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A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. Platão e o plágio de Epicarmo Autor(es): Santoro, Fernando Publicado por: Annablume Clássica; Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24334 DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_8_1 Accessed : 3-Dec-2018 12:00:01 digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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    Condies de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos.

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    de Autor e Direitos Conexos e demais legislao aplicvel, toda a cpia, parcial ou total, deste

    documento, nos casos em que legalmente admitida, dever conter ou fazer-se acompanhar por

    este aviso.

    Plato e o plgio de Epicarmo

    Autor(es): Santoro, Fernando

    Publicado por: Annablume Clssica; Imprensa da Universidade de Coimbra

    URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24334

    DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_8_1

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    digitalis.uc.ptimpactum.uc.pt

  • EDITORIAL Gabriele Cornelli

    ARTIGOSPlato e o Plgio de Epicarmo Plato and the plagiarism of Epicharm Fernando Santoro

    Morte e Vida na Antgona, de Sfocles Death and Life in Sophocles Antigone Jos Gabriel Trindade Santos

    Hannah Arendt, uma Leitora Crtica de Plato Hannah Arendt, a critical reader of Plato Daiane Eccel

    O Humano em Homero The Human in Homer Marcelo Alves

    Max Weber e o Debate Sobre a Natureza da Economia Antiga Max Weber and the Debate on the Nature of the Ancient Economy Danilo Andrade Tabone

    DOSSIApresentao Eudoro de Sousa: Retratos de um Helenista Foreword Eudoro de Sousa: Portrait of an Hellenist Gabriele Cornelli, Jos Otvio Nogueira Guimares, Hilan Bensusan

    Entre Livros e Eudoro: Relato de Algumas Experincias Between Books and Eudoro: Report of some Experiences Marcus Mota

    Entre-Lugar e Lugar-Comum: Eudoro de Sousa, de Portugal Braslia Between-place and Nowhere: Eudoro de Sousa, From Portugal to Braslia

    Jos Otvio Nogueira Guimares

    A Histria na Obra de Eudoro de Sousa History in Eudoro de Sousas Works Henrique Cairus

    A Construo do Argumento no Ensaio Dioniso em Creta de Eudoro de Sousa The construction of the Argument in Eudoro de Sousas Essay

    Dioniso em Creta Teodoro Renn Assuno

    Eudodro de Sousa e a Potica de Aristteles Eudoro de Sousa and The Poetics of Aristotle Jacyntho Lins Brando

    Em Torno do Ensaio Arte e Escatologia de Eudoro de Sousa On the Essay Art and Eschatology by Eudoro de Sousa Walter Menon

    Horizonte e Irredutibilidade: Eudoro de Sousa e o Originrio na Ontologia Horizon and Irreductibility: Eudoro de Sousa and

    the Originary in Ontology Hilan Bensusan

    Linguagem, Mito e Enigma Language, Myth and Enigma Ordep Serra

    Recordao de Eudoro de Sousa Remembering Eudoro de Sousa Ordep Serra

    TRADUO Sobre os Ofcios, Trabalhos e Profisses Anise A. G. DOrange Ferreira

    RESENHAS William A. Heidel: O Livro de Anaximandro. O Mais Antigo Tratado Geogrfico Conhecido. Traduo, Apresentao e Apndices de Katsuko Koike. Gabriele Cornelli

    Martha Nussbaum. Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities. Princeton University Press, 2010. Fbio Faversani

    8 jan.2012

    issn 2179-4960

    8 jan.2012

    issn 2179-4960

    8 ja

    n.20

    12

    R E V I S T A

    ARCHAI JOURNAL: ON THE ORIGINS OF WESTERN THOUGHT

    ARCHAI JOURNAL: ON THE ORIGINS OF WESTERN THOUGHT

  • desgnio 8

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    jan.2012

    plato e o plgio de epicarmo

    Fernando Santoro*

    * departamento de Filosofia

    da Universidade Federal

    do rio de Janeiro, rio de

    Janeiro, Brasil.

    RESUMO: O estudo da filosofia dos pitagricos, bem como

    da filosofia dos pr-socrticos em geral, inseparvel do estudo

    de sua transmisso e recepo pelos filsofos que os seguiram.

    Sob tal perspectiva, examino um testemunho particularmente

    controverso dos textos escritos pelo comedigrafo Epicarmo.

    Como se sabe, ele um dos mais antigos pensadores associados

    aos crculos pitagricos. Este testemunho refere-se a uma longa

    passagem sobre Plato, que comea no nono captulo, Livro

    III, das Vidas e Doutrinas dos Filsofos Ilustres de Digenes

    Larcio. Este testemunho interessa porque traz explicitamente

    tona uma situao de imitao, j que o texto apresentado

    como prova em um caso de plgio. Especificamente, o caso de

    plgio est dentro do contexto de uma controvrsia envolvendo

    a fundao de um gnero que apresenta grande importncia para

    o desenvolvimento do discurso filosfico - o dilogo socrtico.

