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REVISTA D ESTUDOS EM ARTES CÊNICAS 20 E

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R E V I S T A D E S T U D O S E M A R T E S C Ê N I C A S • 2 0E

P R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M T E AT R O - U D E S C

ISSN 1414-5731

Revista de Estudos em Artes Cênicas

Número 20

Programa de Pós-Graduação em Teatro do CEARTUNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

Urdimento: s.m. 1) urdume; 2) parte su- perior da caixa do palco, onde se aco- modam as roldanas, molinetes, gornos e ganchos destinados às manobras cê- ni-cas; � g. urdidura, ideação, concepção. etm. urdir + mento.

UrdimentoP R O G R A M AP R O G R A M A D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M T E AT R O - U D E S C D E P Ó S - G R A D U A Ç Ã O E M T E AT R O - U D E S C

Urdimento

Apresentação

N° 20 | Setembro de 2013

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URDIMENTO é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Teatro do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina. As opiniões expressas nos artigos são de inteira responsabilidade dos autores. A publicação de artigos, fotos e desenhos foi autorizada pelos responsáveis ou seus representantes.

A revista está disponível online em www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento

Ficha técnica

Comitê editorial: Maria Brígida de Miranda, Stephan Arnulf Baumgärtel e Vera Collaço

Capa: Calada Estranha (2012). Atriz: Luanda Wilk. Direção: André Carreira. Foto: Leticia Zanchi.

Contra capa: Ubu Rei (2012). Atores: Rafael Reüs e Marcio Cardoso. Direção: Paulo Balardim. Foto: Renato Grecchi.

Projeto da Capa: Valdir Siqueira

Projeto Grá� co: Déborah Salves [[email protected]]

Diagramação e Projeto Grá� co:Valdir Siqueira [[email protected]]

Esta publicação foi realizada com o apoio da CAPES Catalogação na fonte: Luiza da Silva Kleinubing. CRB 14/1132

Ficha elaborada pela Biblioteca Central da UDESC

Urdimento: revista de estudos em artes cênicas / Universidade do Estado de Santa Catarina. Centro de Artes. Programa de Pós- Graduação em Teatro. - n. 20 (2013) - Florianópolis: UDESC/CEART, 2013 -

v.1, n.20, setembro 2013SemestralISSN 1414-5731

1. Teatro - periódicos. 2. Artes Cênicas - periódicos. I. Universidade do Estado de Santa Catarina. Centro de Artes. Programa de Pós-Graduação em Teatro.

CDD: 792 - 20. ed.

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Apresentação

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Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC

Reitor: Antonio Heronaldo de SousaVice Reitor: Marcos Tomasi

Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Leo RufatoDiretora do Centro de Artes: Gabriela Botelho Mager

Chefe do Departamento de Artes Cênicas: Maria Brigida de MirandaCoordenador do Programa de Pós-Graduação: Stephan Arnulf Baumgärtel

Conselho editorial

Ana Maria Bulhões de Carvalho Edlweiss (UNIRIO)Maria Beatriz Mendonza (Bya) Braga (UFMG)

Cássia Navas Alves de Castro (UNICAMP)Christine Greiner (PUC/SP)

Felisberto Sabino da Costa (ECA/USP)Glaucio Machado Santos (UFBA)

Jerusa Pires Ferreira (PUC/SP)João Roberto Faria (FFLCH/USP)

José Dias (UNIRIO)José Roberto O’Shea (UFSC)

Leonardo Munk (UNIRIO)Luiz Fernando Ramos (ECA/USP)

Márcia Pompeo Nogueira (CEART/UDESC)Marcus Mota (UnB)

Maria Lucia de Souza Barros Pupo (ECA/USP)Mario Fernando Bolognesi (UNESP)

Marta Isaacsson de Souza e Silva (DAD/UFRGS)Neyde Veneziano (UNICAMP)

Rosyane Trotta (UNIRIO)Sônia Machado Azevedo (Escola Superior de Artes Célia Helena)

Tiago de Melo Gomes (UFRPE)Walter Lima Torres (UFPR)

Conselho assessor

Beti Rabetti (UNIRIO)Ciane Fernandes (UFBA)

Eugenia Casini Ropa (Universidade de Bolonha - Ítalia)Eugenio Barba (Odin Teatret)

Francisco Javier (Universidad de Buenos Aires)Jacó Guinsburg (ECA/USP)

Julia Sagaseta (Instituto Universitário Nacional del Arte -Buenos Aires)

Juan Villegas (University of California)Marcelo da Veiga (Universidade Alanus – Alemanha)

Óscar Cornago Bernal (Conselho Superior de PesquisasCientí� cas – Espanha)

Osvaldo Pellettieri (Universidad de Buenos Aires - In Memoriam)Peta Tait (La Trobe University)Roberto Romano (UNICAMP)

Silvana Garcia (EAD/USP)Silvia Fernandes Telesi (ECA/USP)

Tânia Brandão (UNIRIO)

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Sumário

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO

DOSSIÊ TEMÁTICO - Novos territórios do diálogo

A partilha das vozesJean-Pierre Sarrazac

Dialogo e conversaçãoJean-Pierre Ryngaert

O desencaixeJoseph Danan

A heterogeneidadeFlorence Baillet

O diálogo segundo enunciadores incertosJulie Sermon

Coralidade Martin Mégevand

Diálogo narrativo, diálogo didascálicoJoseph Danan

Ritornelo e repetição-variaçãoAriane Martinez

Jogos sonoros e rítmicosGeneviève Jolly

Marie-Christine Lesage

Retórica e dialética do diálogoGilles Declercq

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Sumário

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ARTIGOS

O Salto dos Órfãos: o pós-modernismo sem modernismo dadramaturgia peruana atual

Alfredo Bushby

Entre a Europa e o Recife, a contribuição argentina para o “Teatro do Nordeste”

Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis

CONTRA AUGUSTOMario Fernando Bolognesi

Notas sobre o self durante a atuação cênicaCesário Augusto Pimentel de Alencar

Notas sobre cenogra� a. Dispositivos cênicos espetaculares em espetáculos do século XVII e na contemporaneidade

Evelyn Furquim Werneck Lima

Pina Bausch: aproximações com Brecht e o teatro pós-dramático

Juliana Carvalho Franco da SilveiraMariana Lima Muniz

A intersecção entre reprodutibilidade e espontaneidade no trabalho do ator

Lidia Olinto Matteo Bon� tto

Textualidades Contemporâneas: O realismo sedutor e sua con� guração na dramaturgia brasileira

Martha Ribeiro

Metis grega e simulacro em O Programa de Televisão (1990), de Michel Vinaver

Catarina Sant’Anna

Dramaturgia do invisível, dramaturgia do possí vel, dramaturgia da imanência: apontamentos para uma

potente dramaturgia microscópicaPatricia Leonardelli

Renato Ferracini

INCÊNDIO DA ALMA: A dramaturgia das radionovelasLeon de Paula

Vera Collaço

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ENTREVISTAS E RESENHA

Luís Alberto de AbreuStephan Baumgärtel

Daniel Veronese, suas sendas estéticas e polêmicasMarco Vasques e Rubens da Cunha

Singular indissolúvelResenha de “A cena contaminada”, de

José Tonezzi. São Paulo,Perspectiva, 2011

Rosyane Trotta

ENSAIO FOTOGRÁFICO DE ESPETÁCULOS

Calada Estranha (2012)

Ubu Rei (2012)

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NONONONO: NONONONONONONONNO

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Ubu Rei (2012). ATORES: Rachel Chula eRafael Reüs. FOTO: Renato Grecchi.

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Apresentação

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Apresentação

E ste número da Urdimento apresen-ta uma pequena, mas importante alteração editorial em sua estrutura. Anteriormente, a revista publicava

dois números por ano: um número aberto e outro número temático cuja maior parte de artigos pertencia a autores convidados pelos editores. A partir de agora, publica-remos em cada número, um dossiê temáti-co, além das tradicionais seções de artigos abertos, entrevistas e resenhas. Essa refor-mulação permite uma melhor distribuição de artigos recebidos via � uxo contínuo, sem enfraquecer o nosso compromisso com a criação de um corpo temático de pesquisa, promovendo estímulo e suporte teóricos para futuras re� exões sobre os di-ferentes temas abordados.

No dossiê temático desta Urdimento, os leitores terão acesso a uma importante contribuição de pesquisadores franceses acerca das recentes transformações na escrita teatral, ainda inédita no Brasil. O conjunto de artigos reunidos sob o título “Novos territórios do diálogo” re� ete so-bre a dissolução da estrutura dialógica na escrita teatral contemporânea. Ao revisi-tar conceitos fundamentais para a cons-trução e análise do texto teatral, discute-se a nova ênfase na dupla enunciação, o papel desconcertante das informações didascálicas, a criação e problematização de intersubjetividade, o deslocamento do con� ito da � cção para a superfície da tes-situra linguística e o entrelaçamento ape-nas tênue das instâncias de enunciação. Esperamos que este dossiê ajude a conso-lidar a re� exão sobre o texto teatral con-temporâneo e a relação forma-conteúdo inscrita em sua composição.

A sessão de artigo de balcão reú-ne re� exões sobre diversos aspectos das

linguagens cênicas. Há um longo artigo do pesquisador e dramaturgo peruano Alfredo Bushby, que numa visão latino-americana re� ete sobre o impacto causa-do pela falta de contato com a moderni-dade na vida teatral peruana; fenômeno que também tem impacto sobre a vida te-atral brasileira. A relação entre tradições latino-americanas e elementos da tradi-ção brasileira, notadamente nordestina, ocupa a re� exão de Luís Augusto Reis. Mario Bolognesi analisa o trabalho de um velho conhecido dos palcos catarinenses, o diálogo do palhaço Biribinha do Teatro Biriba com a � gura de Augusto. Cesário Augusto Pimentel de Alencar elabora uma re� exão sobre o self do ator para dis-cutir a relação entre ator e sua � gura cêni-ca para além de procedimentos de iden-ti� cação. O artigo de Evelyn Furquim Werneck Lima compara dispositivos cê-nicos do século XVII e da contemporanei-dade, alertando que a condução do olhar do espectador sempre foi um objetivo da cenogra� a teatral e não se iniciou com a presença da câmera de vídeo e de telões sobre o palco. Juliana Carvalho Franco da Silveira e Mariana Lima Muniz dis-cutem a obra de Pina Bausch, analisando a presença tensa mas frutífera de proce-dimentos brechtianos e pós-dramáticos, posicionando o trabalho da coreógrafo num campo de forças que implicitamen-te discute as relações entre modernidade e pós-modernidade nas práticas teatrais hodiernas. Lídia Olinto e Matteo Bon� tto discutem em uma perspectiva tanto dia-crônica quanto contemporânea a relação entre repetição e espontaneidade como relação não excludente na busca do ator por uma presença cênica viva.

Cinco artigos dessa secção apresen-

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tam a diversidade no uso do conceito dramaturgia que não se restringe somen-te à construção textual, mas abarca toda a lógica composicional das textualida-des cênicas. Martha Ribeiro e Catarina Sant’Anna apresentam re� exões sobre o destino da tradição realista, com enfoque na cena e no texto do autor francês Mi-chel Vinaver, respectivamente. Patricia Lunardelli e Renato Ferracini procuram criar conceitos para poder compreender processos de criação de fala e escrita em uma prática atoral marcada pelo princí-pio da performatividade. Leon de Paula e Vera Collaço mostram como a dramatur-gia das radionovelas é marcada tanto por considerações formais oriundas do melo-drama e do folhetim quanto por pressões práticas de sua produção, lembrando que as formas artísticas não existem fora das possibilidades das realidades técnicas e econômicas de sua construção.

Na última secção, uma pequena entre-vista com Luís Alberto de Abreu sobre a dramaturgia brasileira, complementando as entrevistas com os dramaturgos Mar-cio Abreu, Roberto Alvim e Samir Yazbek, publicadas no número 18 da Urdimento. Finda essa sessão uma importante entre-vista de Marco Vasques e Rubens Cunha com Daniel Veronese sobre sua trajetó-ria enquanto diretor e dramaturgo. Por último, uma resenha de Rosanye Trotta do livro de José Tonezzi “A cena conta-minada”, que aborda a contaminação da cena � ccional pela presença dominante de elementos pertencentes ao campo real do público. Indiretamente, a resenha nos mostra algo presente também no dossiê temático sobre dramaturgia textual: em sua forma contemporânea, o teatro diri-ge a atenção do espectador mais para os fenômenos performativos da construção da cena, para um jogo com as qualidades materiais desses, do que para o seu resul-tado: a construção de um lugar e de um personagem � ccionais. Assim, o teatro contemporâneo coloca em cheque a aten-ção do espectador sobre o personagem, para convidá-lo a prestar atenção ao ator.

Esperamos que os textos escolhidos

estimulem nossos leitores a entrar em um diálogo com suas ideias e levar sua pre-sença para além das páginas da revista impressa ou do sitio virtual de sua hos-pedagem.

Os editoresMaria Brígida de Miranda,

Stephan Baumgärtel e Vera Collaço

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CALADA ESTRANHA (2012). ATOR: CARLOS LONGO. FOTO: LETICIA ZANCHI.

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Dossiê Temático: Novos territórios do diálogo

A Partilha das vozes1

Jean-Pierre Sarrazac2

Na concepção aristotélico-hegeliana da forma dramática, o autor � ca ausente de sua obra. Desaparece perante seus personagens. Outros

pretenderão que, ao dissimular-se atrás de cada um deles, o autor os manipula como bonecos a quem emprestaria a própria voz, a própria linguagem e o próprio discurso. Daí a denúncia de Bakhtin3 do caráter não-dialógico do diálogo teatral: “[...] o diálo-go dramático no drama e o diálogo dra-matizado nas formas narrativas estiveram sempre guarnecidos pela moldura sólida e inquebrantável do monólogo. [...] as répli-cas do diálogo dramático não subvertem o mundo a ser representado, não o tornam multiplanar; ao contrário, para serem au-tenticamente dramáticas, necessitam da mais monolítica unidade desse mundo. No drama, ele deve ser constituído de um fragmento. Qualquer enfraquecimento desse caráter monológico leva ao enfraque-cimento do dramatismo. As personagens mantêm a� nidade dialógica na perspecti-va do autor, diretor, espectador, no fundo preciso de um universo monocomposto”.

Para Hegel e para Aristóteles, a ausên-cia do autor se impõe ao teatro devido ao caráter primário da forma dramática: uma ação completa (indo até o � m) se desenvol-ve no presente diante de nós, perante nos, espectadores... Ora, uma das principais ca-

1 Publicado sob o título “Le partage des voix”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Territoires Du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p.11-16. Tradução Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Jean-Pierre Sarrazac (1946) é autor dramático e professor emérito da Universidade Paris 3 – Nova Sorbonne. Ele é fundador do grupo de pesquisa “Poética do drama mo-derno e contemporâneo”. Autor de várias obras, entre as quais se destacam: O Futuro do Drama, Léxico do Teatro Moderno e Contemporâneo, A Invenção da Teatralidade e Sobre a Fábula e o Desvio.

3 Bakthin, Mikhaïl. Problemas da poética de Dostoïevski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 17-18.

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A PARTILHA DAS VOZES: JEAN-PIERRE SARRAZAC

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A Partilha das vozes1

Jean-Pierre Sarrazac2

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racterísticas do drama moderno e contem-porâneo, de Ibsen a Fosse e de Strindberg a Koltès, é o progressivo deslizamento da forma dramática de seu estatuto primário para um secundário. A ação já não se de-senvolve no presente absoluto, como uma corrida para o desenlace (a catástrofe), mas consiste cada vez mais em um retorno – re-� exivo, interrogativo – a um drama passa-do e a uma catástrofe já sempre advinda.

Desde então, o autor tem a tendência de atribuir a si mesmo a função — poder-se-ia dizer o papel — de maquinista perante essa volta no tempo. Multiplica suas inter-venções; se situa entre a cena e a sala. En-tre os personagens e o público. Trata-se do surgimento de uma � gura nova, que Peter Szondi chama de “sujeito épico”. Figura que o autor da Teoria do drama moderno4 vê despontar nas dramaturgias da virada do século XX — segundo ele, o velho Hummel de A Sonata dos Espectros, de Strindberg, se-ria um esboço desajeitado disso — e depois a vê desabrochar no teatro épico de Brecht.

Quanto a mim, pre� ro falar de um su-jeito rapsódico ou, mera e simplesmente de uma pulsão rapsódica que age no drama moderno e contemporâneo. Como o inte-resse em tal substituição de termos é dupla, até tripla,

— Ao realçar a � gura antiga do rapso-do, me situo na encruzilhada, naquele mo-mento crítico do drama que, no � m do sé-culo XVIII, a correspondência entre Goethe e Schiller nos indica...5 No mesmo momen-to em que traçam um panorama das oposi-ções entre poesia épica e poesia dramática,

4 Szondi, Peter. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac & Naïfy, 2001.5 Goethe, Schiller. Correspondance, 1794-1805. Vol. I: 1794-1797. Paris: Gallimard, 1994

(ver o ano de 1797).

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A PARTILHA DAS VOZES: JEAN-PIERRE SARRAZAC

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os dois dramaturgos � lósofos parecem nos encorajar — sugestão que Brecht seguirá — a cruzar a arte (dramática) do ator e a arte (épica) do rapsodo. Começa a ser uti-lizado o projeto de um autor-rapsodo que opera uma mediação manifesta não só entre os personagens, mas também entre estes e os espectadores. Como diz Goethe, subs-tancialmente: nenhum personagem poderá fazer uso da palavra se o rapsodo não a ti-ver conferido a ele antes. A mimese teatral estrita cede terreno àquele gênero misto, àquela semimimese que, segundo Platão, caracterizava a epopeia. Consequentemen-te, a cena sai de um longo século de iso-lamento esplêndido em relação à plateia; recupera uma abertura (dirigir-se ao públi-co) e uma dimensão épica tão manifestas antigamente nos teatros medievais ou pós-medievais (Shakespeare, Lope de Vega, os pré-clássicos franceses).

— O outro benefício que tenho por es-colher o termo ‘rapsódico’ ao invés do ter-mo “épico” é que assim me liberto da ilu-são teleológica — Szondi me parece ainda sucumbir a ela —, segundo a qual o teatro épico representaria a superação dialética do teatro dramático. (Todos sabem que en-tre todas as variantes da morte do drama que o século XX publicou — de Adorno a Lehmann —opto pelo drama... em devir rapsódico.)

— Acrescentarei que o sujeito rapsó-dico tem como vantagem sobre o sujeito épico o fato de ser um sujeito clivado, ao mesmo tempo dramático e épico. Ao mes-mo tempo, personagem que toma parte na ação e testemunha da ação. Vantagem que Peter Szondi não soube reconhecer, o qual criticava a dramaturgia onírica de Strind-berg por desdobramentos como esses, e o Velho Hummel por não escolher entre sua função de observador externo e seu desti-no como personagem. Ora, a evolução das dramaturgias modernas e contemporâne-as desde o � m do século XIX até os nos-sos dias prova que Strindberg tinha razão e que o personagem tende cada vez mais a tornar-se um personagem-testemunha de si mesmo e da ação na qual está inserido.

Estando o autor presente na obra sob a aparência do sujeito rapsódico, produz-se uma verdadeira recon� guração do diálogo dramático: o diálogo já não é aquele diá-logo lateral con� nado à cena entre os per-sonagens; ele se amplia consideravelmente ao mesmo tempo em que se torna hetero-gêneo e multidimensional — Bahktin diria que ele se dialogiza.

Tal como se transforma ao longo do século XX e tal como ainda hoje está em transformação, o novo diálogo dramático se mostra fortemente mediatizado. Um diá-logo que costura (rhaptein no grego antigo signi� ca “costurar”) modos poéticos dife-rentes, para não dizer refratários entre eles (modos lírico, épico, dramático, argumen-tativo). O rapsodo é esse costurador-des-costurador. Uma nova partilha das vozes6 se instaura ali onde a voz (que não se expri-me apenas por meio das didascálias, mas que se imiscui no discurso do personagem) e o gesto do rapsodo (o da composição, da fragmentação, da montagem reivindicada) se intercalam com as vozes e gestos dos personagens. Seja explicitamente, quando a voz do rapsodo se sobrepõe à voz do per-sonagem; seja mais implicitamente, como editor ou “operador” no sentido mallarme-ano.

Maeterlinck foi o primeiro a assinalar, a respeito de Ibsen, mas também por conta própria, a emergência de um “outro diálo-go”: “Ao lado do diálogo indispensável, há quase sempre outro diálogo [...] a qualida-de e a extensão desse diálogo inútil é que determinam a qualidade e o alcance inefá-vel da obra.”7 É necessário constatar que o “outro diálogo” ocupa hoje um lugar con-siderável nos textos teatrais e que já não se limita, como nos tempos de Maeterlinck, a expressar o “inefável”. Quando Natha-lie Sarraute institui como diálogo teatral o que na verdade é tão somente a “subcon-versação” ou o “pré-diálogo” entre seus personagens, ou quando Michel Vinaver desnaturaliza e trans� gura — por meio da

6 No original “Partage des voix”, expressão que provém do texto de Jean-Luc Nancy, Le Partage des voix. Paris: Galilée, 1982 “Débats”.

7 MAETERLINCK, Maurice. “Le tragique cotidien”, in: Le Trésor des humbles, Bruxelles: Labor, 1986, p.107.

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A PARTILHA DAS VOZES: JEAN-PIERRE SARRAZAC

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despontuação, por meio da descronologi-zação e por meio do jogo da repetição-va-riação... — a palavra hegemônica, estamos perante “outro diálogo”, um diálogo de se-gundo grau e um diálogo mediatizado que se impõe em cena.

É evidente, porém, que existe uma extrema variedade dentro das modalida-des desse “outro diálogo”, desse diálogo “outro”. Mencionemos simplesmente, por exemplo, todas as misturas do antigo diálo-go dramático com outros tipos de diálogo: � losó� co ou cientí� co. Poderíamos evocar, notadamente, os “diálogos dos mortos”, à maneira de Luciano de Samósata, de À saí-da, de Pirandello, e de Entre Quatro Paredes, de Sartre, até Orgia, de Pasolini, e Cendres de cailloux, de Daniel Danis...

Tais hibridações contribuem para emancipar o diálogo teatral da univocidade e do monologismo que Bakhtin denuncia-va e para instaurar, na obra dramática, um verdadeiro dialogismo: “auscultar o diálo-go de sua época”, “auscultar a sua época como um grande diálogo”, “de captar nela não só vozes isoladas mas antes de tudo as relações dialógicas entre as vozes, a intera-ção dialógica entre elas”.8 Temos então o direito de perguntar se o � orescimento do monólogo ao largo do século XX não terá sido o sintoma de um fenômeno mais fun-damental: reconstruir o diálogo baseado num verdadeiro dialogismo; dar autono-mia à voz de cada — inclusive à do autor-rapsodo; articular a confrontação dialógica dessas vozes singulares. Em suma, ampliar o teatro fazendo os monólogos dialogarem.

8 Bakthin, Mikhail. Op.cit. p.100.

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DIALOGO E CONVERSAÇÃO: JEAN-PIERRE RYNGAERT

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Dialogo e conversação1

Jean-Pierre Ryngaert2

A conversação costuma se diferen-ciar do diálogo teatral por traços que às vezes são evidenciados pelos caracteres e que inscrevem

um tipo de hierarquia linguística ou lite-rária. Em todo caso, esse é o ponto de vis-ta daqueles que se interessaram pelo diá-logo em geral e, como Suzanne Guellouz, posicionam o diálogo � losó� co no topo da escada e a conversação a conversação em sua parte mais baixa.

As de� nições correntes evocam um diálogo teatral que seria organizado, construído, expressaria pensamentos e perseguiria um projeto que faz sentido. A conversação seria desconexa, impre-visível, despojada de qualquer ambição que não seja a de ocupar o estado de va-cância daquilo que ela acumula; seu re-sultado não deveria irritar nem lesar seja quem for (Erving Goffman). Ao diálogo estaria reservado o con� ito, ou, em todo caso, o face a face, o agon; à conversação, as trocas banais feitas com insigni� cân-cias e preocupações cotidianas. O diálo-go apresentaria uma aparência da qual se limparam todas as sujeiras da palavra ordinária; ele se desenvolveria poupan-do as hesitações e os acidentes próprios à língua emitida no presente (Catherine Kerbrat-Orecchioni), mais uma vez em oposição à conversação, rica em repeti-ções e rupturas de qualquer ordem.

1 Publicado sob o título “Dialogue e conversation”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nou-veaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p. 17-21. Tradução: Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Jean-Pierre Ryngaert é é professor de Estudos Teatrais na Universidade de Paris 3 – Nova Sorbonne, onde atua na graduação, na formação de pesquisadores e formação pro� ssional continuada. É também diretor teatral e um dos responsáveis pela Mousson d’Étéî, festival anual de teatro contemporâneo na França. É autor de várias obras, entre as quais se destacam: O jogo dramático no meio escolar, Introdução à análise do teatro e Ler o teatro contemporâneo.

A realidade dos textos é bem diferen-te. Em primeiro lugar, porque não exis-tem diálogos tão “puros” e conversações tão “impuras”, a não ser do ponto de vis-ta da utopia ou da teoria. Em segundo lugar, porque aconteceu uma contamina-ção regular entre ambos, a qual produziu cruzamentos inéditos com a � nalidade, de Tchekhov a Sarraute e muitos outros autores, de renovar o diálogo. Onde Pe-ter Szondi não via outra coisa a não ser o enfraquecimento do diálogo no interior do texto conversacional (propício para um debate de ideias sem engajamento real dos protagonistas), podemos — a partir das regras da conversação, de seu desvio e de seu descaminho —, inventa-riar maneiras diferentes de considerar as mudanças. Por isso, parece menos neces-sário hoje examinar as diferenças do que perceber as in� uências. Além do mais, as pesquisas dos linguistas sobre a con-versação e sobre suas regras facilitaram a renovação dos modos de análise, espe-cialmente ao deslocar o interesse pelos enunciados para os sistemas de enuncia-ção.

A paisagem dramática contemporâ-nea, que faz uso da conversação e de seus avatares, abala um dos princípios mais sólidos do diálogo: a dupla enunciação. Historicamente, esse princípio de infor-mação organiza as trocas e assegura que toda réplica endereçada ao parceiro tam-bém o seja pelo menos a um terceiro, o leitor ou o espectador. Ora, acontece que o endereçamento ao terceiro excede e se sobrepõe à palavra destinada ao parcei-ro-personagem, revelando, consequente-mente, seu caráter arti� cial. Assim, o diá-

Dialogo e conversação1

Jean-Pierre Ryngaert2

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DIALOGO E CONVERSAÇÃO: JEAN-PIERRE RYNGAERT

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logo explora hoje em dia os artifícios bem como os limites da troca fundada no seu caráter implícito.

O implícito é comum na conversação. Ninguém que participa nela se dá ao tra-balho de precisar os pressupostos do que ele diz, que são em princípio conhecidos por todos os participantes que aprovam a troca. Espera-se que com o diálogo ocorra o oposto; que sirva para explicitar o que é o objeto da palavra falada e informe tam-bém de todo o restante: ação, intenções, personagens, sem deixar nada no escuro. Os autores que jogam com o implícito conferem um local diferente ao leitor-espectador, posicionado frente a trocas cujas chaves não possui, ou somente al-gumas delas. Tal espectador pode, por-tanto, sentir-se excluído perante a opaci-dade daquilo que ouve. Em certos casos, o diálogo parece obscuro, enquanto é simplesmente sujeito à fantasia aparen-te dos enunciadores, que fazem como se falassem entre eles e que não estivessem mais presos à obrigação de informar.

A troca ganha em liberdade e em fantasia; ela se assume como que mais “naturalmente”; joga também com in-compreensões potenciais entre os perso-nagens quando estes perdem igualmente o “comum” implícito. A palavra falada, todo poderosa, não se submete à infor-mação. Ela é agora o verdadeiro objeto do diálogo.

Entre as outras regras conversacio-nais enumeradas pelos linguistas, são fundamentais o princípio de cooperação entre os protagonistas ou os rituais so-ciais de abertura e de fechamento das tro-cas. Normalmente, o diálogo torna a co-operação entre os personagens, inclusive nos con� itos, uma evidência necessária. De agora diante, acontece que a coope-ração seja caluniada — as trocas nunca “pegam” e sacolejam em função de que os interlocutores se fecham em seus pró-prios discursos — ou que seja parodiada por meio da cooperação forçada dos pro-tagonistas cujo excesso de boa vontade sublinha o caráter automático das trocas,

como às vezes é o caso em Beckett. No que diz respeito aos rituais de abertura, normalmente ausentes do teatro no qual os dramaturgos os usam pouco, eles são parodiados em autores como Ionesco, que os utiliza para desregular as con-venções. Continuam a ser, entretanto, a marca de uma a� liação comum dos per-sonagens a uma mesma microssociedade, como em Tchekhov. Em outra con� gura-ção, os personagens de Jean-Luc Lagarce fazem uso tão escrupuloso dos rituais de polidez e das regras de tomar a palavra que só avançam com extrema lentidão, constantemente ocupados em corrigir-se e em melhorar o que acabam de avançar. Então, a precaução in� nita regula suas trocas e ocupa boa parte do terreno das relações humanas.

Na medida em que procede frequen-temente por temas, abordados, depois abandonados ou mais tarde retomados, ao sabor da fantasia aparente de seus ini-ciadores (falamos preferentemente em “conversação desarticulada”), a conver-sação pode servir de modelo implícito para o diálogo fragmentado ou estilha-çado. Ambos procedem por saltos e por elipses, cruzando temas e réplicas que que só têm sentido naquele instante, em detrimento da continuidade. Essa falta de continuidade nas réplicas é um ponto comum entre a conversação ordinária e as formas elípticas e descontínuas do diá-logo (Lemahieu, Valetti, Vinaver). Como a conversação é também um dos lugares nos quais se pode apanhar uma palavra abandonada, descontraída, faltosa ou rica em construções linguísticas atípicas, em fracassos, em repetições e idiomas, outro ponto comum se impõe com diálo-gos que não � ltram nada das ”escórias” da língua. No entanto, não se trata forço-samente de imitar trocas realistas, mas de se abrir para os excessos e para as esqui-sitices da palavra chamada comum.

Esses dispositivos renovam o arsenal das � guras teatrais, ao incorporar aque-las que não falam, ou falam pouco, aque-las que não dominam o discurso, mas que

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DIALOGO E CONVERSAÇÃO: JEAN-PIERRE RYNGAERT

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aceitam o risco de conversar e encontram dessa maneira um lugar dentro do cír-culo — socialmente fechado — das per-sonagens. Assim, a conversação remete a dois extremos: a uma arte da palavra em sociedade desde o século XVIII, bem como a uma troca com fama de ser inábil ou desprovida de intencionalidade apa-rente.

O modelo conversacional permite di-álogos cada vez menos “interessantes”, nos quais o que se diz provém da ba-nalidade aparente, rompendo com uma tradição da réplica carregada de sentido. Nesse modelo, a palavra é tomada, aban-donada, interrompida, solitária, endere-çada. Ergue-se no silêncio, que é, como lembra Goffman, a ordem comum da vida social.

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O DESENCAIXE: JOSEPH DANAN

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Uma norma tácita do diálogo teatral quer que este se organize segun-do o princípio da continuidade. O modo como se encadeia uma répli-

ca com a seguinte é comumente regido pelo que Michel Vinaver denomina “fechamen-to completo”.3 Cada réplica “responde”, de uma maneira ou de outra, àquela que a precede, quando mais não seja, evidente-mente, para se opor a ela. Esse fechamento pode ser mais ou menos apertado ou frou-xo, dependendo se os “conteúdos semân-ticos” e o “agenciamento formal” formam uma reação mais ou menos marcada de uma réplica para outra.

Há milhares de maneiras de romper com esse princípio, de modo que as “des-regulações” que resultam delas constituem alguns dos signos mais constantes da ence-nação da crise do diálogo no teatro moder-no e contemporâneo.

Ao fechamento completo, Michel Vina-ver opõe o “fechamento adiado” [boucla-ge différé] e o “não-fechamento”. Estamos perante o “fechamento adiado” quando o surgimento de uma réplica encontra seu “ponto de encaixe” não na réplica que a precede, mas em uma anterior a essa. Existe um “não-fechamento” quando uma réplica surge, perfurando o tecido textual, sem ne-nhum antecedente perceptível. Entretanto,

1 Publicado sob o título “Le desemboîtement”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouve-aux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p. 22-25. Tradução: Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Jospeh Danan é dramaturgo e professor de Estudos Teatrais da Universidade Paris 3 – Nova Sorbonne, membro integrante e co-líder do grupo de pesquisa “Poética do drama moderno e contemporâneo”, anteriormente dirigido por Jean-Pierre Ryngaert e Jean-Pierre Sarrazac. Seu foco de pesquisa está nos modos de produção de textos teatrais contemporâneos.

3 Bouclage, no original, também pode signi� car loop, retro-atividade, ou simples-mente uma relação ou um funcionamento circular. Optei por completo, pois este termo me parece expressar o efeito deste tipo de fechamento: apresentar o diálogo como uma entidade completa, sem furos.

é necessário aprofundar a diferenciação en-tre os tipos de fechamento adiado e de não-fechamento, que não são da mesma natu-reza. Uma distinção importante pode ser feita conforme eles se produzem no inte-rior de uma situação dramática unitária ou não; para não dizer dentro de um contexto que desa� a a noção clássica de situação ou rompe com ela, a tal ponto é verdade que o diálogo não pode ser apreendido fora das outras categorias do drama (inclusive as categorias de ação e de personagem).

No interior de uma situação dramática unitária, o fechamento adiado e o não-fe-chamento poderão participar de um enfra-quecimento dos laços que mantêm unidos os diferentes locutores (os personagens), como se — empurrando o fenômeno até o extremo — o diálogo fosse apenas uma montagem de monólogos fragmentados, cujos primeiros exemplos importantes en-contramos em Tchekhov, como assinalava Szondi.4 Cada personagem, então, dialoga, de fato, somente com suas próprias répli-cas. A partir daí se desenvolverão também escritas que deixam uma parte importante em silêncio, como se, a cada instante, cada um fosse capaz de se fechar dentro de si mesmo: a palavra já não chama necessaria-mente a palavra, e se ainda a chamar já não se tem certeza de que o chamado será ouvi-do. O diálogo assume um caráter � utuan-te, desamarrado, uma estranheza que pode virar a de um universo, por exemplo na obra de Pinter. Isso não exclui — ao contrá-rio — a tensão criada por aquelas réplicas que continuam pendentes ou por aquelas que surgem subitamente com a brutalida-

4 Peter Szondi. Teoria do drama moderno. Trad. de Luíz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac&Naify, 2001, p. 46-53.

O desencaixe1

Joseph Danan2

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O DESENCAIXE: JOSEPH DANAN

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de de algo inesperado. Mas Tchekhov também abriu o cami-

nho para o despedaçamento espacial da situação. Às vezes, como no primeiro ato de As Três Irmãs, são conversas múltiplas que coexistem dentro de um espaço cêni-co dividido em subespaços ou atravessado por grupos de personagens que não se co-municam a não ser pelo jogo da encenação. Por causa disso/A partir daí, já não falare-mos somente em fechamento adiado ou em não-fechamento, mas poderemos arriscar o termo (proposto por Jean-Pierre Ryngaert) “desencaixe”.5 O termo dirá respeito a blo-cos de réplicas, mais ou menos importan-tes: o diálogo se despedaça em diferentes cacos cujo encaixe talvez não possa mais ser a regra. Como um quebra-cabeça com peças destinadas a continuarem soltas.

Um jogo importante no teatro de Mi-chel Vinaver empurra para muito longe esse desencaixe ao fazer coexistirem no espaço cênico certos espaços e até certos tempos diferentes. Se a última cena de L’Émission de télévision se contenta, como podemos dizer, de entrelaçar dois diálogos simultâneos situados em dois lugares dife-rentes, uma peça como La Demande d’emploi inventa verdadeiros “diálogos de diálogos” por meio do jogo de montagem que faz co-existirem espaços e tempos diferentes em cena, de modo que poderemos aproximá-la, então, a um espaço mental. A unicidade de cada diálogo (que poderia corresponder a uma situação de enunciação precisa, com critérios espaço-temporais bem de� nidos) racha e se esfacela. As réplicas não mais se respondem necessariamente, ou se respon-dem de modo diferente pela distorção de aproximações (às vezes irônicas) provoca-das pela tecelagem textual, aquilo que Vi-naver denomina a “tuilage”6: uma réplica inscrita dentro de uma situação de enun-ciação vinda diretamente após outra, que pertence a outra situação, e estabelecendo/que estabelece com ela um tipo de diálogo

5 No original désemboîtement, que seria literalmente desencaixamento, desencai-xotamento ou desimpedimento do diálogo. Optamos por desencaixe, pois a ideia é construir textos a partir de blocos verbais que não se encaixam mais perfeitamente.

6 Trata-se de um conceito musical da polifonia inicial, quando uma voz entra antes de outra terminar.

que somente existe para o espectador.Sem encaixe, nem por isso cada diálo-

go deixa, aqui, de ser diálogo, mas deslo-cado, desconstruído e depois recomposto, percorrendo, aliás, todo o espectro que vai do fechamento completo até o não-fecha-mento.

Se saímos de todo quadro situacional, o que em geral vem junto com o abaixamen-to do “personagem” são “vozes” que po-deriam se responder ou � ngir se responder dentro do espaço não-mimético da cena, compartilhando apenas tal espaço e o tem-po da representação. O desencaixe torna-se generalizado, até a difração total dos ele-mentos do diálogo, e abre caminho para a heterogeneidade; qualquer elemento textu-al pode “entrar em dialogo” com qualquer outro. Possuindo sem dúvida como ele-mento comum o fato de pôr em primeiro plano a musicalidade do texto, e jogando frequentemente com a serialidade, certos tipos de dramaturgia textual deslizam em direção a construções próximas ao oratório (11 de septembre, de Vinaver), ou em dire-ção a uma coralidade nascida de uma par-tilha quase arbitrária de vozes (Novarina), para não falar daqueles que não atribuem mais um locutor preciso [Atteintes à sa vie/(A)tentados, de Martin Crimp) – são, todas, formas que se distanciam daquilo que po-demos ainda nomear “diálogo” ou que só mantêm seus simulacros.

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A HETEROGENEIDADE: FLORENCE BAILLET

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Meandros complexos e múltiplos, carregando materiais de todos os tipos, tal seria a partir de ago-ra o rosto do diálogo dramático

que não possui mais nada de um longo rio tranquilo. Aliás, ele já não seria tão oriun-do da uma metáfora de � uxo, sugerindo uma fusão homogênea de palavras e um encadeamento � uido de réplicas, quanto da metáfora da colcha de retalhos, ligada a uma poética da heterogeneidade./ A pró-pria matéria do diálogo, a linguagem, já é frequentemente uma tecelagem de termos de diversas origens, inserindo às vezes jar-gões, às vezes idiomas estrangeiros ou in-ventados, misturando a gíria com um nível de língua elevado. Ela pode igualmente ser perfurada por silêncios ou ruídos, por bor-borigmos; ou aceitar dentro da trama fór-mulas prontas, citações literárias, canções e todo tipo de empréstimo (mais ou menos evidente) de outra obra, de outra arte, de outra realidade. A composição do diálogo permite também criar fenômenos de mes-tiçagem, misturando cores trágicas com tonalidades cômicas; alternando discursos de todo tamanho e quantidade, laconismo e logorreia, solilóquio e palavras córicas, e não hesitando em praticar a confusão de gêneros: narrações ou versos surgem no coração do diálogo dramático; o épico e o lírico fazem com que exploda a bela orga-nização das réplicas. O autor de teatro rea-liza então um trabalho de montagem, para dar à luz diálogos que se apoiam em efeitos

1 Publicado sob o título “L’Héterogénéité”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p.26-30. Tradução: Ste-phan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Florence Baillet é professora e pesquisadora de Universidade Paris 3 – Nova Sorbon-ne. Seu campo de pesquisa abrange o teatro de língua alemã; teatro e o político, e as relações entre teatro e artes visuais no que concerne os modos de condução do olhar.

de choque e de contraste entre elementos heteróclitos.

Longe de ser considerada uma falha, essa heterogeneidade é assumida e reivin-dicada. Nem por isso ela dá menos motivo para diferentes usos e interpretações. Em um sentido negativo, a heterogeneidade pode ser antes de tudo sinônimo de explo-são e decomposição. Ela se torna sintoma de um diálogo deteriorado que, por não se bene� ciar mais do espaço comum necessá-rio para a partilha e para a troca, esboçaria simplesmente a constatação de sua ruína, dentro de uma espécie de “baby-sitting” generalizado. Os “parceiros” do diálogo já quase não mereceriam essa denominação, pois trocariam réplicas tão estranhas umas em relação às outras que já não permitiriam qualquer circulação de sentido. Cada sujei-to falante, incapaz de encontrar um terreno de compreensão comum com os outros, se-ria como prisioneiro de seu universo, fecha-do dentro de sua solidão e de seu discurso, o qual teria mais relação com o monólogo do que com o diálogo, de modo que esse último se reduziria doravante a uma sim-ples forma vazia. Além disso, em muitos desses diálogos “heterogêneos” (por exem-plo, em Hamlet máquina, de Heiner Müller), o personagem — vítima dessa perda do “sentido comum” que servia de elemento uni� cador — também já não constitui um espaço de identidade estável, mas se mos-tra aberto a todo tipo de vento, como uma câmara de eco pelo qual atravessa o rumor do mundo: incapaz de achar suas palavras, o personagem acrescenta fórmulas prontas aos farrapos do discurso dos quais ele não ele não se apropriou. A heterogeneidade do diálogo testemunha agora uma lingua-

A Heterogeneidade1

Florence Baillet2

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A HETEROGENEIDADE: FLORENCE BAILLET

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gem não autêntica; o chamado “sujeito” falante [locutor] é como que possuído por outras vozes que não sejam a sua. E o autor dramático pode se entregar a uma análise (crítica) da sociedade por meio desses “per-sonagens” (se podemos ainda arriscar o emprego desse termo), que sofrem a in� u-ência de discursos dominantes sem serem capazes de articular sua própria situação usando suas próprias palavras. Portanto, são ressaltados o impacto do poder sobre os indivíduos e a petri� cação das clivagens no seio da sociedade. A dimensão política desses textos não reside, portanto, em sua dimensão vidente ou demonstrativa, mas vem se alojar nas falhas do diálogo.

