pág. 158, o Prof. Leite

    de Vasconcelos diz que no Fundo Allacci, da Vallicelliana, há uma cópia do B 106. É um equívoco; no Fundo Allacci existe, deste códice, apenas uma cópia das folhas 44 a 48.

  • A PRIMEIRA OBRA DE ACHILLES STATIVS LVSITANVS

    Litterarum, Orationum, et aliarum scripturarum Achillis Statii Lusitani Secretarii Epistolarum Latinarum Summi Pontificis et Bibliothecae Vallicellanae Fundatoris quae in hoc uolumine continentur.» Neste conjunto de papéis as folhas g3 a 161 formam um núcleo especial com o formato de 200Xi35mm. A parte do índice que lhes diz respeito está assim redigida: «Carmina sacra, et profana, de Deo, de Sanctis, et de aliis rebus uariis — pag. 93. Paraphrases uariae nonnullorum Psal- morum — pag. 135. R. P. Antonio Barberino — pag. 160 a tergo.» Estas 68 folhas contêm uma centena de poesias (excluo algumas repetidas), num total de cerca de 1600 versos. São de carácter religioso e profano os temas tratados e foram usados vários metros, com preponderância porém do hexâ- metro.

    A avaliar pela letra dos títulos e dos índices dos códices, o bibliotecário que coligiu o B 106 coligiu outros, como u. g. o C 56, onde escreveu o título «Notabilia diuersarum materiarum collecta ab Achille Statio, et ab eodem scripta sermone latino, itálico, et lusitano», com uma segurança de quem era bem conhecedor do material pertencente ao humanista. A mais recente e completa história da Biblioteca Vallicelliana (1) não diz quem foi o coleccionador destes códices nem o consegui saber noutras fontes. A tradição dos bibliotecários da Valli- celliana sempre porém lhe atribuiu todo o crédito; e, não havendo nenhum motivo para duvidar de tão claras afirma- ções, durante muito tempo considerei como de Estaço todas as poesias contidas nas referidas folhas 93 a 161 e como tais as estudei. Fazia já os últimos preparativos para as edi- tar, quando um facto inesperado veio revelar-me que algumas delas haviam sido editadas com o nome de outro poeta e assim abalar o crédito da atribuição a Estaço deste núcleo de poesias.

    O caso inesperado foi o de haver encontrado cinco dessas poesias incertas na obra Maphaei S. R. E. Card. Bar ber ini nunc Urbani P. P. viu Poemata9 Romae, 1635. Isto é, cinco das poesias atribuídas a Estaço, que morrera em 1581, apare-

    (1) La Biblioteca Vallicelliana in Roma. Elena Pinto. Roma. 1g32.

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  • JOSE GOMES BRANCO90

    cem como sendo do papa Urbano viii, numa edição de 1623, e o mesmo sucede em outras edições dessa obra (1628, 1629, 1635)(1). Estaremos em frente de um plágio do antigo cardeal Barberini (Estaço não está em causa, pois, quando morreu, o futuro Urbano vm tinha apenas 13 anos), ou tratar־se־á de um engano da pessoa que coleccionou o B 106 e precipitadamente incluiu entre papéis de Estaço os que continham poesias do cardeal Barberini? E o engano, que me parece bastante estra- nho, limitar-se-á àquelas cinco poesias, publicadas sob o nome de Urbano vm, ou estender-se-á a todas as outras, ainda que inéditas ? Encontrei-me assim perante um curioso problema, cuja solução definitiva espero apresentar, partindo de elementos já colhidos, apenas me seja possível examinar novamente o códice em causa e outros da mesma biblioteca.

    Julgo que o problema bem merece que alguém dele se ocupe, pois os manuscritos de Estaço pertencem ao património da nossa cultura humanística e não podem por isso ser deixa- dos ao abandono, mas exigem que os estudem e os publiquem. De resto, este problema levanta uma questão que se projecta para além cia autenticidade do códice B 106 como contendo papéis de Estaço, pois outro material foi arrumado, como disse, pelo mesmo coleccionador do códice. O problema abrange assim esse material e por consequência afecta o cré- dito a prestar às atribuições de autor por ele feitas, o que evidentemente tem íntima ligação com a história da formação e da classificação dos manuscritos guardados na Biblioteca Vallicelliana e com a atitude a adoptar ao consultá-los.