    A passagem referida importante para a histria da filosofia,

    uma vez que ajuda a reconstituir as diretrizes de Plato e do

    pensamento da Academia. A acusao de plgio de alguma

    forma evoca as discusses sobre o que Harold Cherniss chamou

    de O enigma da Primeira Academia em seu livro homnimo

    (1945). Outra preocupao deste artigo diz respeito aos critrios

    de avaliao de autenticidade na recepo filolgica de Epicarmo,

    que aparece nas edies crticas de suas obras.

    PALAVRAS-CHAVE: Epicarmo, Plato, Pitagorismo, plgio,

    Digenes Larcio.

    ABSTRACT: The study of Pythagorean philosophy, as well as

    the study of philosophy of Pre-Socratics in general, is insepa-

    o estudo da filosofia dos pitagricos, assim como dos pr-socrticos em geral, indissocivel

    de sua transmisso e recepo pelos filsofos sub-

    sequentes. isto, no s pela contingncia de que

    muitas das obras de pensadores anteriores a plato

    no chegaram at ns seno por via indireta de

    citaes e aluses; mas tambm, particularmente

    no caso dos chamados pitagricos, por conta de

    preceitos envolvendo o que publicamente pode ser

    dito e o que no pode e, portanto, tambm o que

    pode ser escrito ou no. e mesmo quando alguma

    doutrina viesse a ser escrita, importava o modo

    como esta seria escrita, no interesse de conservar o

    ensinamento dentro de um pblico mais, ou menos,

    circunscrito, conforme o caso. isto no impediu a

    propagao e o sucesso das ideias atribudas aos

    pitagricos, sejam elas oriundas de membros per-

    tencentes aos crculos mais prximos de um dado

    ensinamento do mestre, sejam oriundas de outras

    fontes que tivessem, no entanto, uma semelhana

    doutrinal. isto no apenas no impediu a pro-

    pagao, mas possvel at mesmo que a tenha

    impulsionado, visto a curiosidade que as situaes

    de segredo e mistrio suscitam nos homens. por

    isso, o pitagorismo como categoria histrica no se

    construiu tanto a partir de uma linhagem precisa

    ou de um corpus bem definido, mas antes como um

    SaNtoro, F. (2012). plato e o plgio de epicarmo. archai n. 8, jan-jun 2012, pp. 11-20.

  • 12

    rable from the study of its transmission and reception by

    philosophers who followed them. From this perspective I

    would like to examine a particularly controversial testimony

    of the texts written by the comedy playwright Epicharmus.

    As is known, he is one of the oldest thinkers associated

    with the Pythagoreans circle. This testimony refers to a

    long passage about Plato, which begins in the ninth chap-

    ter, Book III, of Diogenes Laertius Lives and Opinions of

    Eminent Philosophers. This testimony interests because it

    explicitly brings to light a situation about imitation, since

    the text is presented as evidence in a case of plagiarism.

    Specifically, the case of plagiarism lies within the context

    of a classic controversy involving the foundation of a genre

    which presents great importance for the development of

    philosophical discourse the Socratic dialogue. The referred

    passage is important for the history of philosophy as it helps

    to reconstitute the guidelines of Plato and the Academys

    thinking. A charge of plagiarism somehow evokes the dis-

    cussions on what Harold Cherniss called The riddle of the

    early Academy in his homonymous book (1945). Another

    concern is about the evaluating criteria of authenticity in

    the philological reception of Epicharmus, which appears in

    the critical editions of his works.

    KEY-WORDS: Epicharmus , Plato, Pythagoreanism,

    plagiarism, Diogenes Laertius

    conjunto vago, fluido, de ideias igualmente vagas

    e fluidas concernentes desde a preceitos dietticos,

    morais e polticos at a concepes da natureza da

    vida, do cosmos e da constituio fundamental dos

    entes em geral.

    por isso, categorias histricas como autn-

    tico ou falso ou esprio no fazem o mesmo

    sentido que fazem quando se trata de avaliar e

    interpretar os corpora de outras escolas e outros

    autores bem definidos. Se, do ponto de vista hist-

    rico, pitgoras, seus ensinamentos e seus crculos

    de discpulos esto muito mais no campo da lenda,

    isto no impede o exame das ideias transmitidas

    por essas lendas e, sobretudo, as ideias que, por

    uma razo ou por outra, se quer associar a essas

    lendas. assim, de modo amplo, podemos dizer que

    o pitagorismo, como categoria histrica, pode ser

    determinado pela simples expresso da inteno

    de determinada fonte de vincular um conjunto de

    ideias linhagem pitagrica. de modo que nunca

    teramos um pitagorismo puro ou autntico, mas

    sempre um pitagorismo segundo este ou aquele

    autor ou texto fonte, e esta meno da fonte ou via

    de transmisso nos dispensaria de classificar este

    ou aquele texto como falso ou inautntico. Significa

    que a vontade de simular os preceitos pitagricos,

    suas ideias e seus textos justamente isso o que

    constituiu, ao longo da histria, um movimento de

    transmisso e propagao de ideias que podemos

    chamar de pitagorismo. enfatizo: no o trabalho

    supostamente criterioso de conservao doutrinal

    e textual o que constitui o objetivo e a tarefa de

    um fillogo, mas a vontade de imitar como um

    discpulo e, portanto, de emular o mestre e simular

    as ideias, o que constitui aquilo que aqui entendo

    como pitagorismo.