A ausência de homogeneidade entre as diferentes vozes e até no interior de uma mesma voz pode ser percebida, todavia, de maneira positiva, como uma pluralida-de dinâmica que evita fechar-se dentro de uma única perspectiva. Neste caso, a hete-rogeneidade é estreitamente ligada à ideia de polifonia, mas com a diferença de que ela não é apenas o traço de uma multiplici-dade de vozes do diálogo, mas sobretudo de suas diferenças, de sua diversidade fun-damental, que permite um dialogismo ver-dadeiro. Para que haja diálogo no sentido forte do termo e não simplesmente um mo-nólogo em várias vozes, é preciso criar de fato uma confrontação de singularidades; ora, é justamente o choque das alteridades que a heterogeneidade expõe, chegando muitas vezes até mesmo a uma estrutura heteróclita, para insistir neste choque de perspectivas e executar todas as suas po-tencialidades dialógicas. Reside aí a obra de um teatro que, a � m de manter o campo das possibilidades aberto, luta contra todo monologismo e todo tipo de con� scação da palavra, sob formas mais ou menos desvia-das, por uma única instância. Trata-se de exercer um olhar crítico (graças à justaposi-ção de diferentes óticas), mas também (por meio de uma espantosa hibridação) de con-fundir todos os sinais referenciais e (por meio de misturas explosivas), de fazer com que arrebentem os quadros rígidos demais: os diálogos se entrelaçam ou citam outros

diálogos, que então se mostram permeá-veis, de modo que não se sabe mais quem fala; todas as vozes parecem partir-se em um caleidoscópio de vozes diferentes. As-sim, os textos dramáticos contemporâne-os às vezes parecem quase provir de um culto à heterogeneidade: até o coro não é mais colocado sob o signo de um uníssono, mas sob o signo da polifonia. Essa hetero-geneidade um tanto invasora instaura um dialogismo que atravessa todos os elemen-tos da peça teatral, suscitando “diálogos” entre zonas do texto às vezes insuspeitas e transgredindo consequentemente o qua-dro do diálogo marcado tipogra� camente como troca de réplicas. A acumulação de citações díspares no interior da mesma fala, por exemplo, faz com que diversos autores entrem em relação; ela produz dia-logismo no mesmo quadro que então não é monológico a não ser aparentemente. A he-terogeneidade aplicada ao diálogo dramá-tico rompe, portanto, com a linearidade e organicidade harmoniosa, que norteavam a troca tradicional de réplicas, para gerar diálogos múltiplos, absolutamente outros, tecendo redes sob o olhar dos espectado-res graças ao jogo de correspondências, enquanto, à primeira vista, os interlocu-tores podem parecer não entender-se, não responder-se, expressar-se em lugares ou tempos diferentes. Como uma colcha de re-talhos, que ajunta as bordas de pedaços de tecido díspares, a heterogeneidade cria, de fato, alianças estranhas, às vezes provocan-tes, pelo menos capazes de suscitar reações por parte do público.

A heterogeneidade dentro do diálogo supõe, portanto, apesar de tudo, a manu-tenção de determinada unidade, que certa-mente não possui nada de monológico, mas nem por isso é menos necessária, para que a polifonia nascida da variedade das vo-zes não caia em uma cacofonia que aniqui-la toda possibilidade da palavra. O autor dramático que joga com a heterogeneidade anda constantemente na corda-bamba: se o espectador se perde no labirinto das pro-posições feitas a ele, o hermetismo espreita; mas se o texto não oferece uma resistência

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A HETEROGENEIDADE: FLORENCE BAILLET

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su� ciente ao público, o texto corre o risco de ser “recuperado”, por ocasião de inter-pretações redutivas e “homogeneizantes” demais. A questão da heterogeneidade contribui, portanto, para a re� exão do te-atro contemporâneo sobre as condições da possibilidade do diálogo: por um lado, o reconhecimento do outro como uma alteri-dade real, o que permite sair de uma lógica da identidade; e, por outro lado, o risco de uma dispersão gerada pela aplicação pelo desdobramento das diferenças.

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O DIÁLOGO SEGUNDO ENUNCIADORES INCERTOS: JULIE SERMON

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O personagem teatral não escapou da “descon� ança” de nossa mo-dernidade. Após a virada do sé-culo XX, foi despojado progressi-

vamente de tudo que contribuía para fazer dele um indivíduo possível, no mínimo plausível, tal como postulava a ilusão mi-mética burguesa (ancoragem referencial, consciência estável e intencional, compor-tamento interpretável em termos de uma racionalidade psicológica), para � nalmen-te aparecer como um dado relativamente acessório, no mínimo contingente, dentro das escritas dos últimos trinta anos. Os au-tores, tomando posição acerca do estado da crise diagnosticado por Robert Abirached3, acabaram por restringir-se unicamente ao teatro da palavra, e substituíram a explo-ração poética da enunciação pelo funcio-namento teleológico do diálogo absoluto.4 A incerteza que estatuto do personagem está vinculada à desagregação do modelo aristotélico: na medida em que a ação não é mais a força propulsora do drama; em que a palavra não de� ne mais necessariamen-te o caminho a seguir; em que o persona-gem se vê de fato privado da continuidade substancial e actancial de sua identidade, e vice-versa. Enquanto os enunciadores forem concebidos como agentes fabula-

1 Publicado sob o título “Le dialogue aux énonciateurs incertains”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p.31-35. Tradução: Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Julie Sermon é docente e pesquisadora da Universidade Lyon 2. Seus interesses de pesquisa são dramaturgias modernas e contemporâneas, textuais e cênicas; história e estética da encenação; a cena e as tecnologias, entre outros.

3 Abirached, Robert. La Crise du personnage dans le théâtre modern. Paris: Grasset, 1978.

4 Ryngaert, Jean-Pierre. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes. 1999.

res5, serão donos de sua palavra e forma-rão uma unidade com ela: imagem de sua identidade; a� rmação de sua consciência e expressão de seus sentimentos, ela é pre-cisamente aquilo que os constrói como “protagonistas”. Dentro dos teatros não-instrumentalizados6 — aqueles que não são a priori direcionados à perseguição de uma intriga ou ao agenciamento de uma narra-tiva — os personagens, ao contrario, pare-cem [muitas vezes] ser muito mais atraves-sados pela palavra do que a carregarem ou do que serem a sua origem. Não são mais a condição necessária dos enunciados, que se desenvolvem segundo sua própria ló-gica, inventando suas próprias dramatur-gias. O diálogo se constrói na margem, na contramão, às expensas dos interlocutores, cuja individualidade e autonomia tendem a se anular simultaneamente.

Dentro da continuidade das escritas do nouveau roman, certos autores abrem mão daqui para a frente de identidades � ctícios de� nidas, para só se dedicar ao desa� o do falar e da voz: os enunciadores então se veem investidos no papel mínimo de ser o polo de emissão, sem que as palavras que eles expõem construíssem algo da ordem de uma subjetividade. Esta exposição do abandono da suposta individualidade dos enunciadores cria espaço para uma dupla con� guração.

A primeira consiste em expulsar a

5 No original fabulaires, um neologismo que combina fable, fabuleux e o su� xo –aire, no sentido de de� nir uma qualidade: são pertentes ao mundo das fabulas, da � cção. [Nota do tradutor].

6 Parto da oposição estabelecida por Michel Vinaver nas quais “a palavra é instrumento da ação” e aquelas nas quais “a palavra é ação”. In: VINAVER, Michel. Ecritures dramatiques. Essais d’analyse de textes de théâtre, Actes Sud, coll. Babel, 2000.

O diálogo segundo enunciadores incertos 1

Julie Sermon2

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O DIÁLOGO SEGUNDO ENUNCIADORES INCERTOS: JULIE SERMON

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própria noção do diálogo: os autores não propõem nada além de um tecido de vozes alternadamente justapostas, sincopizadas, entrelaçadas, que prosseguem essencial-mente por meio de declinações, repetições e variações. Esse modelo privilegia a di-mensão musical e rítmica da palavra e ter-mina na maioria das vezes em uma forma de coralidade: todos os enunciadores par-ticipam de um mesmo movimento; contri-buem para compor uma narrativa em for-ma de partitura, cujos efeitos de eco e de rupturas se referem somente à atividade poética de enunciação. O jogo e a virtuo-sidade técnica do ator têm a tendência de se sobrepor, parcial ou completamente, aos efeitos de � cção.

O segundo modelo não rejeita de modo tão radical a narração, mas já não torna os enunciadores responsáveis por isso: os au-tores inventam espécies de metadiálogos que fazem uso de elementos implícitos da enunciação e criam con� itos que são nada além de metalinguísticos. Os enunciadores se apresentam ao espectador menos como indivíduos do que como a encarnação de pequenas ilhas de palavras, de “tropis-mos”, deixando-se seduzir pelo que Ar-naud Rykner nomeia “logodrama”.7

Outra tendência de escrita contempo-rânea, que se inscreve sobretudo dentro de uma lógica de conversação, esvazia menos a noção de “personagem” do que inverte seus pressupostos tradicionais. No início da escrita, os autores se contentam com um tipo de grau zero do personagem: ele é um falador, um ser somente trançado pelas pa-lavras que pronuncia – e não uma identida-de tirada da própria realidade pelo tempo de uma representação. Se o personagem tradicional fala conforme aquilo que po-demos esperar de seu per� l (psicológico, sociológico), as identidades assim postas em jogo se a� rmam ao contrário cruamen-te, em sua essência teatral mínima: des-providas de seus atributos substanciais ilusionistas, não são mais as avalistas, mas o efeito do diálogo que elas expõem — di-

7 RYKNER, Arnaud. Théâtres du nouveau roman. Sarraute, Pinget, Duras. Paris: José Corti, 1988.

álogo que obedece somente a sua própria lógica de gestação, a suas próprias neces-sidades poéticas, frequentemente contrárias aos pressupostos realistas, sem que seja, em todo caso, subordinado às intenções ou à vontade daqueles que o emitem. Termi-namos em um tipo de inversão “logonto-lógica”: os enunciadores só se a� rmam no decorrer e ao sabor das trocas [verbais]. É unicamente a singularidade de suas voltas e de sua construção que permite de� ni-las, mais ou menos exatamente/com exatidão, por um/num tempo mais ou menos longo.

Com isso, é evidente que a integrida-de � ccional dos enunciadores se encontra profundamente abalada: eles existem sem espessura e sem continuidade, pois tudo — seus estados, seus humores, suas rea-ções —é submetido aos � uxos e re� uxos da palavra, sem outra justi� cativa. Simul-taneamente, as explorações na enunciação às quais as escritas se entregam também as fazem adquirir uma densidade e uma opacidade novas: se os enunciadores não se aparentam mais com simulacros de in-divíduos que dividem um pedaço de exis-tência ilusória, eles se impõem como seres de palavras, com singularidade irredutí-vel, ao mesmo tempo barqueiro e parte in-teressada, em um universo que não existe antes de sua enunciação. Ao entregar aos sitcoms e a outros reality shows o privilégio de uma incessante dramatização das rela-ções humanas (segundo esquemas cada vez mais formatados e diálogos cada vez mais gastos), bem como as identi� cações experimentadas que tal fato supõe e gera, os autores, por sua parte, preferem explo-rar a capacidade que a língua possui de de-� nir e de ocasionar outras percepções do real. A emancipação do diálogo no que diz respeito a seus enunciadores confronta o espectador com mundos onde tanto o sen-tido quanto as identidades não são mais dados, mas precisam ser construídos, den-tro da interação verbal e dos espaços de in-determinação causada pelas escritas. Neste sentido, o estado de “carência” do persona-gem é sobretudo um apelo à participação do espectador no processo de [construir]

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O DIÁLOGO SEGUNDO ENUNCIADORES INCERTOS: JULIE SERMON

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sentido: abre um espaço dialógico que o envolve na constituição de outros círculos de referências, e lembra a ele que a pes-soa, longe de ser algo pronto, é sempre um dado em potencial.

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CORALIDADE: MARTIN MÉGEVAND

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Existem termos que sabem, diante da utilização crítica, se tornar indis-pensáveis, e que os dicionários de retórica ainda ignoram: a coralida-

de é um deles. No espaço de vinte anos, essa noção, que Jean-Pierre Sarrazac foi o primeiro a se arriscar a propor, em L´Avenir du drame [O Futuro do drama], de 1981, pouco a pouco se impôs não só como um instrumento incontornável de análise dos textos dramáticos, mas tam-bém de certos espetáculos contemporâ-neos, a tal ponto que um número valioso de Alternatives théâtrales, publicado em março de 2003, é a ela dedicado3: a sua leitura possibilita medir a vastidão dos problemas abordados por essa noção, e as contradições que suscita. Tentar des-lindar-lhe o conteúdo ou delimitar-lhe o campo de aplicação certamente impõe o cruzamento de várias áreas de conheci-mento e diversas abordagens teóricas e técnicas, o que é a fonte principal das di-� culdades e da riqueza do seu emprego. Assim, para abordar a coralidade, é pos-sível associar história das artes do espetá-culo e retórica do drama contemporâneo, e até interrogar o devir pós-dramático do drama. Interessar-nos-emos, então, pela literatura dramática e pela posição do texto na paisagem teatral contempo-rânea. Mas recorrer à noção de coralida-de pode também servir para quali� car e explorar estéticas híbridas, próximas

1 Publicado sob o título “Choralité”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Ter-ritoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p.36-40. Tradução: José Ronaldo Faleiro.

2 Martin Mégevand é docente da Universidade Paris 8 – Vincennes Saint Denis. Seus campos de pesquisa são o teatro francês e francófono; as literaturas teatrais e a cons-trução de comunidade; a poética do drama moderno e contemporâneo.

3 “Choralités”, Alternatives théâtrales, nº 76-77, Bruxelas, 1º e 2º trimestre de 2003.

da instalação, que já não se apoiam em textos, a não ser sumariamente (Wilson, Tanguy, Castellucci). Por � m, pensar o teatro pelo ângulo da coralidade convi-da a explorar o vínculo entre literatura e � loso� a relativamente à questão comu-nitária. Outras pistas podem ser relacio-nadas com as três áreas esboçadas acima. Citemos a questão retórica, ainda pouco explorada, da liricização do drama pela função coral: a questão, sociológica, do tropismo ritual, ou cerimonialista, que se observa nas cenas contemporâneas (espe-cialmente desde Genet e depois dele); por � m, a questão, � losó� ca, dos vínculos en-tre o drama e a História: a coralidade nas-ce onde — por diversas razões que ainda não foram precisadas (� m das utopias e das ideologias, dissolução da comunida-de e das comunidades) — o coro já não pode instalar-se duravelmente nos palcos ocidentais. Tendo-se a coralidade torna-do uma peça mestra, mas ainda nova, do quadro crítico do drama contemporâ-neo, é inevitável que os contornos do seu campo de aplicação ainda sejam ainda di� cilmente delimitáveis. Aparece então o risco de uma profusão as� xiante, e a necessidade de � xar os seus conteúdos: a mínima, entende-se por coralidade a dis-posição particular das vozes, a qual não provém nem do diálogo, nem do monólo-go; a qual, requerendo uma pluralidade (um mínimo de duas vozes), contorna os princípios do dialogismo, particularmen-te reciprocidade e � uidez dos encadea-mentos, em proveito de uma retórica da dispersão (atomização, parataxe, ruptu-ra) ou do entrelaçamento entre diferentes palavras que se respondem musicalmen-

Coralidade1

Martin Mégevand2

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CORALIDADE: MARTIN MÉGEVAND

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te (estilhaçamento, superposição, ecos — efeitos de polifonia, todos). Portanto, o termo permite apontar com e� cácia um modo, que varia conforme cada autor, de suprir as brechas do diálogo: evocar a co-ralidade de um dispositivo é inicialmen-te considerá-lo pelo ângulo da difração das palavras e das vozes, num conjunto refratário a toda e qualquer totalização estilística, estética ou simbólica. Nesse sentido, a coralidade é o inverso do coro. Postula a discordância, quando o coro — pelo menos como o entendiam os gregos — sempre carrega, mais ou menos expli-citamente em seu horizonte, o traço de um idealismo do uníssono.

No entanto, do ponto de vista do de-senrolar temporal, a coralidade desem-penha, no tecido dramático, um papel muito próximo daquele de que o coro de teatro estava investido. Ela produz diver-sos efeitos sobre a temporalidade dramá-tica: retardando o desenrolar do diálogo como veículo da ação, impõe uma mo-dalidade temporal de um tipo mais para o suspensivo, ainda que a esse respeito possam ser observadas variações de or-dens muito diversas. Portanto, a noção é particularmente operante desde o “dra-ma estático” e oximórico de Maeterlin-ck. Se ela se aplica e� cazmente às formas dramáticas modernas desde que o drama foi posto em crise, é di� cilmente dissociá-vel da estética do fragmento, e das várias modelizações da forma aberta: desmulti-plicação, e até desaparecimento da tríade exposição-con� ito-desfecho em proveito de uma retórica da disseminação, da mi-croestrutura ou da composição por meio de quadros. O torrão expressionista é, pois, particularmente propício às � ora-ções corais. Mas parece difícil atribuir uma certidão de nascimento da corali-dade na história das formas dramáticas: tratar-se-ia preferencialmente de uma tendência, cada vez mais apoiada histori-camente, para variar o diálogo em todos os tipos de � guras que se aparentam ao estilhaçamento (Maeterlinck, Les Aveu-gles), à dispersão aleatória (Minyana, Les

Guerriers), à seriação (Novarina), a uma disposição das palavras por patamares (Vinaver).

Podendo fazer as vezes de princí-pio único de composição, a coralidade dramática permite associar forma lírica e conteúdo épico. Consequentemente, a noção é particularmente operante para a análise de um teatro que visa menos a contar do que a expor os limites do estar junto, e que propõe a expor a memória a partir das feridas da História e dos des-moronamentos do vínculo social (Weiss, L´Instruction; Vinaver, 11 septembre 2001; Groupov, Rwanda 94). As três obras co-rais aqui assinaladas apresentam, todas, um vínculo estreito com a música.

A aparição recente da noção no dis-curso crítico assinala tanto uma evolução das formas dramáticas quanto uma mo-di� cação do olhar dos especialistas sobre as obras. De fato, parece inevitável hoje analisar o texto dramático numa relação com as estéticas que lhe são próximas. Transversal por de� nição, o recurso à noção de coralidade pode possibilitar a convocação, junto a obras dramáticas, de objetos estéticos relacionados com a mú-sica, com a dança, com as artes plásticas, e a reconsideração, por exemplo, das pa-lavras brechtianas sobre o papel de des-vinculação/desarticulação trazida pela música para um espetáculo. Em suma, a coralidade constata a dispersão das esté-ticas e da supressão das fronteiras entre as artes.

Vista como um campo cujos desvios e acidentes ainda estão por ser medidos, a coralidade permite explorar as diferen-tes modalidades estéticas das novas ma-neiras teatrais de compartilhar a palavra, e, transitivamente, de questionar o estar junto. Como propõe Christophe Triau no artigo liminar da revista precitada4, é pertinente analisar a coralidade não so-mente sob as espécies de um zumbido de vozes anônimas, mas também como

4 Christophe Triau, “Choralités diffractées: La communauté en creux”, in Alternatives théâtrales, nº 76-77, op. cit., p. 5-11.

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CORALIDADE: MARTIN MÉGEVAND

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processo dialético, ou tensionamento, de duas forças contrárias, patentes tanto no jogo cênico quanto na espessura da “per-sonagem” coral: assim, seria coral uma tendência de composição, pertencente a um jogo dramático ou a uma escrita, que consistisse ora em singularizar a indivi-dualidade, ora em incorporá-la ao coleti-vo. Pelo que se vê, o paradigma temporal é central no tratamento da coralidade.

Surge, porém, a questão que consis-te em saber se, na hora em que os para-digmas formais são facilmente abolidos, mais do que evocar “a” coralidade, não seria preferível singularizar uma corali-dade de Novarina, distinta da de Vina-ver, e sem muita relação com a de Gabily, a tal ponto a paisagem do drama contem-porâneo está semeada de formas corais irredutíveis.

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DIÁLOGO NARRATIVO, DIÁLOGO DIDASCÁLICO: JOSEPH DANAN

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Para compreender como podemos ser levados a falar em “diálogo narrati-vo” e avançar até o oxímoro surpre-endente do “diálogo didascálico”,

faz-se necessário um breve olhar retrospec-tivo. Tudo começa quando com a “noveli-zação” do teatro, que é um dos traços mar-cantes da crise do drama iniciada no � m do século XIX e um dos aspectos mais visíveis da “virada rapsódica” da forma dramática da qual fala Jean-Pierre Sarrazac. O drama tenta competir com o romance avançando sobre um terreno misto em que o diálogo se enfraquece; em que a narração e a descri-ção tentam abrir caminhos singulares, que recordam o romance, mas buscam a� rmar sua teatralidade. Encontramos isso, mui-to naturalmente, na didascália, que abre primeiramente um espaço que se revelará propriamente sem limites. Tal ocorre, por exemplo, com as didascálias de Ibsen e depois nos textos de certo número de au-tores do século XX que podemos caracte-rizar como “realistas” (O’Neill, Tennessee Williams). O teatro dadá e surrealista, os “teatros da imagem” mostram, porém, que esses caminhos, diametralmente opostos a todo realismo, podem ser os do imaginário mais desenfreado.

Até esse momento, diálogo e didascá-lias (descritivas e narrativas) se tocam con-

1 Publicado sob o título “Dialogue narratif, dialogue didascalique”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p.41-45. Tradução: Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Joseph Danan é dramaturgo e professor de Estudos Teatrais da Universidade Paris 3 – Nova Sorbonne, membro integrante e co-líder do grupo de pesquisa “Poética do drama moderno e contemporâneo”, anteriormente dirigido por Jean-Pierre Ryngaert e Jean-Pierre Sarrazac. Seu foco de pesquisa está nos modos de produção de textos teatrais contemporâneos.

tinuando separados, mesmo que o espaço didascálico cresce. (Entendemos que isso não é uma regra: em boa parte das peças modernas e contemporâneas, as didascá-lias se tornam escassos.) O que nos inte-ressa aqui é sua interpenetração. Podemos considerar que um sinal forte disso foi a tentação dos diretores teatrais de mandar falar em cena as didascálias (que a priori não tinham sido escritos para isso). Foi o caso quando Jean-Pierre Vincent montou Felicidade de Jean Audureau (em 1983), um espetáculo no qual François Chaumet-te lia “o romance didascálico” do fosso da orquestra. O “teatro-narração” de Vitez havia aberto essa brecha (como Catheri-ne, segundo Les Cloches de Bâle, de Louis Aragon, em 1975), ao fazer, de certa forma, os fragmentos do romance dialogarem, re-alizado pelos diferentes atores, os quais, alternadamente e por meio de constantes deslizamentos, foram os personagens e os narradores de si mesmos. São [esses] al-guns sintomas do enfraquecimento de uma fronteira que o teatro acreditara ser estável.

Resta examinar como seus efeitos se manifestam na escrita dramática propria-mente dita. No caso de Beckett, após as pri-meiras peças, teatro e narração diluem suas fronteiras e certas formas curtas que ele então desenvolveu, como Comédia, se em-penhavam para fazer com que dialoguem os elementos da narração que podem com-plementar-se ou opor-se. Essa tendência de escritores atravessando os gêneros (do ro-mance ao teatro e vice-versa) pode ser en-contrada em Duras ou Pinget. Ela se torna particularmente notável quando não po-demos mais isolar uma voz narrativa (ou

Diálogo narrativo, diálogo didascálico 1

Jiseph Danan2

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DIÁLOGO NARRATIVO, DIÁLOGO DIDASCÁLICO: JOSEPH DANAN

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uma instância narrativa como o projetor de Comédia, direcionado alternadamente para a personagem) que teria um estatuto à par-te das outras vozes, sujeito épico ou dra-mático que os distribuiria (a voz do “rap-sodo”). Devido a essa condição, podemos falar de um verdadeiro diálogo narrativo, de um “diálogo de narrativas” ou, mais exatamente, de fragmentos de narrativas, como podemos encontrar em Daniel Da-nis, cujas peças recorrem a procedimentos do romance que imprimem sua marca no próprio diálogo. Em Celle-là, por exemplo, certas trocas são escritas na forma de uma narração ou de uma descrição, às vezes quase impossível de separar quando o di-álogo narrativo convoca o passado que en-contra, no instante de uma ou várias répli-cas, o presente do teatro.

O FILHO E A MÃE. Três meses mais tarde.O FILHO. Vi de novo a minha mãe.A MÃE. Fui chamado ao refeitóriodo outro lado da cercaum pequeno menino gritava:O FILHO. ”Mamãe, mamãe.” Vi de novo a minha mãeuma última vez, vestida toda de preto, até seu rosto era preto de sombra. Seus dentes brancos repetiam:A MÃE E O VELHO.“Não posso cuidar de ti.”“Mãe assassina de crianças”3

Encontramos, de maneira ainda mais imbricada, no início de L’Enfant froid, de Marius von Mayenburg, um diálogo que aparenta (visto de longe) ser um diálogo no sentido convencional, mas é constituído em boa parte de pontos de vista narrativos ou descritivos voltados à própria situação.

PAPAI. Então é aqui que você passa suas festinhas todas as noites.Aqui no bar, percorro com os olhos a vitrine de carne.MAMÃE. Lena. Este cara no bar não para de olhar para você.

3 Daniel Danis. Celle-là. Théâtre Ouvert. “Tapuscrits”, 1993. p. 66-67. Actes Sud-Pa-piers, 2003, p.48.

HENNING. Pouca coisa pelo momento. Não tiro os olhos da mesa perto da janela.LENA. É verdade que não para de olhar em nossa direção com olhos de merluza frita, mas pelo momento tudo desenrola ainda normalmente, e não lhe dou nenhuma importância particular. Me pergunto como vou chegar ao fim desta noite e, sem es-perar mais, começo a beber.HENNING. Eu não tenho nenhuma vontade especial para nada, hoje, so-bretudo porque é sábado e porque sei se não for hoje, então será ainda uma semana perdida.SILKE. Foi numa tarde chocha, sobre o terraço ensolarado, que eles se co-nheceram, os dois.

Não se trata mais aqui de narrativas ou de fragmentos de narrativas localizáveis e introduzidos como tais, mas de diálogos contaminados pela narrativa ou pela des-crição (vejam a didascália), de diálogos “mutantes”, hibridações complexas do diá-logo tradicional, do monólogo interno e da descrição que poderíamos aproximar ao/do comentário radiofônico.

Uma noite árabe, de Roland Schimmel-pfennig, representa um caso extremo dessa mutação do diálogo. A peça trabalha sobre a confusão entre aquilo que poderia con-tinuar como didascália e diálogo aparente, porque são os personagens que, ao descre-ver o que fazem, assumem — por meio de uma forma aparentemente muito “dialoga-da” (essencialmente réplicas breves) — as notações que, dentro de uma dramaturgia clássica, competiriam à descrição didascá-lica. Esta última proposição, logo que for-mulada, expõe sua incongruência, porque é a mobilidade (do espaço, do tempo, dos pontos de vista) assim adquirida que abre para a forma dramática (e não só o diálogo) novos territórios que foram outrora privi-légio do romance e até recentemente tam-bém o do cinema.

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RITORNELO E REPETIÇÃO-VARIAÇÃO: ARIANE MARTINEZ

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A repetição, � gura literária de múl-tiplas variantes (retomada de uma palavra, de uma frase, de uma ex-pressão, até mesmo de um frag-

mento textual inteiro; no início ou no � nal de uma réplica...), pode funcionar como uma baliza do diálogo dramático, um pon-to de referência para o leitor-espectador.

Às vezes, um personagem é caracteri-zado por repetições, como no exemplo da-quele homem que, para obter uma respos-ta de sua mulher, volta incessantemente à mesma expressão: “Isso é lindo”:

Ele. Isso é lindo, você não acha?Ela. (com hesitação). Sim...Ele. Você não acha isso lindo?3

Quando a repetição não é realizadapor um único locutor, ela permite diferenciar entre os outros e assegurar a constância de suas falas dentro do desdobramento das trocas; dá as coordenadas para a constru-ção do personagem. Quando, além disso, um enunciador cita uma palavra, uma ex-pressão ou uma construção gramatical já proferidas por outro, o “efeito-espelho” ou “efeito-eco”4 garante o encadeamento das réplicas e seu fechamento. Assim, o dealer e o cliente de Koltès (Na solidão dos campos

1 Publicado sob o título “Ritournelle e Répetition-Variation”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p.46-50. Tradução: Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Ariane Martinez é docente e pesquisadora da Universidade Stendhal em Grenoble. Seus interesses de pesquisa abordam a relação do teatro com as outras artes cênicas, a história da encenação e as dramaturgias do século XIX até o século XXI.

3 Nathalie Sarraute. “C’est beau”, in Théâtre.Paris: Gallimard, 1978, p. 43.

4 “Efeito-espelho (ou eco): efeito produzido por uma retomada — no interior de uma ré-plica — de um elemento textual passado, próximo ou distante, podendo o conteúdo semântico ser ou homogêneo ou heterogêneo.” In: Vinaver, Michel. Ecritures dra-matiques. Essais d’analyse de textes de théâtre. Actes Sudes/ Actes Sud Papiers, p. 903.

de algodão) tomam cuidado para retomar os termos ou metáforas de seu interlocutor, indicando por esse procedimento que res-pondem um ao outro, apesar da extensão monológica de seus discursos.

Entretanto, quando levada ao exagero, a “repetição-variação”5 não constitui mais um marco dramatúrgico, uma � gura que permite identi� car personagens e cons-truções retóricas. Ela se torna “processo de escrita que atribui à língua um ritmo, uma ressonância que excita os corpos”.6 Essa repetição-variação serial, que pode-ríamos denominar “ritornelo”, fazendo referência à terminologia de Gilles Deleu-ze e Félix Guattari retomada pelo poeta Christophe Fiat, � xao diálogo dramático dentro de uma enunciação no presente, a da palavra ouvidaem cena. A atenção do leitor-espectador se focaliza nas palavras pronunciadas, mais do que naquele que as pronuncia ou na situação dentro da qual são pronunciadas. A intrusão doritornelo no diálogo dramático possui a consequên-cia de desenvolver uma temporalidade de um � uxo contínuo (quando as palavras são repetidas sem cessar7), ou ao contrário uma temporalidade fragmentada (quando elas retornam em intervalos) — esses dois tem-pos têm em comum a rejeição de um ponto de inícioou de término da troca verbal. Em Maison desmorts, de Philippe Minyana, as frases “KI A TUÉ ANNE-CHRISTELLE” e “RE-CONS-TI-TU-TION” — pronun-

5 “Repetição-variação”: é a reiteração de um elemento textual anterior, mas com uma diferença que pode estar na forma ou no sentido, ou em ambos. Ibidem, p. 904.

6 Christophe Fiat. Le ritournelle, une anti-théorie. Paris: Léo Scheer, 2002, p.65.

7 Reprise en boucle remete à ideia de anel, � vela, e circularidade. Ver a nota sobre bouclage no texto O desencaixe, de Joseph Danan, incluído neste dossiê.

Ritornelo e repetição-variação1

Ariane Martinez2

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RITORNELO E REPETIÇÃO-VARIAÇÃO: ARIANE MARTINEZ

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ciadas alternadamente por “a voz”, pelo manequim,ou pela mulher policial — vêm pontuar e interromper, ao longo de todo o prólogo, os depoimentos contraditórios dos acusados. Fazem perceber os impasses e as hesitações da investigação policial. Por meio do ritornelo, a progressão dramática não acontece mais no plano da ação, mas no da enunciação: reformulações e novos agenciamentos enfatizam a polissemia dos discursos, e fazem da língua uma matéria a ser compartilhada. Por passar de boca em boca, a palavra repetida assume uma dimensão coral. Como a presença das indi-cações dêicticas de personagem (‘eu’ e ‘tu’) é malsucedida, o efeito produzido é uma desistência paradoxal do falar: a instância elocutória se esvai na qualidade de entida-de singular. Certos diálogos de Maeterlin-ck, Stein ou Fosse também se assemelham a esta conversação relatada por Maurice Blanchot:

[...] um dizia, por meio de uma frase simples e profunda, alguma verdade que lhe fosse cara ao coração; outro escutava silenciosamente, pois quan-do a reflexão tinha feito seu trabalho, exprimia por sua vez a mesma pro-posição, às vezes quase nos mesmos termos, embora com algumas dife-renças (seja com mais rigor, seja com mais soltura ou mais estranhamento); esse desdobramento da mesma afir-mação constituía o mais forte dos diálogos. Lá, nada se desenvolvera, nada se opusera, nada se modificara; e claramente o primeiro interlocutor aprendia muito e até infinitamente com sua própria palavra repetida, não por causa do acordo e da adesão, mas, ao contrário, pela diferença infinita; pois aquilo que dissera como “eu” em primeira pessoa era como se o tivesse expresso novamente como “outro”, e assim tivesse levado para dentro do próprio desconhecido do pensamen-to, aí onde este, sem alterar-se, se transformaria em pensamento abso-lutamente outro. — Pensamento trocado— Ou melhor, pensamento que se es-quiva da troca, quero dizer da tran-

sação e do acordo. [...] Tendo ouvido os homens, eu dizia a mim mesmo que eles não têm razão para temer a repetição, desde que não busquem nela convencer por meio da persis-tência, mas busquem a prova de que um pensamento, ainda que proferido de novo, não se repete, ou que a re-petição só faz entrar em sua diferença essencial aquilo que se diz.8

Se o ritornelo é frequente dentro do diálogo teatral moderno, não é por tradu-zir o remoer solipsista do personagem ou a incomunicabilidade entre os seres, mas por pressupor ao mesmo tempo a oralida-de e o endereçamento. Como a sintaxe oral é livre de pontuação, a redundância nela constitui um elemento de ligação indispen-sável. Vale apontar que, além disso, nunca há uma repetição exatamente igual à oral, na medida em que a entonação sempre traz consigo uma variação. O mesmo acontece no interior do texto dramático. Quando o ator pronuncia um grupo de palavras idên-ticas, sempre pode modular sua dicção, para que seja ouvida uma diferença. Ora, essa diferença intrínseca à repetição oral é indissociável do endereçamento. Como mostram os linguistas da enunciação, a reiteração e a reformulação de nossas pró-prias palavras (autocorreções correntes nos textos de Lagarce), até mesmo a repetição de palavras do outro (dentro do fenôme-no da ecolalia), visam a manter o contato com o interlocutor, a antecipar ou a levar em consideração suas reações — em suma, a buscar por um “vocabulário partilhado”.9 Lê-se, portanto, no ritornelo, uma alterida-de do dizer, um endereçamento implícito, um diálogo embrionário.

8 Maurice Blanchot. L’Entretien in� ni. Paris: Gallimard, 1969, p. 501.

9 Jacqueline Authier-Revuz. “Deux mots pour une chose: trajets de non-coïncidence”, in: Répétition, altération, reformulation. Actes du colloque international de Besançon, Juin 1998, vol. coordenado por P. Anderson, A. Chauvin-Vileno, M. Madi-ni. Annales littéraires de l’Université de Besançon. Presses universitaires de Franche-Comté, 2000, p. 44.

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JOGOS SONOROS E RÍTMICOS: GENEVIÈVE JOLLY | MARIE-CHRISTINE LESAGE

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Entre o número de autores contem-porâneos que trabalham a lingua-gem como material sonoro e privi-legiam a ‘corporeidade’ da escrita

sobre o conteúdo aparente das réplicas, podemos citar Gertrude Stein, Valère No-varina, Daniel Lemahieu, Eugène Durif, Werner Schwab, Didier-Georges Gabily, Rodrigo García, Jon Fosse ou Daniel Da-nis. Como tais jogos sonoros e rítmicos incidem sobre uma concepção do diálo-go? A sua incidência localiza a palavra no corpo e faz da enunciação um gesto que direciona o corpo todo para o públi-co. A � m de que se tornem materiais, os componentes sonoros e rítmicos da lin-guagem necessitam da voz do ator, mas preexistem à proferição, no próprio tex-to. Daí surge uma dupla teatralidade: a de um texto transformado pela voz e pelo corpo do ator; a de um texto que compor-ta ecos sonoros e um ritmo, que criam sentido. Analisar a prosódia de um texto teatral, portanto, não implica em restrin-gir sua abrangência unicamente à leitura, mas implica em lê-lo como texto para ser dito, dentro de sua meta de esboçar ou de preparar sua vocalização cênica [mise en voix].

Importa, então, investigar os efeitos produzidos por esses jogos sonoros e rít-micos na forma do diálogo, que são ca-

1 Publicado sob o título “Jeux phoniques e rythmiques”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p. 51-55. Tradução: Stephan Baumgärtel e José Ronaldo Faleiro.

2 Geneviève Jolly é pesquisadora e docente da Universidade Strasbourg. Seus focos de pesquisa são a teoria teatral e as dramaturgias textuais do século XX e XXI.

3 Marie-Christine Lesage é professora e pesquisadora da Universidade Quebéc em Mon-treal. Seus estudos são dirigidos para as dramaturgias textuais contemporâneas, a história da encenação e as práticas cênicas na interface entre teatro e artes visuais.

racterísticos de certas obras contemporâ-neas. Imediatamente, observamos que, se muitas delas preservam a forma externa do diálogo, ocorre outra partilha de vo-zes, completamente diferente da que se fundamenta numa lógica de trocas cons-tantes. Frequentemente, encontramos um tipo de abstração do personagem (em Stein, Novarina, Garcia ou Kane, por exemplo) que, segundo as peças, tende a tornar-se uma � gura abstrata ou uma voz pura sem corpo, designada por uma letra ou um simples travessão anônimo. Essas palavras são tecidas ou encaixadas umas nas outras, de tal modo que criam um espaço sonoro, rítmico e poético que sobressai em meio à individualidade de cada voz envolvida no jogo. De fato, uma sequência de réplicas pode ser pontuada no � nal por uma vírgula, o que as faz par-ticipar de um � uxo contínuo. Podemos, então, falar de uma voz poética da obra, a do sujeito da escrita.

Gertrude Stein é certamente a autora que antecipou com a maior força e origi-nalidade a forma que se aproxima do po-ema dramático — no sentido muito con-temporâneo, do termo. Suas ideias sobre o teatro, notadamente a noção da “peça-paisagem”, são constitutivas e permitem avaliar certos diálogos contemporâne-os, a partir da ideia de que a frase que compõe uma réplica é esvaziada de sua função semântica de transportar um sen-tido e uma carga emotiva, enquanto a or-ganização formal das réplicas entre elas se torna o lugar do sensível. De fato, as frases e as palavras são utilizadas como objetos, como materiais sonoros inscritos

Jogos sonoros e rítmicos1

Geneviève Jolly2

Marie-Christine Lesage3

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JOGOS SONOROS E RÍTMICOS: GENEVIÈVE JOLLY | MARIE-CHRISTINE LESAGE

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em arquiteturas rítmicas.De modo um pouco diferente, Jon

Fosse diz não escrever um conteúdo, mas somente uma forma; fala da “voz da es-crita” para designar uma voz que fala ao silenciar (uma voz que, apesar de tudo, se faz ouvir, sem passar pelas palavras). Uma voz que não é feita para ser apre-endida semanticamente, pois sua nature-za é remeter ao inapreensível. Essa voz sem fundo é uma forma, um ritmo, o que evidencia a maior parte de suas pe-ças, mas que se aplica também aos tex-tos de Schimmelpfennig, de Kane ou de Lagarce. O incompreensível do diálogo é aquilo que escapa da captura hermenêu-tica ao mesmo tempo em que participa da signi� cância, do sentido como Henri Meschonnic o compreende. Não se trata, portanto, de jogos sonorose rítmicos in-signi� cantes ou puramente formais, mas de criações que interrogam nossa relação com o sentido dentro do diálogo.

Os ecos sonoros produzem, de fato, um fenômeno de atração semântica entre as palavras, sejam essas mais ou menos próximas em uma frase, e pertençam ou não à mesma frase. Ligados pela recor-rência de fonemas, os enunciados for-mam uma sucessão de “blocos” sonoros, tornam-se complementares uns aos ou-tros, e produzem sentido, independente-mente de seu conteúdo lógico ou concei-tual. Como o fenômeno é observado entre as réplicas de diferentes personagens e entre réplicas e didascálias, devemos ad-mitir que o texto teatral contém uma úni-ca enunciação verbal. Além do mais, tal abordagem da prosódia deve ser diferen-ciada de uma tradição que desejaria que a linguagem fosse ‘musical’, ou que os ecos sonoros contivessem uma ‘harmonia imitativa’. Como não é um fenômeno pu-ramente acústico (como o som), o fonema inscreve um signi� cante e um signi� ca-do indissociáveis, e como tal participa do processo signi� cante do discurso, mesmo que a prosódia não possa ser analisada isoladamente dos outros componentes da linguagem, como Meschonnic a de� -

niu em sua teoria do ritmo. A signi� cância do texto é estreita-

mente ligada aos fenômenos rítmicos de acentuação que são os do discurso, e in-venta uma enunciação especí� ca (no ver-so tanto quanto na prosa). A acentuação preside ao ritmo; é ela que faz a signi� ca-ção de um texto, por exigir que se leve em consideração aquilo que realiza, em dado momento, a linguagem: as sequências de acentuação diferem necessariamente conforme cada discurso, pois a acentua-ção do francês é determinada pela orga-nização do discurso; não se fundamenta na palavra, como no inglês, mas na síla-ba � nal de um grupo sintático, seja qual for a natureza gramatical de determinada palavra. A tal acento de grupo se juntam o acento prosódico (repetição de fonemas consonantais), o acento de insistência ou de ataque de frase, e o acento tipográ� -co, que podem ser marcados pela alínea, pelo espaço em branco ou por um cará-ter tipográ� co especí� co (itálicos ou ca-pitais). A multiplicação dos acentos e a presença de contra-acentos (sequência de dois acentos) inscrevem a oralidade den-tro da linguagem.