    Os comentários aos clássicos foram o segundo caminho aberto pelo livrinho em estudo com o prefácio aos Topica de Cícero. E neste campo que se encontram os trabalhos de maior valor de Estaço, pelos quais merece considerar-se o nosso melhor filólogo do século xvi e um dos grandes da Europa nesse tempo. A sua edição comentada de Catulo fez época e ainda

    (1) De justiça é agradecer públicamente ao meu caro amigo Prof. Gio- vanni Battista Pighi, da Universidade de Bolonha, o auxílio precioso, que me deu, para o conhecimento das poesias de Urbano viii.

  • A PRIMEÏRA OBRA Ï)E ACHILLES STATIVS LVSITANVS

    hoje é tida em conta nos estudos sobre o poeta veronês (i); e espero um dia mostrar como a atitude de Estaço em trabalhos de fixação de textos clássicos era já orientada por um rigo- roso sentido de busca da verdade. Deste género de trabalhos está inédito o comentário a Virgilio, que Estaço deixou num seu exemplar do P. Virgilii Maronis Bucolica, Georgica, et Aeneis, Lutetiae, M. D. LI. (conserva-se na Biblioteca Vallicel- liana, com a cota E. 60. 2), e no qual o nosso filólogo também anotou o resultado da colação feita com o actual códice medi- ceu de Virgílio, ao tempo na Vaticana. Enrico Rostagno, que cuidadosamente estudou esse‘códice, com o fim de prepa- rar a preciosa edição fac-símile de 1931, afirma (2) que «il consultare questo volume (o E. 60. 2) potrebbe forse giovare a decifrare meglio le lezioni sbiadite, quà e là consunte, inafferra- bili o quasi, sopratutto delle prime pagine del Mediceo. Infatti 1’Estaço vi lesse per es. gli scolii alle Ecloghe, quando essi erano assai meno logori e svaniti». Excelente testemunho de pessoa competente sobre o valor e a utilidade de uma parte do trabalho do nosso humanista.

    Os discursos que Estaço teve a oportunidade de pronunciar no resto da vida não foram de carácter académico e sobre assuntos literários e filosóficos como os do opúsculo de 1547· Esses discursos, uma boa parte dos quais editada, tiveram sobretudo carácter diplomático, não porque Estaço houvesse enveredado pela carreira diplomática, mas porque prestou a sua colaboração a diplomatas, compondo e dizendo por eles os discursos de apresentação aos pontífices. Entre as orações inéditas há duas de maior importância, a que de momento apenas faço referência, deixando para mais tarde o seu estudo e publicação. Uma é a que Estaço pronunciou nas exéquias celebradas em Roma pela Companhia de Jesus, por alma do rei D. Sebastião. A outra a que disse no consistório público de 8 de Março de 1581, para apresentação do embaixador João

    ( 1) Ver The identification of the manuscripts of Catullus cited in Statius’ edition of 1566. Berthold Louis Ullman. University of Chicago. 19085 eII libro di Catullo. M. Lenchantin de Gubernatis. Torino. 1945.

    (2) 11 Codice Mediceo di Virgilio. Roma. 193!. Pág. 60.

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  • jóse gomes branco92

    Gomes da Silva, o primeiro que, como rei de Portugal, Filipe 1 enviou à Santa Se'.

    A primeira obra publicada por Estaço é pois como que um ge'rmen da actividade desenvolvida nos restantes trinta e quatro anos da sua vida. Por isso quis dar a conhecer essa raridade bibliográfica, que, embora modesta quanto ao volume, tem um lugar próprio na história do humanismo português, e referir-me, a propósito, a alguns aspectos desconhecidos do espólio literá- rio estaciano.

    José Gomes Branco