    essa definio generosa da categoria histrica

    de pitagorismo tem um pressuposto epistemolgico

    mais rigoroso do que aquele que pretende distinguir

    testemunhos autnticos de testemunhos falsos.

    porque nesta definio no se tem a iluso do positi-

    vismo filolgico segundo o qual se poderia alcanar o

    objeto emulado ou simulado pela transmisso: o de-

    sejado objeto original perdido. Se assente aqui que

    o critrio de avaliao de um texto no pode ser a

    referncia perdida, mas to somente o prprio texto

    da transmisso. neste texto que se vai encontrar

    tanto uma expresso efetivamente formulada quanto

    a inteno de emular e simular algo ou algum. o

    maior rigor est justamente na atribuio autoral

    da fonte e no exame de suas intenes na emula-

    o de um mestre e na imitao ou simulao de

    suas ideias. Uma consequncia desse pressuposto

    epistemolgico ironicamente rigoroso, que pretendo

    explorar adiante, o de considerar textos filosficos

    e historiogrficos com categorias prprias da

    avaliao de textos propositalmente ficcionais, usan-

    do, por exemplo, categorias da potica tais como

    a imitao ou mmesis, a verossimilhana e

    todas as demais categorias relativas retrica da

    representao. essas categorias tambm tm muito

    de filosfico a nos instruir, sobretudo quanto s

    estratgias retricas de expresso sapiencial.

    nesta perspectiva que eu gostaria

    de examinar um testemunho particularmente

    controverso da recepo dos textos do comedigrafo

  • desgnio 8

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    jan.2012

    epicarmo, que como se sabe, tambm um dos

    mais antigos pensadores associados ao crculo dos

    pitagricos. trata-se de uma extensa passagem sobre

    plato, que comea no captulo nove do livro iii das

    Vidas e doutrinas dos filsofos ilustres de digenes

    larcio. o testemunho nos interessa primeiramente

    pelo fato de trazer de forma explcita um caso de

    imitao uma situao que envolve a imitao o

    que, por si s, uma questo de ndole pitagrica

    , visto que o texto apresentado em testemunho

    e prova de um caso de plgio. alm disso, o caso de

    plgio est inserido no contexto de uma controvrsia

    clssica envolvendo a constituio de um gnero

    literrio de suma importncia para a elaborao do

    discurso filosfico o dilogo Socrtico para o qual

    livio rossetti nos tem chamado bastante a ateno

    nos ltimos anos, e particularmente no seu ltimo

    livro homnimo (2011). a dita passagem tambm

    importante do ponto de vista da histria da filo-

    sofia, para a reconstituio das linhas mestras do

    pensamento de plato e da academia, especialmente

    no que concernem s suas fontes itlicas, como

    explorou giovanni casertano em seu curso magistral

    na eleatica de 2011, que tratava da transmisso das

    ideias do Poema de parmnides ao Parmnides de

    plato. de algum modo, esta acusao nos leva

    para as discusses acerca do que Harold cherniss,

    no livro homnimo (1945), intitulou de enigma

    da antiga academia. tambm nos interessa a

    avaliao dos critrios de autenticidade presentes

    na recepo filolgica de epicarmo em suas edies

    crticas; discusso para a qual muito tem contribudo

    omar alvarez (2007 2009) e sem a qual no se

    pode julgar a acusao de plgio dirigida a plato.

    Vejamos, pois, a passagem e depois encaminhemos

    nosso exame segundo os pontos de interesse aqui

    levantados, ao lado desses interlocutores com os

    quais tivemos o privilgio de dialogar no encontro

    internacional sobre o pitagorismo, em Braslia.

    Situemos o contexto da passagem. digenes

    larcio prope compreender a filosofia de plato

    como uma filosofia mista; qualificao que Nietzsche

    retomar quando for contrapor essa filosofia mista de

    plato s filosofias no mistas ou puras dos filsofos

    pr-platnicos, no seu opsculo sobre Os filsofos

    na idade trgica dos gregos (1873). os elementos

    dessa mistura platnica so trs, segundo digenes:

    as consideraes sobre os entes sensveis, a partir

    de Herclito; dos inteligveis, segundo pitgoras; e

    sobre as questes polticas, segundo Scrates.

    M

    ,

    ,

    . D.L., III.8.6-10

    digenes segue expondo, em primeiro lugar, o

    modo como plato entrou em contato com os ensi-

    namentos de pitgoras: conforme o testemunho de

    um bigrafo peripattico chamado Stiro, ele teria

    primeiramente encomendado ao amigo don da Sic-

    lia que comprasse de Filolao trs livros pitagricos1.

    em seguida, digenes cita alcimo, um historiador

    do final do quarto sculo antes de cristo, que teria

    dito em um livro de acusao Contra Amntas, que

    plato se aproveitou e transcreveu vrias obras de

    epicarmo.

    ,

    . D.L., III.9.6-8

    digenes passa ento a citar diretamente a

    acusao de plgio formulada por alcimo:

    .

    ,

    ,

    .

    ,

    .

    . ,

    .