Tanto no diálogo quanto nas didas-cálias, considerar os fenômenos de acen-tuação realça uma signi� cação que não coincide necessariamente com a lógica gramatical dos enunciados ou coma or-ganização retórica do discurso (o sentido aparente), simplesmente porque a lin-guagem é viva e porque não se descreve somente segundo as regras gramaticais. Isso é particularmente perceptível nas escritas que recorrem à utilização de alí-neas tanto para as réplicas quanto para as didascálias (Fosse ou Kane), por exem-plo. Mas, no caso da didascália, a ques-tão que deve ser formulada é, evidente-mente, a transformação cênica do ritmo da didascália, a não ser que se pense em restituí-la.

Além dessa física do diálogo, que joga com assonâncias e dissonâncias na orquestração das trocas, é interessante constatar que às vezes se manifesta outra

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JOGOS SONOROS E RÍTMICOS: GENEVIÈVE JOLLY | MARIE-CHRISTINE LESAGE

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modalidade da voz poética. Estão sur-gindo, dentro de certas peças, pequenos poemas inseridos no seio do diálogo; po-emas que ressoam como um todo autôno-mo, embora constituam a característica de várias vozes. O início de Variations sur la mort, de Fosse, é um bom exemplo dis-so: a mistura de réplicas forma um poe-ma que condensa na abertura todo o mo-vimento do texto. No caso de Kane, em suas duas últimas obras, esses poemas a� oram principalmente na superfície de uma fala única mais ou menos anônima, e assumem a forma de blocos sonoros acompanhados de acentos tipográ� cos: alíneas e brancos tipográ� cos que deses-tabilizam a forma alternada do diálogo ao fazer a ordem das réplicas explodir sobre a página. Assim, o poema é menos um jogo sonoro do que abertura para o ritmo de outra voz, a qual é visível e au-dível ao mesmo tempo, à maneira de um gesto lançado como um convite a outro espaço de diálogo.

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RETÓRICA E DIALÉTICA DO DIÁLOGO: GILLES DECLERCQ

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Da antiguidade até o Iluminismo, predomina no teatro a presença de estruturas retóricas: inicial-mente, porque as categorias ora-

tórias, em geral, impregnam a literatura; logo depois, porque a história teatral oci-dental, ao emancipar-se do gênero lírico, institui a confrontação como o modo dia-lógico mais corrente dentro da fala dra-mática; por último, porque a poética aris-totélica, ao subordinar o ser e o fazer dos personagens ao encadeamento causal do drama, privilegia a função persuasiva e performativa da fala. Por isso, entre ou-tros motivos, a Poética, em palavra e es-pírito (1956a), remete de forma lapidar à Retórica.

Contrariamente ao modo dramático do diálogo e� ciente, o drama moderno se de� ne por uma crise tripla: a do dra-ma, por abandonar o princípio da ação causal; a do personagem, por romper a ligação entre discurso e enunciador; a da eloquência, obstáculo ao emergir da con-versação familiar e do solilóquio íntimo. A nova poética desconecta radicalmente o diálogo da retórica — em função de du-plo questionamento.

O primeiro, ideológico e neorromâ-nico, condena toda codi� cação oratória por sua arti� cialidade. Trata-se de uma desquali� cação que se alinha ao enfra-quecimento estrutural do personagem, doravante incapaz de inscrever a comple-

1 Publicado sob o título “Rhétorique e dialectique du dialogue”, in: Ryngaert, Jean-Pierre et al. Nouveaux Territoires du Dialogue. Actes Sud Papiers/CNSAD 2005, p. 56-61. Tradução: Stephan Baumgärtel.

2 Gilles Declercq é professor de Estudos Teatrais da Universidade Paris 3 – Nova Sor-bonne, membro integrante do grupo de pesquisa “Poética do drama moderno e con-temporâneo”. Seu interesses de pesquisa são a análise do discurso teatral e a teoria da argumentação; história da retórica; formas e dilemas do trágico da antiguidade até os tempos de hoje.

xidade do mundo dentro de um discurso coerente e racional: fragmentada, a fala teatral, como a voz narrativa, se encontra dissociada do logos e das formas que lhe estavam associadas esteticamente.

O segundo questionamento, metodo-lógico, impõe diferenciar entre a ativida-de argumentativa dialógica e a retórica. Stricto sensu, esta última trata do discurso persuasivo, modo monológico da palavra endereçada unilateralmente. A troca ver-bal tem relação, portanto, com a dialéti-ca; esta, regida pelo princípio de alétheia3, das contradições argumentativas (Tópicos aristotélicos), oferece à fala teatral seu paradigma � losó� co por meio da disputa. Esse esquema dialético, cooperativo ou polêmico, abre metodologicamente ca-minho para a análise das trocas verbais: linguística pragmática (Moeschler), so-ciolinguística (Goffman), nova dialética (Eemeren&Grootendorst).

A substituição da dialética pela re-tórica convida, portanto, a uma revisão semântica da análise do diálogo. Se a im-portância da eloquência se encontra des-quali� cada, o acento se desloca para a ar-gumentação. A análise argumentativa se mostra pertinente, apesar da dissociação entre fala e ação que o drama moderno realiza. Tal desdramatização contribui-ria, sobretudo, para o espectador focali-zar sua atenção na práxis argumentativa que atravessa a palavra. A respeito disso, a abertura polifônica do texto La Demande d’emploi (Vinaver, 1972) oferece o exem-plo de uma serie de trocas conversacio-

3 Princípio de alétheia: o que concerne à verdade e sua busca.

Retórica e dialética do diálogo1

Gilles Declercq2

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nais4 distendidas, cujo sentido pode ser reconstituído somente por meio de um metadiálogo cujo encarregado é o espec-tador. A desconstrução do diálogo im-plica como pré-requisito interpretativo o conhecimento por parte do público de um tópico social e de uma doxa verbal; ela traz consigo uma retórica extracênica que não é mais uma poética do discurso, mas uma hermenêutica da fala teatral, ligan-do dramaturgo e público. Também con-vém falar de um deslocamento e de uma alteração funcional da retórica, em vez de sua eliminação.

São justamente as condições de pos-sibilidade para essa hermenêutica que devolvem aos esquemas argumentativos sua pertinência. Esperando Godot demons-tra isso, pela onipresença da conversação e pela promoção cênica da linguagem, que provoca um enfoque metalinguísti-co nos códigos que regem as interações, tal como a sequência em que Pozzo in-dica a Estragon o que convém dizer para que consinta em sentar-se. Em contra-ponto, o discurso de Lucky apresenta, de forma grotesca, um esquema discursivo que procede do silogismo dialético: es-trutura dedutiva constituída de uma pre-missa (“Dada a existência... de um deus pessoal... que nos ama ...”), que leva à conclusão — embora permanentemente interrompida (“� ca estabelecido... que o homem... está minguando...”. Princípio de legibilidade do discurso, o esquema silogístico — que se relaciona com a ló-gica ordinária das línguas5 —, é suporte para uma ironia que distancia e ilumina o tópico metafísico que surge do texto.

A leitura de textos de Vinaver nos convencerá da necessidade de conhecer os processos retóricos e os esquemas ar-gumentativos. Assim, L’Emission de télé-vision insere um enclave que apresenta [met en abyme] a manipulação da verdade, sacri� cada em favor do lucro do espetá-culo televisivo: os personagens-candida-

4 O termo remete a um ramo importante da linguística pragmática, dedicada à análise da conversação comum (análise conversacional ou “conversacionalismo”).

5 Gilles Declerq. L’Art d’argumenter. Paris: Universitaires, 1992.

tos enfeitam seu testemunho com � ores retóricas; o juiz concebe seus interroga-tórios como um torneio oratório e midi-ático. Ironizada, a retórica intracênica se converte em hermenêutica extracênica da sofística midiática: dizer que L’Emission é uma peça sobre a impostura deve ser entendido como uma caracterização me-tódica e estrutural; a peça é uma lição, dispositivo dialético que ilumina não a ilusão, mas sua construção e a manipu-lação das pessoas, por ela requerida. Em conformidade com a de� nição aristotéli-ca, o conhecimento da retórica se impõe aqui exatamente por ser necessário evitá-lo (Retórica, I, 1, 1354a).

À retórica concebida como consciên-cia e práxis crítica, Portrait d’une femme adiciona uma lição complementar: por um lado sobre a persistência de esque-mas argumentativos, e por outro sobre a função estruturante destes últimos. A peça possui como tema o processo de Sophie, assassina de seu amante. A mo-dernidade de escrita se a� rma pela es-trutura simultânea do palco e pelo en-trelaçamento de diálogos, que misturam réplicas vindas de interlocuções diferen-tes. A incerteza ontológica e relativa à alétheia provém estética e retoricamente da multiplicação das a� rmações contra-ditórias sobre a acusada. Tal suspensão de sentido se torna possível duplamente: na própria cena, pela contradição das pa-lavras (defesa e acusação); e, para além da cena, por um sistema de argumenta-ção muito mais amplo, macroestrutural. De fato, a peça encontra o � o condutor no gênero judicial, que apresenta os fatos por meio da narração, depois da exposi-ção da causa. Orquestrados pelo juiz, os diálogos são o lugar de desconstrução da univocidade do sentido e o da ampli� ca-ção recíproca de uma estrutura retórica que — substituindo uma dramaticidade fragmentada— assegura, pela partilha das vozes6, a difração do retrato da acu-sada. Assim, o gênero judicial se depara

6 No original, Le partage des voix – termo que ressoa em vários ensaios deste dossiê e é empregado por Jean-Pierre Sarrazac como título de seu ensaio. [N.d.T.]

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com uma função renovada e até mesmo invertida, porque contesta a sentença que supostamente ele irá proferir.

Como conclusão, convém distinguir a atividade retórica da produção de for-mas de eloquência, e aproximar o diálogo teatral do paradigma dialético que deter-mina a atividade argumentativa que o subtende. Paralelamente, a desdrama-tização do discurso falado ilumina uma linguagem libertada de sua racionalida-de, mas não de seu esquema argumenta-tivo; focar o espectador no jogo dialógico desloca a função retórica. Ao abandonar a retórica intracênica (que está na base da ação e da verossimilhança da drama-turgia clássica), o drama moderno se ca-racteriza pelo primado de uma retórica extracênica fundamentada no trabalho hermenêutico do espectador. Tal retórica permite denunciar a força so� sta da per-suasão social, como também — jogando com a argumentação contraditória —, questiona as formas apodíticas do discur-so falado. dentro da mais pura tradição dialética.

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Ubu Rei (2012). FOTO: Renato Grecchi

Artigos

O SALTO DOS ÓRFÃOS: O PÓS-MODERNISMO SEM MODERNISMO DA DRAMATURGIA PERUANA ATUAL 59

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Resumo

A dramaturgia peruana moderna se con� gurou como um movimento inexistente, principalmente pela falta de um “pai”

que a introduzisse na modernidade, que a encaminhasse numa continuidade da tradição, que desse aos novos dramaturgos

a sensação de possibilidade. No entanto, é precisamente essa “orfandade” que há feito com que a dramaturgia peruana pós-

moderna desse um salto quantitativo e qualitativo não visto durante todo o século XX. A falta do “pai” nos tempos em que os

patrocínios se desmantelam ou já não interessam, pode ser um impulso antes que um obstáculo.

Palavras-chave: dramaturgia latino-americana; dramaturgia peruana; modernidade/pós-modernidade

Abstract

Modern Peruvian dramaturgy can be seen as almost non-existent, most of all because of the lack of a father � gure that could

have introduced this dramaturgy into modernity and established certain continuity with tradition giving the new dramaturgs a

sense of possibility. However, it is precisely this condition of being orfan that has allowed Peruvian postmodern dramaturgy to make a leap in quantity and quality unexperienced during the twentieth

century. The lack of a father � gure can be a stimulus more than an obstacle in times where all kinds of patronage are being

dismantled or remain of little interest.

Keywords: Latin-american dramaturgy; Peruvian dramaturgy; Modernity/Postmodernity

1 Estudou literatura na Pontifícia Universidade Católica do Peru e fez pós-graduação em Teatro e Literatura Latino-americana na Universida-de de Austin no Texas. Ganhou prêmios como dramaturgo e entre suas obras se destaca História de um Gol Peruano.

O Salto dos Órfãos: o pós-modernismo sem modernismo da dramaturgia peruana atual

Rogério Machado Rosa1

Tradução: Juliano Borba

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Uma Ignorância Documentada

Nos primeiros anos da década de no-venta, o Centro de Documentação Teatral do Ministério da Cultura da Espanha, a So-ciedade Estatal Quinto Centenário e o Fun-do de Cultura Econômica (� lial Espanha) empreenderam a publicação de antologias de dramaturgia contemporânea de todos os países ibero-americanos. O projeto se jus-ti� cava plenamente devido à riqueza que havia mostrado o que podemos chamar de momento modernista da dramaturgia latino-americana, cujo desenvolvimento foi desde a década de cinquenta até a dos oitenta do século XX. Estas antologias re-colhiam obras escritas desde 1950 e foram reunidas cerva de 15 obras por volume. Um volume que correspondia a casa país ibero-americano... ou quase.

No plano de publicação, havia dois volumes com obras de não um, mas sim de vários países: o primeiro destes com obras de Bolívia, Equador, Paraguai, e Peru; o segundo, obras da Costa Rica, Guatemala, Honduras, El Salvador, Nica-rágua, Panamá, e Rep. Dominicana. To-dos os demais países tinham seu próprio volume. Não se pode deixar de pensar que os países que compartilhavam volu-mes eram uma sorte de “resto”, os que não mereciam um volume próprio: países quais não se podia tirar catorze ou quin-ze obras dramáticas de qualidades nos últimos quarenta e tantos anos.

O caso do Peru é particular, pois é um país grande em território e população en-tre estes últimos. Uruguai, país com uma população de três milhões e meio de ha-bitantes, tinha seus quinze dramaturgos “antologados”, cada qual com sua corres-pondente obra e comentário introdutório; Porto Rico, com pouco mais de quatro mi-lhões de habitantes, país nem sequer inde-pendente, tinha seu próprio volume com obras inscritas com justiça no momento modernista. Porém o Peru, com seus quase trinta milhões estava de certa maneira de lado. E a sensação de haver sido ignorado se incrementa pelo fato de que os dois vo-lumes que compartilhavam os países nun-

ca foram publicados. Era parte do plano, porém, por alguma razão, decidiu-se sus-pender o projeto antes da saída à luz destes dois últimos volumes.

Para quem crê que a marginalização do Peru na antologia mencionada é um caso isolado que responde à ignorância de nos-sa dramaturgia por parte dos editores es-trangeiros, devo mencionar o caso de outra antologia, dessa vez peruana.

A partir de 2001, a Pontifícia Univer-sidade Católica do Peru assumiu a tarefa de publicar diversos volumes de obras dra-máticas peruanas. O projeto contemplava a publicação por etapas históricas: Teatro quéchua, Teatro colonial: séculos XVI-XVII, Teatro colonial: Século XIII, Teatro republicano: Século XIX, Teatro republi-cano: Século XX-1 e Teatro republicano: Século XX-2. O penúltimo volume aqui mencionado termina com a obra Atusparia de Julio Ramón Ribeyro de 1981. O seguin-te volume, pois, deveria incluir aos auto-res mais jovens que Julio Ramón Ribeyro, que nasceu em 1929; é dizer, para aqueles dramaturgos que podiam ser selecionados na antologia do Centro de Documentação Teatral e companhia. Porém, precisamen-te no momento em que esse tomo iria ser editado, se decidiu suspender ou cancelar o projeto, de maneira que esse volume Sé-culo XX-2 nunca saiu.

Uma revisão dos autores que seriam in-cluídos no último volume da antologia da Universidade Católica pode nos dar uma chave do miolo do problema: a ausência de um momento modernista na dramaturgia peruana. E esta falta tem como indicar a e causa a ausência de um “pai” em dita dra-maturgia.

Explicarei o conceito de “pai” mais adiante. Por agora, é necessário dizer que os autores do volume frustrado da anto-logia peruana não eram, em sua maioria, dramaturgos dedicados principalmente ao ofício da dramaturgia; isto é, a maioria dos autores que haviam aparecido eram escri-tores dedicados primariamente a outros gêneros: poesia e narrativa, gêneros, que como veremos mais adiante, no Peru sim têm um “pai” como carta de apresentação.

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E o mesmo havia ocorrido com o volume prévio; os autores “antologados” em Tea-tro republicano: Século XX-1 são, em sua maioria, poetas e narradores que também escreveram obras dramáticas. Somente nos casos de Leonidas Yerovi, Juan Ríos, Enri-que Solari Swayne, Sebastián Salazar Bon-dy y Hernando Cortés, se pode dizer (ainda que com muitas reservas em alguns casos) que se trata de dramaturgos dedicados principalmente ao o� cio da dramaturgia. Os demais são Enrique Lopez Albújar (nar-rador), Abraham Valdelomar (narrador e poeta), Ventura García Calderón (narra-dor e ensaísta), Cesar Vallejo (poeta) Jorge Eduardo Eielson (poeta e artista plástico) e Julio Ramón Ribeyro (narrador) (Silva-Santisteban 2002).

Há (ou havia até pouco tempo) uma enorme falta de con� ança no que podem fazer os dramaturgos peruanos contem-porâneos; re� ro-me aos escritores cujo gênero mais abordado é o teatro, não aos que “também” escrevem para o teatro. Como veremos com outros exemplos, salvo exceções, as publicações, os con-cursos, os artigos e livros de pesquisa, os diretores de teatro, as alusões da cultura popular, tudo parece revelar uma igno-rância (e uso essa palavra tanto no sen-tido de “falta de conhecimento” quanto no de “pouca importância dada”) sobre o trabalho realizado pelos dramaturgos peruanos contemporâneos.

É certo que há sido uma queixa fre-quente dos dramaturgos latino-america-nos, que os ignorem em comparação com outros gêneros. Osvaldo Dragún falava lá por 1979 que nenhuma universidade ar-gentina tinha curso de teatro argentino. “Colômbia, repetiu-se demasiado, tem sido terra de poetas e narradores; nunca, se insiste, há sido pródiga de dramaturgos.” (Gonzales Cajao 1992, p.13) Porém é tam-bém certo que esta ignorância, no caso pe-ruano, é mais notória.

E, novamente, para quem pense que as antologias peruana e internacional fo-ram casos isolados de descuidos, ai estão as publicações acadêmicas (especialmente as aparecidas fora do Peru) para devolver-

nos a uma realidade inegável.Um livro pioneiro em estudos sobre

dramaturgia latino-americana foi “Drama-tistis in Revolt” publicado em 1976. Trata-se de uma serie de ensaios de diversos espe-cialistas na qual se dedica um ensaio para cada autor. A tese do conjunto é que a “re-volta”, isto é, o caráter político contestató-rio, é um tema uni� cador dos dramaturgos contemporâneos na America Latina. São estudados quatro argentinos, três brasilei-ros, três chilenos, dois cubanos, dois me-xicanos, dois porto-riquenhos. Na mesma linha temática que “Dramatists in revolt”, ainda que mais radical em sua proposta está “Violent Acts” (1991) de Severino Joao Albuquerque, cuja tese é que a “violência” é o elemento constante na dramaturgia úl-tima deste continente. Nenhum peruano está mencionado nem sequer como refe-rência distante. A lista metacrítica poderia seguir com os estudos de Daniel Zalacaín (1985) e Gerardo Luzuriaga (1990), com a compilação de ensaios de Ileana Azor (1995), com a antologia de Howard Rov-ner (1995), com o comparativamente ín� -mo número de artigos dedicados ao teatro (nem dizer da dramaturgia) peruano em revistas especializadas, entre outros, po-rém creio que, pelo momento (porque ha-verá outros exemplos) o caso está feito: nos estudos da dramaturgia latino-americana em geral, o número de peruanos comenta-dos não é zero, mas tende a...

Quero destacar, não obstante, o livro “Theater in Lateinamerika. Ein Handbuch” (1991). Também aqui encontramos uma coleção de ensaios nos quais se faz um re-sumo da atividade teatral de cada país lati-no-americano, também aproximadamente desde os anos 50.

Claro, Peru tem seu ensaio corres-pondente em que Barbara Panse começa sinalando que, nas entrevistas à gente de teatro peruana realizada entre os anos cin-quenta e setenta, uma pergunta parecia ser constante: Existe tal coisa como um “teatro peruano”? Continua informando que as respostas, longe de serem otimistas, indi-cavam que, a duras penas, até a data, um teatro nacional peruano não era mais que

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uma � cção (Panse, 1991, p. 1977). No � nal do artigo, a grande conclusão que se de-preende da pergunta inicial formulada por Panse é que, se bem que há muita ativida-de teatral dispersa, a noção de um teatro nacional peruano é ainda distante, ainda quando tudo parece indicar que, desde a década de oitenta há uma transformação em direção a sua consolidação. Tenha-se presente que o estudo de Panse busca dar conta da totalidade da atividade teatral pe-ruana das décadas de cinquenta a oitenta (grupos, montagens, entidades, estatais, teatro universitário, teatro camponês, etc), não somente da dramaturgia. A dramatur-gia sim é tomada em conta no artigo, porém somente como uma forma de curiosidade, quase como um comentário parentético ou nota de margem. São mencionados Sebas-tián Salazar Bondy, Enrique Solari Swayne, Sara Joffré, Gregor DÍaz, Hernando Cor-tés, Juan Rivera Saavedra, Victor Zavala e Alonso Alegría, fora os onipresentes César Vallejo e Mario Vargas Llosa.

Aqui creio necessário indicar que a fal-ta de “pai” a que me re� ro e seguirei re-ferindo é respeito à dramaturgia de autor, não do teatro em geral no Peru; dada a ínti-ma relação entre uma e outra, o teatro feito no Peru é muito menos ignorado do que a sua dramaturgia. Somente como exemplo da diversidade de aproximações, vejam Hopkins 1986, Salazar Del Alcázar 1990, Castro Uriostre 1999 e 2002, Jofree 2001, Rubio 2001, Balta 2001 e Peirano 2007. E é, talvez, em parte graças a estes fortes esfor-ços, que as coisas começaram a se transfor-mar na dramaturgia a partir dos noventa. Os dramaturgos peruanos são cada vez mais; o público que assiste teatro cresceu; a ignorância (em todas as suas acepções) é cada vez menos � agrante.

O grito de Sara Joffré (dramaturga, pesquisadora e promotora peruana) lá em 1978 é revelador: “De repente tomamos consciência de que havia dramaturgos pe-ruanos: por ali se davam ao luxo de dizer: não existe o teatro peruano / por ali a� rmavam: o único autor que há sou eu” (Joffré, 1978, p.5; itálico no original).

Os “pais” da literatura peruana moderna: Vallejo e Vargas Llosa

Se for possível argumentar que a ig-norância sobre a dramaturgia peruana se deve à falta de um “pai”, com justiça se-ria possível perguntar à que se deveu, di-gamos, a falta de tal “pai”; se for possível argumentar que se deveu, digamos, à uma ausência no Peru de uma classe media ilus-trada que demandara e consumira (e pro-duzira) a dramaturgia de autor ou, mais prosaicamente, à carência do apoio do Es-tado. Logo, a que se deveu esta carência de apoio, esta ausência de uma burguesia ilustrada? E assim até o Big Bang... A falta de “pai” é consequência de muitas variá-veis, porém, me interessa ressaltar como essa falta é indicadora e causa (não única, porém sim fundamental) da ausência de um marcado momento modernista e da ig-norância sobre a dramaturgia peruana de autor descrita no apartado anterior.

O “pai” que venho me referindo não é tal coisa como um mentor ou um mestre; tampouco é, necessariamente, um autor cuja obra há in� uenciado, por sua temática ou estilo, na temática ou no estilo das obras de gerações de autores que o sucederam.

Com o conceito de “pai” que aqui utili-zo, me re� ro à � gura que, em determinada comunidade (por exemplo, um país) e para determinada atividade (digamos, a drama-turgia) cumpriu e vem cumprindo uma trí-plice função. Primeiro, o “pai”, através de suas obras na mencionada atividade e o re-conhecimento universal à estas, introduziu para essa comunidade a modernidade. Se-gundo, este “pai” marca uma continuidade na tradição de sua atividade em dita comu-nidade; é parte de uma tradição anterior e precipita uma nova tradição. Seja para imi-tá-lo fragrantemente, seja para renová-lo ou adaptá-lo às novas circunstâncias, seja para rechaçá-lo com fúria (incluso para ten-tar assassiná-lo), os “� lhos” têm nessa � gu-ra um referente iniludível, sempre presen-te, de sua tradição. Por último, devido ao anterior, esse “pai” criou o que se poderia chamar de uma sensação de possibilidade; isto é, a impressão, seja verdadeira ou não,

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de que os membros dessa comunidade têm o potencial de aceder também à moderni-dade e ao reconhecimento que tem esse “pai”; e esta impressão (sensação de pos-sibilidade) se manifesta nos níveis exterior (entre os membros de outras comunidades, outros países), interior (entre os membros de uma mesma comunidade) e íntimo (na consciência ou inconsciência das mesmas pessoas que realizam dita atividade – os dramaturgos). Introdução à modernidade, continuidade de uma tradição, sensação de possibilidade, cada uma inseparável da outra, são as três funções que determinam a � gura de um “pai”.

Talvez essa de� nição se entenda mais com exemplos concretos. A dramaturgia peruana contemporânea nunca teve um “pai”; porém outros gêneros literários sim o tiveram. As � guras de Cesar Vallejo e Vargas Llosa sim cumprem este papel na poesia e na narrativa peruana, respectiva-mente. Não me re� ro às pessoas reais, ao poeta que morreu em Paris e ao narrador que vive em Londres; re� ro-me à repre-sentação mental (ou simbólica) de Vallejo e Vargas Llosa em relação ás funções “pa-ternas” anteriormente descritas. Ambas as � guras estão sempre presentes na comu-nidade peruana em relação às atividades de poeta e narrador. São iniludíveis. As edições e traduções de suas obras, os es-tudos, cursos, simpósios a nível nacional e internacional, os nomes de universidades, institutos, distritos, ruas e times de futebol (este último no caso de Vellejo; talvez, o mesmo ocorra com Vargas Llosa depois de sua morte), a candidatura para presidência da República e ao Prêmio Nobel (no caso de Vargas Llosa), as leituras favoritas das candidatas nos concursos de beleza, as fra-ses que se tornaram célebres, etc., mostram uma sorte de onipresença da � gura destes escritores tanto nos campi quanto nas ruas.

O anterior não signi� ca um juízo de valor das obras desses escritores, espe-cialmente, em comparação com outros es-critores peruanos. Não signi� ca, necessa-riamente, que Vallejo seja o melhor poeta peruano do século XX nem que, necessaria-mente Vargas Llosa seja o melhor entre os

narradores peruanos contemporâneos. Ha-verá quem argumente, por exemplo, que José María Eguren, Martín Adán ou Jorge Eduardo Eielson são melhores ou mais in� uentes ou mais modernos que Vallejo. Haverá quem diga o mesmo de Jose Ma-ría Arguedas ou Alfredo Bryce Echenique (“mais nosso”, “mais terno”) respeito à Vargas Llosa. Tudo isso pode ser certo. No entanto, nas funções de “pai” que trato de descrever (modernidade, tradição, possi-bilidade), são Vallejo e Vargas Llosa quem cumprem um papel mais destacado, para não dizer, único. Estes autores pertencem e foram parte do que de� niu a modernidade (e o modernismo) nas artes literárias: po-esia de vanguarda e “boom” da narrativa hispano-americana, respectivamente. Gra-ças a eles, porém não somente por eles, o Peru há sido posto no mapa da poesia e da narrativa mundiais do século XX. Vallejo e Vargas Llosa, pois, cumprem com as fun-ções de modernidade, tradição do “pai”; e, como veremos, também cumprem a função de gerar a sensação de possibilidade e con-� ança entre seus “� lhos” e aos estranhos.

Se bem que há existido e seguem exis-tindo concursos de dramaturgia no Peru, um exemplo da maior con� ança nos outros gêneros são os grandes concursos de cria-ção literária do nosso meio: estão principal-mente dirigidos aos poetas e narradores. Faz já alguns anos que Petroperú organiza seus concursos Copé nos quais ano a ano se alterna a narrativa e a poesia. Desde cer-ca de dois anos, a Pontifícia Universidade Católica do Peru convoca ao seu Concurso Nacional para três gêneros literários: poe-sia, narrativa e ensaio. O Banco Central de Reserva tem também seu concurso para narrativas curtas. Até os juegos � orales de colégios e universidades privilegiam os gê-neros não dramáticos em sua convocatória. Como se para um setor do universo cultu-ral peruano a presença de um dramaturgo nacional suscitara a pergunta: E este � lho, de quem é? Os poetas e narradores têm, querendo ou não, inscrito o estigma “Sou � lho de César” ou “Sou � lho de Mario” (“Então passa � lhinho)”. Com a multiplica-ção de publicações e concursos de ensaio (e

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ainda, com a pós-moderna “elevação” ou “degradação” do ensaio a gênero literário), também se poderia dizer que um grupo de escritores peruanos leva a marca “Sou � lho de José Carlos”, pois efetivamente Mariá-tegui pode também caber na de� nição de “pai” para os que buscam através da não � cção, interpretar a realidade peruana.

Em nível internacional e em nível na-cional há existido então, um reconheci-mento de poetas e narradores peruanos (paralelo à ignorância sobre o trabalho dos dramaturgos). Porém, há um nível mais su-til no qual a ausência de um “pai” pode ha-ver deixado uma marca: no nível íntimo. A falta de con� ança dos “antologadores”, crí-ticos, organizadores dos concursos e públi-co pode ter um re� exo na falta de con� ança dos mesmos autores. Jovens que iam des-cobrindo na escrita um meio de expressão e uma vocação vislumbraram uma sorte de sensação de possibilidade nos triunfos de Vallejo e Vargas Llosa que pode os haver levado a desenvolver os gêneros da poesia e da narrativa. No entanto, tais triunfos, ou eram muito sutis ou eram muito isolados na dramaturgia; e isto pode haver deter-minado que estes jovens não tentem suas expressões escritas pelo canal da drama-turgia (outra forma notória de ignorância). Talvez fez falta uma espécie de orgulho nacional similar ao que se dá quando Cien-ciano ganha a Copa Sul-americana, quan-do Pavarotti nomeia Juan Diego Flórez seu sucessor, quando Kola Real bate recordes de venda no exterior ou quando So� a Mu-lanovich se torna a campeã mundial de surf, circunstâncias que, muito provavel-mente, impulsionaram jovens a se dedicar ao futebol, ao canto lírico, ás empresas, e ás pranchas. Jovens escritores ou futuros es-critores não tiveram visto na dramaturgia peruana uma modernidade ou uma tradi-ção da qual sentir-se parte, ainda que seja para rechaçá-la ou ser parte de uma irman-dade que liquide o “pai”.

A porto-riquenha Priscila Meléndez (1990), em sua tese doutoral, descreveu como a teatralidade e a autoconsciência eram elementos mais destacáveis da dra-maturgia latino-americana do século XX.

Seu estudo aborda obras escritas desde as décadas de quarenta até os oitenta. Parece-ria alentador que no estudo de Meléndez, agora sim, uma das obras analisadas é de um autor peruano; no entanto, a sensação se evapora ao ver que a obra se trata de A senhorita de Tacna de Mario Vargas Llosa. Novamente a ideia de que não há drama-turgos peruanos que mereçam estudo; em todo caso, há reconhecidos narradores (ou poetas) que “também” escrevem para tea-tro. A impressão de “orfandade” mais que atenuar-se, se incrementa. O golpe � nal se daria, digamos, com uma edição crítica e comentada do teatro completo do Cesar Vallejo por uma instituição de prestigio. E efetivamente a espetada se deu com os três volumes publicados pela Universidade Católica (Vallejo, 1990). Com os múltiplos estudos e publicações dedicados à drama-turgia de Vallejo e Vargas Llosa é difícil ca-racterizar aos dramaturgos peruanos como “sobrinhos” ou “enteados” destes “pais”.

Uma mais: “Pós-modernismo e teatro na America Latina” de Beatriz J. Rizki (2007) é um dos livros melhor documentado, mais lúcidos e reveladores dos últimos anos res-peito ao tema que promete o título. Sem contar as obras de criação coletiva nem das adaptações (isto é, somente enquanto peças de autor), se analisam dez obras cubanas (mais duas cubano-estadounidenses), oito mexicanas, seis argentinas, quatro vene-zuelanas, três chilenas, dois dominicanas, duas equatorianas, uma porto-riquenha e uma uruguaia. A ausência da dramaturgia de autor peruana apenas se vê compensa-da pelos dois parágrafos dedicados a No me toquen ese valse (sic) de Yuyachkani, grupo que, de poderia dizer, cumpre certas fun-ções de “pai” no teatro peruano moderno... porém não em sua dramaturgia de autor.

Argentina, México e Colômbia; odiosas comparações

Outra forma de entender melhor a falta de modernidade, tradição e possibilidade, isto é, a ausência das funções de um “pai” – na dramaturgia peruana é observar os casos de outros países latino-americanos. Já mencionei que, com todos os riscos e li-

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mitações que implica toda generalização, a dramaturgia latino-americana iniciou seu momento modernista aproximadamente até meados do século XX. Este foi o gru-po de autores recompilados pela edição do Centro de Documentação Teatral, estu-dados desde “Dramatists in Revolt” (1976) adiante, já não como “curiosidades para gringos” senão como uma proposta com implicações globais e modernas: obras exitosas em cenários mundiais. Este é mo-mento em que a participação do Peru foi praticamente ignorada.

Porém, ainda com o “descobrimento” do momento modernista da dramaturgia latino-americana, a crítica – especialmente a não latino-americana – em seus primei-ros anos, baseava seus estudos na compa-ração dessa dramaturgia com in� uência que pudera haver das distintas correntes teatrais europeias do século XX. Dois dos dramaturgos mais representativos do mo-dernismo argentino – Osvaldo Dragún e Griselda Gambaro – expressaram seu mal estar com esse tipo de aproximação. Dra-gún expressou seu mal estar pela facilida-de com que a crítica norte-americana se dedica somente a “pensar em Ionesco, em Beckett ou no Teatro da Crueldade para de� nir qualquer autor latino-americano” (Giella, 1981, p.30). Momentos antes da mesma entrevista, havia dito:

...Para mim, a influência do grotesco parece fundamental. Entendo o gro-tesco como o deforme, e o grotesco no teatro, como o deforme da socie-dade. O deforme em uma sociedade é o antinatural. Então o antinatural produz deformidade que no fundo não é nada mais que animalização (...) Eu insisto muito sobre este con-ceito porque me parece a influência mais importante sobre todo o teatro latino-americano e especialmente so-bre o teatro argentino...(Giella, 1981, p. 14-15).

Por sua parte, Gambaro se manifestou: A mim, particularmente, o sainete, o gro-tesco é o que mais me interessa, e quando eu escuto que fazem analise das minhas

obras, e como parâmetro usam o teatro do absurdo, sinto uma espécie de estranha-mento. Porque penso que não in� uencia minha obra. Porém, sim há certos elemen-tos no meu teatro que vêm do grotesco (Giella, Roster e Urbina, 1983, p.13).

O grotesco, e sua posterior evolu-ção e desenvolvimento também podem ser encontrados em obras de muitos dos dramaturgos argentinos mais reconhe-cidos de seu momento modernista. E é nesta in� uência que se pode reconhecer a quem poderia ser o “pai” da dramaturgia argentina moderna: Armando Dicépolo (1887-1991). Discépulo gerou, a partir do sainete, um tipo de obra que foi chamada de “grotesco criollo”, que é o tipo que se re-ferem Dragún, Gambaro e outros ao falar de suas in� uências.

(Do “grotesco criollo”), em maior ou menor medida, em um sentido ou em outro, se reconhecem devedores ou herdeiros todos os autores teatrais argentinos da segunda metade do século XX. Enquanto o sainete não transcende, em geral, o mais exterior e pitoresco da imigração europeia, o grotesco discepoliano [...] se serve dos tipos identificadores do sainete, porém afunda nas individualidades e seus íntimos desgarros [...] A través das mínimas histórias de derrota pes-soal... (Fernández, 1992, p.18).

Discépolo não somente in� uencia au-tores posteriores, se não que é também her-deiro das formas do sainete que transfor-ma. É dizer, como “pai”, Discépolo, através da sua obra, faz uma engrenagem na tra-dição dramática e teatral de seu país. E os autores modernos estão ansiosos de ser parte e continuar essa tradição seguindo o modelo do “pai”. Discépolo provou que era possível fazer uma dramaturgia que enraizada no argentino, tivera ressonância a nível nacional e internacional.

“Estou totalmente convencido de que eu criei o teatro mexicano” (Adler e Scmi-dhuber, 1991, p.157). Com essa citação de Rodeolfo Usigli (1905-1971) de 1938 se ini-cia o artigo dedicado ao teatro no México

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de “Theater in Lateinamerika”. Por sua par-te, Gerardo Luzuriaga inicia seu capítulo correspondente chamando a Usigli “auto-denominado ‘o primeiro dramaturgo serio e apaixonado do país’” (Luzuriaga, 1990, p. 21). Como se pode ver, este dramatur-go tinha a consciência (talvez a ilusão) de que com ele se fundava a modernidade na dramaturgia mexicana, tinha a convicção de ser o “pai” dessa manifestação artística. Usigli foi sem dúvida o mais aberto e claro enquanto ao que devia ser a dramaturgia mexicana; em seus múltiplos ensaios, arti-gos, prólogos sobre o tema (escritos desde os anos trinta até os sessenta) foi delinean-do uma teoria do teatro de seu país que de-via (como imperativo) culminar na tragé-dia mexicana do futuro. Ele pôs em prática algumas de suas teorias em suas próprias obras, algumas das quais, como O gesticula-dor (1973) e a trilogia Coroa de sombra (1943), Coroa de fogo (1960) e Coroa de luz (1963) são clássicos da dramaturgia mexicana moder-na, e, efetivamente, marcam uma ruptura com o teatro espanholado que vinha pre-dominando no México.

Usigli tentou estar por cima da polêmi-ca entre Teatro Ulises e Teatro de Ahora que se deu nas primeiras décadas de formação da modernidade teatral do México. Em 1928, com Xavier Villarrutia na cabeça, se formou na Cidade do México o Teatro Uli-ses, cujos principais objetivos residiam em trazer o mundo teatral (Ibsen, O’Neill, Pi-randello, entre outros) ao teatro mexicano, tanto a través da representação das obras deles como através de sua in� uência para novos dramaturgos mexicanos. Teatro de Ahora, fundado pouco depois que o Teatro Ulises, buscou por em cena um teatro de agitação fundado nas lutas de camponeses e trabalhadores mexicanos até o presente. Uma mostra da polêmica entre estas duas tendências são as declarações de Mauricio Magdaleno, um dos fundadores do Teatro de Ahora, em clara alusão ao Teatro Ulises: “Que nos interessam os triângulos amo-rosos afrancesados, os problemas sexuais das famílias burguesas, quando lá fora, no campo, massas famintas trabalham dura-mente pelo pão de cada dia?” (Adler e Sc-

midhuber, 1991, p.163).Usigli buscou sempre se manter longe

dessa polêmica. Por ele ser mexicano de primeira geração (pai italiano, mãe austro-húngara), ou, talvez, devido à isso, em mui-tos de seus textos explorou e reinterpretou as passagens mais conhecidas da história mexicana em busca do que parece haver sido uma constante das letras do século XX desse país: de� nir “o mexicano”. Luzuria-ga menciona como Octávio Paz “vangloria a perspicácia de Usigli em atribuir ao mexi-cano a simulação como um de seus atribu-tos característicos” (Luzuriaga, 1990, p. 22). Paz se refere principalmente ao drama O gesticulador no qual um pobre trabalhador de escritório do interior se transforma em um cruel ditador devido uma combinação de ambições, piadas e confusões.

As três Coroas tratam (ou revisam) te-mas da história mexicana: os imperadores Maximiliano e Carlota, a conquista do Mé-xico pelas forças espanholas e as aparições da Virgem de Guadalupe. O mesmo autor quali� ca estas peças como “anti-históri-cas”, pois como mencionei, se tratava de uma visão dos momentos históricos que “revisava” a história o� cial. Pelo entusias-mo e a lucidez de seus dramas e ensaios, este autor marcou o inicio da independên-cia do teatro mexicano respeito à in� uência espanhola e o inicio da con� ança em uma dramaturgia autenticamente mexicana. Por outro lado, um adiantamento do pós-mo-dernismo se encontra em uma obra tardia do Usigli, Estreia na Broadway, o que longe de desquali� cá-lo com “pai” do momento modernista, o a� ança mais nessa função. Rizk descreve assim esse caso:

Um raro exemplo vamos encontrar no monólogo tardio [...] do mexicano Rodolfo Usigli, Estreia na Broadway, publicado e estreado em 1992-1994, mas escrito em 1969-1970. Na peça rechaça o autor todos os alinhamen-tos políticos e culturais prevalecen-tes do momento a favor do homem à secas, de sua experiência vivencial. É, pelo demais, um grito solitário de um dramaturgo, ao parecer frustrado ante as inovações estéticas vigentes

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em sua época [...] De fato, o breve monólogo há sido considerado uma espécie de epílogo autobiográfico de sua carreira nos palcos. O “autor”, protagonista do mesmo (quem se des-creve como “um velho autor novato”) deixando de lado qualquer ressabio de tipo colonialista ou “assimilista”2 e materializando aparentemente seu profundo anseio de “chegar” a Broa-dway” (Luzuriaga, 1992),

se consola ante o tumultuoso aplau-so que a sua obra recebe no dia de sua “estreia” (ainda que ao � nal temos a im-pressão de que a ação tem lugar tão so-mente em sua imaginação). Este êxito o faz reconsiderar os aportes de autores e diretores como Ionesco, Beckett, Albee, Weiss, Arrabal e “sobre tudo” Brecht, que os quali� ca de “quebra-cabeça sem cora-ção”, porque houveram esquecido que “o teatro é o homem, que o homem é o teatro uma vez que o que falta é um fundo vivo, novo” [...] adiantando-se várias décadas ao que estará na ordem do dia até o � m do século (Rizk, 2007, p. 40).