    D.L., III.9.10-10.5

    Parece que Plato disse muitas coisas a partir de

    Epicarmo. Examinemos: Plato disse que o sensvel o

    que nunca permanece em qualidade nem em quantidade,

    1. d.l., iii, 9.

  • 14

    mas sempre flui e se transforma, de modo que se algum

    privasse tais coisas do nmero, nem a identidade nem

    a quididade nem a quantidade nem a qualidade destas

    existiriam. Tais coisas tm sempre devir, e naturalmente

    nenhuma essncia. J o inteligvel o de que nada se

    retira nem se acrescenta. Esta a natureza das coisas

    eternas, que sempre semelhante e sempre coincide

    consigo.

    alcimo comea por resumir a teoria platnica

    sobre a natureza do sensvel e do inteligvel, em

    que o nmero aparece como a essncia permanente

    das coisas e a natureza do que eterno. logo em

    seguida, para que se compare com tais doutrinas

    expressas por plato, a vez de alcimo fazer uma

    citao, desta vez daquilo que diz epicarmo a res-

    peito do sensvel e do inteligvel.

    No deixemos de reparar que as citaes, estas

    e as seguintes, viro em versos, 41 versos repartidos

    entre tetrmetros trocaicos e trmetros imbicos.

    reparemos ainda que as duas primeiras aparecem

    no formato de um dilogo cmico2:

    Mas os deuses sempre permaneciam presentes,

    nunca sumiam;

    e seus atributos sempre eram semelhantes porque

    dos mesmos sempre.

    Mas dizem que o caos gerou-se antes dos deuses.

    Como assim? Nem pode, pois se no h nada nem de

    que nem para que algo venha em primeiro!

    Ento nada veio em primeiro? Nem em segundo,

    por Zeus ! Nenhuma das coisas de que agora falamos;

    pois que so sempre !

    * * *

    Pegue um nmero impar, ou par, se preferes!

    Acrescenta ou retira uma unidade, achas que ainda o

    mesmo ? Por mim que no!

    Claro que no! Se ainda pegardes uma braa e

    acrescentares ou retirares uma medida diferente, ainda

    iremos supor que temos a mesma medida ? No.

    Pois agora veja o homem: enquanto que um

    cresce, o outro mngua, ambos esto o tempo todo em

    transformao.

    E o que se transforma por natureza nunca permanece

    em si mesmo, sendo j outro do que o que ele se alterou.

    Assim, tu e eu, ontem ramos outros do que agora,

    e seremos ainda outros ; nunca seremos os mesmos

    pela mesma razo.

    { }

    ,

    .

    { }

    .

    { }

    .

    { } { }

    , ,

    .

    ,

    ,

    , { }

    .

    { }

    , { }

    . { }

    , ,

    .

    .

    . D.L., III.10.7-11.13 (DK 23 B 1 e 2)

    alcimo, depois desta citao, retoma a sua

    recenso da teoria platnica das ideias, falando

    das ideias em si mesmas ( ), das suas relaes entre si ( ) e da sua participao nas coisas que recebem os mesmos nomes que elas ( ). continuando a comparao volta a citar o que diz

    2. para um exame detalhado

    da forma dialogal dessas duas

    citaes cf. alvarez, omar, I

    frammenti filosofici di Epicarmo:

    una rivisitazione critica, 2007,

    p.32.

  • desgnio 8

    15

    jan.2012

    epicarmo sobre o bem e as ideias:

    Acaso a aultica uma realidade ? Claro que sim!

    A aultica um homem? De modo algum!

    Vejamos, ento, o que um flautista? Quem voc

    acha que ele ?

    Um homem? Sim ou no? Sim, claro. No te

    parece que assim tambm com respeito ao bem?

    Pois o bem uma realidade por si, e quem soubesse

    aprendendo, bom se tornaria. Como aprendendo a tocar

    flauta que algum se torna flautista,ou danando, que

    algum se torna danarino, ou tecendo, um tecelo.

    E assim para qualquer outro exemplo semelhante que

    tomares,ele no seria a prpria arte, mas sim o artfice.

    { } { }

    .

    { } { } .

    { } ,

    { } . { }

    ,

    , .

    ,

    ,

    , .

    D.L., III.14.1-14.11 (DK 23 B 3)

    alcimo no para por aqui. agora a vez de

    apresentar a teoria platnica do conhecimento, que

    envolve as doutrinas da imortalidade da alma e da

    anamnese. desta vez, porm, ele no vai apenas

    resumir e aludir s teorias e opinies platnicas,

    mas tambm vai citar o filsofo. a citao, todavia,

    no remete a nenhum dos dilogos conhecidos, mas

    a uma considerao acerca das ideias. tampouco

    reconhecemos a passagem citada em algum dos

    textos conhecidos de plato, nem ao menos no

    dilogo Parmnides3, que recebia nas tetralogias de

    thrasillo o subttulo de acerca das ideias4. teria

    existido algum tratado platnico com este ttulo? ele

    no consta nas listas do prprio digenes larcio, a

    no ser como o dito subttulo. para plato, temos a

    sorte, pouco frequente para os antigos, de conhecer

    e possuir a integralidade do que ele escreveu em

    vistas de publicao. por outro lado, consta no

    apenas na lista de digenes, mas tambm em vrias

    outras listas do perodo helenstico, a referncia ao

    ttulo Acerca das Ideias, atribudo a aristteles.

    esse tratado, se confiarmos nos trechos transcritos

    por alexandre, no seu comentrio Metafsica de

    aristteles, discutia vrios pontos do contedo da

    teoria platnica das ideias, particularmente alguns

    problemas que aparecem no dilogo Parmnides.

    contedo que reencontramos nesta e tambm nas

    outras referncias de alcimo s doutrinas que plato

    teria plagiado em epicarmo. No ser a primeira vez

    que comentadores peripatticos confundem obras

    de plato e aristteles, visto que este escrevia sis-

    tematicamente comentrios aos textos do mestre,

    com ttulos prximos5. acredito que este no um

    dado irrelevante para a nossa considerao. luc

    Brisson (1992, p.3646-3651;1993, p.352) traduziu

    e discutiu a passagem, no contexto do polmico

    dossi acerca das doutrinas no escritas (grapha dogmta) de plato e, com razes suplementares,

    tambm atribui a aristteles a base sobre a qual

    os historiadores helenistas acusaram plato de

    plagiar os pitagricos. Segundo ele, aristteles em

    momento algum aludiu a qualquer plgio, mas no

    primeiro livro da Metafsica, ao falar das influencias

    que recebeu plato, cita justamente os pitagricos,

    Herclito e Scrates. passagem bem conhecida dos

    filsofos e historiadores helenistas, cuja ideia, como

    vimos acima, digenes encampou completamente

    quando disse que plato era um filsofo misto.

    Vejamos a passagem de aristteles.

    depois das filosofias de que falamos surgiu a

    realizada por plato, a qual, se acompanha estes [os

    pitagricos] em muitas coisas, tambm tem coisas

    prprias ao largo da filosofia dos itlicos. pois desde

    jovem, ele primeiro veio a ser frequentador de crtilo

    e das opinies heraclticas, segundo as quais tudo o

    que sensvel sempre flui e no pode haver cincia

    destas; o que continuou sustentando tambm mais

    tarde. por outro lado, recebeu as demonstraes de

    Scrates que, tendo tratado de assuntos ticos mas

    nada a respeito da natureza como um todo, nestes

    buscou o universal e foi o primeiro a investigar com

    o pensamento suas definies [...]

    3. luc Brisson remete a passagem

    a Fdon 96b e parmnides

    128e; mas sua remisso no

    identidade textual e sim a alguma

    semelhana no contedo. cf.

    larce, diogne, Vies et doctrines

    des philosophes illustres, 1999, p.

    429, n.6.

    4. d.l., iii, 58.

    5. tal confuso aparece,

    por exemplo, com as referncias ao

    Da Filosofia , que aristteles atribui a plato

    (De Anima 404b 18) e temstio

    remete a aristteles; Simplcio

    e Filopo remetem ainda a outro

    ttulo platnico: Do Bem ; cf. l. Boulakia, Platon hritier dAristote,1993 . para os

    ttulos aristotlicos de comentrios

    a plato cf. o ndice de ross, Frag-

    menta Selecta,1979.

  • 16

    ,

    ,

    .

    ,

    ,

    ,

    ,

    , .

    (A, 6, 987a29-b7)

    parece-me claro que o conhecimento de pla-

    to exposto por alcimo, assim como o de digenes

    larcio, tem uma clara matriz aristotlica, ou pelo

    menos provm das discusses da academia do tempo

    em que aristteles a frequentava. pois bem, depois

    de ter citado este plato de clara matriz aristotlica,

    alcimo volta a citar outras passagens de epicarmo

    de onde plato teria extrado essas doutrinas. agora

    no temos um dilogo cmico, como nas demais

    citaes, mas versos que lembram mais o canto coral

    de uma comdia:

    , ,

    , .

    ,

    ,

    , .

    .

    (DK 23 B 4)

    Eumeu, o saber no somente para um,

    mas enquanto vive, tudo tem pensamento.

    Pois a fmea da raa galincea,

    Se observares com ateno, no pare pintos

    vivinhos, mas choca os ovos para dar-lhes vida.

    Tal saber a natureza que sabe manter

    sozinha: pois ela aprendeu consigo mesma.

    E ainda:

    ,

    , .

    (DK 23 B 5)

    Nada espantoso que ns assim falemos e regozijemos

    de ns e nos orgulhemos naturalmente de ns mesmos;

    tambm para o co nada mais belo que o co, e assim

    o boi parece ao boi, para o asno o asno lindo, para o

    porco o porco mais.

    para coroar a longa passagem acusatria de

    alcimo, que perpassa oito captulos do livro sobre

    plato e comporta quatro citaes das comdias de

    epicarmo, num total de 41 versos, digenes larcio,

    por sua conta, acrescenta um trecho a mais, prova-

    velmente extrado de uma parbase das comdias de

    epicarmo, em que, vangloriando-se, o comedigrafo

    previu que seria emulado no futuro:

    ,

    .

    ,

    . (DK 23 B 6)

    Assim penso eu e penso que sei com clareza,

    Destas minhas palavras ainda vo se lembrar.