Os casos de Usigli e Discépolo, com to-das as suas diferenças (por exemplo, o pri-meiro antecipou o modernismo, pertenceu a ele e viu seu � m; o segundo somente o an-tecipou), são exemplos de “pais” que intro-duziram na modernidade as dramaturgias de seus países. Talvez seus casos bastem para entender a � gura do “pai” que trato de explicar e seu contraste com sua ausên-cia no Peru. No entanto, não quero deixar de mencionar o caso da Colômbia por suas singulares características. Comecemos com uma opinião de Moisés Pérez Coterillo:

Durante muitos anos, criação cole-tiva e teatro colombiano têm sido termos intercambiáveis. A radicali-dade e a contundência desde modo de entender a prática cênica teve no movimento teatral colombiano e em seus nomes mais ilustres, o Teatro Experimental de Cali e o Teatro da Candelaria de Bogotá, um poderoso

2 Assimilismo (asimilismo): partido que propõe uma política que pretende suprimir as pe-culiaridades dentro de una sociedade para favorecer a homogeneidade. Fonte: RAE (Diccionario de la Real Academia Española – www.rae.es (n. de t.).

epicentro que mancam um momento de inflexão na dramaturgia america-na de nosso idioma” (Pérez Coterillo, 1992, p. 9).

Há um comum acordo que a criação co-letiva há sido o “grande aporte da Colôm-bia para a cena da America Latina” (Luzu-riaga, 1990, p. 89) e que teve seu momento de maior impulso e resposta de público nos anos sessenta, “ao ponto que chegou a se dizer o teatro na Colômbia podia compe-tir favoravelmente com a popularidade do Futebol” (Luzuriaga, 1990, p. 89). Porém, a pesar da quantidade de grupos teatrais que se formaram na Colômbia, foram dois aqueles cuja popularidade e in� uencia foi maior: o Teatro Experimental de Cali (TEC)(fundado em 1955) e o Teatro da Candelaria de Bogotá (em 1966). Seus diretores não apenas foram e são diretores de cena, se não que também são dramaturgos e teó-ricos de técnicas dramatúrgicas e teatrais que até agora são seguidas em diversos pa-íses: Enrique Buenaventura (TEC) e Santia-go García (La Candelaria) também podem considerar-se os “pais” da dramaturgia co-lombiana moderna.

Ambos, através da experimentação empírica e do estudo de métodos “estran-geiros” criaram veredas técnicas de criação coletiva que mais adiante seriam imitadas e revisadas em todo o continente. No que ambas as técnicas coincidem é a conside-ração que a arte teatral deve cumprir uma função social, mais ainda, uma função polí-tica que comente, critique e busque subver-ter uma ordem injusta. Ambos poderiam compartilhar a “paternidade” da drama-turgia colombiana pese a que, mais adian-te, alguns culpariam a esta tendência da aplicação automática de fórmulas de cria-ção coletiva pelo pouco desenvolvimento da dramaturgia colombiana de autor. Isto mostra como a “paternidade” pode ser compartilhada (ou discutida) e como pode ser uma instituição (não necessariamente uma pessoa) que a tenha.

De certa forma, sim houve dramatur-gia de autor no Peru desde os anos cin-quenta até os oitenta; e houve dramaturgia

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de grande qualidade. Dois autores perua-nos ganharam o premio Casa das Américas: César Veja Herrera com Ipacankure (1968, menção honrosa) e Alonso Alegría com A Cruzada sobre o Niágara (1969, primeiro prê-mio). Os nomes de muitos dos autores ci-tados por Barbara Panse (Sebastián Salazar Bondy, Sara Joffré, Gregor Díaz, Juan Rive-ra Saavedra e Alonso Alegría) são mostra da intensa atividade dos dramaturgos pe-ruanos. A propósito, Gregor Díaz escreveu uma interessante e breve crônica sobre os dramaturgos peruanos dos anos cinquen-ta aos anos oitenta (precisamente aqueles anos do modernismo da dramaturgia lati-no-americana). Recorro a duas de suas im-pressões mais reveladoras:

...esta década (os setenta) se caracte-riza pela aparição de uma verdadeira frente de escritores que, contraria-mente a seus antecessores, cerca 90% são gente de teatro. [...] A realidade nacional já não será de maldizer ou mal ver, nem teremos que disfarçar para que suba ao cenário; se há con-solidado o estilo realista, com todas as suas variantes (Díaz, 1998, p. 184).

Porém, sobre a década de oitenta, Díaz quase se lamenta de que:

...a criação cênica e a expressão cor-poral (saltos, giros, etc.) limitou o tea-tro à categoria de “espetáculo cênico”; a década de noventa oferece com êxito uma variante da mesma, uma sorte de colagem, de revista musical, varie-dades, show de baile e algo de circo. Nesta expressão também a dramatur-gia � cou de lado” (Díaz, 1998, p. 183).

Por alguma razão, o momento moder-nista peruano se frustrou, e estes drama-turgos não tiveram a projeção de Vallejo ou Vargas Llosa, de Discépulo, de Usigli, Buenaventura ou García...de Yuyachkani.

Os “pais” latino-americanos antecipa-ram ou estiveram nos inícios da grande eclosão moderna da dramaturgia do con-tinente. Foi este grande momento moder-nista (o de autores que escreveram a partir

dos anos cinquenta) que o Centro de Docu-mentação Teatral buscou “antologar” em seus volumes no início dos anos noventa. Foi esse modernismo o que, no meu en-tender, não teve um “pai” no Peru, razão pela qual os atuais dramaturgos peruanos tiveram que cortar caminho diretamente à pós-modernidade.

Modernidades e pós-modernidades (e modernismos)

Venho usando com alguma despreocu-pação os conceitos “modernidade”, “mo-dernismo” e “pós-modernidade”. Dada a quantidade de estudos que existem sobre esses temas (em muitos casos, contraditó-rios entre si), é necessário nesse ponto que me detenha a precisar o que me re� ro com esses termos, para, mais adiante, explicar como funcionam esses conceitos a respeito da dramaturgia latino-americana contem-porânea, e, particularmente, respeito do processo peruano.

A modernidade é uma tendência cultu-ral em direção à busca e obtenção de certos ideais sobre a base de conceitos e possibili-dades que a humanidade mesma há gera-do. A etapa moderna se caracteriza por um distanciamento (progressivo e paulatino) de imperativos ditados desde instâncias distantes ao que os próprios seres humanos – seres humanos livres – considerem que são imperativos justi� cáveis e convenien-tes. Já não há um deus que dite os impe-rativos, já não há um grupo de poderosos privilegiados que determinam o que está bem e o que está mal; em todo caso, se exis-tem privilegiados, são os membros ilustra-dos da humanidade, aqueles que, através de um exercício livre, racional, e, às vezes, solidário, vão interpretando, em nome da humanidade e para ela, a forma de pensa-mento e de vida mais adequados. Entre os ideais principais que a modernidade pro-põe estão progresso, justiça e liberdade. A modernidade buscou estender a consecu-ção de estes ideais a toda humanidade (ain-da que alguns sustentem que o pós-mo-

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dernismo não é outra coisa que a extensão dos ideais modernos aos “outros”), e criar um “homem novo”, o cidadão. O cidadão é livre e paulatinamente, vai exigir mais e mais liberdade (alguns argumentam que é uma “ilusão” de liberdade), porém está su-jeito a uma série de deveres; estes deveres, no entanto, não emanam de uma entida-de superior inalcançável, são deveres im-postos pelo mesmo conjunto de cidadãos através do livre exercício de participação na opinião e no poder (participação que se foi instalando e aperfeiçoando progressi-vamente em algumas regiões) ou nas pró-prias normas não escritas de convivência.

Em muitos de seus aspectos, a moder-nidade, ao menos até o século XX, é uma tendência que inspirava entusiasmo nas possibilidades do ser humano e esperança em seu futuro. No entanto, a modernidade também expurgava, aqui e acolá, a angus-tia do ser humano por ser o criador de seu próprio destino: não há deus, não há seres superiores, agora o que fazemos? Por outro lado, os grandes ideais que a modernidade tentava promover – progresso, justiça e li-berdade – apareciam, segundo as interpre-tações, contraditórios entre si.

Muitas vezes, quando se falava de mo-dernidade ou modernismo se alude exclu-sivamente à tendência (sobretudo visível nas artes) que se desenvolveu desde, apro-ximadamente Ubú Rei (1899) até chegar ao seu pico, com Esperando Godot (1954). A ruptura das convenções artísticas tradi-cionais, o gosto da novidade pela novida-de em si mesma, a indagação em formas alternativas de expressão caracterizaram esta última etapa da modernidade, que Jameson prefere chamar de alto modernis-mo para distingui-lo do momento anterior, modernismo (Jameson, 1991); e o impacto foi tal que alguns o perceberam já como uma nova etapa. No entanto, como o vê Lipovetsky, nessa última etapa, com toda sua renovação, o modernismo é ainda mo-dernidade:

“Incluso os ataques contra as Lumières por parte das vanguardas são ainda ecos da cultura democrática. Com Dada, a pró-pria arte se funde em si mesmo e exige sua

destruição. Se trata de abolir o fetichismo artístico, a separação hierárquica da arte e da vida em nome do homem total, da con-tradição, do processo criador, da ação, do azar. Sabemos que os surrealistas, Artaud e logo os happenings, as ações de anti-arte, buscaram assim mesmo superar a oposição da arte e da vida. Porém cuidado, esse ob-jetivo constante do modernismo, e não do pós-modernismo [...] não é a insurreição do desejo, a revanche das pulsações contra a quadriculada vida moderna, é a cultura da igualdade a que arruína inexoravelmente a sacralidade da arte e revaloriza correla-tivamente o fortuito, os ruído, os gritos, o cotidiano” (Lipovetsky, 2002, p. 89-90).

Não há ruptura com a modernidade no modernismo; � nalmente, os ideais da modernidade � caram de pé, ainda que, talvez, cambaleantes. O que ocorreu foi um processo duplo. Por um lado, o moder-nismo signi� cou levar até as suas últimas consequências os ideais da modernidade; isto é, levar a um extremo as possibilida-des de desenvolvimento, de justiça (atra-vés da igualdade que fala Lipovetsky) e da liberdade e da criatividade, de fazer o que cada um puder e quiser fazer; não foi uma troca de rumo se não uma exageração do mesmo rumo. Por outro lado, este levar as coisas a um extremo, delatou mais os pro-blemas que traíam os ideais modernos: se � zeram mais claras as contradições entre alguns destes ideais; e, ainda mais, se viu que as de� nições de alguns de seus termos eram opostas (o que é igualdade para um é o oposto para outros; o que é justiça para uns, seu antônimo para outros, etc.). Assim mesmo, a� orou a angustia pela falta de uma � gura a ditar ordens; viu-se que ser humano estava sozinho com sua liberdade; e com essa liberdade havia causado duas guerras mundiais e uma “fria” que pôs a humanidade à beira do desaparecimento.

Outra forma de vê-lo é equiparando o modernismo com a supernova da mo-dernidade. A supernova, essa emissão in-tensíssima de luz quando a estrela esta ao ponto de esgotar seus recursos energéticos é, dada a liberação de energia que impli-ca, o anuncio da morte da estrela. E dura

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somente umas semanas (algo insigni� can-te em termos da vida de uma estrela) para logo � car nebulosa. Igual como a superno-va, com a modernidade, a maior emissão de energia se dá momentos antes de sua desaparição e transformação em nebulosa (pós-modernidade).

Nesta etapa da modernidade (este mo-dernismo, esta supernova) é na que, uns anos depois, se inscreve a dramaturgia la-tino-americana da qual tenho falado, esta que se origina nos anos cinquenta e que chamou a atenção de críticos, “antologado-res” e público a partir de então.

O pós-modernismo (cuja data de ori-gem varia, segundo distintos autores, des-de o � m da Segunda Guerra Mundial até maio de 68) é precisamente o desencanto por essa modernidade depois da eclosão modernista de suas artes desde � nais do século XIX. É também um desencanto pelas ideologias que sustentavam esses ideais, desde o liberalismo até o marxismo (cada uma, a sua maneira, propunha desenvolvi-mento, justiça e liberdade sem deuses). Foi uma sorte de consciência de que as contra-dições eram insuperáveis. Porém, diferen-temente da etapa anterior, esta consciência de contradição ou ausência de um deus que pusera ordem não causou nenhuma angús-tia. É um momento de desencanto, porém não se deve entender por isto que se trata de um período pessimista, pois, ao lado do desencanto, há uma “desangustia” (sic). Os ideais passados foram perdidos, porém surgiu o ideal do indivíduo sem angústia.

Na América Latina, e particularmente na sua dramaturgia, se deu um processo que, porventura, se podia quali� car como “análogo” ao descrito anteriormente. Va-riou em suas datas e em suas durações e intensidades e, sobretudo, em sua de� ni-ção dos termos que nomeavam os ideais. Porém os ideais, ao menos em sua super-fície, eram os mesmos. E creio que nisso radica a grande diferença entre o processo modernidade – pós-modernidade latino-americana e europeu ocidental: na de� ni-ção de seus ideais, particularmente, no de “liberdade”.

Um personagem do drama Rock & Roll

de Tom Stoppard, obra ambientada duran-te a Guerra Fria diz: “Para vocês, “liberda-de” signi� ca “deixem-me em paz”; para eles, signi� ca “me dê um pão”. Com toda a sua simplicidade a frase resume a gran-de diferença entre um e outro processo. A modernidade na América latina se deu no contexto de projetos das chamadas esquer-das. Com distintos graus de radicalismo e diversas interpretações do socialismo, a ilustração latino-americana do século XX, em sua grande maioria, interpretava a liberdade com o ideal que levaria se não prosperidade, ao menos a igualdade e a satisfação das necessidades mínimas para todos. Novamente se trata de uma gene-ralização inevitavelmente limitada, porém boa parte dos artistas da modernidade la-tino-americana esteve comprometida, em alguma etapa de sua carreira, com projetos de esquerda. A dramaturgia não foi dis-tante disso. Encontrou-se na interpretação e reinterpretação (e revisão) do marxismo um sustento para a busca dessa liberdade. Não obstante, é certo que, às vezes, de tra-tava simplesmente de uma preocupação pelas desigualdades e sofrimentos (a im-pressão de que algo não anda muito bem), e um desejo de reverter o status sem muita sustentação teórica, a dramaturgia latino-americana moderna teve, em geral, um caráter de “revolta”, como bem viram os editores de Dramatists in Revolt já em 1976.

O anterior é algo distinto à liberdade econômica, política e individual que pre-dominava na Europa ocidental (e que na America latina há sido esporádica ou nula), porém, como disse, o processo é análogo: busca dos mesmos ideais baixo um susten-to racional.

E esta analogia pode ser percebida melhor no processo do modernismo em ambas as dramaturgias. Tomemos como exemplo o Teatro do Absurdo. Enquanto na Europa signi� cou um extremar a liber-dade artística e suas formas de expressão, na America Latina foi um retrato (às vezes, caricaturesco) de situações da vida social, política e domestica. Segundo Howard Quackenbush:

...não se transportam ao pé da letra

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(as formas de) o Teatro do Absurdo europeu à América de língua hispâni-ca. O estudioso sempre tem que ter presente que, desde uma perspectiva latino – americana, o absurdo (o ir-racional, o inumano, o sofrido, o ca-ótico, o ininteligível) forma parte da vida social diária de uma multiplici-dade de gente nos países latinos. Não é necessário que se inventem irracio-nalismos, porque muitos já os expe-rimentam regularmente nas situações e intercâmbios humanos da vida co-tidiana. Em varias partes da America Latina o Teatro do Absurdo reflete a realidade da existência (Quacken-bush, 1987, p.10).

O Teatro do Absurdo estava com-prometido também com a transformação social: buscava outorgar um sentido aos “irracionalismos” através da revolta e da violência (Albuquerque, 1991) e da sub-versão.

Assim como muitos dos primeiros es-tudos da dramaturgia latino-americana moderna caiam na simplicidade de etique-tar muitas obras como Teatro do Absurdo sem considerar as diferenças ou as in� uen-cias alternativas, também algumas aproxi-mações � zeram o mesmo com outras for-mas da dramaturgia europeia: Pirandello, Teatro da Crueldade, criação coletiva, etc. Simplesmente, se enquadrava os drama-turgos latino-americanos nas categorias europeias. Porém há uma in� uencia que, sim, merece menção principalmente por sua relação com o modernismo da drama-turgia e os projetos de esquerda: o Teatro Épico de Bertold Brecht. E quiçá o mesmo Osvaldo Dragún que em 1979 melhor ar-ticula a “in� uência” de Brecht sobre ele e seus contemporâneos:

Também seguramente, há tido in-fluência no teatro latino-americano dos últimos anos o teatro de Bertold Brecht, porque poderíamos dizer que todos os aportes formais de Brecht já estavam no teatro latino-americano... [...] muito antes de Brecht havia te-atro épico... [...]. O que sim aportou Brecht é a sua lucidez sobre os senti-

mentos, sobre o objetivo da história, influenciando os objetivos de um país e a inter-relação que se dá entre os dois. (Giella, 1981, p. 12-13).

Dado que já havia formas de teatro “brechtianas” antes das teorizações de Brecht, o mesmo Brecht dava essa “luci-dez” aos projetos políticos de esquerda do teatro latino-americano; os dramaturgos se advertiram que o que haviam estado fazendo tinha um sustento político-ideo-lógico.

Porém também esse modernismo teve seu desencanto; e marcou o inicio da pós-modernidade latino-americana. O desencanto com os projetos políticos de esquerda, obviamente foi paulatino e teve distintos ritmos e cadências nos diversos países; o continente e o mundo pareciam irremediavelmente predestinados ao que se veio chamar de “neoliberalismo”.

Em 1968, Dois velhos pânicos, obra do cubano Virgílio Piñera, ganhou o prêmio teatral Casa de las Américas de Cuba. O prê-mio que era oferecido (e ainda é ofereci-do) à escritores de distintos gêneros literá-rios, era parte do entusiasmo cultural da primeira década da Revolução Cubana, a década em que, para muitos intelectu-ais e artistas latino-americanos, Cuba era o modelo a seguir, o território “livre” da América. Em 1969, a obra Dois velhos pâ-nicos foi proibida em Cuba; seu caráter “absurdista” fez com que a identi� cassem com o tipo de arte decadente da socieda-de burguesa e já não como “uma visão re-volucionária da realidade no sentido que comentam os efeitos que produze a Re-volução no indivíduo” (Palls, 1978, p. 27) como se deu de 1959 a 1969. O entusiasmo havia terminado. O mesmo Terry L. Palls, que no artigo citado trata fazer coincidir os ideais da revolução cubana com os do teatro do absurdo, como em uma utopia contranatural em que o compromisso po-lítico e o artístico vão harmoniosamente de mãos dadas, se vê obrigado a concluir sua nota com um parágrafo que parece contradizer toda a sua tese:

Como post datum, quero assinalar

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que depois de 1969 o teatro do absur-do desapareceu quase por completo do cenário cubano. Os intelectuais que creem que a arte deve refletir concretamente o compromisso polí-tico do autor houveram ocupado os postos administrativos nas agremia-ções artísticas, as casas editoriais e mesas diretivas dos concursos e hou-veram instituído restrições temáticas para a arte (Palls, 1978, p. 30-31).

Virgílio Piñera, “pai” da dramaturgia cubana (em grande parte pela sua Electra Garrigó), colaborador da revolução cubana desde seus inícios, escritor de obras “ab-surdistas” anteriores às de Beckett e Iones-co, ganhador (como mencionei) do prêmio Casa de las Américas, foi sutilmente conde-nado ao isolamento e ao silêncio em seu país nos últimos anos de sua vida, não ape-nas devido às características decadentes de sua obra, senão à sua condição homosse-xual, outro “achaque” da “agonizante so-ciedade burguesa”. Algo estava de� nitiva-mente podre na Dinamarca...

Talvez haja sido o giro da revolução cubana de 1969 que marcou o inicio do paulatino desencanto das esquerdas (a mo-dernidade) na América Latina (ver mais a respeito em Castro Urioste 1999). O neoli-beralismo, mesmo com tentativas isoladas de seus profetas, não conseguiu substituir o encanto; e mais, segundo Beatriz Rizk “encheu ainda mais de ceticismo os intelec-tuais e artistas(...) sem que se vislumbrem alternativas coerentes para sair desta nova, como colossal, crise” (Rizk, p.49). Certa-mente, o processo de desencantamento foi largo; poderia se dizer que ainda não ter-minou, basta para isso revisar os artigos do dramaturgo Eduardo Pavlovsky, especial-mente “Che, Fidel” escrito em 2003:

Ante certa “ambiguidade” de certos intelectuais latino-americanos, que parecem jogar contigo como moçoi-las a “despetalar margaridas” à raiz dos últimos acontecimentos – neces-sito definir-me politicamente. [...] Eu te apoio Fidel em tudo. Tenho fé em todas as tuas medidas por mais drás-

ticas que sejam. [...] Sou já crescido para “despetalar margaridas” (Pavlo-vsky, 2004b, p. 131-132).

E não posso deixar de mencionar a res-posta de Pavlovsky à Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido e de� nitivamente o “pai” da dramaturgia brasileira, no que o argentino acusa o brasileiro de haver aceitado a subvenção oferecida ao Teatro do Oprimido pela Fundação Ford, Banco Mundial, Conselho Britânico e Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro:

“O que se pode criticar Boal é que ele baseou sua identidade cultural na luta con-tra o imperialismo cultural e muitos jovens o seguiram na década de 70. [...] ...ditos jovens hoje reconhecidos diretores [...] me expressaram este ano a decepção pelas ati-tudes do mestre” (Pavlovsky, 2004a, p. 65).

É um processo no qual os dramatur-gos (se recorde de Estreia na Broadway de Usigli) foram deixando de escrever obras de “revolta” para escrever textos com um maior conteúdo intimista (talvez outro tipo de revolta). A modernidade e a sua super-nova modernista eram agora uma pláci-da nebulosa a que bem se pode aplicar a observação de Jameson: “Os últimos anos foram marcados por um milenarianismo3 invertido em que premonições do futuro, catastró� cas ou redentoras, foram trocadas por sensos do � m disso e daquilo” (Jame-son, 1991, p.1). E mais diretamente relacio-nado com a dramaturgia latino-americana: “Entender a criação coletiva como supe-ração da criatividade individual, como a materialização da célula socialista no meio de um sistema capitalista ferido de morte, trouxe como consequência um empobreci-mento do teatro, um maniqueísmo estéril e, com o tempo, frustração e desencanto” (Pé-rez Coterillo, 1992, p. 10). Se bem o autor se refere ao teatro colombiano, os elementos de “� m de algo” que apresenta poder ser análogos aos outros processos de transi-ção do modernismo ao pós-modernismo na América Latina, aquele modernismo no

3 Milenarianismo: ciclo de mil anos; crença por grupos religiosos, sociais e políticos na transformação da sociedade na virada do milênio (fonte:Wikipedia: millenarianism) (N.deT.)

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qual a dramaturgia peruana careceu de um “pai” e de sua correspondente antologia na edição do Centro de Documentação Teatral do Ministério de Cultura da Espanha et al.

Os indícios do salto

Em 1986, Alfonso de La Torre, em um artigo de título revelador (“Para que serve o teatro no Peru?”), se queixava da defasa-gem que percebia entre a realidade políti-ca e social peruana e as montagens teatrais que se exibiam em Lima. As notícias das fossas comuns, dos massacres do Sendero Luminoso e do Exercito, toque de reco-lher; Segundo La Torre, a realidade avan-çava em um ritmo demasiado vertiginoso e o teatro não podia manter-se ao dia com estes acontecimentos: “a realidade supera tudo o que a cena pode, em temas e situa-ções, alcançar a transmutar criticamente” (La Torre, 2007, p. 56). Comenta La Torre três montagens teatrais de então (março de 1986); vê que “La Chunga” e “Encontro de zorros” tratam temas de literatura escritas há mais de duas décadas antes. Algo simi-lar diz de “O terno branco”:

Vejo “O terno branco” (...) que resgata um texto escrito por Alonso Alegría há dez anos sobre um tema escrito por Ray Bradbury, o escritor de � cção cientí� ca estadunidense, dez anos antes. Esse re-trocesso ao passado “pesca” de manei-ra tangencial nossos dilemas de hoje, porém o faz reinterando tudo o que os economistas, sociólogos e jornalistas veem estado esclarecendo nestes últi-mos vinte anos. É assombroso e sinto-mático que um autor peruano assuma a “verdade” peruana em um tema estadu-nidense, e que vinte anos depois Telba o atualize” (La Torre, 2007, p. 58).

Talvez, a indignação de La Torre era excessiva. Menos dura, porém igualmente amarga e receosa é a resenha sobre a tem-porada teatral de Lima de 1991 e 1992 que faz Nora Eidelberg que começa com uma oração desalentadora: “Ao chegar a Lima em Julio passado, busquei as ofertas de te-atro no jornal e me disseram que já não as publicavam” (Eidelberg, 1993).

No entanto, a diferença do que per-cebiam então La Torre e Eidelberg, hoje a dramaturgia e o teatro peruano sim alu-dem aos seus contextos imediatos. Os dra-maturgos peruanos atuais sim conseguem reverter o que La Torre exigia: “O tempo imediato dos acontecimentos pode ser len-tamente assimilado ao tempo analítico do teatro” (La Torre, 2007, p. 59).

É certo que as características dos tem-pos (1986-91-92 e primeiros anos do sé-culo XXI) são diferentes, mas não assim o vertiginoso das transformações. Os atuais dramaturgos peruanos têm sabido manter-se ao ritmo das transformações políticas, sociais e tecnológicas dos últimos tempos (no plano nacional e no internacional), tempos pós-modernos em que muitos re-ferentes culturais de um ano são obsole-tos no ano seguinte. Uma boa parte desses dramaturgos estreia suas obras no mesmo ano da escritura (longe dos “vinte anos de-pois” que se queixara La Torre), sem que, por isso, percam sua universalidade tem-poral. Somente dois exemplos: primeiro, salvo por A dor por tua ausência, de Jaime Nieto (escrita em 2003 e estreada em 2004) todas as outras seis obras do autor foram à cena no ano de suas escrituras; segundo, não transcorre mais de um ano desde que Mariana Althaus escreve uma obra até que a estreia. Este, a meu ver, é um dos mais fortes indícios de que existe uma geração de dramaturgos pós-modernos no Peru, dramaturgos com a urgência de expressar o que ocorre ao seu redor o antes possível, dramaturgos para os que a paciência mo-derna não é uma virtude. Certamente, o anterior não quer dizer que as obras destes grupos de dramaturgos se ambientem no “aqui e agora”, porém o “aqui e agora” é perfeitamente retratado tanto no Japão da segunda Guerra Mundial (Kamikaze! ou A história do covarde japonês de César de María (DE MARÍA 1999)) como em 2015 depois da hecatombe nuclear (Zoelia e Gronelio de María Teresa Zúñiga (Zúñiga, 2004)) so-mente para dar um par de exemplos.

Porém, ao meu parecer, o indicador mais notável da reversão na tendência (a ignorância) das últimas décadas sobre a

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dramaturgia peruana contemporânea foi o I Concurso de Dramaturgia Peruana que convocou a Associação Cultural Peruano-Britânica. Uma novidade desse concurso era que, além dos prêmios em dinheiro, o ganhador obteria a produção para monta-gem para 2008. Apresentaram-se noventa e oito dramaturgos, uma cifra inimaginável há uma década (em outro concurso, patro-cinado por ESAN em 2000, com prêmios de dinheiro muito mais alto, somente se apresentaram ao redor de trinta obras, e isso que, a diferença do concurso da Asso-ciação Peruano-britânica, o da ESAN sim permitia mais de uma obra por autor). Isto é, existem, ao menos, noventa e oito dra-maturgos peruanos em atividade e ansio-sos para dar suas obras ao conhecimento do público. Outra novidade foi uma peti-ção do jurado do concurso: “O jurado este-ve integrado pelos dramaturgos nacionais Veleste Viale, César de María e Roberto Ángeles. Eles pediram, ao ver a qualidade das obras, que no lugar dos dois prêmios estipulados previamente, se admitira um terceiro” (Agencia Andina, 2007). A quali-dade das obras obrigou à modi� cação das bases. E por último, no que a novidades se refere, os três prêmios foram adjudicados a dramaturgos bastante jovens: Gino Luque (27 anos), Lucero Medina (27 anos) e Ma-riana de Althaus (33 anos).

As novidades desse concurso – a mon-tagem, a quantidade de participantes, a qualidade das obras, a juventude dos ga-nhadores – é um indicador mais de que há uma nova promoção de dramaturgos no Peru, uma promoção de escritores nasci-dos desde a década de setenta (e que pro-duz em ritmo acelerado) que, consciente ou inconscientemente, há decidido supe-rar a ausência do “pai” que os introduzira à modernidade e ignorar a ignorância que sofreram momentos anteriores. Há uma promoção (atualmente com menos de 50 anos) que, como uma horda de órfãos, há saltado, sem permissão de ninguém nem complexas heranças, diretamente à pós-modernidade.

Por outro lado, se pode dizer que é pre-

cisamente essa “orfandade” que há feito com que a dramaturgia peruana pós-mo-derna dê um salto quantitativo e qualitati-vo não visto durante todo o século XX. Já não se necessita de um “pai”. É o mesmo espírito da época pós-modernista que faz com que não se requeira alguém que seja modelo, interpreta a realidade e a moral ou dite ordens. A tendência moderna que exi-gia uma série de imperativos para a criação do cidadão (ou do revolucionário) já não é tal; cada indivíduo se apresenta na socie-dade por si mesmo tal como agora estão se apresentando os dramaturgos nacionais. E em certo sentido, a “orfandade” pode ser inclusive uma vantagem. O narrador Iván Thays comentou: “a presença de Vargas Llosa e Bryce chegou a pesar demais para essa geração e praticamente a silenciou” (Jarque, 2003). Se bem que Thays se refere à produção narrativa dos anos setenta e oi-tenta, bem se pode a� rmar que a “sombra” desses “pais” segue afetando (sombrean-do) a narrativa peruana atual; e o mesmo pode-se a� rmar de Vallejo (morto em 1938) repeito à poesia. A falta do “pai” nos tem-pos em que os patrocínios se desmantelam ou já não interessam, pode ser um impulso antes que obstáculo.

Diz Rizk à propósito da pós-moderni-dade: “Dessa maneira se dá a passagem da “práxis” à “ação”, entendendo a “práxis” como levar a cabo projetos de acordo com um cânone cultural estabelecido e a “ação” uma resposta individual e desa� adora a qualquer cânone estabelecido e aceito como tal” (2007: 39). Longe de ser um desencan-to que leva a inação, é um ceticismo que leva a ação do indivíduo, com a liberdade de que não há que cumprir com ninguém, não há que estar à altura de ninguém, pois a mesma noção de altura � cou duvidosa.

Mencionei que um indicador dos novos tempos pós-modernos da dramaturgia pe-ruana pode-se ver no concurso da Associa-ção Peruano-Britânica. Outro indicador é que, a partir da década de noventa, alguns diretores peruanos de grande prestígio co-meçaram a assumir o risco de montar obras de jovens dramaturgos peruanos. São pou-

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cos, porém estão ai: Alberto Isola, obras de Rafael Dummett (Números reais, 1994), Ma-riana Althaus (Turquesa 2003) e César Ma-ría (O último barco, 2004). Roberto Ángeles, uma obra de César María (Kamikazi, 1999); Luis Peirano, uma obra de Alfredo Bushby (História do gol peruano, 2003); Ruth Escude-ro, obras de César María (Escorpiões olhando o céu, 1993) e de Eduardo Adrianzén (O dia da lua, 1998); Marisol Palacios, duas obras com a dramaturgia de Mariana Althaus (A viagem, 2001 e Vinho, bate e chololate, 2004) e uma de Aldo Miyashiro (Água, 2003). Também estão os diretores jovens apostan-do em seus contemporâneos dramaturgos. Os exemplos de Óscar Carrillo (com obras de César María e Vitor Falcón) e Diego la Hoz (com obras de Juan Carlos Méndez, Gonzalo Rodríguez Risco, Claudia Sacha e Eduardo Andrianzén) são somente dois exemplos desta tendência. E certamente, também estão os jovens dramaturgos que optam por dirigir ou codirigir (e às vezes até produzir) eles mesmos as suas obras para eles mesmos apresentarem para a so-ciedade sem o patrocínio de ninguém: Cé-sar bravo, María Tereza Zúñiga, Jaime Nie-to, Mariana de Althaus e Aldo Miyashiro entre outros.

Alguns desses autores começam já a ser estudados nas universidades (na Ponti-fícia Universidade Católica do Peru; cursos da Especialidade de Literatura incluíram obras de César de María, Eduardo Adrian-zén, Rafael Dummet desde 1993; em 2008 um curso de Mestrado de Literatura His-panoamericana cobriu, além dos autores an-teriores, estudos sobre as obras de Jaime Nieto, Mariana Althaus e Aldo Miyashiro). Um curso da Universidade Cientí� ca del Sur ministrado por Santiago Soberón os in-cluem na última etapa da “História crítica do teatro peruano”. Diz o programa que o curso culminará com autores últimos como De María, Adrianzén, Miyashiro, De Al-thaus, etc. (Universidad Cientí� ca del Sur, 2007). Há já um interesse crescente sobre esses dramaturgos (ver Soberón, 2005). E a atenção aos atuais dramaturgos perua-nos por parte da comunidade acadêmica já

não é somente desde o exterior, uma curio-sidade para gringos, ou, desde o exterior, uma crítica impressionista de patrocínios e inimizades, invejas e adulações; já exis-te a intenção, na tradição de Alfonso de La Torre e Hugo Salazar del Alcázar, de anali-sar seriamente sua obra como parte de um processo do qual não podem ser excluídos.

A numeração dos indícios poderia se-guir com as publicações das obras (mesmo que ainda, na sua maioria, por editoriais “independentes”) e, nesse sentido, são des-tacáveis as “Mostras” impulsionadas por Sara Joffré e as antologias lançadas por Ro-berto Ángeles.

Porém baste dizer que, por onde se olhe, a dramaturgia peruana atualíssima há dado um salto por sobre o modernismo e está já bem instalada na pós-modernidade. Somente � ca por averiguar as caracterís-ticas particulares desta pós-modernidade peruana da dramaturgia: Deixou alguma “pegada” a ausência de “pai”? Há, toda-via, uma tensão ou uma nebulosa entre a “práxis” e a “ação”? E o mais importante: Que feridas ou desencantos deixaram nes-sa dramaturgia o con� ito interno e a re-presentação de quando seus autores eram crianças, adolescentes ou jovens? Não per-ca o próximo capítulo...

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Resumo

Este artigo oferece um mapeamento inicial da in� uência de publicações argentinas no processo de modernização do teatro

feito no Nordeste do Brasil, especialmente em Pernambuco, entre as décadas de 1940 e 1960. Examinando referências bibliográ� cas

citadas de modo recorrente por Hermilo Borba Filho, decerto o principal mentor do chamado “Teatro do Nordeste”, observa-se

como ideias renovadoras advindas da Europa chegaram ao Recife por meios de livros publicados em Buenos Aires, sofrendo assim,

naturalmente, interpretações e adaptações.

Palavras-chave: “Teatro do Nordeste”; Argentina; Hermilo Borba Filho

Abstract

This article offers a preliminary survey on the in� uence of Argentinian editions in the modernizing process of the theater

done in the Northeast of Brazil, especially in Pernambuco, between the 1940s and the 1960s. By examining the bibliographical

references recursively cited by Hermilo Borba Filho, certainly the principal architect of the so-called “Teatro do Nordeste” (Theatre of the Northeast), it is observed how renovating ideas originated

in Europe reached Recife through books published in Buenos Aires, being, in this way, naturally mediated and adapted.

Keywords: Theatre of the Northeast; Argentina; Hermilo Borba Filho

1 Professor do Departamento de Teoria da Arte e Expressão Artística, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Possui graduação em Comunicação Social-Jornalismo (UFPE -1999), mestrado em Comunicação Social pela (UFPE - 2003), e doutorado em Teoria da Literatura (2008-UFPE), com tese sobre o pensamento teatral de Hermilo Borba Filho.

Entre a Europa e o Recife, a contribuição argentina para o “Teatro do Nordeste”

Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis1

ENTRE A EUROPA E O RECIFE, A CONTRIBUIÇÃO ARGENTINA PARA O “TEATRO DO NORDESTE: LUÍS AUGUSTO DA VEIGA PESSOA REIS 7979

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LUÍS AUGUSTO DA VEIGA PESSOA REIS80

Entretanto, a literatura brasileira não é parte da literatura hispano-americana: tem independência, caráter e � siono-mia inconfundíveis. O Brasil é algo mais que uma nação: é um universo linguístico irredutível ao espanhol.

Octavio Paz Em setembro de 1948, a expressão

“Teatro do Nordeste” é criada por Pas-choal Carlos Magno, a � m de nomear a produção de jovens autores que, a par-tir do Recife, inspirados pela atuação de Hermilo Borba Filho à frente do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP), procura-vam renovar a criação teatral no país, re-alizando um dos esforços pioneiros para levar aos palcos, em bases modernas, o universo da cultura nacional; nesse caso, especi� camente, o universo da expressão popular nordestina, com os temas de seu romanceiro, as manifestações de sua reli-giosidade, e a vibração ritualística de suas brincadeiras dramáticas, como o bumba-meu-boi, o mamulengo e o pastoril. Ecoa-vam, portanto, com maior ou menor grau de consciência, ideais do Regionalismo preconizado por Gilberto Freyre desde meados dos anos de 1920.

Décadas depois, o movimento renova-dor que Paschoal Carlos Magno, do Rio de Janeiro, chamou de “Teatro do Nordeste” receberá, em São Paulo, outra denomina-ção: “Escola do Recife”. É sob tal rubrica que, em seu livro Teatro Brasileiro Moderno, Décio de Almeida Prado reúne “um tan-to abusivamente” diversos dramaturgos nordestinos - agora não somente os cria-dores diretamente ligados ao TEP, mas nomes que, na trilha aberta por Hermilo Borba Filho, obtiveram reconhecimento em outras regiões do país, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo. Além do próprio Hermilo e de Ariano Suassuna, o artista mais destacado nessa linhagem, Décio de Almeida Prado menciona José Carlos Cavalcanti Borges, Aristóteles Soa-res, Osman Lins, Aldomar Conrado, Luiz Marinho, Joaquim Cardozo, Francisco Pereira da Silva, e também o poeta João

Cabral de Melo Neto, pelo seu “auto de Natal pernambucano” Morte e vida severi-na (Prado, 1996 [1988], p. 84).

Sendo um rótulo, a designação “Tea-tro do Nordeste” – ou “Escola do Recife” – reconhece e, ao mesmo tempo, discrimi-na; concede espaço para algo apreciado por ser diferente dos modelos hegemôni-cos, enquanto impõe, contraditoriamente, uma espécie de domesticação das diferen-ças, logo procurando circunscrevê-las em uma série de traços previamente reconhe-cíveis. Como todo rótulo, resulta de com-plexas negociações de poder entre quem rotula e quem é rotulado, podendo ser percebido, dependendo da perspectiva, ora como instrumento de contenção, ora como estratégia de inserção – ambigui-dade particularmente presente nas cultu-ras coloniais, das quais se constitui quase como um traço de� nidor.

Se de certa forma a modernidade pode ser caracterizada pela cogente idealização de um novo (e decerto inalcançável) tem-po-espaço, o teatro feito por Hermilo e por seus companheiros, de franca aspiração modernizante, precisava se reconhecer a partir das novas estéticas teatrais que se anunciavam, de fora para dentro, em du-pla presunção de superioridade: primei-ramente, a hegemonia da Europa, berço das inovações que desde as últimas déca-das do século XIX vinham reformando os palcos mundiais; e, em seguida, quase si-multaneamente, a supremacia dos centros mais desenvolvidos do teatro no Brasil, o Rio de Janeiro e São Paulo, onde a sensibi-lidade artística da nova cena europeia de-veria, de modo natural, ser primeiramente compreendida e interpretada.

Todavia, um exame mais atento das bases intelectuais que possibilitaram a construção desse “Teatro do Nordeste” é capaz de revelar um desenho talvez um tanto inesperado no � uxo de informações que alimentaram o projeto artístico-inte-lectual de Hermilo Borba Filho: constata-se que, em grande medida, as novidades da cena europeia, não somente no campo da teoria teatral mas também na própria

ENTRE A EUROPA E O RECIFE, A CONTRIBUIÇÃO ARGENTINA PARA O “TEATRO DO NORDESTE 81

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literatura dramática, chegaram ao Recife processadas pelo pensamento teatral ar-gentino, por meio de uma grande quan-tidade de livros publicados em Buenos Aires.

Assim, nos limites deste artigo, pro-põe-se uma breve observação dessa com-plexa e até certo ponto inaudita mediação argentina, entre a modernidade teatral da Europa e a dramaturgia nordestina sur-gida a partir de meados do século XX. Esboça-se, portanto, nestas páginas, uma primeira tentativa de mapeamento da in-� uência exercida pela modernização do teatro em Buenos Aires sobre a moder-nização do teatro no Recife, um caso de estratégica contaminação entre dois dis-tintos e instigantes centros culturais peri-féricos, unidos por suas ambições cosmo-politas.