    Algum as tomar e as despojar de seu metro atual,

    Vestindo-as de prpura e de belas palavras coloridas

    Astucioso, far os outros parecerem ingnuos.

    Visto o texto da acusao, passemos s con-

    sideraes que nos interessam. primeiro no que se

    refere s possveis contribuies de epicarmo para a

    gnese desse gnero literrio que livio rossetti se no

    batizou, com certeza consagrou em sua importncia

    para o estudo das origens da filosofia: o dilogo

    Socrtico. em seu livro homnimo (2011, p.40-41),

    rossetti inclui as passagens de digenes sobre o

  • desgnio 8

    17

    jan.2012

    plgio de epicarmo entre os elementos textuais do

    dossi acerca das possveis origens deste gnero

    multiplicado pelos discpulos de Scrates e coroado

    por plato. epicarmo entra no exame dos possveis

    modelos disponveis poca. mas pleiteio que ros-

    setti no descarte to rapidamente sua hiptese de

    que as comdias de epicarmo tenham contribudo

    como um dos modelos para a constituio do gnero.

    os modelos da comdia no retiram a originalidade

    do dilogo Socrtico, mas certamente forneceram

    ingredientes importantes para a elaborao da nova

    receita. os dois contra-argumentos de rossetti so

    verdadeiros, mas, a meu ver, no deveriam dar cabo

    de todo o alcance de sua prpria hiptese. o primeiro

    contra-argumento aponta que os pontos de contato

    entre os testemunhos de epicarmo e plato ali apre-

    sentados so doutrinais e, portanto, estranhos ao

    agenciamento discursivo que caracteriza o gnero:

    a) il sagit de points de contact de caractre

    doctrinal (qui relvent du contenu) et donc trangers

    lagencement des logoi (une formule, une stratgie

    de communication);

    o segundo, que epicarmo seria relativamen-

    te distante da poca de proliferao do dilogo

    Socrtico:

    b) picharme appartient une poque rela-

    tivement lointaine.

    Sem dvidas a ateno de alcimo, bem como

    a de digenes, na antiguidade, e de leitores con-

    temporneos como Brisson, est voltada para as

    semelhanas de carter doutrinal. mas os exemplos

    citados mostram mais do que isso, mostram tambm

    semelhanas do ponto de vista discursivo, mesmo

    se os logoi socrticos so em prosa e no em verso,

    como nas comdias. No me refiro s passagens

    que atribumos ao coro. mas sem dvida so seme-

    lhantes as partes dramticas, que envolvem algum

    dilogo, citadas nas sees 10, 11 e 14. evidente

    a semelhana com a estratgia do discurso curto de

    Scrates (a braquilogia) composto de sequncias

    argumentativas de perguntas e respostas. Neste

    sentido, podemos entender que o discurso epicrmeo

    incorpora e j d um passo alm do que tinha alcan-

    ado a lgica argumentativa itlica de seu tempo,

    anunciando e aproximando-se da dialtica socrtica.

    alm disso, podemos apontar outros detalhes de

    estilo, tais como a resposta jocosa em 10.11: , muito ao gosto das expresses que usar plato para compor o carter irnico de

    Scrates. apontemos tambm o uso de silogismos

    paradoxais, tal como, em 11.7-13, o uso do cha-

    mado argumento do crescimento (cf. lvarez Salas 2009, p.79 ss.), que plato utilizar para expor a doutrina heracltica do devir,

    no Teeteto6. possvel que esse argumento tambm

    fosse um desdobramento, ou uma verso aplicada

    ao problema da transformao, de outro famoso

    argumento de provenincia pitagrica, chamado

    de argumento do grande e do pequeno, nomeado

    ainda pela expresso mais esotrica e quase blasfema

    de dada indeterminada. esses argumentos para-

    doxais e seus nomes obtusos sero abundantemente

    utilizados nas comdias para retratar Scrates, tal

    como o chamado argumento do mais fraco que

    aparece nas Nuvens de aristfanes e tambm na

    Apologia7e no primeiro livro da Repblica de plato.

    parece que tais argumentos fizeram alargar a fama

    de no poucos oradores deste perodo, quando no

    ganharam fama prpria eles mesmos os argumentos

    independente de seus criadores.

    contudo , com clareza, na citao da seo

    14 que veremos um discurso de epicarmo com estilo

    idntico maneira de plato retratar as argumen-

    taes epaggicas ou indutivas de Scrates. a

    mesma escolha de exemplos simples nas atividades

    artsticas, tais como a aultica, a arte da dana, a

    tecelagem, usados para alcanar reflexes sobre coi-

    sas mais abstratas, tais como o bem em si mesmo.

    estes no so somente elementos doutrinais

    e certamente fazem parte do agenciamento dos

    discursos socrticos, de modo que no seria intil

    buscar em expresses e estratgias retricas prprias

    do drama cmico alguns elementos importantes na

    constituio do dilogo Socrtico, e consequente-

    mente da prpria filosofia, seja em plato seja nos

    demais praticantes do gnero. claro que rossetti

    continua tendo razo quanto originalidade in-

    ventiva do dilogo Socrtico, sem o qual a filosofia

    no ganharia a espantosa proliferao na grcia

    da passagem do quinto para o quarto sculo, mas

    a pizza no teria o mesmo sabor sem o tomate e o

    azeite siciliano da comdia.