Na estante de Hermilo

Embora Hermilo Borba Filho também lesse em inglês e em francês, na sua biblio-teca pessoal, parcialmente preservada até hoje, a estante de livros estrangeiros é for-mada majoritariamente por publicações em língua espanhola, grande parte edi-tada em Buenos Aires. Nesse rol, encon-tram-se não somente traduções de obras escritas por dramaturgos e por teóricos europeus, mas também diversos estudos originalmente produzidos por pensadores do moderno teatro argentino – além de al-gumas peças de autores portenhos.

Um expressivo indício da relevância dessas edições argentinas na conformação do pensamento teatral de Hermilo é a vas-ta lista de referências bibliográ� cas por ele apresentada em seu livro História do teatro, escrito em 1950. Dos 519 itens relaciona-dos, 174 são obras produzidas em Buenos Aires (33,5%). Em 1968, quando esse vo-lume é relançando, ampliado e revisado, com o título de História do espetáculo, a pre-sença de livros argentinos na bibliogra� a permanece signi� cativa: 45, entre as 215 obras listadas (21%). Agora, por um lado, a indústria editorial brasileira se encontra-va mais desenvolvida, possibilitando uma

presença maior de títulos nacionais; por outro, nota-se um aumento na indicação de obras em inglês e em francês, talvez importadas com mais facilidade.

No entanto, como se sabe, estatísticas e porcentagens, por si só, não são os me-lhores mecanismos de aferição quando se trata de assuntos artísticos e intelectuais. O que realmente importa, nesse intento, não é a quantidade de referências, mas sim a percepção de como certas ideias e informações presentes em obras argenti-nas repercutiram na produção criativa de Hermilo Borba Filho, como artista e como teórico.

Empréstimos de ideias, construções de ideais

Certa vez, em 1951, após enfrentar ferrenhas críticas à sua tragédia O ven-to do mundo, rechaçada por setores mais conservadores da imprensa recifense, Hermilo, sem esconder certa dose de pe-dantismo, relaciona, em matéria publica-da na revista Nordeste, uma lista de livros internacionais que, segundo ele, preci-savam urgentemente ser lidos pelos “es-tudiosos do teatro na Província”. Entre os autores indicados, é dado importante destaque a Alfredo de La Guardia e José Maria Monner Sans.

Com referência às obras de crítica, podemos citar como as melhores: Panorama del novo teatro [1942], de José Maria Monner Sans, autor argentino dos mais eruditos na arte dramática, a quem devemos, tam-bém, uma excelente interpretação de Pirandello. O livro de Monner Sans põe o leitor em contato com as vá-rias tendências do teatro moderno, os estilos, as influências, estudando, separadamente, personalidades como Lenormand, Shaw, O’Neill, Kaiser e Benavente. Ainda outro argentino2 se faz notar no campo da crítica dra-mática, Alfredo de La Guardia, com seu livro El teatro contemporâneo [1947], cujo primeiro volume atinge

2 Na verdade, La Guardia era nascido na Espanha, embora tenha migrado para a Argen-tina ainda muito jovem e se naturalizado argentino.

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o teatro realista, ocupando-se o se-gundo do simbolismo até as tendên-cias mais atuais. Escrito com grande agudeza crítica, o livro de Alfredo de La Guardia situa a dramática de vá-rios autores nos seus justos limites, estendendo-se a respeito de Ibsen e Shaw, para ele dramaturgos-marcos na história da literatura dramática. (Borba Filho in Nordeste, 1951).

Não era a primeira vez em que Hermi-lo Borba Filho expunha sua admiração por esses dois teóricos. Eles já eram, ao lado de outros autores argentinos ou radicados na Argentina, como a russa Galina Tolma-cheva, nomes conhecidos pelos leitores das colunas teatrais que escrevia para jor-nais recifenses desde os primeiros anos da década de 1940.

No dia 3 de setembro de 1944, por exemplo, ao se pronunciar pela primeira vez sobre a peça Vestido de noiva, de Nel-son Rodrigues, marco inconteste da reno-vação teatral brasileira, Hermilo menciona tanto Alfredo de La Guardia quanto José Maria Monner Sans, buscando nesses au-tores estrangeiros, ao lado de nomes como os da escritora inglesa Virginia Woolf, do dramaturgo francês Jean Jacques Bernard e do teórico russo Nicolas Evreinoff, respal-do para a sua argumentação, sublinhando a importância e a modernidade do texto de Nelson. Enquanto Monner Sans aparece apenas como fonte de uma declaração fei-ta por Jean Jacques Bernard, Alfredo de La Guardia é citado textualmente, em espa-nhol, reforçando a ideia, apresentada então por Hermilo, de que Nelson Rodrigues, em Vestido de noiva, havia criado uma verda-deira tragédia moderna.

La densidad de la linea y la comple-jidad del análisis psicológico son los elementos que renuevam, otra vez, la tragedia. A la lucha de semidieoses, titanes e héroes, a la fluctuación del hombre en sus característicos, sucede el abismamiento del ser humano en médio del debate de las insospecha-das fuerzas hondo mundo subliminal (Apud Borba Filho in Jornal do Com-mercio, 3/9/1944).

Não por acaso, é essa compreensão de tragédia moderna, em que pulsões in-conscientes se encarregam de substituir os castigos e os caprichos dos deuses na de� nição dos destinos humanos, que se vislumbra nas peças escritas por Hermilo ao � nal da década de 1940, nomeadamen-te: Electra no circo, João sem terra, A barca de ouro, além da já citada O vento do mundo. Nesse viés, é oportuno lembrar que, apesar de ter se consagrado nacionalmente sobre-tudo por meio de suas comédias, especial-mente depois do retumbante sucesso do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, em 1957, a moderna dramaturgia nordesti-na, inicialmente, estava voltada, com muita determinação, para a produção de tragé-dias, decerto como forma de se distinguir das revistas e das comédias de costumes, ambas de inequívoco interesse comercial, consideradas, então, empecilhos ao apri-moramento da arte dramática no país. O próprio Ariano estreia como autor teatral, sob nítida in� uência das peças de Federi-co García Lorca, vencendo o concurso de dramaturgia promovido pelo Teatro de Estudante de Pernambuco, em 1947, com a tragédia Uma mulher vestida de sol.

Regionalismos e deslocamentos

Federico García Lorca, por sua vez, decerto a inspiração mais perceptível na dramaturgia produzida a partir do TEP, parecia comprovar, no teatro, a viabilida-de da equação proposta pelo Regionalismo de Gilberto Freyre – o “espírito da época” entre aqueles jovens intelectuais do Recife – levando ao palco, com muita força poé-tica o trinômio, tradição, região e moder-nidade. Pois bem, é importante notar que o autor de Bodas de sangre foi apresentado a Hermilo por meio do estudo García Lor-ca – persona Y creación, de Alfredo de La Guardia, publicado em 1941. Em seus es-critos, em diferentes momentos de sua in-tensa carreira teatral, Hermilo reconhecerá La Guardia como uma de suas primeiras e mais importantes referências sobre o uni-verso poético de Lorca. Em agosto de 1948,

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na série de cinco longos artigos intitulada Lorca – tentativa de compreensão, publicada no Suplemento Literário da Folha da Ma-nhã, Hermilo cita La Guardia em quatro ocasiões, transcrevendo trechos de seu li-vro sobre o poeta andaluz, obra apresen-tada como “a melhor biogra� a e o melhor estudo crítico a respeito de García Lorca” (Borba Filho in Folha da Manhã, 1/8/1948).

Mas as a� nidades entre La Guardia e Hermilo Borba Filho não param por aí. Os dois, como agentes culturais situados lon-ge da Europa, à margem do grande centro da modernidade teatral, procuraram, ao alcance de suas possibilidades, inserir a cena sul-americana nas historiogra� as da arte dramática ocidental. No manual His-tória do teatro, Hermilo inclui um capítulo sobre o teatro argentino e outro sobre o teatro brasileiro. Já em El teatro contempo-râneo, de La Guardia, que trata sobretudo do teatro europeu após o advento da li-teratura realista, há espaço, embora desi-gual, não apenas para o teatro feito na Ar-gentina, tratado naturalmente com mais amplitude, mas também, para o teatro do México, o do Uruguai e, em bem menor consideração, o teatro de “otros países iberoamericanos”, no caso, Chile, Brasil e Peru. No prefácio, escrito em 1945, o au-tor expressa, com bom humor, sua indig-nação em relação ao desconhecimento da arte teatral latino-americana por parte dos historiadores do teatro ocidental:

En una minuciosa History, de recien-te data, sólo se cita a Pedro Echagüe y Martiniano Leguizamón como au-tores argentinos, y poucas líneas más abajo se dice: ‘Raúl Roulien is the principal actor of Brazil’, agregán-dose, en seguida, como única actriz a Carmen Miranda (La Guardia, 1952, p. 8-9).

Sobretudo Alfredo de La Guardia, mas

também José Maria Monner Sans, além da russa-argentina Galina Tolmacheva, com seu seminal estudo Creadores del teatro mo-derno, publicado em Buenos Aires em 1942, acompanharão toda a trajetória artístico-

intelectual de Hermilo, através de décadas, como fontes valiosas para a elaboração de suas próprias ideias.

A Rússia e a França em Buenos Aires

O que La Guardia representou, para Hermilo, em relação a Lorca, Tolmacheva, ela própria uma ex-aluna de Stanislavski e ex-mulher de Komisarjevsky (Solari, 2012), representou em relação aos encenadores russos do início de século XX e, também, em relação ao francês Jacques Copeau, ou-tra importante baliza na evolução do pen-samento estético do teatrólogo pernambu-cano.

Quando, em novembro de 1949, em sua coluna na Folha da Manhã, Hermilo anuncia a morte de Copeau, é a visão de Tolmache-va sobre o encenador francês que ele invo-ca: “Uma luta de morte travou-se entre Pa-ris e Copeau: Paris insistia no mau gosto em matéria teatral, continuava apreciando tão somente o espetáculo frívolo, procurando no palco somente um passatempo; Cope-au não se curvava, proclamando com sua obra o sagrado da arte cênica” (apud Borba Filho in Folha da Manhã, 12/11/1949). Anos depois, em seu ensaio Diálogo do encenador, escrito em 1964, Hermilo segue repercu-tindo as impressões de Galina Tolmache-va sobre Jacques Copeau, ressaltando a missão, quase “religiosa”, desse moderno criador da cena francesa, “um dos espíritos mais nobres e puros que já apareceram no mundo do teatro” (Borba Filho 2005 [1964], p.106), na tentativa de dar dignidade artís-tica a uma atividade então valorizada so-bretudo como entretenimento. Algumas páginas adiante, quando Hermilo trata da escola russa de encenação, as citações ao livro de Tolmacheva ganham ainda mais relevo. Referindo-se a Meyerhold, Hermilo escreve: “Lembro-me do que disse Galina Tolmacheva: ‘Balagnchik, peça simbolista de Alexandre Blok, com seu ambiente pro-pício, serviu-lhe para demonstrar a manei-ra de poder ‘teatralizar o teatro’, ao qual julgava perdido pelo naturalismo’” (apud Borba Filho, 2005 [1964], p. 124).

Ora, entre tantas outras questões, es-

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tas particulares duas demandas, pelo reco-nhecimento da dignidade artística da arte dramática e pela necessidade de se “tea-tralizar” o teatro, serão temas recorrentes em toda a vida criativa de Hermilo, dei-xando marcas de� nidoras em grande par-te da moderna dramaturgia nordestina. Não são, evidentemente, ideias exclusivas de Galina Tolmacheva, como também não pertencia apenas a La Guardia a de� ni-ção de tragédia moderna apresentada há pouco, nem a rigor esses entendimentos dependeram essencialmente do ambien-te teatral argentino para se desenvolver; mas o fato é que chegaram a Hermilo e, por meio dele ao teatro recifense, � ltra-dos pela indústria editorial portenha, com suas prioridades e com suas necessidades, e isso precisa ser levado em conta quando se busca um entendimento ampliado da modernização do teatro brasileiro.

De costas para a plateia, como no teatro moderno

Para além do campo estrito dos estu-dos teatrais, a percepção dessa silenciosa participação argentina em um movimento artístico nordestino talvez possa denunciar que as trocas entre culturas periféricas, co-lonizadas, são muito mais complexas e di-fusas do que geralmente se supõe. Em certa medida, o reconhecimento de que, embora decerto inopinadamente, ideias e valores teatrais argentinos, em suas respostas a es-tímulos europeus, puderam de alguma ma-neira interferir nos rumos da moderna dra-maturgia produzida no Nordeste brasileiro parece, por exemplo, ser um dado capaz de interpelar a imagem, irremediavelmente estática, e ainda muitas vezes evocada, de um “Brasil de costas para a América Lati-na”. O que se vê, nesse episódio da moder-nização do teatro nordestino, é um canal � uente, espontâneo, conectando dois polos culturais sul-americanos, ambos aparente-mente “de costas para a América Latina”; ambos igualmente atentos aos sinais emi-tidos pela moderna cena teatral europeia, intuindo ou não que tais informações, em última instância, contribuiriam para o au-

toconhecimento, para o aperfeiçoamento e para a valorização das potencialidades expressivas de suas próprias culturas, de seus próprios teatros. A� nal, talvez não seja incorreto pensar que, sem o conheci-mento do moderno teatro europeu, e sem o conhecimento de como o moderno teatro europeu era interpretado em outras cul-turas periféricas, como a argentina, talvez Hermilo e seu grupo tivessem levado mui-to mais tempo para perceber, por exemplo, a beleza e a modernidade cênica existentes nos espetáculos populares do Nordeste, como o bumba-meu-boi, o pastoril e o ma-mulengo, operação que originou uma ma-triz estética que, na atualidade, é cada vez mais estudada, dentro e fora do Brasil, por diversos setores dos estudos teatrais, não apenas no campo da literatura dramática, mas especialmente no que tange à arte en-cenação e à formação do intérprete teatral.

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REFERÊNCIAS

BORBA FILHO, Hermilo. Diálogo do encenador – Teatro do povo, Mise-en-scène e A donzela Joana. Prefácios Luís Augusto Reis; Carlos Reis; Leda Alves. Recife: Edições Bagaço e Edi-tora Massangana, 2005.

___________________. História do espetáculo. Rio de Janeiro: Edições Cruzeiro, 1968.

___________________. História do teatro. Rio de Janeiro: Livraria-Editora da Casa do Estu-dante do Brasil, 1950.

CARVALHEIRA, Luiz Maurício. Por um teatro do povo e da terra: Hermilo Borba Filho e o Teatro do Estudante de Pernambuco. Prefácio de Maximiniano Campos. Recife: Fundar-pe, 1986.

LA GUARDIA, Alfredo. El teatro contemporâneo. Buenos Aires: Editorial Schapire, 1947.

____________________. García Lorca – persona y creación. Buenos Aires: Sur, 1941.

PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

PRADO, Décio de Almeida. O teatro brasileiro moderno. São Paulo: Perspectiva, 1996 (1988).

REIS, Luís Augusto. Fora de cena, no palco da modernidade: um estudo do pensamento te-atral de Hermilo Borba Filho. Prefácio de Tania Brandão. Recife: Editora da UFPE, 2009.

SANS, José Maria Monner. Panorama del novo teatro. Buenos Aires: Editorial Lousada S. A., 1942.

SOLARI, Carla. Stanislavsky en la obra del director, maestro y actor Miguel Guerberof. Buenos Aires: Editorial Argus-a, 2012.

TOLMACHEVA, Galina. Creadores del teatro moderno. Buenos Aires: Editorial Centurión, 1946.

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Resumo

O palhaço Biribinha, do Teatro Biriba, encenou o esquete Que Bicho é Esse? O palhaço iniciou a cena apresentando um

per� l tolo e terminou-a demonstrando plena inteligência. Essa transição entre extremos aproximou a personagem de um tipo

especí� co de palhaço: o Contra-Augusto, consolidado na história do circo europeu pelo Trio Fratellini. No Brasil, desde o � nal do

Século XIX, os palhaços apresentaram características múltiplas em que prevaleceu o hibridismo de tipos, gêneros cênicos e

performances variadas. Com isso, eles não se aprisionaram às características de tolo e ingênuo do Augusto, nem à arrogância e

à “inteligência” dos Clowns Brancos.

Palavras-Chave: Biribinha; Contra-Augusto; Palhaço Brasileiro

Abstract

The clown Biribinha, of the Theater Biriba, staged the sketch “Which Animal is This?” The clown began the scene as a foolish

character but � nished it as an intelligent one. This transition between extremes is closely related to the character of a speci� c

type of clown: the Contra-Auguste, consolidated in the history of the European circus by the Trio Fratellini. At the end of the 19th Century in Brazil, clowns presented multiple characteristics, the

most prevalent of which were crossbreed of types, kinds of staging and mixed performances. As such, they were not bound to the

characteristic foolish and naive of Auguste, nor to the arrogance and “intelligence” of the White Clowns.

Keywords: Biribinha; Contra-Auguste; Brazilian Clown

1 Professor Titular da UNESP – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Campus de São Paulo - Instituto de Artes. Pes-quisador do CNPq.

CONTRA AUGUSTOMário Fernando Bolognesi1

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Em 19 de Janeiro de 2006, o Teatro Biri-ba, de propriedade de Cidinha Passos,2 em Itapema, Santa Catarina, apresentou a co-média Os Três Gostosões. Após a comédia, o palhaço Biribinha (Franco Adriano Pas-sos Rosa)3 encenou alguns esquetes. Dentre eles, destaca-se Que Bicho é Esse?

Além do Biribinha, Cristiano Cléber participou da cena. Cristiano anuncia a fama de Biribinha na cidade. Todos o jul-gam bonito, com boa estatura, bom gosto para se vestir, mas apresenta um grande defeito: é “meio burro”. Biribinha protesta e o amigo diz que não concorda com a opi-nião dos demais: ele não é “meio burro”, mas “burro inteiro”. O palhaço esbraveja e a� rma ser “intelijumento”, querendo di-zer, inteligente. Estudou cinco minutos e aprendeu a entrar pela porta e sair pela janela. Em seguida, a� rma que é tão inte-ligente que “toma sopa de letrinhas e faz cocô em ordem alfabética”.

Para provar à platéia que Biribinha é burro, Cristiano propõe uma aposta: toda pergunta que o palhaço não souber respon-der, terá de pagar um real. Em troca, a toda questão não respondida por Cristiano, Bi-ribinha terá direito a dez reais. O palhaço raciocina: “eu posso perder até nove; se ganhar uma, saio ganhando”. O desa� o foi aceito.

Cristiano inicia com as perguntas. Pri-meira delas: “Por que o cachorro entra na igreja?”. Biribinha vacila, não responde, e paga um real. Ele quer saber a respos-ta: “Ele entra na igreja porque seu dono entrou.” – explica Cristiano. Em seguida, “Por que o cachorro sai da igreja?”. “Por-que o dono saiu.” - responde prontamente Biribinha. Resposta errada: “Ele sai porque a porta está aberta.”. Mais um real perdido.

A partir de então, as perguntas de Cristiano ganham ritmo frenético, sem dar tempo à re� exão de Biribinha.

Terceira pergunta: “Biribinha, por que

2 Na mesma época, eram duas as companhias com o nome Teatro Biriba: a de Cidinha Passos, que tinha como palhaço o Biribinha, e a de Geraldo Santos Passos, o Biriba, que estava em Balneário Arroio do Silva, em Santa Catarina.

3 Uma descrição das condições estruturais e dos espetáculos do Teatro Biriba, bem como de seu palhaço Biribinha, pode ser consultada em meu livro Circos e palhaços bra-sileiros. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009, p. 143-151. Disponível para download em: www.culturaacademica.com.br.

meu pai casou com minha mãe?” O palha-ço responde rapidamente: “Porque a porta estava aberta.”. Cristiano protesta e ganha mais um real. Resposta: “Ele se casou com minha mãe porque se conheceram, namo-raram e resolveram se casar.”. Imediata-mente, a quarta pergunta: “Biribinha, o que é que anda pra frente com a barriga pra trás?”. O palhaço responde que é a vas-soura. Nada disso. De acordo com Cristia-no, “É a perna e sua barriga.”. Mais um real perdido.

Mais que depressa Cristiano vai fazer outra pergunta, mas é interrompido por Bi-ribinha – “Deixa eu perguntar também!”. Quebra-se o ritmo frenético e a cena ganha um tom propício ao acompanhamento do raciocínio.

E lá vem a pergunta do palhaço: “O que é um bicho peludo, que mora ali no canto da praia? Quando ele sai de casa para a 101 (referência à BR-101, que corta o estado de Santa Catarina, ligando-o aos demais), ele tem dez pernas. Ele toma o rumo de Join-vile, tem vinte pernas. Passou Joinvile ele está com quarenta pernas. Ele anda qua-trocentos quilômetros e está com trezentas pernas. Andou quinhentos quilômetros, está com novecentas e setenta e sete per-nas. Chegou no Rio de Janeiro e está com duas mil, novecentas e tralalá de pernas. Quando ele volta para Itapema, está com uma perna só e de muleta. Que bicho é esse?”. E Biribinha já cobra os dez reais a que tem direito. Cristiano ameaça pagar, mas recua e solicita que a pergunta seja re-petida. Biribinha se atrapalha, pois esque-cera cidades, quilometragens e número de pernas. Mesmo assim, repete a pergunta, reinventando e modi� cando locais, distân-cias percorridas e quantidade de patas do bicho. Apenas o � nal se mantém: uma per-na e de muletas.

O companheiro não sabe a resposta e paga os dez reais apostados. No entanto, pondera que a toda pergunta que � zera, ele revelava a resposta. Pergunta, então, a Biribinha: “Que bicho é esse?”. O palhaço responde: “Pega um real que eu também não sei!”. E termina o esquete exclamando:

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“E eu que sou burro!”.

Biribinha no esquete Que Bicho é Esse?Foto: Mario F. Bolognesi

O esquete apresentado, cuja dramatur-gia está gravada, na prática do circo-teatro, na memória dos artistas, tem como motivo inicial a falta de inteligência do palhaço. De fato, tudo parece encaminhar para essa constatação. As perguntas de Cristiano não recebem respostas satisfatórias. O primeiro recurso ao qual o palhaço se apega é a asso-ciação imediata da resposta correta da per-gunta anterior como solução para a ques-tão seguinte. Assim, por exemplo, a porta aberta, que serviu ao cachorro para sair da igreja, é tomada como resposta para o casa-mento dos pais de Cristiano. Evidentemen-te, esse recurso só ganha e� cácia quando o ritmo da cena se acelera, de forma a consti-tuir uma espécie de continuidade no racio-cínio do palhaço.

Mas as prerrogativas se invertem e o palhaço apresenta uma pergunta nada ime-diata e estapafúrdia, se considerada com base em dados de realidade. A ausência da lógica factível é substituída pelo ardil da abstração que, do ponto de vista lógi-co, apresenta so� sticação de pensamento. Tudo tem seu início no momento em que Biribinha se convence a entrar na aposta: se perder nove e ganhar uma apenas, ele sairia ganhando. Ao � nal, a astúcia da ação raciocinada prevalece sobre os dados ime-diatos e verossímeis do jogo de pergunta e resposta. O palhaço se supera e seu racio-

cínio deixa o terreno do imediato e passa a operar no campo abstrato das relações e dos valores numéricos. Atente-se, todavia, que tal transição está associada à mudança de ritmo da cena: o ritmo frenético induz a associação de respostas; o ritmo lento asse-gura a e� cácia do raciocínio abstrato.

Biribinha é um palhaço com caracte-rísticas do Augusto: sapatos imensos, rou-pas extravagantes, com calça tipo macacão xadrez, camiseta listrada, maquiagem so-brecarregada, nas cores primárias, branco, vermelho e preto. No tocante às caracterís-ticas psíquicas, a estupidez e o raciocínio lento são propriedades que se amalgamam à personagem-tipo Augusto. Todavia, Biri-binha demonstrou superação da estultice. Ele transitou pelos dois extremos: a tolice e a � na inteligência abstrata. Estaria ele fu-gindo da tipologia do Augusto? Sim. Ele se aproximou de um terceiro tipo (os dois pri-meiros são o Augusto e o Clown Branco), o Contra-Augusto.

A criação de um terceiro tipo entre os cômicos circenses é atribuída, na história européia dos clowns, aos Irmãos Fratelli-ni, em 1909. (Simon, 1988, p. 168) Até en-tão, a comicidade no picadeiro circense era conduzida por uma dupla: o Augusto e o Clown Branco, o dominado e o dominador, respectivamente.

O trio Fratellini era formado pelos ir-mãos Paolo (Paul), Valentino-Alberto (Al-bert) e François. François (1879-1951) era o Branco; Albert (1885-1961), o Augusto e Paul (1877-1940), o Contra-Augusto.

O Contra-Augusto se posta entre os dois extremos: a sublimidade, a delica-deza, a inteligência e o autoritarismo do Branco e o grotesco, a rudeza, a tolice a in-genuidade e a subordinação do Augusto. Nas palavras de Albert Simon, entre dois extremos: “o super-homem pássaro Fran-çois e o sub-homem larvário Albert, Paul, o burguês bem vestido, o homem ordinário, carregando seu espanto e seus furores vau-devilescos.” (1988, p. 171)

As características apontadas por Simon trazem à tona uma personagem cômica as-sociada ao homem comum das cidades. O Augusto, como se sabe, tem suas matrizes

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na vida campesina, assim como o Branco tem suas aproximações com o universo aristocrático. O Augusto nuançado, deno-minado tecnicamente de Contra-Augusto, consagrado no ambiente circense por Paul Fratellini, aproxima-se da vida urbana e citadina.4 De acordo com Henry Thétard, “... ele representava o pequeno burguês irremediavelmente convencido de sua su-perioridade e, com ela, sempre pronto a cometer canalhices...”. (In: Lévy, 1997, p. 20). Em outras palavras, a ingenuidade, a tolice e a subordinação se manifestam no Contra-Augusto, de acordo com a neces-sidade cênica, mas tais características não são estanques e podem, com naturalidade, oscilar e transitar para o seu oposto.

O reconhecimento, por parte dos estu-diosos europeus, da inovação trazida pelos Fratellini na comicidade circense aloja-se exclusivamente no ambiente francês em que os papéis cênicos eram de� nidos. Paul, nesse contexto, surge como uma espécie de síntese dialética da oposição original esta-belecida entre o Branco e o Augusto.

A entrada no jogo cômico circense de uma personagem que apresenta caracterís-ticas físicas, psíquicas e morais de� nidas e que transita entre as qualidades e defeitos dos outros dois parceiros, que estão em si-tuação de oposição, traz implicações diver-si� cadas e ao mesmo tempo possibilidades de avanço no tocante à complexidade dra-matúrgica. A cena, a partir de então, pode se desvencilhar do jogo de opostos (Branco e Augusto). Isto é, os opostos aparecem, porque são condições para qualquer con-� ito cênico ou situação cômica, mas a ter-ceira personagem possibilita a superação do con� ito ou situação antagônica inicial. Como apontam Levy e Serrault,

Com os Fratellini, a chegada de um terceiro personagem vai modi� car a ação cênica. Não que o estilo das en-tradas seja radicalmente alterado, nem que as relações no jogo se tornaram idílicas. Mas a presença de um novo

4 O “aburguesamento” do Augusto, ou seja, a migração de seu lastro social simbólico, do camponês para o citadino, foi fartamente explorado no âmbito do cinema, especialmen-te do cinema mudo cômico.

cômico vai forçosamente modi� car a ação, criando meios para um melhor esboço dos caracteres dos dois augus-tos, in� uenciando o clown e, amplian-do as possibilidades de intrigas, vai conduzir a uma comédia clownesca mais nuançada. (1997, p. 36)

Mas, os parâmetros psíquicos, morais, físicos e comportamentais de� nidores dos tipos franceses (quiçá europeus) não devem ser tomados como paradigmas conceituais para a análise de todos os palhaços. A his-tória não se efetiva por reprodução � el de alguns supostos inovadores. Aliás, bem ao contrário: apenas por efeito analítico pode-se reconhecer a novidade trazida pelo trio Fratellini. O contato e a imersão do palhaço na cultura de cada região apresentam par-ticularidades para as quais a história nem sempre está atenta.

O caso brasileiro é exemplo dessa ne-cessidade de relativização. Desde a passa-gem do século XIX ao XX, os palhaços es-caparam da � xação tipológica e oscilaram com freqüência entre os opostos apontados como de� nidores dos tipos originais da co-micidade circense. Como exemplo, pode-se recordar Benjamin de Oliveira, 5 que, de acordo com Daniel Marques,

... irá recombinar elementos da tradi-ção artística com as exigências de um crescente mercado cultural, deslizan-do conceitos estanques, e, através de canais transversais e oblíquos, conse-guir destaque e se integrar no panora-ma sócio-cultural carioca do período.

Suas peças são o testemunho destas operações de hibridização e mediação cul-tural, mas também os indícios das tentativas e do esforço empregado para se fazer aceito nesta sociedade. Ao conjugar em seu texto dramático, pantomimas circenses, muta-ções de mágicas, apoteoses, apresentações musicais, declamações, números de palha-ços, oferecendo ao público uma nova forma de entretenimento, o negro Benjamin ‘esca-pa’ de uma categorização mais rígida, reali-

5 Mas não apenas ele, como também seus antecessores. (Silva, 2007, p. 119-122)

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zando sua obra em uma região intersticial, intervalar. (Marques, 2004, p. 51)

As observações acima se baseiam em estudo histórico, levado adiante por Ermí-nia Silva em sua tese de doutorado (2003), As múltiplas linguagens da teatralidade cir-cense: Benjamin de Oliveira e o circo-teatro no Brasil no � nal do século XIX e início do XX, 6 editada em livro sob o título Circo-teatro: Benjamin de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. 7 Segundo a historiadora,

O espaço circense consolidava-se como um local para onde convergiam diferentes setores sociais, com possi-bilidade para a criação e expressão das manifestações culturais presentes na-queles setores. Através de seus artistas, em particular os que se tornaram palha-ços instrumentistas/cantores/atores, foi se ampliando o leque de apropriação e divulgação dos gêneros teatrais, dos ritmos musicais e de danças das várias regiões urbanas ou rurais, elementos importantes para se entender a constru-ção do espetáculo denominado circo-teatro. (Silva, 2007, p. 83)

O espetáculo circense, no Brasil, desde o � nal do século XIX, investia no hibridis-mo, fazendo aproximar tanto as matrizes européias de muitos de seus artistas, como as brasileiras, especialmente com os palha-ços, mesclando em um único espetáculo diversos gêneros de números, como apre-sentações equestres, ginásticas, musicais, funambulismo, mímica, bailado, exposição zoológica etc.

Contudo, as apresentações musicais desenvolvidas pelos cômicos canto-res e tocadores de violão, as cenas cômicas e as pantomimas iam se tor-nando, cada vez mais, os principais carros-chefe dos espetáculos circen-ses, transformando aqueles que os realizavam, assim como os que os produziam, em sucessos garantidos e premiados. Esse foi o caso de Ben-

6 Campinas: Departamento de História do Instituto de Filoso� a e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, 2003. Tese de doutorado.

7 Disponível para download em: www.funarte.gov.br/edicoes-on-line/.

jamin de Oliveira, identificado nos jornais como o “laureado clown bra-sileiro”. (p. 189-190)

Diante destas constatações, com re-ferencial histórico do � nal do século XIX, torna-se impossível pensar o palhaço ne-gro como apegado rigidamente às caracte-rísticas do Augusto. A dinâmica histórica e cultural da República, cuja capital era o Rio de Janeiro, apresentava um processo acentuado de hibridização diante da con-� ituosa relação entre a música de câmara e de corte, de matriz européia, como tam-bém polcas, modinhas, mazurcas, e a músi-ca dos terreiros e das ruas, particularmente o lundu, o maxixe e as formas originárias do samba. 8 Tal dinâmica se estendeu à atu-ação dos palhaços nos palcos e picadeiros dos circos, que além das estradas circenses, encenaram esquetes, adaptaram obras co-nhecidas, como é o caso do próprio Ben-jamin, que apresentou uma versão de O Guarani, compuseram dramas e comédias, cantavam, tocavam violão, recitavam poe-sias etc. É impossível conceber tal dinamis-mo tendo por base o apego ao tipo � xo e rígido de uma personagem voltada ao uni-verso rural, marcada pelo raciocínio lento e pela ingenuidade, como é o caso do Au-gusto. No Brasil, os palhaços adotaram a mobilidade entre os tipos aproximando-se do Contra-Augusto francês, antecipando-o por pelo menos duas décadas.

Biribinha é herdeiro dessa experiência múltipla e híbrida. Sua formação artística se deu, empiricamente, na prática do circo-teatro que, além de dramas e comédias, levavam (e ainda levam) à cena esquetes, chanchadas, shows musicais, show de ca-louros etc. O palhaço está presente em praticamente todas as modalidades, como uma espécie de arauto, mestre de cerimô-nias, comediante, humorista, animador e agitador de cena, quase sempre atuando como contraponto cômico. As inúmeras funções exercidas pelo palhaço na prática do circo-teatro impossibilitam o apego a um tipo especí� co.

8 Consultar, a esse respeito, os estudos de José Ramos Tinhorão e de Roberto M. Moura, indicados nas Referências Bibliográ� cas.

CONTRA AUGUSTO: MÁRIO FERNANDO BOLOGNESI 91

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REFERÊNCIAS

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CONTRA AUGUSTO: MARIO FERNANDO BOLOGNESI92

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Resumo

A discussão a seguir pretende supor um conceito do self, quando considerado como uma qualidade elaborada pelo atuante cênico, em performances cênicas. Sem prever que o self do atuante sofre uma mutação para uma outra e diferente instância do si-mesmo,

este artigo defende a existência de certas propriedades de um modo operativo do self, quando no desempenho cênico. Esse

modo constitui-se e é retroalimentado pela sua operacionalidade mesma, sem se tornar algo diverso supostamente incorporado

pelo atuante. Por ser um estado apreendido, o alcance do estado do self, em seu modo operacional, advoga a relevância empírica

de sua aquisição técnica, alicerçada na execução de ações orgânicas, durante a atuação cênica.

Palavras-chave: self performativo; ações orgânicas; impulso; percepção; atuante; espectador

Abstract

The following discussion intends to argue a concept of self, when it is considered a quality elaborated by the scenic actant, into

scenic performances. Without stipulating that the self mutates to another and different self, this article argues for the existence of certain properties of an operating mode of the self, while on

scene. This mode is composed and fed back by its operability itself, without becoming something supposedly incorporated

by the actant. By being a technical challenge, the achievement of such state of self, in its operational mode, advocates the empirical relevance of its acquisition through technical means, based on the

enforcement of organic actions during the scenic performance.

Keywords: performative self; organic actions; impulse; perception; actant; spectator

1 Bacharel em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília, Mestrado em Artes Teatrais pela Univestity of Leeds, Doutorado em Praticas Performáticas, pela University of Exeter e Pós-doutorado em pesquisa sobre Mímica Corpórea, em Pomona College, University of Claremont. É professor do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará (ETDUFPA/ICA/UFPA), onde também orienta pesquisas no Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico de Atuantes – GITA. Tem atuado em teatro, dança, cinema, televisão e dublagem.

Notas sobre o self durante a atuação cênica

Cesário Augusto Pimentel de Alencar1

NOTAS SOBRE O SELF DURANTE A ATUAÇÃO CÊNICA: CESÁRIO AUGUSTO PIMENTEL DE ALENCAR 93

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NOTAS SOBRE O SELF DURANTE A ATUAÇÃO CÊNICA: CESÁRIO AUGUSTO PIMENTEL DE ALENCAR94

A procura por uma de� nição e apli-cação do estado de identi� cação do atu-ante cênico durante a atuação se anuncia em múltiplas heranças estéticas teatrais, tais como o Romantismo, o Realismo, o Simbolismo, o Naturalismo, o Expressio-nismo, o japonês Noh, Ópera de Pequim, o Teatro Absurdo, a Commedia dell’Art, a Mímica Corporal Dramática e outros em que o ator2 toma lugar como o núcleo e a essência do desempenho cênico.

Veri� cando-se esses rumos de esti-lo, possível se torna a analogia, ocorrida quando a atuação em cena alcança qua-lidades superlativas de domínio psicofí-sico pelo atuante, com aquilo apropria-damente intitulado, pelo diretor polonês Jerzy Grotowski (1933-1999) “transilumi-nação”, onde o ator oferece ao espectador “um completo presente de si-mesmo” (in Schechner; Wolford, 2001, p.31). Nessa a� rmativa doação do self, pode-se enten-der, na arena do desempenho cênico, que a alimentação e retroalimentação do self ocorre pela via do intercâmbio de percep-ções entre o atuante3 e o espectador.

Considerando tal ensejo de interação perceptual, podemos indicar, utilizando-nos da basilar teoria da “percepção in-terpessoal” (Laing; Phillipson; Lee, 1966, p.3), que ela advém da necessidade, ine-rente ao sujeito, de, seja por qual maneira, contatar outro sujeito. Relevante aspecto no desenvolvimento do self, a urgência em jogarem-se mutuamente as percep-ções se estabelece pela evidência de que o sujeito é in� uenciado por e in� uencia a todos com os quais está em contato. Con-forme de� nem seus autores,

2 Considero, aqui, o ator e o performer como agentes similares, atuantes de uma mes-ma função, qual seja o desempenho artístico-cênico. Embora haja um rol de opiniões justi� cadas sobre se alguém está performando ou atuando, ambas essas situações mostram-se intercambiáveis, na prática. O sentido da palavra “performer”, em alguns casos, explicitamente não difere daquela conferida do sentido da palavra “ator”. Para Richard Schechner, por exemplo, o “performer” estabelece que “sua própria presença no palco é o centro do evento” (1988, 64). Em seu intercultural “Teatro das Fontes”, Jerzy Grotowski (1933-1999) considera os performers agentes ancestrais, tais e quais os presentes em “formas pré-colombianas, as quais tem abrangentemente penetrado as estruturas visuais, ‘performativas’ e espetaculares da vida católica no México, Peru, Colômbia e em outros lugares” (in Pavis, 1996, p.232). Tradução do autor. As demais traduções, se não apontadas por serem de outra autoria, foram feita pelo autor deste artigo.

3 Por “atuante” entenda-se o sujeito ator ou performer, quando em trabalho. O termo se empresta da socio-psicologia Theodore R. Sarbin e Vernon L. Allen, em sua “Teoria do papel” (cf. referências bibliográ� cas ao � nal deste artigo).

[...] Eu não sou o único perceptivo e agente [que faz perceber-se] em meu mundo. O mundo é povoado por ou-tros, e esses outros não são apenas objetos do mundo: eles são centros de reorientação para o universo obje-tivo. Tampouco esses outros simples-mente outros eus. Os outros são você, ele, ela, eles, etc4. (idem, ibidem).

Essa necessária relação com “outros”, encaminhada por uma orientação mú-tua entre você, eles, eu e nós, tem sido encorajada em práticas cênicas onde a “transiluminação” ocorre. Circunscritos ao espaço e tempo de seus encontros, os participantes são percebidos e percebem suas atitudes expressas em ações. Exis-tem, nesse ponto, seu próprio organismo, o organismo do outro, e limites pessoais a serem confrontados pela “percepção interpessoal”. Esses limites, entendidos como aspectos idiossincráticos e cultu-rais, variam de sujeito para sujeito ou, no campo de ação das artes cênicas, de atu-ante para atuante. O que guia essa con-duta inter-perceptiva resulta, portanto, de uma convergência entre o esforço de-� agrado pela atuação cênica e o empenho em percebê-la, na mesma medida em que deriva do trabalho de observar e saber-se observado, seja por parte do atuante cênico, seja por parte do espectador. Por sua básica, rudimentar mesmo, natureza � rmada nas relações entre a arte e por quem a frui, a “percepção interpessoal” quali� cou-se, também por de� nição de Jerzy Grotowski, como “pobre”(in Sche-chner; Wolford, op. cit., p.34). A pobreza aludida, contudo, encontra o registro de sua inadequação na nossa mediada/ime-diata comunicação costurada em um rede de discursos de mão-única, onde a virtu-alidade se estabelece: imagens virtuais, sons virtuais, expressões virtuais, conta-to virtual e humanidade virtual. Assim, a não-mediada “percepção interpessoal” se adapta à operacionalidade do self du-

4 Do original: “[...] I am not the only perceiver and agent in my world. The world is peopled by others, and these others are not simply objects in the world: they are centres of reorientation to the objective universe. Nor are these others simply other I’s. The others are you, him, her, them, etc.”.

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rante a atuação cênica, via contato direto, i.e. “pobre”, entre o atuante e o especta-dor.

Segundo a essência e núcleo do de-sempenho actancial cênico, o self do atu-ante, em seu modo operacional, vale dizer, quando em atuação em cena, sus-tém o controle de atributos psicofísicos, controle esse que tende a provocar os sentidos do espectador. Para o atuante, a otimização desse controle trabalha como uma meta a ser alcançada ao longo de seu aprendizado técnico. Daí porque o self, em tal estado, consagra o processo de apreensão, desenvolvimento e prática de técnicas de atuação como requisitos à conquista e manutenção de seu modo operacional, em cena.

Longe de transformar seu self com vistas à obtenção de características es-pecí� cas úteis ao aprimoramento de sua arte, o atuante cênico persiste em operá-lo tecnicamente, na direção de um modo operacional cujo traçado alimenta seu organismo com maleabilidade e domínio neuromuscular. Por ocorrer onde toma lugar o “texto performativo” (Elam, 1980, p.3), a esse modo operacional do self cabe a designação, mais precisa, de self perfor-mativo. Seu contorno de referência, aqui, vem a ser a estimulação da psico� siolo-gia do atuante sustentada por ações com-prometedoras de todo o organismo delas executor. Essas ações, orgânicas portan-to, resultam da integração de movimen-tos com suas respectivas causas, quan-do e conforme o atuante possa acessar e controlar tais causas, intenções, intentos, objetivos, impulsos ou outro termo pres-tativos a referendar o surgimento de tais ações. Desse modo, as ações orgânicas derivam de uma máxima integração das faculdades orgânicas do atuante encon-tradas na sua � siologia e psique durante a execução de movimentos.

David Feldshuh, ator e teórico norte-americano, identi� ca a atividade orgâ-nica como resultante do “conhecimento racional e intuitivo”, dentro do qual o “conhecimento sobre coisas” deriva da “informação acumulada” pelo “parti-

cipante” (executor da ação). A ativida-de orgânica, ainda, envolve todos os ti-pos de ações que advenham de um total compromisso do “participante” com as mesmas. Por esse compromisso, pode-se antever a condição de envolvimento or-gânico absoluto. Logo, Feldshuh identi� -ca a atividade orgânica intermediando-a com o empenho irrestrito de todo o or-ganismo - aquilo garantidor dessa ativi-dade - e a falta deste comprometimento - aquilo que destitui, da atividade orgâ-nica, sua organicidade - em termos de inclusão agenciada, por um lado, e obser-vação de do sujeito sobre si-mesmo, por outro:

Qualquer atividade é orgânica, desde que todo o organismo participe dela. Ela [a atividade] perde sua qualidade orgânica na mesma medida em que o organismo se posiciona fora de si mesmo, tornando-se um especta-dor do ato [realizado] no momento.5 (1976, p.88)

Dois aspectos relacionados ao concei-to de “atividade orgânica” estão presen-tes na atuação teatral alicerçada, pelo self performativo, na execução de ações or-gânicas: o aspecto “intuitivo” e o “racio-nal”. Primeiramente, a ação orgânica re-sulta de escolhas intuitivas tomadas pelo ator durante o desenvolvimento dessa ação pelo tempo necessário; segundo, a ação orgânica é também “racional”, dado que o ator interfere na eleição e molda a(s) ação(ações) de acordo com critérios técnicos.

Em relação à substância do self per-formativo, seu estímulo deriva de uma unidade potencial interior. Obtido com a prática regular de treinamento psicofísi-co6, essa unidade potencial requer, para

5 Do original: “Any activity is organic insofar as the whole organism participates in it. It lacks this organic quality to the degree that the organism stands outside of itself and is a spectator to the act of the moment”.

6 O treinamento psicofísico entende-se aqui como um conjunto de procedimentos meto-dológicos � xos em estrutura e efetuação perene. De valia para o alcance de metas, vis a vis o próprio domínio psicofísico, esse treinamento, eminentemente orgânico, exige vigilância quanto a mensuração dos resultados. Nossa experiência, particularmente, envolve, como treinamento psicofísico, algumas artes marciais e meditativas asiáticas, como o ioga, o taijiquan, o kalarippayattu, o karatê, o liangong e o arnis kali.

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NOTAS SOBRE O SELF DURANTE A ATUAÇÃO CÊNICA: CESÁRIO AUGUSTO PIMENTEL DE ALENCAR96

� ns de seu alcance por parte do atuante, ainda segundo Feldshuh, “uma pronti-dão interior que permite ao ator integrar totalmente seu ofício, trazendo-o assim ao impulso criativo do momento”7 (idem, ibidem, p.85). A mencionada “prontidão interior” equivale ao que tem sido desco-berto por pesquisadores da atuação cêni-ca, ao longo de diversas culturas e épo-cas. Por exemplo, o “impulso criativo do momento” relaciona-se com a inteireza orgânica presente na motivação “psico-física” preconizada pelo russo Michael Chekhov (1891-1955). A contemporânea atriz e escritora inglesa Bella Merlin ve-ri� ca, na motivação “psico-física” (i.e., orgânica, no sentido de que todo o orga-nismo dela participa) chekhoviana, um sincronismo entre o “sentimento interno” e a “expressão externa”, a partir do uso de uma técnica especí� ca onde o corpo do atuante é visto como uma “casca de noz”, por conter, em seu bojo, atributos psíquicos sustentadores do vigor físico (Merlin, 2001, p.27). Em outra similarida-de, o “impulso criativo do momento”, ci-tado acima por Feldshuh, exempli� ca-se no “o que ocorria se...?”8, formulado pelo diretor e ator russo Constantin Stanisla-vski (1836-1938), e esclarecido pelo dra-maturgo, teórico e historiador inglês Jean Benedetti (1930-2012) como a questão colocada pelo ator em direção a si mes-mo, em sua tentativa de tornar verossí-mil o drama que está sendo atuado, como o possa ser a partir desta indagação: “O que eu faria se eu estivesse nessa situa-ção?” (Benedetti, 1998, p.154).

Ou o mesmo “impulso”, cuja origem Grotowski encontra na prosaica e empi-ricamente veri� cável “região lombar”, deve preceder o próprio movimento”9 (1975, p.160). Outra aplicação do “impul-so”, indicado por diferente nomenclatu-ra, constitui aquilo que o diretor e ator norte-americano Phillip B. Zarrilli enten-

7 Do original: “an inner readiness that allows the actor to totally integrate this craft and bring it to the service of the momentary creative impulse”.

8 Do original: “what if?”

9 Do original: “must preced the movement itself”.

de como qualidades do ator nas circuns-tâncias de seu “engajamento no momen-to presente, [e] não a um � m ou meta”10 (1995, p. 180). Essa mesma qualidade, quando erigida nas orientações proferi-das por Zarrilli em suas sessões de trei-namento psicofísico, advém de uma re-gião no organismo do atuante, qual seja o “baixo-ventre”11. Ainda, consideremos, como exemplo do “impulso” às ações orgânicas, a obtenção, pelo atuante, de sua “pré-expressividade”, acorde de� ni-ção do “nível pré-expressivo” postulado pelo Teatro Antropológico, o qual “[…] relaciona-se com a presença (energia) e que precede – logicamente, se não cro-nologicamente – a real e crível composi-ção artística”12 (in Barba; Savarese, 1995, p.55). Essa variedade de de� nições tra-tam da mesma substância que, embora chamada diferentemente conforme enca-minhamentos sistemáticos de cada pra-ticante, de� ne-se por “impulso” da “ati-vidade orgânica”, entendida, na seara da atuação cênica, como “impulso” ação orgânica, i.e., à ação comprometedora do todo psicofísico do atuante e, por conse-guinte, geradora do estado aqui proposto como self performativo. Ainda que o “im-pulso” e a “ação” e o “sentimento inter-no” e a “expressão externa” possam ser incluídos no binômio causa e efeito, sua ocorrência e simultânea e intercalada. A � m de ser orgânico, o intervalo entre o “impulso” e seu efeito (ação orgânica) levaria, no máximo, o mínimo tempo de percepção pelos sentidos do espectador.

Tanto quanto observamos no pará-grafo anterior, mesmo que a noção de “impulso criativo do momento” (Fel-dshuh, op.cit., p.85) corrobore a uma compreensão do estímulo à ação orgâni-ca, ele não é o único. Contudo, justi� ca-se a escolha em utilizar o termo “impulso”,

10 Do original: “engagement in the present moment, not toward an end or goal”.

11 Anotações minhas, conforme sessões de treinamento psicofísico includentes do ioga e o kalarippayatty indianos e o taijiquan chines, por mim atendidas, sob a supervisão do professor Phillip Zarrili, na Universidade de Exeter, Inglaterra, durante os anos de 2000 a 2003.

12 Do original: “[...] has to do with presence (energy) and which precedes – logically if not chronologically – real and actual artistic composition”.

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pelo fato de a mesma permitir a indica-ção da magnitude de várias propostas técnicas voltadas à nutrição do self per-formativo através das ações orgânicas do atuante cênico.

Com o � to de clari� car, resumida-mente, a adequação sequencial entre o “impulso” causador das ações orgânicas, as quais, por sua vez, promovem o sur-gimento e manutenção do self performa-tivo, re-estabelecem-se, a seguir, algumas especi� cações. O self é chamado perfor-mativo, haja vista ocorrer na ambiência e nas circunstâncias da performance cênica, onde algumas condições do organismo do atuante operam de forma plena, em sua inteireza psicofísica. A proposição de um modo operacional do self, ao invés de um modo operacional do corpo, da alma ou da mente corresponde à abrangência do self enquanto identidade quali� cada de acordo com o trabalho sobre ele emprega-do; em outras palavras, o self subsome, em sincronia, o etéreo e o tangível, na medida em que ultrapassa os limites do corpo, da mente, da alma e da personalidade, de� a-grando um compromisso ideal de todo o organismo do atuante.

Conclusivamente, o self performativo pode perceber-se tanto pelo ponto de vis-ta do atuante cênico quanto pelo ponto de vista do espectador. Para esse último, o self performativo quali� ca as ações orgâ-nicas empreendidas pelo atuante, o que permite, ao espectador, perceber, nessas ações, uma intensidade não usual, quan-do comparadas a movimentos feitos no dia-a-dia das necessidades e funções des-se mesmo espectador. Percebendo essa intensidade por meio da ocorrência da “percepção interpessoal” (Laing; Phillip-son; Lee, 1966, p.3) entre o espectador e o atuante cênico, consideramos que ela ocorre na trama psicofísica do “texto per-formativo” (Elam, op.cit.) Quanto ao atu-ante cênico, não lhe cabe tornar objetivo o seu self, julgando-o ou tentando modi-� cá-lo, mesmo hipoteticamente; ao invés, cabe ao atuante a coisi� cação do todo ex-terior a si-mesmo, fazendo perdurar um alto grau de percepção direcionada ao

ambiente, onde se inclui o espectador. A atuação cênica, desse modo, bem pode-ria ser sinônimo de observação, audição e demais sentidos aplicados, a � m de que corrobore ao surgimento e à manutenção daquele especí� co modo operacional do self na performance cênica, nomeada-mente, o self performativo.

Dadas essas considerações, acredita-mos colaborar a demais discussões e dis-cursos remissivos ao estado de autoiden-ti� cação do atuante cênico durante seu ofício, bem como os meios de alcançá-lo.

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NOTAS SOBRE O SELF DURANTE A ATUAÇÃO CÊNICA: CESÁRIO AUGUSTO PIMENTEL DE ALENCAR98

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NOTAS SOBRE CENOGRAFIA: EVELYN FURQUIM WERNECK LIMA 99

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Resumo

A hipótese principal deste artigo é que – desde a época da primazia do texto dramatúrgico sobre a cena – o teatro recorreu aos efeitos visuais

espetaculares que provocavam a excitação de todos os sentidos, em especial devido ao desenvolvimento de teorias e práticas cientí� cas que se sucederam desde o Renascimento, fazendo migrar das ciências para as artes cênicas inúmeros recursos técnicos. No sentido de comprovar

a espetacularidade destas encenações utilizamos como metodologia de pesquisa a análise da dramaturgia de três peças de Shakespeare e três de Molière. Paralelamente constatamos que “o espetacular” continua

bem vivo, e que tem sido a tônica de encenações contemporâneas.

Palavras-chave: efeitos visuais; cenogra� a; espetacularidade

Abstract

The main hypothesis of this paper is that – since the time of the primacy of the dramaturgic text over the scene performance– theatre enlisted

the spectacular visual effects that provoked excitement to every sense, in particular due to the development of theories and scienti� c practices

that happened since the Renaissance, causing the migration of technical resources from sciences to many scenic arts. To check the spectacularity of

these performances we used as research methodology the analysis of three Shakespeare’s plays and three plays by Moliere as well as the analysis of

some iconography of the period. At the same time we noticed that “the spectacular” remains alive and well, and that it has been the main object of

contemporary performances.

Keywords: visual effects; stage design; spectacularity

1 Este artigo é decorrente da pesquisa apoiada pelo CNPq e pela FAPERJ.

2 Doutora em História Social pela UFRJ/EHESS (1997). Pós-doutora pela Universidade de Paris X e Estágio Senior no Collège de France (2011). Atualmente é professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena o Laboratório de Estu-dos do Espaço Teatral e Memória Urbana. É pesquisadora do CNPq e da FAPERJ. É membro titular do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural e do Centre de Recherches Interdisciplinaires sur le Monde Lusophone. Autora dos livros premiados Arquitetura do Espetáculo (2000) e Avenida Presidente Vargas: uma drástica Cirurgia (1990 e 1995). Publicou Das vanguardas à tradição (2006) e organizou Espaço e Teatro (2008), Espaço e Cidade (2004 e 2007) e Cultura, Patrimônio e Habitação (2004). Publicou em co-autoria Arquitetura e Teatro (2010) e Entre arquiteturas e Cenogra� as. Editora especial da revista O Percevejo n. 10, e das revistas opercevejonline 2009.2, 2012.1 e 2012.2.

Notas sobre cenografia. Dispositivos cênicos espetaculares em espetáculos do

século XVII e na contemporaneidade1

Evelyn Furquim Werneck Lima2

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NOTAS SOBRE CENOGRAFIA: EVELYN FURQUIM WERNECK LIMA100

Introdução

As diferentes possibilidades da pas-sagem de um texto dramatúrgico para a encenação moderna e contemporânea fo-ram discutidas com e� cácia pelo teórico Patrice Pavis no capítulo “L’enfantement de la scène” do livro Le théâtre au croise-ment des cultures (1990). Por outro lado, o historiador Roger Chartier - enfocando autores do século XVII-, analisa espetácu-los que foram apresentados em diferentes lugares teatrais e para públicos diversos, gerando textos só posteriormente publi-cados, às vezes por editores piratas que haviam assistido à peça encenada (Char-tier, 2002). Deste modo, não era surpresa no Seicento, que a encenação precedesse à publicação. Os textos das peças, os fron-tispícios das edições e as gravuras dispo-níveis foram aqui analisados como fontes primárias para dar a ver o que podem ter sido as organizações cenográ� cas funda-mentadas no espetacular vigentes no sé-culo XVII. A hipótese principal deste ar-tigo é que– desde a época da primazia do texto dramatúrgico sobre a cena – o teatro recorreu aos efeitos visuais espetaculares que provocavam a excitação de todos os sentidos, em especial devido ao desenvol-vimento de teorias e práticas cientí� cas que se sucederam desde o Renascimento, fazendo migrar das ciências para as artes cênicas inúmeros recursos técnicos.

Vale lembrar que a Itália, que havia assumido a hegemonia da história cultu-ral desde o Quattrocento, sobre os pressu-postos da antiguidade clássica, foi a loco-motiva de intensas atividades artísticas e recuperou as trocas de sociabilidade tanto nos palácios da aristocracia, quanto nas praças públicas. Explorava-se naque-le momento todas as possibilidades da arte e da técnica para produzir uma ma-quinaria teatral so� sticada que permitis-se criar nos palcos os efeitos e aparições propostos pela dramaturgia da época. Nos séculos XVI e XVII, coube aos enge-nheiros italianos Giovanni Battista Ale-otti, Nicola Sabbattini e Giacomo Torelli, entre outros, criar formas variáveis de

impressionar o público teatral por meio de máquinas, alçapões, elementos cênicos de intensa visibilidade que conduziam ao sonho (Berthold, 2006, p.335). Elementos usados como materiais cênicos formam sistemas signi� cantes como cenários, � -gurino, iluminação, rapidez de execução, con� guração espacial, e coreogra� a, es-tabelecendo a atmosfera de sonho ou de estranhamento (Pavis, 2003, p. 161).

Aleotti desenvolveu um sistema que diferia muito das primeiras cenogra� as renascentistas e o aplicou no Teatro Far-nese (1618-1628) construído para o Duque de Parma já dotado de proscênio e de sala com arquibancadas em “U”, e, pouco de-pois, com a divulgação do livro Pratica de fabricar Scene e Machine ne’ Teatri, de Sab-battini, em 1638, novas propostas foram introduzidas na cenogra� a, sempre no intuito de propiciar o “espetacular” em cena. Simultaneamente, Torelli se trans-formou no “grande mágico” do teatro ita-liano, introduzindo visões que causavam maior profundidade ao palco. Outros en-genheiros do Seicento criaram engenhos tais como a utilização de roldanas, ala-vancas, painéis deslizantes na cenogra� a, aumentando a capacidade de ilusionismo nos palcos.3

Entretanto, esta espetacularidade não é privilégio do teatro dos séculos XVI e XVII, pois o espetacular ainda pode ser percebido nas peças contemporâneas. Este estudo visa a comprovar duas situa-ções da história da cultura, em palcos que não seguem especi� camente o modelo italiano, obras nas quais o “espetacular” assumiu um caráter impactante, ainda que na primeira situação os depoimen-tos presenciais sejam bastante reduzidos como fontes históricas. A segunda situ-ação busca problematizar as encenações contemporâneas que prescindem dos palcos italianos, e portanto da caixa cêni-ca de milagres e ilusionismos, mas ainda que fora do edifício teatral ou dentro de uma antiga forma, como a elisabetana re-

3 Aleotti trabalhou inicialmente na corte de Ferrara, Sabbattini em Pesaro e Torelli em Veneza, porém seus trabalhos foram seguidos en todo o continente europeu. (Berthold. Op. Cit., 2006, p.335).

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construída, continuam a utilizar o “espe-tacular” de diversas maneiras, inclusive explorando a universalidade de certos conceitos locais.

Para investigar a primeira situação, ainda nos séculos XVI e XVII, recorremos às didascálias dos textos, e aos poucos in-dícios iconográ� cos disponíveis para bus-car comprovar esta espetacularidade que migra das páginas para o espaço cênico ou vice-versa. Naquele período histórico a espetacularização era parte integrante do espetáculo teatral, elemento esperado pela audiência fosse pelos textos drama-túrgicos, repletos de referências imagéti-cas, fosse pelos efeitos cenográ� cos das “pieces à machines”. Mas, é sobretudo na contemporaneidade que temos a presença da espetacularização. Será que o homem nunca teria mudado? Porque o público ainda se deixa embevecer pelos efeitos especiais ou interpretações transgresso-ras de determinadas peças clássicas? Que negociações e con� itos contribuem para conceituar o “espetacular”, mas também de torná-lo obra de impacto social?

Efeitos espetaculares em Shakespeare

Como estudos de casos de espetacula-ridade investigamos a Tempestade, Romeu e Julieta e Julius Cesar, de Shakespeare e recorremos também ao Amphitryon, Psiché e Plaisirs à Isle enchantée, peças das quais Molière foi o principal idealizador. Pos-teriormente trouxemos o problema para o � nal do século XX, quando a espetacu-laridade passa a existir não mais pelos recursos técnicos, mas pela própria dra-maturgia coletiva que permite criar e re-criar efeitos pela própria palavra e pelos espaços utilizados de maneira inusitada. De que forma se apresenta o espetacular? Quais as táticas que se escondem sob as estratégias políticas e ideológicas de cada nova apresentação?

Identi� camos que, em geral, nas nar-rativas das peças de Shakespeare pode-se aplicar a teoria certeaudiana de que seus contos apresentam análises de acurada percepção das combinações de táticas

fundamentadas em unidades elementares que não são nem signi� cações nem seres, mas ações relativas a situações con� ituais daquela sociedade. Esta leitura perspi-caz permitiria reconhecer nos textos dra-matúrgicos os discursos estratégicos do povo. (Certeau, 1994).

O “espetacular” é antes de tudo uma forma de entretenimento, e, como tal, deve atender às expectativas do público, seja ele popular ou aristocrático. Segundo Pascale Drouet, no contexto aristocráti-co, o espectacular em geral está ligado às questões políticas e ao aparato hegemôni-co; a economia do espetacular não pode ser disassociada da ideologia dominante ( Drouet, 2009, p. IX). No contexto popu-lar, entendemos que haja no homem este desejo de maravilhar-se, mas também de estranhamento diante do espetacular.

A tempestade de Shakespeare demons-tra a maturidade do autor, que projeta nas ações de Próspero os valores sociais e morais da época. O projeto de vingança de Próspero leva-o a mergulhar nos es-tudos bibliográ� cos de sua época, e o faz apaixonar-se pelos livros de magia. Exila-do numa ilha desconhecida com sua � lha Miranda, Próspero vence a bruxa Sycorax e adota o seu � lho, Caliban, mistura de monstro e homem. Apesar dos esforços para vencer os elementos da ilha e criar sua � lha e Caliban, não atinge muito su-cesso. A peça inicia-se justamente no mo-mento em que ele coloca seu plano de vingança em curso. Com a ajuda de Ariel, espírito do bem, provoca uma perigosa tempestade sobre o navio no qual esta-vam Antônio, Sebastião e Alonso, que o haviam traído. Os náufragos conseguem atingir a ilha e passam a ser encantados até Próspero revelar as razões da situação. Após conversar longamente com Ariel sobre as possibilidades das falhas huma-nas e de como o amor poderia melhorar a vida para homens fracos, o protagonista traído perdoa os ofensores, con� rmando a máxima de que “tudo está bem quan-do termina bem”. O que se deduz de A Tempestade é a natureza híbrida de Cali-

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ban, as metamorfoses fantásticas de Ariel, a mágica introdução de Próspero repleta de efeitos espetaculares. Na cena � nal a espetacularidade se acentua: Ariel entra invisível e uma música estranha envolve Próspero e, em meio a trovões e raios, um grande estrondo persegue as ninfas que dançam. A peça denota uma encenação repleta de elementos fantásticos e oníri-cos, quase surrealistas, que comprovam o viès maneirista de Shakespeare.

Entre as análises recentemente publi-cadas de A Tempestade destacamos a de John Demarey, que desenvolve um inte-resse pela tradição das Masques, muito co-muns nos teatros de Corte. Pelo seu argu-mento, esta peça, exibida em première no Whitehall, absorveu a estrutura das Mas-carades, conforme consta do texto drama-túrgico publicado no First Folio. Para este autor, qualquer análise da peça estaria in-completa sem se levar em conta o contex-to de sua produção inicial, num teatro da corte (Demarey, 1998, p.174). O estudio-so acredita que a peça seria um trabalho já de transição entre o drama encenado e as futuras adaptações desta obra como a de Willian Davenant, que encenou a Tem-pestade em 1670 já nos moldes do drama espetacular do período da Restauração. Chartier também se refere à companhia de Sir William Davenant ter recebido o monopólio de Hamlet e de oito peças de Shakespeare que ele adaptou para mon-tagens que realizou em Lincoln Inn’s Field, e em 1671 no seu novo teatro em Dorset Gardens (Chartier, 2002, p. 84). A Tempestade constitui um apanhado de má-gicas, rituais e temas contraditórios que possibilitam um espetáculo contínuo no palco, porém que não encerra uma ver-dadeira história fechada.4 Na verdade a dramaturgia e as didascálias remetem às Masques, escritas por Ben Jonson, porém valorizadas pelos magní� cos cenários de Inigo Jones, que trouxe da Itália uma nova concepção de cenogra� a com base

4 Demarey seguiu como fonte primária o First Folio de 1623 e um dos pontos que aponta em sua obra é de que The Tempest foi manipulada pelos editores que a consideraram uma comedy e a dividiram em cinco atos, fato que ele nao considera ter sido a proposta de Shakespeare . (Demarey, Op. Cit.).

na perspectiva, procedimento grá� co re-descoberto por Brunelleschi no Quattro-cento.

O “espetacular” se apresenta pelos efeitos cênicos da tempestade em cena e pelas imagens � utuantes que foram ins-piradas na Eneida de Vigílio, entretanto, a ilha mágica e os espíritos presentes na peça podem ser alusivos a um fato re-almente real: o naufrágio de um navio chamado The Sea Adventurer, ocorrido no Caribe em 16095. Como a� rma Certeau, contos e lendas parecem ter o mesmo pa-pel. Eles se desdobram, tal como o jogo, num espaço especial e isolado das compe-tições cotidianas, o espaço do maravilho-so, do passado, das origens. “Ali podem então expor-se, vestidos como deuses ou heróis, os modelos dos gestos bons ou mal, utilizáveis a cada dia. Ai se narram lances, golpes, não verdades”(Certeau, 1994, p.84).

O que se percebe investigando a dra-maturgia nas cenas shakespearianas é que quase todos os personagens são amál-gamas de diferentes modelos recriados6. Os diários de John Evelyn e de Samuel Pepys esclarecem sobre algumas peças encenadas nos anos 1660 e 1670. Não se pode dizer que todos os personagens se-jam originais, pois muitos foram inspira-dos em Horacio, Plauto ou Terêncio, mas são repletos de simbolismos e de novas interpretações, foram recepcionados com sucesso pelo público e reapropriados por encenadores até os nossos dias.

Em Julius Cesar, o maravilhoso é a res-posta apropriada aos espetaculares jogos de artifício que tiveram lugar na noite de abertura do The Globe, quando efeitos de grandes tempestades foram usados na cena da morte de Cesar na abertura do public theatre em junho de 1599. O edifício teatral, embora sempre descrito como de uma arquitetura rudimentar, estava pre-

5 Ver relato do editor in Shakespeare, W. The Tempest. London: Penguin Books Ltd, 1995, p. 15-16.

6 O crítico mais antigo que os estudiosos localizaram foi Samuel Pepys, que escreveu um diário entre 1660 e 1769, no qual, além do testemunho de história social ele também descreve sua impressóes sobre o Romeu e Julieta que assistiu em 1662 (http://www.pepysdiary.com/p/5445.php)

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parado para a produção de efeitos visu-ais e sonoros. Situado fora da jurisdição da City de Londres, The Globe � cava na margem esquerda do Tamisa, no distrito de Southwark, bairro ainda rural naquela época, que apesar de reunir arenas de bri-gas de ursos e tavernas, abrigou oito tea-tros descobertos que recebiam uma popu-lação heterogênea (Lima, 2010).

Há relatos de Steve Sohmer sobre a es-tréia desta peça com a � nalidade de acen-tuar a capacidade do novo teatro para a espetacularidade7. Superstições e o sobre-natural são relevantes nesta peça. A este respeito, destacam-se as instruções de Ce-sar a sua mulher para cuidar-se dos Idos de Março, o terror criado pela tempestade cuja verdadeira intenção era impressio-nar os ouvidos da platéia, mas também de todos os freqüentadores dos demais teatros dos empresários rivais situados na circunvizinhança de Southwark. Há que lembrar que a abertura do novo edifício teatral levou a população londrina a uma grande expectativa e há indícios de que Shakespeare usou tempestades e batalhas em cena da maneira como eram descritas nas narrativas daquele período.

Mas não foi apenas no interior dos te-atros que o Maneirismo acentuou o cará-ter espetacular. Coreógrafos e arquitetos foram estimulados a prepararem as ci-dades para os cortejos reais e certamente criarem objetos e efeitos especiais para a cena. A expansão do Maneirismo e sua te-atralidade foi exuberante. Giorgio Vasa-ri - arquiteto e critico de arte italiano do século XVII relata que quando Charles V foi à Mântua, o também arquiteto Giulio Romano, por ordem do duque, executou muitos arcos do triunfo, cenários para comedias e outras peças. Segundo este autor, Giulio era “um perfeito cenógrafo para festas e torneios que exitavam não só o imperador mas todos os presentes”. É possível que tenha participado de al-guns efeitos especiais nas montagens de

7 Ver Steve Sohmer. Shakespeare’s Mystery Play: The Opening of the Globe Theatre 1599. Manchester: Manchester University Press, 1999.

Shakespeare8. As primeiras edições de Shakespeare

continham poucas didascálias para eluci-dar a cena. Mas as próprias palavras são tão evocativas, que permitem reconstruir cenários a cada minuto. É por meio das generalidades descritas pelos dramatur-gos que entendemos o tratamento cênico característico da cena elisabetana: por-tas, espaço de descoberta, galeria sobre a cena, o alçapão e o “heavens”. Mas há registros de que as produções teatrais no teatro elisabetano proporcionavam ao seu público um verdadeiro espetáculo de efeitos especiais. Tais efeitos levavam a platéia ao delírio, principalmente em ce-nas de guerra. Para que se alcançasse um sistema de efeito especial perfeito para as cenas de ação, fazia-se uso de fumaça, de fogo e de fogos de artifício. Os atores po-diam encenar personagens suspensos por uma corda em sistemas de roldanas, caso houvesse algum ato que necessitasse de tal recurso.

Na peça Romeu e Julieta, Romeu e Mercúrio estão do lado da casa dos Capu-letos, decidindo se entram ou não no baile mascarado. Sabe-se que é noite, devido à referência às tochas que iluminavam os bailes de máscara. Pela leitura do texto dramatúrgico percebe-se que há um salão com mesas e cadeiras, as primeiras serão empilhadas pelos serviçais e o an� trião da festa junto com o primo da família Ca-puleto sentam nas cadeiras. Existem mui-tas velas ou tochas acesas que deverão ser apagadas por causa do calor, o ambiente deve ser grande porém fechado. O bai-le que acontece na casa dos Capuletos – quando Romeu e seus amigos penetram na festa é representado como um baile de máscaras com um suntuoso espetáculo de música, � gurino e dança, na melhor tradi-ção das Masques9. O elemento espetacular está no próprio texto dramatúrgico. Está

8 Ver Josée Nuyts-Giornal. La virtuosité shakespearienne et le tour de force maniéris-te dans le Conte d’hiver. Disponible en http://shakespeare.edel.univ-poitiers.fr/index.php?id=142, accedé en 02 nov. 2011.

9 Muito comum no tempo elisabetano a mascarada era um baile iniciado por um grupo de convidados devidamente mascarados que encenavam pantomimas, farsas, de acordo com um tema especí� co. Posteriomente todos os presentes eram convidados a dançar.

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também presente no uso fatal do veneno como bebida e das mortes espetaculares de Romeu e Julieta, que imprimem nos olhos e ouvidos dos espectadores um sen-timento de dor e compaixão.

Ao analisar alguns textos de Shakes-peare, Pascale Douet a� rma que o espe-tacular está “intimamente associado seja com o espanto despertado por questões inverossímeis ou com o excesso por ra-zões de entretenimento. Ele quase magne-ticamente solicita os olhos e — no início dos tempos modernos — as orelhas, com uma intensidade propícia às extensões do imaginário, mas também às reações críti-cas” (Drouet, 2009, p. X).10

Analisando as didascálias e as gravuras de encenações de Molière e Corneille

No que se refere aos efeitos espe-taculares no teatro francês do XVII, até meados do século XVII ainda vigorou o cenário múltiplo e compartimentado ins-pirado no teatro medieval, que variava os lugares da ação num mesmo palco, � -cando os atores posicionados diante do cenário que correspondesse às didascá-lias do texto. Por volta de 1645, no teatro que acontecia nos Colégios Jesuítas sob o apoio do cardeal Mazarin, a estética se-guia a pluralidade de lugares e um pen-dor para o “espetacular”, em detrimento dos próprios textos. Muitas montagens do século XVII se utilizavam de máquinas espetaculares, privilegiando o aparato da cena em relação ao texto dramatúrgico. Maravilhar os espectadores era o objetivo comum às peças encenadas com a ajuda de maquinaria.

Em 13 de janeiro de 1668, Molière montou Amphitryon pela primeira vez em Paris no teatro do Palais-Royal, utilizado o “espetacular” no teatro edi� cado pelo Cardeal Richelieu. Nesta peça, Molière começa com um diálogo entre Jupiter e a noite e o cenário é a cidade de Tebas, diante da casa de Amphitryon. Já nes-

10 “closely associated with either implausibility arousing amazement or excess for the sake of entertainment. It nearly magnetically solicits the eyes and—in early modern times—ears with an intensity propitious to imaginary extensions, but also to critical re-action”. (Drouet, 2009, p. X).

se prólogo, imagina-se Mercúrio, sobre uma nuvem; e a Noite, em uma carrua-gem puxada por dois cavalos. O frontis-pício da edição de 1682 permite realmen-te observar Mercúrio sobre uma nuvem, montando uma enorme ave, e os três de-mais personagens em terra diante de uma edi� cação com características barrocas. Após ser apresentada ao grande público no Palais Royal, ainda em janeiro Moliè-re apresentou a peça à corte na Salle des Machines da Tuilleries. Vale ressaltar que como uma “pièce à machines”, a encena-ção de Amphitryon nos teatros reais fez concorrência ao Teatro do Marais que era especializado neste gênero de espetácu-lo (Lima, 2012). Analisando esta peça de Molière, percebe-se que contos e lendas parecem ter o mesmo papel. Eles se des-dobram, como o jogo, num espaço exce-tuado e isolado das competições cotidia-nas, o do maravilhoso, do passado, das origens. (Certeau, 1994, p. 84)

Maravilhar os espectadores era o ob-jetivo comum às peças encenadas com a ajuda de máquinas para substituir os ce-nários e sustentar as divindades nas nu-vens. Este efeito do “espetacular” atraia uma multidão de espectadores, não só pelos efeitos visuais porém por deseja-rem decifrar a engenharia escondida nas caixas cênicas e até mesmo ao ar livre. Máquinas especiais para enriquecer os cenários foram criadas inicialmente pe-los italianos, entre eles Giacomo Torelli e Carlo Vigarani, engenheiros responsáveis pelos cenários da peça A inundação do Ti-bre (1638), concebida por Bernini. Esses mesmos engenheiros colaboraram com vários espetáculos ocorridos em Paris. Vigarani se destacou como maquinista de Les Plaisirs de l’Île Enchantée, obra cole-tiva, representada entre 7 e 13 de maio de 1664 nos jardins do antigo Palácio de Ver-sailles e inspirada no Orlando Furioso de Ariosto, com dispositivos espetaculares e fogos de artifícios. Sabe-se que foi este espetáculo que aprofundou as relações entre Molière e o rei Luis XIV. O espetá-culo – desdobrando-se em vários dias de

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representação - foi idealizado por Moliè-re, Corneille, Quinault et Lully.

Para se ter uma ideia do impacto deste espetáculo, recorre-se à carta do embaixa-dor de Savoie que a� rma que:

Mais pour la dernière scène, c’est bien la chose la plus étonnante qui se puisse voir, car l’on voit tout en un instant paraître plus de trois cents per-sonnes suspendues ou dans les nuages ou dans une gloire, et cela fait la plus belle symphonie du monde en violons, théorbes, luths, clavecins hautbois, � ûtes, trompettes et cymbales.

(http://www.toutmoliere.net/2008/oeuvres/plaisirsile/index.html)

Outra obra que se imortalizou pelo seu teor espetacular foi Psychè, uma tra-gicomédia com números de ballet em cin-co atos e escrita em versos, representada na inauguração da Salle des Machines em 17 de janeiro de 1671, para a qual Moliè-re foi o autor dos versos do prólogo, pri-meiro ato e algumas cenas, tendo sido responsável pelos principais efeitos cêni-cos. Apesar de Corneille participar tam-bém do espetáculo, há indícios de que a tragicomédia repleta de efeitos especiais teria feito concorrência às suas próprias peças. Mas Corneille também acreditava no poder da cenogra� a, pois referindo-se à peça Andromède- tragédia « à machi-nes »encomendada pelo Cardeal Mazari-no e representada em 1650 no Teatro do Petit Bourbon, com cenários de Giuseppe Torelli, a� rmou que o espetacular nas ce-nas suplantava a beleza de seus versos. Corneille justica a estética primorosa dos efeitos cênicos da montagem: «la beauté de la représentation supplée au manque de beaux vers […] parce que mon prin-cipal but ici a été de satisfaire la vue par l’éclat et la diversité du spectacle, et non pas de toucher l’esprit par la force du rai-sonnement, ou le cœur par la délicatesse des passions. […] cette pièce n’est que pour les yeux »(Corneille, 1862-1868 :v.10, Tomo V, p. 243).

Nem sempre o “espetacular” preten-

de revelar quaisquer formas de conhe-cimento, exceto talvez pelas engenhosas criações dos cenógrafos. Este “espetacu-lar” pode ser despertado pelas descober-tas cientí� cas, pela capacidade artística dos atores, por uma necessidade disfarça-da de reconhecimento do trabalho do au-tor. Segundo Drouet “o espetacular pode ser usado como um chamariz e têm uma espécie de efeito de Gorgona, praticamen-te hipnotizando o olhar a um ponto de quase de anestesia»11. Até que ponto pode haver o objetivo de manipulação pelos efeitos especiais que podem atender aos projetos individuais de um encenador ou propósitos ideológicos e políticos, como tem ocorrido na sociedade do espetáculo contemporânea?

É fato que as cidades do século XXI, sob a estratégia da competitividade para atrair capitais estrangeiros, desenvolver o turismo e galgar degraus nos rankings de cosmopolitismo, têm se utilizado de muitos artifícios entre eles a construção de equipamentos culturais implantados em áreas que os governantes desejam re-vitalizar. E sempre com a assinatura dos maiores arquitetos globais. Estas cidades-espetáculo tem se suplantado às obras sociais e de infraestrutura urbana, e, al-gumas vezes se transformado em locais de turismo ou paraísos � scais à custa de um uso arti� cial da cultura. Paralelamen-te, porém, com sentido além de estético, também pragmático, temos vivenciado as obras dos artistas plásticos contemporâ-neos que, com propostas políticas e ideo-lógicas provocam ações espetaculares nas cidades, como incendiar três quilômetros de trilhos de bonde em bairros históricos, embrulhar enormes monumentos por vá-rios dias, fazer performances em chafarizes públicos para que voltem a funcionar, en-tre outras ações nas quais as encenações que o público acompanha em barcos, cha-mando a atenção para a poluição de rios, baías e lagoas e para a péssima qualidade de vida nos centros urbanos. Estes espetá-

11 “the spectacular can be used as a decoy and have a sort of Gorgon-like effect, virtually mesmerizing the gazer to the point of near anaesthesia”. Pascale Drouet. Op. Cit., XI.

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culos da arte contemporânea promovem verdadeiro city marketing, ou como diz Guy Debord, uma verdadeira cidade do espetáculo. Portanto, o “espetacular” não se resume às possibilidades plasticas e cênicas das mises-en-scènes teatrais do Sei-cento, mas, muitas vezes os mitos e lendas conferem também às cidades contempo-râneas projetos espetaculares que visam a esconder ou a enfatizar problemas sociais.

Algumas considerações

Nosso argumento aponta para a ence-nação tal como a descreve Patrice Pavis, ou seja: como “olhar sincrônico de todos os sistemas signi� cantes cuja interação produz sentido para o espectador. É a encenação que estabelece relações signi-� cantes entre os materiais cênicos. (Pavis, 1990, p. 20). Tanto no século XVII quan-to no presente momento pode-se aplicar este argumento.

No decorrer dos séculos a drama-turgia de Shakespeare assumiu o caráter erudito, porém em sua época era bastan-te popular, visto que o público de suas apresentações era composto de todas as classes sociais. Vale lembrar que The Glo-be comportava uma platéia heterogênea de cerca de três mil espectadores que reu-nia dos artesãos e pequenos comerciantes aos aristocratas, e os autores elisabetanos combinavam a musicalidade das palavras com sua intensidade dramática, a violên-cia e o lirismo, a magia e a imaginação em contraponto à realidade, como vimos nas análises realizadas.

Eram muitas as possibilidades de o dramaturgo idealizar suas peças em di-ferentes localidades no espaço cênico elisabetano. O número de metamorfoses sofrido pelo espaço era proporcional à necessidade dramatúrgica e à imaginação do autor. O poder sugestivo da palavra, a utilização de adereços e os corpos dos atores em cena atuavam como um potente produtor de imagens cênicas. Tratava-se- como defende Peter Brook-, de um espaço vazio – porém repleto de possibilidades. Em artigo recente explorei o “espetacu-lar” na peça Romeu e Julieta montada em

espetáculo circense no The Globe pelo Grupo Galpão, no qual comprovei o cará-ter de universalidade da obra de Shakes-peare devido à capacidade que ela tem de dialogar pelas diferentes culturas e em diferentes épocas (Lima, 2011, p. 79-86).

O “espetacular” esteve sempre pre-sente no teatro como um todo e, conforme discutido neste artigo, em muitas das pe-ças de Shakespeare e Molière percebe-se que os autores escreviam para a encena-ção, para aquilo que fala aos olhos e que provoca a imaginação. O imaginário, seja inspirado nos heróis da mitologia greco-romana, seja nos mitos medievais ou em acontecimentos históricos pode criar a espetacularidade tão cara aos homens, sempre desejosos de observar algo que os maravilhe ou que os induza ao questio-namento, mas que, por algumas horas, os retire das atividades cotidianas. Muitas vezes, pelos efeitos visuais e auditivos, mas também pela força das palavras e pe-las interpretações transgressoras. Outras vezes, o “espetacular” pode simplesmen-te chamar a tenção do espectador pelo que oferece de inusitado, seja no espaço público ou no interior de um edifício te-atral.

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PINA BAUSCH: JULIANA CARVALHO FRANCO DA SILVEIRA | MARIANA LIMA MUNIZ 109

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Resumo

O artigo apresenta aproximações entre os procedimentos utilizados por Pina Bausch na dança-teatro e os utilizados por Bertolt Brecht no teatro didático, além de relacionar o trabalho

realizado pela diretora alemã com as propostas do que Hans-Thies Lehmann denomina de teatro pós-dramático.

Palavras-chave: Pina Bausch; Bertolt Brecht; teatro pós-dramático.

Abstract

The article presents approaches between the procedures used by Pina Bausch in dance-theater and those used by

Bertolt Brecht in his didactic theater, and, also, relates the work of Pina Bausch to the proposals of what Hans-Thies

Lehmann calls post-dramatic theater.

Keywords: Pina Bausch; Bertolt Brecht; post-dramatic theater.

1 Professora do Departamento de Artes e Humanidades da UFV. Mestre em Artes pela UFMG. Bailarina e diretora, em 2008 e 2009 realizou pesquisa de campo junto ao Tanztheater Wuppertal, companhia dirigida por Pina Bausch de 1973 a 2009.

2 Titular do Departamento de Fotogra� a, Teatro e Cinema, atuando na Pós-graduação em Artes e Curso de Graduação em Teatro da EBA/UFMG. Doutora em História, Teoria e Prática do Teatro pela Universidad de Alcalá (Espanha). Formada em Interpretação Gestual - Real Escuela Superior de Arte Dramático de Madrid (2005). Pesquisadora, diretora e atriz.

Pina Bausch: aproximações com Brecht e o teatro pós-dramático

Juliana Carvalho Franco da Silveira 1

Mariana Lima Muniz 2

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Pina Bausch (1940-2009) revolucionou a linguagem da dança. A força de seu tra-balho está em como a diretora alemã pro-vocou um novo entendimento do que pode ser considerado como dança. Ainda hoje, suas peças desa� am e transformam nossas percepções.