    6. 152d-e

    7. Apol. Socr. 19b

  • 18

    a segunda razo apresentada por rossetti

    tambm verdadeira, mas no creio que a distncia

    de epicarmo no passado seja um impedimento insu-

    pervel para que exera, talvez no apenas de forma

    direta, uma influncia nos discursos de Scrates e

    tambm nos dilogos Socrticos escritos por seus

    discpulos. Uma influncia de ingredientes retri-

    cos e de certo esprito invectivo, que certamente

    deixou mais temperado o novo gnero inspirado por

    Scrates. e quem os usasse menos, como Xenofonte,

    acabava obtendo resultados inspidos. os textos de

    epicarmo deviam estar disponveis no quinto sculo

    em atenas como os demais textos de origem itlica;

    por que no disporiam de textos dele tanto como os

    de parmnides e Xenfanes? os textos dramticos das

    tragdias e, acredito eu, mais ainda os das comdias

    dariam bons modelos para a dramatizao das con-

    versas de Scrates com os seus concidados. afinal,

    no foram as comdias mesmas os primeiros lugares

    textuais em que Scrates foi representado?8 claro, o

    Scrates das comdias e o dos dilogos no deixam

    de ser diferentes, porque os gneros so parentes

    mas no so o mesmo a comdia reala a invectiva,

    a perplexidade, a ironia, mas nunca vai se importar

    com o domnio, o rigor e a medida com que Scrates

    conduz a vida e consequentemente os discursos.

    por outro lado, possvel que a influncia na

    retrica socrtica da comdia itlica tenha chegado

    tambm por vias indiretas, tal como pelos ensina-

    mentos retricos de grgias de leontini, que dizia

    que necessrio desfazer a seriedade dos oponentes

    com ironia e a gaiatice com seriedade. , .9 assim, bem provvel que plato tenha utilizado modelos retricos oriun-

    dos da comdia, e o fato de no serem da comdia

    que lhe era contempornea e mais prxima talvez

    at o tenha deixado mais vontade para copiar sem

    que o acusassem imediatamente de plgio.

    Visto que tocamos no aspecto da influncia

    itlica sobre os dilogos de plato, gostaria de

    trazer uma considerao a mais para as questes

    de linhagem filosficas que giovanni casertano

    abordou em seu curso de maio na eleatica de 2011,

    o qual veremos em breve publicado. casertano

    apontou duas vertentes originrias dessa discusso

    ontolgica que alcana seu insupervel desempenho

    dialtico no Parmnides e no Sofista de plato. as

    discusses levantadas pelo Poema de parmnides

    chegariam a plato por um discpulo diligente que

    teria explorado os absurdos de no seguir o uno:

    Zeno de elia. este que mostrou todos os impasses

    que deviam ser superados para se falar do mltiplo

    e do devir. e, por outro lado, tambm chegaria

    por via de um anti-discpulo travesso, grgias de

    leontini, que exploraria a hiptese interdita do

    no-ser, a ponto de obrigar plato a encontrar na

    dialtica tambm um refgio para esta estranha e

    esquiva entidade. permitam-me acrescentar outra

    vertente de provenincia itlica para a constituio

    dos dilogos de plato. Uma vertente de carter

    cmico, que passa pela comdia de epicarmo, e

    que, seguindo contra a corrente, podemos chegar

    rio acima, por transmisso direta, at as Stiras de

    Xenfanes de colofo, como ainda pretendo mostrar

    em outra ocasio. pois o que se sugere, com estas

    linhagens avessas e travessas que a filosofia no

    se cria e cresce e se transmite apenas por discpulos

    disciplinados e obedientes, mas tambm pela invec-

    tiva, pela crtica, pelo confronto em torno de temas

    e questes idnticas ou pelo menos afins, prtica

    que os comedigrafos aproveitaram, intensificaram,

    refinaram e difundiram.

    assim, tambm quando voltamos a con-

    siderar as acusaes contra o plgio de plato,

    estas parecem se inserir nesse modo agonstico

    com que os gregos tratavam as questes de im-

    portncia filosfica e, particularmente, os estudos

    sobre a transmisso das filosofias. mas afinal,

    possvel ser aprendiz e discpulo sem, de algum

    modo, emular os mestres? Qual o teor da acusa-

    o de plgio levantada por alcimo e transmitida

    por digenes? plato teria abusado dos direitos

    autorais da comdia arcaica ou, filsofo misto

    (e misturador), seria um grande, certamente o

    maior sbio (cozinheiro), usando e abusando

    dos ingredientes dessas filosofias puras e desses

    condimentos literrios que ele pe magistralmente

    na voz de suas personagens?

    preciso examinar um pouco mais a

    consistncia da acusao. Que ela seja plausvel no

    quer dizer ainda que seja verdadeira. Se observarmos

    8. en 423, As Nuvens de

    aristfanes e Connos de

    ameipsias ; en 421, Os Aduladores

    de eupolis.