Analisando os procedimentos utili-zados pela diretora alemã para a criação de suas peças, pode-se perceber aproxi-mações com os procedimentos utilizados por Bertolt Brecht (1898-1956) no teatro didático, e relações com as propostas do que Hans-Thies Lehmann (2007) denomi-na de teatro pós-dramático. Tais aproxi-mações e relações serão explicitadas no decorrer do artigo.

Bausch e Brecht

Podemos apontar pontos em comum entre os procedimentos usados por Brecht em seu teatro épico e os procedimentos usados por Pina Bausch na dança-teatro. Diversos autores, entre eles, Servos (1984) e Koudela (2001), identi� cam dentro do tea-tro épico de Brecht o teatro didático como o lugar em que os procedimentos mais se as-semelham aos de Bausch. O teatro didático de Brecht buscava experimentar diferentes formas de constituição social do sujeito através da arte. Segundo Koudela (2001), no Brecht das peças didáticas, o modo per-formático substitui o modo narrativo da fá-bula dos textos clássicos, e a experimenta-ção promove o exame crítico da percepção física dos gestos. O trabalho nas peças di-dáticas seria com a linguagem. De acordo com a autora, “a peça didática se diferencia da peça épica de espetáculo, que exige a arte da interpretação. Brecht sublinha que a principal função da peça didática é a edu-cação dos participantes do Kunstakt (ato ar-tístico)” (Koudela, 1999, p.13).

O teatro didático de Brecht tem a in-tenção de apresentar um palco cientí� co, capaz de mostrar a necessidade e a possibi-lidade de transformação da sociedade. Por isso, Brecht exige que a ilusão seja elimina-da. Segundo Rosenfeld (2002), essa ilusão que gera intensa identi� cação emocional e

leva o público a esquecer-se de tudo no tea-tro dramático, a� gura-se para Brecht como uma das consequências principais da teoria da catarse. O diretor e dramaturgo alemão propõe um espectador ativo, que consiga olhar criticamente para a sua realidade, pois o homem deve ser visto como um ser em processo, capaz de transformar-se e de transformar o mundo. O procedimento que Brecht usa para gerar a consciência crítica é o efeito de distanciamento: “Distanciar um acontecimento ou um caráter signi� ca antes de tudo retirar do acontecimento ou do caráter aquilo que parece óbvio, o co-nhecido, o natural, e lançar o espanto e a curiosidade. A � nalidade dessa técnica do efeito de distanciamento consistia em em-prestar ao espectador uma atitude crítica, de investigação relativamente aos aconte-cimentos que deveriam ser apresentados” (Brecht apud Bornheim, 1992, p. 243).

Segundo Gerd Bornheim (1992), Brecht considera que a experiência do distancia-mento chega a caracterizar o comporta-mento humano em geral. No caso do tea-tro, Brecht acreditava que a identi� cação do espectador com o que acontece em cena impediria que este desenvolvesse uma vi-são crítica sobre o que estava assistindo. Por isso, o teatro deveria evitar a identi� -cação e despertar a consciência crítica do espectador através do distanciamento.

De acordo com Servos (2008), nas peças de Pina Bausch os procedimentos do teatro épico são aplicados às ações individuais e às cenas individuais e são elementos es-senciais para a diretora alemã, assim como eram para Brecht. Junto com os temas tira-dos do mundo da experiência do dia a dia, esses procedimentos ajudam a apresentar as pessoas como elas realmente são.

Segundo o autor, as peças de Pina Bausch apropriam-se da realidade na for-ma de situações isoladas, criando um am-plo panorama do fenômeno. A diretora sonda a profundidade dos hábitos e das emoções e traz seus achados à luz do dia. De acordo com Servos (2008), nas peças de Bausch existe uma fome de experiência sem julgamento moral. As peças apresen-tam seus achados. O trabalho envolve con-

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tinuamente colher amostras da vida diária, no sentido de colocar em teste as formas de interação entre os seres humanos. As obras possuem a liberdade de um experimento, elas não começam de opiniões pré-conce-bidas. Pina Bausch faz as perguntas, e suas peças revelam as descobertas feitas por to-dos que participam da criação.

As perguntas que Pina Bausch formula provocam nos bailarinos o distanciamento em relação às suas próprias emoções e às convenções sociais que podem ser iden-ti� cadas em seus comportamentos, pois coisas que são vistas como normas geral-mente aceitas são tiradas de seus contextos familiares e têm sua experiência renovada. As convenções internalizadas, que se tor-naram uma segunda natureza, tornam-se mais óbvias pelo distanciamento.

O efeito de distanciamento nas peças de Pina Bausch vem também da estrutura da colagem. Quando a diretora cola uma resposta de seus bailarinos com outra res-posta, que originariamente não estava no mesmo contexto que a primeira, ela pro-voca um novo olhar em relação a ambas. A imagem distanciada permite que a lin-guagem do corpo seja reconhecida, mas, ao mesmo tempo, pareça estranha. Coisas que na vida diária tornaram-se uma questão de curso são percebidas com distanciamento.

De acordo com Servos (1984), o distan-ciamento em Bausch é atingido também com o uso da comédia. Séries inteiras de movimentos são apresentadas em câmera lenta ou são executadas em velocidade rá-pida. O espectador, ao mesmo tempo em que ri, reconhece no palco a realidade do próprio comportamento. O humor revela alguma coisa que estava escondida.

Além do efeito de distanciamento, Ser-vos (1984) identi� ca outros procedimentos do teatro didático no trabalho do Tanzthea-ter Wuppertal. São eles o Gestus, a exibição consciente dos processos criativos e os te-mas emprestados do mundo da experiência de todos os dias. A seguir, farei uma re� e-xão sobre cada um desses procedimentos.

Em seu “Pequeno Órganon para o tea-tro”, Brecht diz que seu teatro extrai tudo do Gestus:

Chamamos esfera do Gestus aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do corpo, a entonação e a expressão fisionômi-ca são determinadas por um Gestus social; as personagens injuriam-se mutuamente, cumprimentam-se, ins-truem-se mutuamente etc. Às atitu-des tomadas de homem para homem pertencem, também, as que na apa-rência são absolutamente privadas, tal como a exteriorização da dor fí-sica, na doença, ou a exteriorização religiosa. A exteriorização do Gestus é, na maior parte das vezes, verdadei-ramente complexa e contraditória, de modo que não é possível transmiti-la numa única palavra; o ator, nesse caso, ao efetuar uma representação necessariamente reforçada, terá de fazê-lo cuidadosamente, de forma a nada perder e, pelo contrário, reforçar todo o complexo expressivo (Brecht, 2005, p. 155).

De acordo com Servos (1984), Bausch também captura “tudo do Gestus”, entre-tanto, em Bausch o Gestus refere-se à esfe-ra das ações físicas. Ele não dá suporte ou contrasta uma declaração literária, mas, ao contrário, “fala” por si mesmo.

O corpo não é mais um meio para um fim. Ele mesmo tornou-se o assunto da apresentação. Alguma coisa nova surgiu na história da dança: o corpo está contando sua própria história. Quando, por exemplo, um homem carrega uma mulher jogada sobre seus ombros como um cachecol como um sinal que para ele, ela não é mais que um acessório decorativo, uma cena como esta não necessita de mais interpretação. Ela não deve ser anali-sada buscando seu significado (Ser-vos, 1984, p. 23, tradução da autora).

Há, em Brecht, uma diferenciação en-tre gesto e Gestus. O Gestus é considerado como o gesto que não é apenas individual e que tem um sentido social. “Gestus so-cial é o Gestus relevante para a sociedade, o Gestus que deixa inferir conclusões sobre

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a situação da sociedade” (Brecht apud Bor-nheim, 1992, p. 282).

Com esta palavra [Gestus] compre-endemos todo um complexo de ges-tos isolados dos mais diversos tipos, associados a declarações, que se re-laciona às bases de um acontecimen-to humano que pode ser separado e que se refere à atitude geral de todos relativamente a este acontecimento (como a condenação de uma pessoa por outras, ou uma deliberação, ou uma luta, e assim por diante); ou um complexo de gestos e declarações que, vindos de uma única pessoa, desencadeia certos acontecimentos (a atitude hesitante de Hamlet, ou a confissão de Galileu, e assim outros mais); ou, ainda, simplesmente a ati-tude de base de uma pessoa (como a satisfação ou a espera) (Brecht apud Bornheim, 1992, p. 283).

Os sentimentos e a conduta social dos indivíduos devem ser colocados em termos de exterioridade.

Um homem que compra um peixe mostra, entre outras coisas, o Ges-tus de quem compra um peixe. Um homem que escreve seu testamento, uma mulher que seduz um homem, um homem que faz um pagamento a dez homens, um policial que espan-ca um homem – em tudo isto existe o Gestus social. Um homem que invoca o seu Deus faz um Gestus, segundo esta definição, somente quando ele é feito em relação a outros ou num conjunto em que surgem relações de homem para homem (como a oração do rei em Hamlet) (Brecht apud Bor-nheim, 1992, p. 282).

Segundo Brecht, no teatro os gestos devem ser escolhidos e “devem mostrar, por assim dizer, os costumes e usos do corpo” (Brecht apud Bornheim, 1992, p. 273). Isso quer dizer que todo o trabalho em torno do gesto deve sempre ter em vis-ta sua conotação social. “A � nalidade do efeito de distanciamento consiste em dis-tanciar o Gestus social que subestá (sic) em

todos os acontecimentos. Por Gestus social entende-se a expressão mímica e gestual das relações sociais, nas quais os homens de uma determinada época se relacionam” (Brecht apud Bornheim, 1992, p. 281).

De acordo com Servos (2008), enquan-to o teatro didático de Brecht está volta-do para o contexto social, a dança-teatro de Pina Bausch começa das convenções e normas internalizadas. Segundo esse au-tor, nas peças do Tanztheater Wuppertal, as condições sociais podem ser lidas direta-mente no comportamento físico das pes-soas. Os bailarinos são os demonstradores de seus próprios corpos. Pina Bausch está interessada nas marcas que o contexto so-cial deixa nos corpos. O corpo fala por si mesmo, ele não é um meio para um � m, ele é o assunto. Servos (2008) a� rma que o distanciamento da linguagem cotidiana do corpo mostra como comportamentos que são como uma segunda natureza po-dem ser vistos com estranhamento. Quan-do Pina Bausch pergunta a seus bailarinos sobre suas experiências, eles apresentam suas respostas. O campo de trabalho en-volve colher amostras das experiências dos bailarinos, sem julgamento moral. Há um interesse em mostrar as pessoas como elas realmente são. Nesse sentido, Baus-ch parte do indivíduo para chegar ao so-cial, enquanto Brecht parte do social para chegar ao indivíduo. Partem de extremos diferentes, mas acabam se encontrando, como a� rmam Lima e Hildebrando (2008, p.74): “Poderíamos inserir Bausch e Brecht como dois extremos ligados pela Banda de Moebius, uma, ao andar pelo caminho do sujeito deságua no social, e o outro, ao andar pelo caminho do social deságua no sujeito”.

Outro procedimento do teatro didáti-co que pode ser identi� cado no trabalho do Tanztheater Wuppertal é a exibição cons-ciente dos processos criativos e de suas ferramentas. Em muitas peças de Pina Bausch, o palco está todo aberto, despido até as portas de incêndio, e o uso do palco pelos bailarinos estende-se além do fosso da orquestra, indo até o proscênio. Segun-do Servos,

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Os bailarinos explicam a próxima passagem, discutem a cena seguinte, não fazem segredo de seu mau hu-mor, ou do seu divertimento no seu trabalho; andam para frente com as palavras, “eu tenho que fazer alguma coisa”, e são incertos de si mesmos.[...]Revelando a visão dos proces-sos criativos e de suas ferramentas, a dança-teatro destrói a astuta ilusão teatral. O teatro é trazido de volta à vida como um processo em andamen-to de compreender a realidade. Ele se alimenta das contradições da realida-de e lida com elas na frente do públi-co (Servos, 1984, p. 25, tradução da autora).

Bausch também recolhia temas vindos do mundo das experiências do dia a dia, assim como Brecht fazia. As perguntas que Pina Bausch formulava, como, por exem-plo, “o que você faz quando está envergo-nhado?” ou “faça a uma pessoa algo que incomodaria a você” estão relacionadas às experiências de seus bailarinos. Tanto em Bausch como em Brecht, os limites entre arte e vida foram rompidos, e o corpo que está em cena é um corpo político, inscrito no contexto social. Segundo Servos (1984), enquanto a atenção do teatro didático está voltada principalmente para o contexto social e organiza os fenômenos de acordo com uma visão de mundo pré-concebida, Bausch começa das normas e convenções internalizadas, pois as convenções tam-bém podem ser lidas nos comportamentos individuais.

A principal diferença entre os proce-dimentos usados por Pina Bausch na dan-ça-teatro e os procedimentos usados por Brecht no teatro didático é a ausência de fá-bula nas peças de Bausch, pois, desde que a coreógrafa começou a compor suas peças com o método das perguntas, no � nal da década de 1970, a estrutura das peças cria-das surge da colagem e da repetição das respostas dadas pelos bailarinos, e não de uma narrativa, como acontece em Brecht. Nesse sentido, o trabalho de Pina Bausch pode ser incluído dentro do contexto do te-atro pós-dramático.

Bausch e o teatro pós-dramático

Lehmann (2007) inclui as peças criadas por Pina Bausch com o Tanztheater Wupper-tal dentro do conceito de teatro pós-dramá-tico. A respeito da dança, o autor declara que “a dança é radicalmente caracterizada por aquilo que se aplica ao teatro pós-dra-mático em geral: ela não formula sentido, mas articula energia; não representa uma ilustração, mas uma ação. Tudo nela é ges-to” (Lehmann, 2007, p. 339).

Segundo o autor, o corpo pós-dra-mático caracteriza-se por sua presença e, por isso, é na dança que as novas ima-gens corporais podem ser consideradas de modo mais claro. Mas, ainda de acordo com Lehmann (2007), essa ênfase no cor-po e na presença caracteriza, de um modo geral, a manifestação do corpo no teatro pós-dramático, onde a realidade própria das tensões corporais, livres de sentido, toma o lugar da tensão dramática. O cor-po parece desencadear energias até então desconhecidas ou secretas. Para o autor, o processo dramático se dá entre os corpos, enquanto que o processo pós-dramático se dá no corpo. “Nessa auto-dramatização, a representação dramática de ações e aconte-cimentos é substituída pela atualização de percepções corporais latentes. No lugar do drama como meio de complexa e simbóli-ca representação de con� itos, encontra-se a vertigem corporal de gestos” (Lehmann, 2007, p. 340).

O autor a� rma que a nova dança re-nuncia ao corpo ideal e privilegia a des-continuidade. Os aspectos negativos do corpo, como carga, dor e violência, se an-tepõem à harmonia que era preciosa para a tradição da dança. O corpo no teatro pós-dramático é exposto como sua pró-pria mensagem, mas, ao mesmo tempo, aparece como um elemento profunda-mente estranho a si mesmo: o “próprio” é terra incógnita. Os elementos inusitados e estranhos do corpo são levados à super-fície, à � or da pele. O que se enfatiza no corpo não é a unidade de um eu dançante, mas, sobretudo, o potencial das diversas variações gestuais possíveis. Segundo

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esse autor, na dança-teatro de Pina Bausch os gestos são percebidos como realidade antes de qualquer signi� cação:

O teatro de Pina Bausch é uma marcante e minuciosa exploração do corpo, e mes-mo sendo coreogra� a genial é muito mais do que apenas linguagem formal próxima do balé. A começar pelas imagens cênicas, quase sempre repletas de material real: folhagem, terra, água, � ores. Assim como os objetos, os gestos corporais são percep-tíveis como realidades antes de toda sig-ni� cação, de modo que não mais conse-guimos perceber efetivamente a realidade exterior no percurso da visão, orientada cada vez mais para o abstrato. O corpo sofre pela infância perdida; o teatro de dança a investiga novamente (Lehmann, 2007, p. 340).

Como a� rma Norbert Servos (1984), na dança-teatro de Bausch os bailarinos apa-recem não como se estivessem desempe-nhando seus papéis de forma técnica, mas desprotegidos em suas próprias personali-dades, e desenvolvem uma lógica corporal própria, ao invés de aparecem como porta-dores de uma intenção exterior a eles. Seus medos e alegrias possuem a força de uma experiência autêntica. A dança-teatro mos-tra a história universal do corpo, pois está também sempre contando alguma coisa da história real da vida das pessoas. Como declara Cypriano (2005), os bailarinos do Tanztheater Wuppertal representam a si próprios. Nas peças, os bailarinos são cha-mados pelos próprios nomes, contam ex-periências vividas ou imaginadas; cria-se, assim, um jogo entre realidade e represen-tação. As experiências diárias dos indiví-duos são demonstradas no palco e são, as-sim, experienciáveis. Servos (1984) chama a dança-teatro de Pina Bausch de ‘teatro da experiência’. De acordo com o autor, o real signi� cado do trabalho da diretora está em como ela ampliou o conceito de dança, li-berando o termo coreogra� a de sua estreita de� nição como uma série de movimentos conectados. A passagem da dança de um

nível estético abstrato para aquele do com-portamento físico cotidiano muda muito o signi� cado desta. Aumentar a consciência na dança signi� ca confrontá-la com a reali-dade. De forma crescente, a própria dança se tornou um objeto a ser questionado.

A dança-teatro desenvolveu-se em algo que alguém poderia definir como ‘teatro da experiência’, um te-atro que fez a realidade comunicada de uma forma estética, tangível como uma realidade física. Simultanea-mente rejeitando limitações literárias e concretizando a abstração da dan-ça, o Tanztheater Wuppertal fez dan-ça – talvez pela primeira vez em sua história – consciente de si mesma, libertou a dança para seus próprios meios (Servos, 1984, p. 20, tradução da autora).

Segundo Servos (1984), esse tipo de ‘te-atro da experiência’ não somente muda as condições da recepção envolvendo todos os sentidos do espectador, mas transfere a dança de um nível estético abstrato para a experiência física do dia a dia. Enquanto a dança era vista como o domínio de ilusões atrativas, como um refúgio para uma téc-nica que se autossatisfazia, o trabalho de Bausch faz o espectador voltar-se para a realidade. De acordo com a diretora alemã:

Tudo é sempre diretamente visível e cada espectador pode compreender de imediato com seu próprio corpo e seu próprio coração. Essa é a mara-vilha da dança: que o corpo seja uma realidade pela qual se atravessa. Ele nos dá algo bastante concreto que se pode captar, sentir e que nos move. Os espectadores são sempre uma par-te do espetáculo, tal como eu própria sou uma parte do espetáculo, ainda que não esteja no palco. E cada es-pectador é convidado a confiar em seus próprios sentimentos. Em nossos programas também nunca há uma in-dicação de como as peças devem ser compreendidas. Temos de fazer nos-sas próprias experiências, como na vida. Isso ninguém pode nos impedir (Bausch, 2000, p. 13).

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Bausch convida o espectador a fazer sua própria experiência e a con� ar nos próprios sentimentos. Não há indicação de como as peças devem ser compreen-didas. Tal como a� rma Lehmann (2007) em relação ao teatro pós-dramático, na dança-teatro o sentido é considerado não como algo � xo e estático, mas como algo que resulta do modo como a audiência é movida pela apresentação ou é desencami-nhada por ela. O teatro pós-dramático não aspira à totalidade de uma composição. Ele abdica do critério da unidade de ação e da totalidade, que eram características do te-atro dramático. Segundo Lehmann (2007), no teatro pós-dramático a síntese é expli-citamente combatida. Nesse sentido, não se pode pensar em um processo dialético, como acontecia no teatro dramático. O au-tor a� rma que o drama possui a estrutura dialética, pois apresenta diálogo, con� ito e solução, e que teóricos marxistas conside-ravam o drama como o suprassumo da dia-lética na história. Segundo ele, “o drama está intrinsecamente relacionado com a no-ção de dialética, dialética no sentido de um con� ito que tem uma progressão e que vai caminhar depois, mais à frente, para uma síntese. Não há como distanciar o conceito de drama dessa dialética” (Lehmann, 2007, p. 235).

No teatro pós-dramático, ao contrário, a síntese é combatida, e a estrutura drama-túrgica das peças caracteriza-se pela des-continuidade, pela colagem e pela dissolu-ção da narrativa. Há então uma substituição da percepção uniformizante e concludente por uma percepção aberta e fragmentada. O teatro pós-dramático torna-se “mais pre-sença do que representação, mais experi-ência partilhada do que comunicada, mais processo que resultado, mais manifestação do que signi� cação, mais energia do que informação” (Lehmann, 2007, p. 143).

No teatro pós-dramático, estamos diante de uma prática artística que pro-blematiza o “estado do espectador” como comportamento social inocente e demanda uma perceptibilidade intensi� cada, com clara conotação política, contrapondo-se de modo crítico à percepção da sociedade

de consumo. Em relação à recepção, Servos (1984) a� rma que uma conexão de sentido pode ser feita somente quando a corporali-dade (a consciência física retratada) no pal-co se relaciona com a experiência física do espectador. Essa conexão depende das ex-pectativas concretas (físicas) do espectador que é provocado pelas atividades no palco, e, portanto, tem a oportunidade de apren-der novas lições:

Desde que as peças de Bausch não têm a fábula no sentido Brechtiano, a coerência só se torna aparente duran-te o processo da recepção. Neste sen-tido, as peças não são completas. Elas não são autossustentáveis trabalhos de arte porque, a fim de se desenvol-ver completamente, elas requerem um espectador ativo. A chave está com a audiência, que é levada a ques-tionar seus interesses e suas próprias experiências diárias. Isto poderia e, realmente, deveria, ser comparado criticamente com os acontecimentos no palco e ser relacionado com eles (Servos, 1984, p. 20, tradução da au-tora).

Lehmann (2007) a� rma que devemos olhar para o aspecto político em termos do que ele causa, e não do que ele diz. É pre-ciso recuperar a relação da percepção com a experiência própria. A tentativa de arti-cular e identi� car o que foi testemunhado é considerada em si como um ato político. A arte pós-dramática é vista como um con-traponto ao processo de massi� cação da in-dústria cultural. “Desse modo, a tendência “pós-dramática” seria uma novidade his-tórica não apenas por razões formais, mas também pela negação estética dos padrões de percepção dominantes na sociedade mi-diática” (Carvalho, 2007, p. 07).

Carvalho (2007) a� rma que é de Ador-no que Lehmann extrai a terrível imagem de uma totalização do imaginário coletivo segundo uma estratégia de apassivamen-to pela imposição da relação de consumo. A� rma também que em nossa sociedade as percepções são modeladas pela mídia. A imagem reproduzida pela mídia é recebida

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pelo espectador longe de sua proveniência, por isso inscreve-se nele uma indiferença em relação a tudo o que lhe é mostrado. O espectador entra em contato com tudo o que é mostrado e, ao mesmo tempo, sen-te-se desconectado da profusão dos fatos. Diante dessa situação, a política do teatro é vista como uma política da percepção, pois se torna necessário tornar visíveis “os � os arrebentados entre a percepção e a expe-riência própria” (Lehmann, 2007, p. 425). Só por meio de uma política da percepção, cujo nome, segundo o autor, também po-deria ser “estética da responsabilidade”, é que o teatro pode ser capaz de reagir a essa situação. O autor lança a pergunta:

Hoje em dia será que o desprezo pe-los estímulos espontâneos (por exem-plo, em relação ao meio ambiente, aos animais, ao clima, à frieza social) em favor de uma racionalidade econômi-ca de metas já não levou a desastres evidentes e irremediáveis? Á luz dessa observação do declínio progressivo da relação afetiva imediata, ganha impor-tância crescente uma cultura de afetos, o treinamento de uma emocionalidade não atrelada a considerações racionais prévias (Lehmann, 2007, p. 426).

Walter Benjamin (1987) demonstra o enfraquecimento da experiência (em alemão, Erfahrung) no mundo capitalista moderno em detrimento de outro concei-to, o de vivência (em alemão, Erlebnis), característica do indivíduo solitário. O autor estabelece um laço entre o fracas-so da experiência e o � m da narrativa. Segundo esse � lósofo, as condições de vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de as-similação, por isso a memória e a tradi-ção comuns já não existem, e o indivíduo sente-se isolado, desorientado. O empo-brecimento da arte de contar parte, por-tanto, do declínio de uma tradição e de uma memória comuns, que garantiam a existência de uma experiência coletiva, li-gada a um trabalho e um tempo partilha-dos, em um mesmo universo de prática e linguagem. Benjamin (1987) a� rma que a

arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte, fundamentalmente, da transmissão de uma experiência no sen-tido pleno, cujas condições de realização já não existem na sociedade capitalista moderna. De acordo com o autor, a ex-periência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte, o que pressupõe uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo impede de acontecer. Ben-jamin fala também da necessidade de re-construção da experiência para garantir uma memória comum e para reagir à de-sagregação e ao esfacelamento do social. O � lósofo alemão a� rma que a ideia de uma reconstrução da experiência deveria ser acompanhada de uma nova forma de narratividade, que seria fruto de um tra-balho de construção empreendido justa-mente por aqueles que reconhecem a im-possibilidade da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a privacidade da vi-vência individual. A arte pode, então, ser vista como um lugar de resgate da per-cepção e da experiência.

Desenvolver a percepção torna-se re-almente um ato político em um tempo em que a automatização engole tudo. Segundo Victor Sklovski, a arte seria um instrumen-to para reavivar as percepções:

Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas, para fazer de uma pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sen-sação da coisa, uma sensação que deve ser visão e não apenas reconhe-cimento. Para obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a com-plicação da forma, com a qual tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração. Na arte o pro-cesso de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para ela, o que foi não tem a menor importância (Sklo-vski, 1973, p. 96).

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A dança-teatro de Pina Bausch dá a sua contribuição para o resgate da percepção, pois revela regras sociais internalizadas e o comportamento das pessoas. As experi-ências apresentadas tornam-se experienci-áveis pelo espectador.

Recepção passiva é impossível. “Te-atro da experiência” não finge. Ele é. Porque o espectador é afetado pela autenticidade destas emoções que confundem tanto o sentido, quanto os sentidos, mas é simultaneamente agradável, ele deve também tomar uma decisão, deve definir sua própria posição. Ele não é mais o consumi-dor de prazeres inconsequentes, nem é testemunha de uma interpretação da realidade. Ele está incluído numa experiência total que permite a expe-riência da realidade num estado de excitação sensual (Servos, 1984, p. 21, tradução da autora).

Pina Bausch in� uenciou e continua a in� uenciar a dança, o teatro, as artes vi-suais e a performance, entre outras mani-festações artísticas. Importantes artistas como Federico Fellini, Peter Brook, Pedro Almodóvar, Caetano Veloso, entre muitos outros, deram seu testemunho de como o trabalho dessa artista teve um forte impac-to sobre eles. Isto nos mostra a força de seu trabalho e nos convida a abrir novas possi-bilidades para nossas próprias produções. Por isso, observar a construção dramatúr-gica das suas peças pode nos fornecer im-portantes caminhos para a criação e a com-posição de nossas obras e para a construção dos corpos que vão para a cena. Os artistas interessados em buscar novas linguagens que revelem novas possibilidades para os seres humanos e suas relações podem en-contrar no trabalho de Pina Bausch com o Tanztheater Wuppertal um terreno fértil para alimentar as próprias criações.

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REFERÊNCIAS

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PINA BAUSCH: JULIANA CARVALHO FRANCO DA SILVEIRA | MARIANA LIMA MUNIZ

Resumo

Este artigo tem como objetivo re� etir sobre a relação entre reprodutibilidade e espontaneidade no trabalho do ator.

Nesse sentido, a escolha dos vários interlocutores apontados aqui – teóricos e artísticos – foi feita em função, sobretudo, da necessidade de, ao mesmo tempo, problematizar e ampliar o

horizonte dessa temática. Percebidos em sua processualidade, ambos, reprodutibilidade e espontaneidade passam a ser agentes

de tensões geradoras de múltiplas reverberações.

Palavras-chave: Reprodutibilidade; Espontaneidade; Trabalho do ator

Abstract

This article examines the connection between reproducibility and spontaneity in the actor’s work. In this respect, the use of

theoretical and artistic references considered here emerged from a speci� c necessity: that of problematizing as well as of

enhancing the horizon of the territory in question. Perceived in their processuality, both, reproducibility and spontaneity become

agents of tensions that generate in turn multiple reverberations.

Keywords: Reproducibility; Spontaneity; Acting

1 Possui graduação em Teoria do Teatro pela UNIRIO e fez mestrado em Artes da Cena na UNICAMP sob a orientação do Prof. Dr. Matteo Bon� tto e co-orientação da Profª. Drª. Tatiana Motta Lima (UNIRIO). Atualmente está no doutorado (UNICAMP) sob a orientação dos mesmos professores.

2 É Mestre em Artes pela ECA/USP (2001), e Doutor pela Royal Holloway University of London - Inglaterra (2006). Atualmente é professor Livre-Docente do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas.

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Lídia Olinto1

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Não é por acaso que no idioma francês os ensaios são chamados de ‘répétition’, termo cuja tradução para a língua portu-guesa pode ser também ‘repetição’. Essa denominação se deve ao fato de que, ao longo do processo criativo, o ator prepa-ra-se para reproduzir/repetir, diante dos espectadores, um pré-determinado grupo de falas/movimentos/qualidades de or-dem psíquica. Assim, “o ator toma como referência e se apoia em uma série de pontos que formam a con� guração e a es-trutura de sua atuação. (...) O ator instala passo a passo um trilho de segurança que guia sua trajetória, em função de pontos de apoio e de referência, que são, ao mes-mo tempo, físicos e emocionais” (PAVIS, 2005, p. 91). Esses pontos de apoio elenca-dos por Pavis, em conjunto, são corriquei-ramente denominados como: ‘marcação’, ‘partitura’, ‘repertório’, ‘estrutura’, ‘com-posição’, ‘coreogra� a’, ‘linha de ações físi-cas’ e outras expressões análogas que têm em comum remeterem às ideias de � xação e reprodução do desempenho cênico.

Seguindo esse raciocínio, pode-se di-zer que a efemeridade do acontecimento cênico impõe ao trabalho do ator/bailari-no um tipo muito particular de reprodu-tibilidade, pois, é através da mobilização de seu corpo-mente que se dá a reprodu-ção ou a ‘re-presenti� cação’ dos elemen-tos físicos e extra físicos que compõem a cena. Desse modo, trata-se de uma repro-dutibilidade ‘não-técnica’, essencialmen-te diferente da atuação para o Cinema, como pertinentemente percebeu Walter Benjamin (1985, p.165-196)3, pois na cena é o próprio artista quem reproduz seu desempenho em cada apresentação.

No entanto, o modo como se con� -gura essa reprodutibilidade cênica é alta-mente variável, indo desde a memoriza-ção de textos e de movimentos físicos à elaboração de partituras psicofísicas com-plexas e detalhadas, variando também de um nível mais inconsciente e intuitivo a vários graus de controle consciente por

3 Aqui se alude ao conceito de “reprodutibilidade técnica” de Walter Benjamin (1985, p.165-196).

parte de cada ator/bailarino. Há também uma enorme variação conforme a época, o local e principalmente o estilo em par-ticular que se queira analisar em relação a esta questão especí� ca. Desse modo, é plausível a� rmar que as técnicas de re-produção do desempenho são parte cons-tituinte (implícita ou explícita) da práxis artística nas Artes Cênicas, todavia, com muitas especi� cidades em cada caso, den-tro da multiplicidade de manifestações existentes nesse campo artístico e mesmo fora dele.

Mesmo nos estilos teatrais que se carac-terizam por um grau relativamente maior de improvisação atoral – como nas Atela-nas, na Bufonaria, na Commedia dell´Arte, no Ru´hozi iraniano, no Chakkiar-Kuttu in-diano, no Teatro Esporte de Keith Johnsto-ne e outras vertentes – pode-se perceber a reprodutibilidade cênica se con� gurando de um modo sutil. A tipi� cação (� xação de uma personagem-tipo) ou a � xação de um vocabulário de movimento e de expres-sões verbais são aspectos recorrentes que demonstram a presença de um tipo muito singular de reprodutibilidade nos estilos improvisacionais. Analisando a Commedia dell´Arte, um dos mais famosos modelos de teatro de improviso, historicamente fa-lando, Dario Fo comenta que: “os cômicos possuíam uma bagagem incalculável de situações, diálogos, gags, lengalengas, la-dainhas, todas arquivadas na memória, as quais utilizavam no momento certo, com grande sentido de timing, dando a impres-são de estar improvisando a cada instante” (FO, 1999, p. 17). Por isso, é ingênuo consi-derar o desempenho cênico dentro dos es-tilos de improviso como uma “total impro-visação” dos atores, em um stricto sensu, pois se trata de uma articulação harmônica entre instâncias de reprodutibilidade e es-pontaneidade atoral.

Também seria possível identi� car al-gum nível de reprodutibilidade até mesmo nas performances ligadas ao movimento da Live Art e algumas performances con-temporâneas que problematizam de ma-neira mais radical a ideia de representação

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aristotélica4, isto é, a arte vista como imita-ção formalizada da realidade5. Neste tipo de proposição artística, na qual o caráter único e efêmero da experiência cênica é en-fatizado, de fato se evita propositalmente a composição e � xação de um desempe-nho cênico pré-elaborado a ser reprodu-zido durante o acontecimento artístico. Todavia, mesmo nestes casos se poderia reconhecer alguma instância de reprodu-tibilidade cênica no que Schechner (2003, p. 27) denomina como “comportamento restaurado”. Segundo esse autor,, “não há nenhuma ação humana que possa ser clas-si� cada como um comportamento exerci-do uma única vez” e, por isso, “todo com-portamento consiste em recombinações de pedaços de comportamentos previamente exercidos” (Schechner, 2003, p. 34). Nesse sentido, toda ação cênica, mesmo de ca-ráter não-representativo, poderia ser en-carada como uma reprodução de padrões psicofísicos inconscientemente cristaliza-dos ao longo da trajetória pessoal e artís-tica daquele que a executa. Também seria possível enxergar como uma instância de reprodutibilidade a existência quase inevi-tável de uma proposição artística criada a priori, quer dizer, antes que ação de fato se materialize em uma cena. Qualquer tipo de planejamento, combinação entres os artis-tas participantes ou grau de pré-concepção do acontecimento artístico pode ser inter-pretado como uma maneira de reprodu-zir uma ideia preconcebida, ou seja, uma composição preexistente que se reproduz no aqui-agora da cena. Neste sentido, tra-ta-se uma dimensão de reprodutibilidade se con� gurando de modo muito singular e tênue; dimensão esta que nem mesmo os Happenings de Allan Kaprow puderam integralmente anular, já que neles se fazia uso de roteiros. Corroborando com esta perspectiva, Cohen (1989, p. 96) a� rma

4 Segundo a Poética de Aristóteles: “É a tragédia a representação duma ação grave, de alguma extensão e completa, em linguagem exornada, cada parte com o seu atavio adequado, com atores agindo, não narrando, a qual, inspirando pena e temor, opera a catarse própria dessas emoções” (ARISTÓTELES, 2005, p. 24).

5 Como exemplos deste per� l artístico não-representativo, pode-se citar: os Happe-nings de Allan Kaprow, a Body Art de Gina Pane e as performances de Joseph Beuys, do Grupo Fluxus, de Marina Abramovic, e dos brasileiros Márcia X, Alex Ham-burguer e Eleonora Fabião; dentre outros artistas do Brasil e do mundo.

que: “não existe o estado de espontaneida-de absoluta; à medida que existe o pensa-mento prévio, já existe uma formalização e uma representação”.

Em contraposição, nos exemplos mais radicais de valorização do plano da repro-dutibilidade – como no Ballet clássico, na Biomecânica de Meierhold, na Pantomi-ma, na mímica de Decroux, no Kabuki, no Bunraku, no Kyogen, no Nô, no Topeng, na Ópera de Pequim, no Kathakali, e outras vertentes igualmente não seria difícil re-conhecer um nível implícito de improvi-sação/espontaneidade na atuação. Mesmo nos casos mencionados ou outras vertentes que têm como características fundamentais a codi� cação do léxico expressivo (repertó-rio � xo) e um alto grau precisão formal, o ator/bailarino não consegue, graças a sua própria condição humana, realizar uma re-petição exatamente igual de uma partitura, pois “sempre há um mínimo de algo ‘novo’ em cada espetáculo” (Chacra, 2007, p.16). Em alguma medida se está inevitavelmen-te improvisando os pequenos detalhes de uma partitura por mais rígida e detalhada que ela seja. Nesse sentido, cada apresen-tação é inevitavelmente diferente das an-teriores, quer seja em nuances captáveis somente pelo próprio ator/bailarino, quer seja em mudanças mais evidentes e percep-tíveis pelo público. Assim, a repetição de uma cena que tem como base uma estru-tura � xa e pré-elaborada, em certo ponto, é sempre uma micro improvisação. Nas palavras de Peter Brook: “(…) nos detalhes mais sutis nenhuma apresentação pode ser exatamente igual à outra, é esta consciência que lhe permite uma renovação constante” (Brook, 2002, p. 59).

Desse modo, é possível partir da pre-missa que não há nem espontaneidade ab-soluta ou improvisação do ‘zero’, nem re-produção do desempenho concebida como uma repetição inteiramente igual e sem nenhum grau de improviso. Isto é, não há como anular categoricamente a reproduti-bilidade ou a espontaneidade, sendo estas processadas, quer de modo consciente ou não, quer de uma maneira mais particu-

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larizada ou através de técnicas e métodos já formulados (Stanislavski, Meierhold, Zeami ou outra das muitas metodologias já elaboradas). Desse modo, as múltiplas práticas cênicas existentes proporcionam inúmeros modos de relacionar esses duas instâncias, tanto na prática cênica concre-ta (técnicas e métodos aplicados), quanto no próprio jeito de compreendê-las teori-camente. Nesse sentido, trata-se de uma intersecção de � uida tangibilidade entre dois universos contrários que coexistem e se retroalimentam, ou seja, uma antinomia cuja contradição é apenas conceitual e não pragmática. A falta de tal perspectiva pode ser vista como produtora do que se deno-mina na linguagem teatral como ‘mecani-cismo’, ‘automatismo’ ou ‘falta de presença cênica’, pois, sem certo grau relativamente elevado de organicidade/espontaneidade, a ação parece ‘morta’, ‘automática’ e ‘de-sinteressante’, e inversamente, a forma é também imprescindível e inevitável.

Ampliando o olhar

Em grande parte dos estilos ‘orientais’ tradicionais de Artes Cênicas – por exem-plo, no Kabuki, no Bunraku, no Kyogen, no Nô, no Topeng, na Ópera de Pequim e no Kathakali – noções como ‘partitura’ ou ‘es-trutura’ (e a outros conceitos a� ns ao uni-verso da reprodutibilidade) ocupam um papel pedagógico e técnico-criativo funda-mentais, sendo a reprodutibilidade, em ter-mos bem gerais, encarada de um modo dis-tinto de uma grande parcela das práticas teatrais no contexto euro-americano. Como demonstraram os estudos de Antropologia do Teatro produzidos por Barba, Savarese e Taviani (1989), Schechner (1997) e Groto-wski (1999), esses estilos têm em comum caracterizarem-se por uma forte codi� ca-ção do léxico expressivo, por um alto grau de precisão formal e pela construção de um corpo cênico extra cotidiano, estando eles, por isso, mais próximos às técnicas do Ballet Clássico, da Pantomima e da Mími-ca moderna de Decroux e outras vertentes

‘ocidentais’, dentro do que Grotowski clas-si� cou como “linha arti� cial”, em oposição à “linha orgânica” (cf. Grotowski, 1997), na qual a codi� cação se con� guraria de ma-neira mais subjetiva e implícita.

Todavia, num olhar mais atento às suas singularidades e não aos seus prin-cípios em comum, aqueles estudados pela Antropologia do Teatro supracitada, cada um dos estilos tradicionais ‘orientais’ pode apresentar especi� cidades ainda não anali-sadas de modo aprofundado em relação à reprodutibilidade, tanto conceitualmente, quanto singularidades pragmáticas. Além disso, em comparação com as vertentes ‘ocidentais’ também consideradas arti� -ciais (Ballet Clássico, da Pantomima e ou-tras), seria possível encontrar diferenças em relação ao modo como a intersecção entre reprodutibilidade-espontaneidade é processada pelos atores/bailarinos por-que as culturas orientais, como apontam Varela, Thompson e Rosch (2003, p. 44), não conceberiam a relação corpo-mente da maneira cindida como ocorre no contexto ‘ocidental’; pelo menos até o século XX, quando muitos pressupostos e paradigmas ocidentais irão ser problematizados. Como consequência do não-dualismo cartesiano, observa-se, nos países asiáticos, conceitos como “prana” (cf. Zarrilli, 2009), “ki-ener-gy” (cf. Yuasa, 1993) que, estando empiri-camente ligados tanto às práticas meditati-vas como às práticas artísticas, impendem uma compreensão segmentada dos aspec-tos ligados à reprodutibilidade e à espon-taneidade. Nesse sentido, as práticas asiá-ticas revelam-se efetivamente distante das vertentes artísticas ‘ocidentais’, nas quais essas duas dimensões, muitas vezes, foram vistas como desconectadas e passíveis de serem isoladamente exploradas pelo ator/bailarino.

Já dentro do contexto euro-americano, tendo como base os estudos de Roubine (2003) e Isaacsson (2004), observa-se que, devido ao destaque dado ao texto dramá-tico frente aos demais elementos cênicos, somado à progressiva perda do valor ritu-al originário do fazer teatral na conjuntura

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greco-romano, somente a partir do século XVIII a dimensão psíquica/interior do tra-balho cênico passou a ser um tema concre-to de re� exão teórico-prática. Através de um amplo embate teórico que tinha como foco a dicotomia entre as noções de ‘Sentir’ e ‘Representar’, pensadores da Teoria Tea-tral – dentre os quais � gura o � lósofo fran-cês D. Diderot, autor do famoso “Paradoxo sobre o comediante” (2000) – começaram a debater mais claramente sobre a necessida-de (ou não) para o ator de atingir no mo-mento da cena ‘algo além’ da utilização de gestos ‘apropriados’ e da declamação dos versos ‘adequada’; postulações essas liga-das à noção de decoro, fortemente presente nos palcos europeus até então.