    9. ariStot. rhet. 18. 1419b 3.

  • desgnio 8

    19

    jan.2012

    o ponto de vista filolgico adotado por Kassel &

    austin nos Poetae Comici Greci (2001), que rene

    todas as citaes de alcimo e digenes na sesso

    dos pseudepicharmea, veremos que estes autores

    tendem a desacreditar a acusao, com o argumento

    de que as passagens de epicarmo seriam esprias

    e forjadas; de modo que seria alcimo o plagirio e

    no plato. mas Kassel e austin no so particular-

    mente cuidadosos com estes fragmentos, visto que

    nem sequer diferenciam a citao que digenes

    acrescenta e que no poderiam atribuir ao suposto

    plgio de alcimo (ex Alcimo) como o fazem10. parece

    que o pressuposto com relao s autoridades filo-

    sficas os teria enganado, e teriam confiado mais na

    idoneidade metafsica de plato que nas intenes

    litigantes de digenes e suas fontes.

    omar alvarez (Pseudepicharmea: alle origini di

    un corpus pseudepigrafo, 2007), por outro lado, de

    opinio contrria e, a nosso ver, bem mais consisten-

    te, no exatamente quanto ao teor da acusao, mas

    autenticidade das passagens de epicarmo. alvarez

    analisa as formas dialetais, os metros e tambm a

    transmisso do famoso argumento do crescimento.

    em vista dessas evidncias, no v por que pr em

    dvida a autoria epicrmea dos mesmos. alm de

    assentir com tais evidncias, gostaria de acrescentar

    um argumento quanto ao aspecto da potica cmica

    relacionado s partes da encenao. as trs primeiras

    citaes so trechos de episdios dramticos, depois

    as outras duas so trechos de interldios corais e

    a ltima, acrescentada por digenes, uma parte

    tpica de parbase; de modo que todas as citaes

    se encaixariam perfeitamente dentro das estruturas

    de composies cmicas. assim, todas as evidncias

    contam a favor da autenticidade, ao passo que a

    nica autoridade contrria que apresenta falha

    de argumentao.

    mas que as passagens de epicarmo sejam autn-

    ticas, isso ainda no garante que a acusao de alcimo

    seja procedente. primeiro porque, como vimos, a fonte

    do contedo doutrinrio provm mais das leituras aca-

    dmicas e aristotlicas de plato do que dos prprios

    dilogos do filsofo. Segundo, porque mesmo nas partes

    de dilogo cmico, onde o estilo do comedigrafo se as-

    semelha dialtica de Scrates nos dilogos platnicos,

    no podemos dizer que seja uma cpia realizada por

    10. PCG, i, p.164.

    plato; visto que se trata muito mais de uma forma

    retrica genrica, que vai caracterizar a dialtica

    socrtica e, consequentemente, todo o gnero dos

    chamados dilogos socrticos.

    Segundo o ponto de vista doutrinal, alcimo

    no forja as passagens de epicarmo. por outro lado,

    claramente a leitura de plato que ele usa para a

    comparao uma leitura indireta, esta sim cons-

    truda conforme o pressuposto aristotlico de que

    a influncia do pitagorismo decisiva para a teoria

    das ideias de plato. Neste caso o que interpretar?

    trata-se de plato influenciado pelos pitagricos

    ou trata-se de uma leitura pitagorizante de plato?

    a qual, obviamente, vai encontrar aquilo que ela

    mesma ps: as semelhanas com os pitagricos!

    a resposta no to simples, pois envolve a com-

    preenso que os prprios antigos faziam de suas

    linhagens e da transmisso das ideias e doutrinas.

    por mais que alcimo seja claramente influenciado

    pelas leituras peripatticas, aristteles no inventa

    nem afirma nenhum absurdo quando remonta plato

    a linhagens pitagricas. mesmo assim, no plano dou-

    trinal, trata-se menos de um caso de plgio do que

    de influncia, como aponta o prprio aristteles no

    primeiro livro da sua Metafsica. e de uma influncia

    que, ainda segundo aristteles, vai misturar-se com

    outras duas fontes filosficas antes de resultar na

    composio propriamente platnica.

    do ponto de vista formal, a semelhana

    retrica tambm resulta, a meu ver, menos de um

    caso de plgio entre plato e epicarmo, do que de

    influncia das estratgias poticas e retricas das

    comdias na constituio deste novo gnero de ex-

    presso sapiencial que so os dilogos Socrticos.

    estratgias que devero ser mais exploradas numa

    reflexo sobre as expresses sapienciais resultantes

    na filosofia clssica. plato com certeza leu e es-

    tudou epicarmo e aristfanes, assim como tantos

    outros autores cujas obras circulavam em seu tempo.

    Se os livros eram raros e difceis, isto no impediu

    plato de despender recursos e esforos para obt-

    -los, como testemunhou digenes11. e no teria sido

    plato o genial filsofo e escritor que foi se no

    tivesse um particular mpeto agonstico, que no

    o levaria propriamente a copiar, mas certamente a

    competir com seus mulos.

    11. d.l. iii,9.

  • 20

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    recebido em Julho de 2011.aprovado em novembro de 2011.