Contudo, foi na virada do século XIX para o XX que se expandiu o pensamento teórico e o desenvolvimento de metodolo-gias criativas e pedagógicas voltadas para o trabalho do ator, antes somente aborda-do em alguns poucos manuais para atores escritos por atores, como “A arte de re-presentar” (1728) de Riccoboni, “O come-diante” (1747) de Sainte-Albine, e “Lições dramáticas” (1861) de João Caetano, por exemplo. “De modo geral – a� rma Pavis –, a partir de 1880, aproximadamente, quan-do a problemática da direção começa a ser globalmente considerada, multiplicam-se re� exões teóricas, tratados relativos à téc-nica do ator, e, um pouco mais tarde, teses acadêmicas que fundam um estudo diacrô-nico da prática do teatro” (Roubine, 2002, p. 8).

Também, seguindo a re� exão pano-râmica feita por Bon� tto (2002), na qual o autor toma como � o condutor a noção de “ação psicofísica” de Stanislavski e seus ulteriores desdobramentos, é possível per-ceber como, no � nal do século XIX e ao longo do século XX, o trabalho do ator/bailarino passou a ser investigado e repen-sado por importantes artistas-pesquisado-res: começando por Stanilavski, passando por Meierhold, Laban, Artaud, Brecht, Chekchov, Grotowski e Barba.

Através de sua prática cênica e/ou de suas formulações teóricas, os artistas anali-

sados por Bon� tto (2002) e também outros, por exemplo, Vakhtângov, Antoine, Zola, Craig, Appia, Copeau, Brook, Schechner e os brasileiros Antunes Filho, Klauss Viana, Eugênio Kusnet, Luís Otávio Burnier, Gra-ziela Rodrigues, etc., ampliaram considera-velmente o número de técnicas e métodos de atuação concretamente sistematizados e o conhecimento empírico produzido sobre ofício do ator/bailarino dentro de um pris-ma essencialmente psicofísico.

Dentre esses artistas-pesquisadores, muitos frisaram a importância da precisão (e outros termos ligados à reprodutibili-dade) ou da organicidade (ou outros ter-mos ligados à espontaneidade), utilizando, cada um, uma terminologia especí� ca para nomear essas instâncias, muitas vezes vis-tas como con� itantes e não passíveis de se-rem justapostas. Entretanto, poucos foram os que enxergaram e analisaram a relação de complementaridade entre reproduti-bilidade/espontaneidade. Poucos foram os que trataram do tema demonstrando, através da prática artística e teórica, como a precisão cênica trabalhada em um nível não formal pode estar fortemente imbrica-da à organicidade cênica, antes como seu catalisador do que como seu antônimo, seu contraponto. Nesse sentido, “a maioria dos grandes mestres do teatro oriental e oci-dental insiste sobre a importância da pre-cisão e da organicidade de uma ação, no entanto, poucos são os escritos sobre esses elementos [...]” (Burnier, 2009, p. 52).

Stanislavski, reconhecido como pri-meiro pedagogo6 a sistematizar uma psico-técnica de atuação baseada no uso da ima-ginação, pode ser considerado, também, o primeiro a apontar a correlação entre re-produtibilidade e espontaneidade ao dis-cernir dois planos de um papel, “o plano interior e o plano exterior” (Stanislavski, 2000, p. 223); também através da elabora-ção do “Método das ações físicas”, no qual se partiu da premissa de que as ações po-dem servir como “iscas” para sentimentos e estados psíquicos que, se abordados per

6 Por exemplo, Grotowski e Pico-Vallin falaram sobre o pioneirismo de Stanislaski (cf. Grotowski, 1987, p. 92; Picon-Vallin, 2008, p. 62).

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si, não poderiam ser diretamente controla-dos. Na terminologia stanislavskiana, esse seria o ponto de mudança, através do qual, movimentos e falas cênicos deixariam de ser “meramente físicos” e passariam a ser denominados como ações-físicas ou ações psicofísicas (cf. Toporkov, 1999, p. 173-174).

A complementaridade entre precisão/forma e espontaneidade/organicidade, te-mática aqui enfocada, também pode ser re-lacionada aos conceitos de “Atletismo Afeti-vo” de Antonin Artaud (1999), de “arti� cial naturalidade” de Gordon Craig (1987) e “Gesto Psicológico” de Michael Chekhov (2010). Artaud (1999, p. 151), ao propor que “o ator é como um atleta do coração”, esta-belece uma analogia direta entre o controle do desempenho muscular de um atleta (do-mínio da dimensão física) e o controle da afetividade (domínio da dimensão psíqui-ca) de um ator, criando, assim, uma imagem metafórica para o conceito de precisão cêni-ca que articula as dimensões física e psíqui-ca do trabalho cênico. Já Gordon Craig, ao atribuir como uma característica fundamen-tal do desempenho do ator a sua “arti� cial naturalidade” (cf. Craig apud Burnier, 2009), articula duas ideias diametralmente opos-tas, arti� cial e natural, colocando-as como componentes articuláveis e indissociáveis no trabalho cênico.

Chekhov (2010), discípulo de Stanisla-vski, a� rma, alinhado ao pensamento de seu mestre, que os sentimentos não podem ser controlados se abordados em si, mas sim podem ser acionados através de certos gestos, os intitulados “Gestos Psicológicos” ou “GPs” (cf. Chechov, 2010, p. 84). Por meio dos GPs demonstrados por Chekhov (2010, p. 76), o ator seria capaz de penetrar e estimular sua própria psicologia. O con-ceito de “Gestos Psicológicos”, assim como o de “Atletismo Afetivo” de Artaud (1999) e “arti� cial naturalidade” de Craig (cf. Bur-nier, 2009), justapõe noções pertencentes a universos opostos: a noção de “gesto”, que conota aquilo que está num âmbito apenas corporal ou externo, adicionada ao adjeti-vo “psicológico”, que se refere à dimensão interior oposta à dimensão do gesto.

Entre os artistas-pesquisadores que abordaram essa questão de modo enfáti-co, recorrente e aprofundado, sem dúvida destaca-se Jerzy Grotowski, para quem a re-lação entre precisão e espontaneidade, por ele intitulada “Conjuctio oppositorum” (Gro-towski, 2007, p. 74), era um relacionamen-to paradoxal de fundamental importância entre dois polos integrantes do trabalho do ator, e ao qual estavam intimamente relacio-nados conceitos operativos cruciais nas pes-quisas grotowskianas, tais como o “Impul-so” (Grotowski, 2007, p. 14) e o “Contato” (Grotowski, 1987, p. 187). Como frequente-mente advertia em seus textos e entrevistas, a forma precisa (estruturada, partiturada) pode e deve servir para canalizar “o � uxo espontâneo” do ator em cena, liberando-o e potencializando-o; “(...) porque se essa precisão não existe, nada pode ser feito, ou então irá transformar-se em uma espécie de plasma” (Grotowski, 2007, p. 173) ou “um processo pessoal que não seja sustentado ou expresso por uma articulação formal ou por uma estruturação disciplinada do papel não é uma liberação e cairá na falta de forma” (Grotowski, 2007, p. 106).

Segundo Kumiega (1985), Grotowski considerava-se o primeiro dos diretores ocidentais a apontar como, no trabalho do ator, esses elementos se fortalecem mu-tuamente, sendo sua contradição apenas conceitual e não pragmática. Nas suas pa-lavras: “Era um princípio que Grotowski acreditava que nenhum diretor ocidental tinha previamente compreendido. Ele a� r-mava que nem Stanislavski ‘que deixava os impulsos naturais dominarem’ nem Brecht ‘que dava demasiada ênfase para a cons-trução do papel’ entenderam” (Kumiega, 1985, p. 134)7.

Além disso, a relação entre precisão e organicidade (anteriormente descrita como binômio reprodutibilidade-espontaneida-de) parece não ser uma questão temporá-ria, emergida em apenas um processo de criação ou fase especí� ca da trajetória de

7 Tradução para: “It was a principle that Grotowski felt no Western director had previous-ly fully grasped. He claimed that neither Stanislavski ‘who let the natural impulses domi-nate’ nor Brecht ‘who gave too much emphasis to the construction of a role’ understood it” (Kumiega, 1985, p.134).

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Grotowski, mas sim um “problema-chave” que perpassa os distintos momentos de pesquisa, de forma mutável e complexa. Neste sentido, a� rma Flaszen (2007, p. 19), “[Grotowski] Procurava a estreita passa-gem entre a Precisão, que é a condição do pro� ssionalismo, e a Vida”.

Também Ryszard Cieslak e Thomas Ri-chards, atores-companheiros de Grotowski em períodos diferentes de sua trajetória, trataram do assunto de maneira pontual e através da elaboração de duas imagens me-tafóricas que em muito auxiliam na com-preensão empírica da enantiodromia8 entre precisão (forma) e organicidade (vida) na atuação. Cieslak, numa entrevista dada em 1973, a� rmou que a partitura funciona para o ator como um vidro que protege a chama de uma vela, não permitindo que as cor-rentes de ar a apague. “A partitura é como o vidro dentro do qual uma vela está quei-mando. O vidro é sólido; está lá, você pode depender dele. Ele contém e guia a chama, mas não é a chama” (Cieslak apud Schech-ner e Wolford, 1997, p. 203)9. Já Richards (1995, p. 236-237), analisando sua experi-ência com Grotowski no Drama Objetivo, equiparou a precisão cênica às margens de um rio que permitem que o � uxo de água corra numa determinada direção, sem dei-xar a água se dissipar em diversas direções, como ocorreria sem a estrutura criada pe-las margens, devido à própria natureza osmótica da água, penetrante e penetrável. No caso do trabalho do ator, “a água” seria equivalente ao que Richards (1995) nomeia como “� uxo de vida”, mas que também poderia ser denominado como “organi-cidade”, “espontaneidade”, além de ou-tras denominações já acima mencionadas, que verbalizam aquilo que deve ocorrer durante o acontecimento cênico para que atuação não se automatize, ou, como dito na linguagem teatral, para que não pareça “morta”, “mecânica”, “automática”, “fria”

8 Termo cunhado por Heráclito, � lósofo grego pré-socrático, para quem o devir da natu-reza seria composto por elementos contrários que não se anulam mutuamente. “Tudo se faz por contraste, da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia” (Marcondes, 1999, p. 15).

9 Tradução para: “The score is like a glass inside which a candle is burning. The glass is solid; it is there, you can depend on it. It contains and guides the � ame. But it is not the � ame”. (Cieslak apud Schechner e Wolford, 1997, p. 203).

ou “sem vida”. Eugenio Barba, parceiro de Grotowski

na fase teatral (1962-1964) e importante in-terlocutor ao longo de toda sua trajetória de pesquisa, divide as instâncias de espon-taneidade e reprodutibilidade, classi� can-do-as como “dimensão interior e dimensão física ou mecânica” (Barba, 1989, p. 21), e também através da distinção entre con-ceitos de “corpo-em-vida” e “mente-em-vida”, e de “Bios” e “Logos”, trabalhados amplamente no livro “A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral” (cf. Barba, 1989). Embora conceba esses as-pectos como distintos, Barba assinala sua articulação dentro do trabalho do ator: “a experiência da unidade entre dimensão in-terior e dimensão física ou mecânica não constitui um ponto de partida: constitui o ponto de chegada do trabalho do ator” (Barba, 1989, p. 21).

Nos textos de Peter Brook, é possível notar a exploração teórico-prática de con-ceitos diretamente relacionados à noção de espontaneidade/organicidade, como, por exemplo, “momento presente” ou “cente-lhas de vida” (cf. Brook, 2002). “A raiz do problema consiste em saber se a cada mo-mento, no ato de escrever ou atuar, existe uma faísca, uma pequena centelha que se acende e dá intensidade a esse momen-to comprimido, destilado. […] A essência do teatro reside num mistério chamado momento presente” (Brook, 2002, p.10). A utilização desses conceitos evidencia uma valorização particular do diretor inglês do potencial de tudo aquilo que acontece no aqui e agora em que a ação se passa dian-te do espectador e sob sua in� uência dire-ta. No entanto, também ressalta a impor-tância de se articular “centelha vida” com uma forma: “a questão central é relativa à forma, a forma precisa, a forma adequada. Não podemos passar sem ela, a vida não pode prescindir dela” (Brook, 2002, p. 75).

Laban (1978), em sua minuciosa análi-se do movimento humano em seu famoso livro, “O domínio do movimento”, parte do princípio que os movimentos corporais possuem qualidades determinadas pela

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condição mental daquele que os executa. “O movimento, portanto, revela eviden-temente muitas coisas. É resultado, ou da busca de um objeto de valor, ou de uma condição mental. Suas formas e ritmos mostram a atitude da pessoa que se move numa determinada situação.” (Laban, 1978, p. 20). Desse modo, o autor abordou a articulação entre forma/precisão e orga-nicidade, diferenciando o que ele de� ne como “movimento pelo movimento” e o “movimento humano [corporal ou vocal] com todas as suas implicações mentais, emocionais e físicas” (Laban, 1978, p. 29).

Tendo essa perspectiva de união cor-po-mente, Laban (1978) formulou a Teoria do Movimento Expressivo que se compu-nha de um conjunto articulado de estudos, Corêutica (estudo do movimento no espa-ço) e Eukinética (estudo das dinâmicas e das qualidades do movimento), os quais, funcionando como ferramentas metodoló-gicas concretas, possibilitam ao ator/baila-rino uma maior consciência psicocorporal durante a criação cênica e sua reprodução diante do público. Também estruturou uma forma de registrar os desempenhos cênicos dos artistas da cena através de uma gra� a do movimento codi� cada chamada Cinesiogra� a, igualmente conhecida como Labanotation.

No Brasil, Burnier a� rma que as “‘di-mensões interior e física ou mecânica’ (re-ferência a terminologia usada por Barba) não podem ter uma existência isolada, pois formam uma unidade” (Burnier, 2009, p. 19), reforçando a perspectiva de com-plementaridade entre essas dimensões. Porém, o autor não apenas reforça a arti-culação, mas também adiciona uma nova faceta à questão, ressaltando que “embora possam compor duas faces de uma mesma moeda, elas possuem naturezas diferentes e podem ser trabalhadas separadamente e de distintas maneiras” (Burnier, 2009, p. 19). Nesse sentido, ele reforça a ligação direta dessas dimensões do trabalho com uma multiplicidade de técnicas e métodos cujo enfoque estaria, ora mais voltado para o universo da reprodutibilidade, ora para o

universo da espontaneidade.Contudo, é Ferracini (2012), integrante

do Lume, quem, além de enfatizar a impor-tância de não se enxergar essas dimensões de modo dicotômico, aponta não se tratar de relação dada, estável e imutável, mas sim de uma relação que se modi� ca de caso para caso, de processo para processo. Assim, a� rma que: “No corpo, ‘ponto’ por excelência de con� uências, não existe pola-ridade, mas uma multiplicidade dimensio-nal (formal, vital, técnica, relacional, etc.). Nesse sentido nem mesmo posso de� nir essa con� uência como apenas UM ponto, no sentido de um local determinado, mas sim por várias dimensões que ultrapassam, ou passam ‘entre’ a relação de dualidades estabelecidas como forma/expressão” (Ferracini, 2012, p. 79-80).

Entretanto, embora todos os artistas acima citados tenham abordado o tema, ampliando sua compreensão, poucos deles � zeram uma análise comparativa prático-conceitual que indicasse, tendo como base estudos de caso, as diferentes combinações possíveis entre instâncias de reprodutibili-dade e de espontaneidade no trabalho do ator, como fez, por exemplo, Grotowski no � nal de sua vida, em aulas dadas no Collè-ge de France (cf. Grotowski, 1999). E em “Da Cia Teatral à Arte como Veículo”, Groto-wski (2007) ao fazer uma re� exão panorâ-mica de sua própria trajetória de pesquisa, num breve comentário, também aproxima o tipo de precisão cênica empregado na pri-meira fase de trabalho (Fase Teatral) com a última etapa (Arte como Veículo), embora alertasse não se tratar exatamente de um re-torno, mas sim do emprego de um nível de detalhamento e rigor estrutural semelhante aos dos espetáculos da década de sessenta sob uma ótica de investigação inteiramente nova (cf. Grotowski, 2007, p. 231-232).

Também Motta-Lima (2005; 2008) ana-lisa como a concepção teórico-prática do binômio estrutura-espontaneidade foi mo-di� cada ao longo das etapas de pesquisa de Grotowski, tratando-se, portanto, de ar-ticulações singulares e distintas que se con-� guravam em cada período de trabalho.

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Segundo a autora, seria possível enxergar a investigação prática sobre esse binômio sendo balizada por alguns “marcos” den-tro das pesquisas grotowskianas, nos quais a concepção teórica e prática das noções de estrutura e de espontaneidade teriam so-frido alterações mais contundentes. Esses “marcos” estariam localizados dentro da fase teatral, mas também fora dela.

O primeiro marco teria se processado na montagem do espetáculo Shakundala, que é colocado como o momento no qual a mise-en-scène das produções dirigidas por Grotowski se volta mais concentradamen-te para a exploração dos recursos corporais e vocais do ator, mas ainda sob uma ótica positiva em relação a conceitos como “arti-� cialidade”, “arti� cial” e “signos”. O perío-do de 1962, no qual se produziu Akropolis, é destacado como a época em que se come-çou a relacionar conscientemente as noções de “partitura”, “estrutura” e “forma” com as de “espontaneidade”, “autopenetração”, “empenho interior” ou “técnica interior”. Porém, nesse segundo marco (a partir de 1962), essas noções ainda eram vistas como pertencentes a instâncias distintas do tra-balho do ator e que deveriam ser propo-sitalmente articuladas por ele. Também as noções de arti� cialidade, “artifício” e “sig-nos”, que posteriormente serão abolidas do léxico grotowskiano, ainda eram vistas po-sitivamente. Já o período de 1965 em dian-te, até o término da fase teatral, é posto pela autora como momento em que se reviu de maneira incisiva a dicotomia entre estrutu-ra-espontaneidade, entre interior-exterior, delineando-se o que foi de� nido como a “descoberta da organicidade” (Motta-Li-ma, 2008, p. 240), marcada pela inserção de certos princípios, como “impulso” e “contato”, que nortearão a trajetória gro-towskiana como conceitos-chave. Por � m, o último marco delineado pela análise de Motta-Lima (2008), estaria no trabalho de Grotowski com Richards e Biagini dentro do Workcenter, no qual a relação entre for-ma e � uxo de vida teria ganhado uma nova concepção e dinâmica na prática artística.

A análise de Motta-Lima (2008) eviden-

cia que a intersecção reprodutibilidade-es-pontaneidade não pode ser compreendi-da de maneira generalizada, nem mesmo dentro do percurso de um mesmo artista, como Grotowski, pois, o quê se pode consi-derar como reprodutibilidade ou como es-pontaneidade pode variar bastante de es-petáculo para espetáculo, de processo para processo. Assim, partindo da premissa de que essas instâncias possuem distintas maneiras de se interarticular nas experiên-cias cênicas, se pode a� rmar que, embora muitos artistas já tenham apontado a exis-tência dessa relação paradoxal no trabalho do ator/bailarino/performer, são muito poucos os estudos que analisam as espe-ci� cidades de cada proposta cênica em re-lação a essa questão especí� ca, a esse rela-cionamento de � uida tangibilidade. Além das especi� cidades que podem apresentar cada modelo ou estilo em particular, cada ator, por sua vez, também pode estabele-cer para si um tensionamento próprio des-tes polos. Consequentemente, são muitas as noções de ligadas a esses dois univer-sos operacionais da atuação cênica, assim como são também muitos os métodos/téc-nicas empiricamente a eles relacionados. “A distância entre estes dois polos, o im-provisado e o formal, é que determina as diferenças entre si, através de graus, onde a manifestação torna-se mais ou menos for-malizada ou mais ou menos improvisada” (Chacra, 2007, p. 12).

Pensar a intersecção reprodutibili-dade-espontaneidade, portanto, permite abordar uma discussão crucial para ofício cênico: como lidar com a repetição, ou como evitar que ela automatize o desempenho e prejudique o ‘re-acionamento’ das qualida-des de ordem psíquica, alcançadas nos en-saios? Debater essa problemática de modo não super� cial e generalizante implica em destrinchar como se dá, em cada caso, a re-lação reprodutibilidade-espontaneidade, pois essa análise propicia perceber e deli-near as especi� cidades apresentadas pelas múltiplas práticas cênicas existentes em re-lação a esse paradoxo fundamental do tra-balho do ator/bailarino/performer.

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Resumo

Neste artigo trataremos de falar de textos e não de peças, buscando identi� car em certas textualidades contemporâneas, neste caso a

brasileira, seu comportamento diante daquilo que se nomeia como pós-moderno. Se uma das grandes ilusões modernas foi apresentar

o teatro sem o teatro, em sua autonomia e emancipação, o que se seguiu, com o pós-moderno, foi o mergulho em todo tipo de hibridações e mestiçagem instituindo um tipo de realismo mais

“afetivo”; uma teatralidade que denominamos “realismo sedutor”.

Palavras-chave: Textualidades brasileiras; Teatro Pós-Moderno; Realismo sedutor

Abstract

In this article we intend to talk about texts and not about plays, in search for an identi� cation of a certain contemporary textuality,

the Brazilian, its behavior facing what is called post-modernity. If one of the great modern illusions was to present a theater without

theater in its autonomy and emancipation, what was followed with post-modernism, was a jump into any kinds of hybridation

and mixed breeds, establishing a more “affective” kind of realism, a theatricality we call “seductive realism”.

Key-words: Brazilian textualities; Post-Modern Theater; Seductive Realism

1 Diretora teatral e Professora Adjunta da Universidade Federal Fluminense, IACS - Departamento de Arte. Atuando também no Programa de Pós-Graduaçao em Estudos Contemporâneos das Artes (PPGCA) da instituição. Com doutorado em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (2008), com período sanduiche na Università di Torino no DAMS. Desde 2008 vem anualmente realizando pesquisa de campo nas seguintes universidades italianas: Università degli Studi di Torino e Università di Milano, a convite dos professores Roberto Alonge e Paolo Bosisio respectivamente. Em 2013, a convite de Thomas Richards e Mario Biagini, irá acompanhar, como observadora, as atividades do Workcenter de Grotowski e Thomas Richards durante o Summer Intensive Program, em Pontedera, Itália.

Textualidades Contemporâneas: O realismo sedutor e sua

configuração na dramaturgia brasileiraMartha Ribeiro1

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Que as palavras deixem de fazer “texto”...

Gilles Deleuze Um manifesto de menos, 1978

Em seu “Manifesto de menos”, Deleu-ze se debruça sobre a obra teatral de Car-melo Bene (1937-2002), ator, dramaturgo, cineasta e encenador italiano, para dali ex-trair alguns princípios, notadamente na via de interrupção da representação, que irão particularmente nos interessar neste ensaio que tem por objetivo re� etir sobre certas tendências na dramaturgia nacional (brasi-leira) em seu confronto com o pós-moderno. Não se trata aqui de realizar uma antologia de obras de dramaturgia, selecionadas por algum dispositivo de poder, separando au-tores e produções, bem ou mal sucedidas, ao contrário. Nossa intenção é escapar do posicionamento histórico-ideológico de se-leção, que rea� rma as estruturas de um te-atro consolidado, o� cialmente constituído, ou da moda, para investigar certas textuali-dades apresentadas em certas cenas mais atuais do teatro brasileiro que corrobora com nosso pensamento a propósito de um realismo sedutor (estado que identi� camos na arte teatral contemporânea enquanto resposta ao projeto moderno mais radical de emancipação da arte). Sem negar o real, e sem ser seu contrário, essa nova cena se institui colocando o real em jogo; e o jogo é um dos domínios da sedução.

Em seu artigo “La théâtralité en Avig-non” (1998), Patrice Pavis revisita o con-ceito de teatralidade em seu “Dicionário de Teatro” (1996), questionando o termo na sua designação genérica de uma “es-peci� cidade” meio mística do teatro. A pluralidade de experiências, de teatralida-des, observadas em Avignon, fez o teórico concluir que o termo, afastado de seu uso abstrato, permite, a partir de um método de análise que privilegie procedimentos cênicos, diagnosticar diferentes exemplos de teatralidade segundo o uso material das textualidades espetaculares (corpo, espaço, texto, visualidade). As muitas de� nições de teatralidade elencadas por Pavis indi-

cam a impossibilidade de uma de� nição unívoca do termo, que se presta muito bem a descrever de forma pragmática diferen-tes aspectos do teatro contemporâneo hoje. Neste sentido, enquanto um conceito ope-ratório, teatralidade indica a negação de uma teatralidade em si, mas também insti-tui sua presença tangível, onipresente, em diferentes espetáculos. Neste ponto, Pavis faz uma restrição do termo no que tange as experiências de “performances cultu-rais”, opondo a esta teatralidade da vida cotidiana a teatralidade de procedimentos artísticos. Tomando partido do conceito de “teatralidade de efeitos e de procedi-mentos artísticos” de Pavis, iremos anali-sar duas experiências cênicas brasileiras, a peça radiofônica “Trilhas sonoras de amor perdidas” da Sutil Companhia, com dire-ção de Felipe Hirsch e “Preferiria não?” de Denise Stoklos; espetáculos completamen-te distintos no uso da teatralidade, mas que realizam sua experiência cênica a partir de “um modo estético no tratamento do real”, isto é, a partir de critérios estéticos que dis-tinguem seus procedimentos da vida coti-diana, sem, no entanto, romper com a rea-lidade que se conhece, criando uma zona intermediária, um espaço de passagem para duas diferentes con� gurações, o real e o imaginário. Esse tipo de tratamento dado à cena, denominamos Realismo Sedutor.

Tratemos primeiro de compreender o que identi� camos como “textualidades”, ou mais resumidamente, “texto”, confron-tado com a ideia de peça. E aqui entra uma provocação com a citação em epígrafe, pois, ao contrário do que poderia parecer a uma leitura desatenta, entendemos que o pensamento de Deleuze dialoga com o nosso, na exata medida em que nossos es-forços se direcionam ao entendimento do texto contemporâneo como um texto que subtrai de seu organismo a hierarquia da literalidade dramática (internalizada no conceito de peça teatral). Propondo, na sua conformação, o uso de diferentes textos, que podem ser corporais, midiáticos, visu-ais, documentais, biográ� cos, etc., a textua-lidade contemporânea em seu viés sedutor

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não se quer representativa de um real uní-voco, não se quer prisioneira de uma lógi-ca representativa, mas também não se quer abismada do real, negando a representação para fundar um “próprio da arte”. Proble-matizando a relação do teatro com o real, estabelecendo uma relação que não proce-de nem por transparência, de adequação a uma referência unívoca, e nem por opaci-dade total, de não-referencialidade a algo externo a ela, mas de jogo, o texto que nos interessa discutir aqui se realiza nas cama-das do entre: entre a linguagem e o mundo, entre o � ccional e o real.

Como alerta Josette Féral em seu “Tea-tro, teoria y práctica: más allá de las fron-teras” (2004), falar da relação do teatro com o real pode parecer problemático, na medida em que insinua a existência de um real unívoco, cognoscível e portanto repre-sentável, no entanto, desde os três mestres da suspeita – Marx, Freud, Nietzsche – en-tende-se que o real é, ele mesmo, o resul-tado de uma observação problemática, de uma construção, e de que sempre haverá um resto que nos escapa, pois, o real, já se-ria, ele mesmo, uma representação; o que não signi� ca que compartilhamos a tese da “morte” do sujeito, ao contrário, o su-jeito em seu confronto com o mundo, não é senhor do sentido, mas também não está ausente desse mundo, a representação � c-cional, como a representação histórica, dirá Rancière, constroem “� cções”, isto é, “rear-ranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer”, e acrescenta: “O real precisa ser � ccionado para ser pensado” (2009, p. 58-59). Corro-borando com essa ideia, destaca Tassinari: “A obra não imita uma visão nem imita em conformidade com uma visão, mas se co-munica com o espectador numa espécie de face a face que tem no mundo em comum o seu solo e sua garantia. O que por sua vez, não abole a subjetividade do espectador. Sem ela não há obra, porque não haveria destino da obra” (2001, p.148).

A ideia de textualidades como indicati-vo de um processo construtivo de sentido,

em detrimento da ideia de peça, produto e modo de fazer especí� co da arte dramáti-ca, corresponde a uma mudança de para-digma nas artes da cena, como identi� cado por Hans Thies-Lehmann em seu “Teatro pós-dramático” (2007), que também signi-� ca uma mudança de regime da arte, como identi� cado por Rancière em “A partilha do sensível”: se no regime representativo, a arte estava sujeita a critérios poéticos e de fabricação que de� niam a imitação, no re-gime estético o que de� ne a arte não será o seu modo de fazer, sua especi� cidade, mas o modo de ser sensível.

O regime estético das artes é aquele que propriamente identifica a arte no singular e desobriga essa arte de toda e qualquer regra específica, de toda hierarquia de temas, gêneros e artes. Mas, ao fazê-lo, ele implode a barrei-ra mimética que distinguia as manei-ras de fazer arte das outras maneiras de fazer e separava suas regras da or-dem das ocupações sociais. Ele afir-ma a absoluta singularidade da arte e destrói ao mesmo tempo todo critério pragmático dessa singularidade. Fun-da, a uma só vez, a autonomia da arte e a identidade de suas formas com as formas pelas quais a vida se forma a si mesma (Rancière, 2009, p. 33-34).

Esse estado de interrupção da repre-

sentação, no sentido paradigmático da equação teatro=drama, construção linear da fábula “pela necessidade e verossimi-lhança”, não signi� ca, conforme atestado por Rancière, o abandono do realismo (� -gurativo), ao contrário, mas também não signi� ca a “valorização da semelhança, mas a destruição dos limites dentro dos quais ela funcionava” (2009: 35). Todas as hierarquias do sistema representativo, em sua organização de pares opositivos (co-média/tragédia; alto/baixo; drama/épi-co; antigo/moderno), serão subvertidas, interrompidas, suprimidas, com o objetivo de reinterpretar, de escavar, de fazer uma releitura do passado, imprimindo uma re-lação muito mais branda com as heranças clássicas, misturando as artes, os gêneros,

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embriagando-se com diferentes suportes, com novas combinações, arruinando en� m com o projeto moderno de separação das artes e da conquista da forma pura, ou de uma essência própria ao teatro, que ao � nal do século XIX tanto inspiraram os reforma-dores da cena, de Meyerhold a Artaud.

Essa rejeição à teatralidade se observa ainda mais intensamente com a prática e os estudos teóricos ligados a performance, mesmo nos anos oitenta, com uma clara rejeição aos aspectos miméticos, discursi-vos e narrativos do teatro tradicional, pri-vilegiando seu aspecto de evento. Marvin Carlson no livro “Performance, uma intro-dução crítica”, analisa que a despeito de caracterizar a arte da performance como um movimento pós-moderno, seu desen-volvimento inicial e suas raízes estavam claramente ligadas ao formalismo da arte moderna, e que “longe de ser um fenôme-no pós-moderno, estava, em sua insistência na horizontalidade e na abstração, em dé-bito profundo para com todo o movimen-to de arte moderno” (Carlson apud Mehta, 2010, p.145). Carlson continua sua análise observando que a ênfase na presença, na imanência, instituída pela abordagem fe-nomenológica da performance, que procu-rava transcender a história, torna-se pro-blemática com o pós-estruturalismo, que vai aceitar a relação contingente e de cho-que entre a arte e o mundo. O que está em jogo é a suspeita de que toda forma de pre-sença é já uma representação, ou seja, pre-senti� cação de uma ausência: “A presença, para ser presença e presença a si, começou já sempre a representar-se” (Derrida, 1971, p.174).

Derrida, em seus dois ensaios funda-mentais, “A palavra soprada” e “O teatro da crueldade e o fechamento da representa-ção”, vai refutar a ideia de teatro de Artaud, entendendo sua potência revolucionária, mas rejeitando sua tentativa de escapar à representação, na busca de um sentido ori-ginal, não contaminado: “Artaud desejou também a impossibilidade do teatro, quis apagar ele próprio o palco” (Derrida, 1971, p.175) Derrida vai dizer que essa tentativa

é impossível, pois toda ação sempre estará envolvida com a repetição, não sendo pos-sível a experiência da presença pura, não mediada. Mas observa-se que Derrida não vai simplesmente substituir uma estética da presença por uma estética da ausência, a rejeição à ideia de presença pura, instituin-do a repetição (e portanto o teatro) é, no projeto de Derrida, um jogo entre ausência e presença. Esse jogo recusa a estabilidade da forma, operando na diferença, tratando termos como teatro e performance de for-ma radicalmente diferente, sugerindo um eterno jogo entre esses dois termos: um en-trelugar entre presença e ausência.

Critica ao sistema de representação, mas recusa à esterilidade abstrata do mo-dernismo; interrupção das estruturas co-di� cadas da representação, mas uso da narrativa; é neste jogo de forças entre essas duas realidades – códigos teatrais e � uxos energéticos da performance – que identi� -camos em Hirsch e Stoklos o realismo se-dutor.

Interromper não é mesma coisa que destruir, ou fazer desaparecer; interromper é parar momentaneamente o progresso de algo, é a pausa. E a pausa é a crítica, aqui-lo que deriva de algo, que perturba certa ordem anterior. E a perturbação só é pos-sível porque a pausa, que é uma incisão, opera pela descontinuidade, rompendo com a forma e instituindo a diferença. Se não é possível purgar a arte do “teatral”, promovendo experiências não contami-nadas, na ideia de interrupção, como dirá Lehmann, “os vários elementos, agora dis-sociados, podem ser construídos de outra maneira” (2008, p. 239). E é neste sentido que compreendemos a interrupção, como desconstrução dos códigos, das estruturas e do modo de fazer do dramático, uma não submissão à lógica representativa, sem, no entanto, instituir a utopia de uma pureza antirepresentativa. Interromper não é rom-per de� nitivamente, é a pausa crítica para reinterpretar, rearranjar, desobrigando a arte teatral de toda e qualquer regra, de toda especialidade, instituindo a diferença na embriaguez de diferentes textualidades.

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A análise da interrupção no trabalho de Carmelo Bene, por Deleuze, aponta na direção da produção de algo novo, a partir da repetição e não da representação – insis-te o � lósofo -, a partir de certas operações de subtração e de amputação executadas pelo homem de teatro Bene em peças ori-ginais. Na leitura de Deleuze o teatro de Carmelo Bene não é um teatro da repre-sentação, e sim um teatro da repetição, isto é, da transgressão, de reversão da maneira de fazer, que se institui contra a lei: “Se CB [Carmelo Bene] tem frequentemente neces-sidade de uma peça originária, não é para fazer dela uma paródia, seguindo a moda, nem para acrescentar literatura à literatura. Pelo contrário, é para subtrair a literatura, por exemplo subtrair o texto, uma parte do texto, e ver o que acontece” (Deleuze, 2010: 29). Na peça “um Hamlet de menos”, Car-melo Bene irá subtrair Romeu, construindo uma nova peça, onde Mercúcio se torna o protagonista. O que se assiste no palco é a construção deste personagem que na peça de Shakespeare morre cedo. No caso de Bene, toda a peça é a constituição (fabrica-ção) deste personagem, “a peça acaba com a constituição do personagem, ela só tem como objeto o processo dessa constituição [...] Ela para com o nascimento [do perso-nagem], enquanto habitualmente é na mor-te que se para”. (2009, p. 31).

O que gostaríamos de chamar atenção neste ponto, na abordagem deleuziana so-bre a obra de Bene, é que nas operações de amputação em suas peças [“um Hamlet de menos”, “S.A.D.E.”; “Ricardo III”], o artista CB, nos três casos, irá proceder por interrupção da própria forma dramática, se afastando do sistema representacional normativo. Ao interromper com o domínio de uma prática organizativa de produção, ele renega a ideia de estrutura dramáti-ca, de representação da forma instituída, constituindo uma nova potencia teatral (identi� cada por Deleuze como não-repre-sentativa). É importante dizer que no tea-tro de Bene não há diálogos, ou con� itos, são vozes simultâneas que se sobrepõe no palco; o que o artista propõe em seu lugar,

observa Deleuze, substituindo a represen-tação do con� ito (pois como bem observa o � lósofo, todo con� ito já está normalizado e codi� cado, como um produto), não é um psicodrama, ou um teatro esteta, abstrato, ou místico, o projeto de Bene é escapar do padrão majoritário, isto é, da representa-ção-padrão, do modelo, constituindo “uma � gura da consciência minoritária”, isto é, “desde que a minoria não represente nada de regionalista; mas também nada de aris-tocrático, de abstrato, nem de místico” (De-leuze, 2010, p. 64). Isto é, � guras que a his-tória não levou em conta.

Essa interrupção da estrutura formal do drama estabelece um novo regime das artes, como identi� cado por Rancière em seu “A partilha do sensível”, o regime esté-tico, onde não é mais possível falar da arte enquanto ordenadora de ações, devedora de uma racionalidade dramática. Desobri-gada de toda doutrina, inclusive do radica-lismo antimimético dos arautos da moder-nidade artística, mas destituindo as regras de funcionamento das hierarquias da re-presentação, ela nega qualquer ideia de unicidade ou de pureza, preferindo os en-trelaçamentos textuais: “a noção de moder-nidade parece, assim, como inventada de propósito para confundir a inteligência das transformações da arte e de suas relações com as outras esferas da experiência cole-tiva” (Rancière, 2009, p. 37). Desta feita, a arte teatral, no regime estético, será enten-dida aqui enquanto combinação entre per-formatividade e teatralidade. Ao mesmo tempo autônoma e heterônoma, ela realiza sua autonomia a partir de uma experiên-cia de heteronomia, de relação entre pro-cedimentos teatrais e de performance, ela é arte e também não-arte; ao mesmo tempo em que realiza uma cisão, uma interrupção na estrutura representacional, em provei-to do instantâneo e da ação real, isto é, da performatividade, ela não irá abandonar procedimentos de teatralidade - uma certa “artisticidade” que a torna distinta da vida cotidiana.

Aqui se pode pensar no Living The-atre, na dança teatro de Pina Bausch, no

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Théâtre du Soleil, no Grupo O� cina de Zé Celso, no teatro performativo de Robert Lepage, em alguns espetáculos de Felipe Hirsch e nos últimos trabalhos de Denise Stoklos; menos preocupados com o para-digma modernista do que com a mistura de gêneros e de suporte, estas experiências cênicas propõem uma concepção de arte que busca diluir as fronteiras entre o tea-tro e a performance, valem-se de recursos performativos, mas não veem problema al-gum em usar da narrativa ou do testemu-nho autobiográ� co, tornando a experiência cênica reconhecível.

Re� etindo sobre os caminhos da cena brasileira contemporânea, onde neste ar-tigo usamos como exemplo os espetácu-los “Preferiria não?” e “Trilhas sonoras de amor perdidas”, respectivamente de De-nise Stoklos [DS] e de Felipe Hirsch [FH], observa-se um retorno à narrativa, de reva-lorização da experiência vivencial, íntima, da vida ordinária. Ambos os espetáculos desenvolvem um tipo de realismo que não é da ordem da semelhança, subvertendo as hierarquias do sistema representativo, provocando desvios entre o real e o � ccio-nal, entre o ordinário e o extraordinário. Os textos, que mais parecem um “testemunho biográ� co”, mesclam as palavras à música, no caso de FH, e as palavras aos gestos, no caso da narrativa de DS, de tal forma que seria impossível dissocia-los, separando o texto de sua representação cênica. Como observa Josette Féral, a proposito do tex-to performativo, “se trata de un texto que muy a menudo no tiene autonomia pro-pia, y cuyo sentido fraccionado raramente constituye una totalidade en sí. No tiene sentido sino atrapado en la red múltiple de los diferentes sistemas escénicos” (Féral, 2004, p. 109).

Esta demanda por uma expressão esté-tica do cotidiano privado, além de ser uma reação ao ceticismo moderno, que como já descrito isolava (ou acreditava isolar) o fato teatral de seu contexto mais amplo - histó-rico, social, cultural e existencial -, coloca em questão as relações estabelecidas entre o real e o artifício. O que defendemos aqui,

tomando como exemplo estas duas expe-riências cênicas, é a presença de uma nar-rativa sedutoramente desviante da lógica representativa, mas que não nega sua po-tência em criar a ilusão, ao contrário, que se estabelece entre o real e o artifício, entre o fantástico e o crível. Percebe-se, o registro de uma teatralidade consciente, que tanto se afasta do cânone teatral (diálogos, per-sonagens, con� ito), para se deixar conta-minar pelos gestos de autorrepresentação do performer, como, ao mesmo tempo, realiza uma cena que coloca em jogo essa “presença real” no uso de procedimentos artísticos, operando sedutoramente o real. Tal é o caso das duas peças aqui citadas. São espetáculos completamente diferentes, mas que se aliam no sentido de relacionar, em sua escritura, procedimentos teatrais e de performance.

No caso de “Preferiria não?”, o texto narrativo é interpretado e dirigido pela atriz e performer Denise Stoklos, a partir de sua adaptação do conto “Bartleby, o Escriturário” do escritor norte-americano Herman Melville. Neste espetáculo obser-va-se que o impacto do real, a própria pre-sença da performer, é atenuado por uma forte teatralidade, que mesclando aspectos � ccionais do conto a testemunhos biográ-� cos da artista, embaralha ambos numa escritura que dá ao real um aspecto mais sedutor, na medida em que o desvia de sua identidade para destiná-lo ao jogo das estruturas simbólicas do teatro. Já no caso do espetáculo “Trilhas sonoras de amor perdidas”, dirigido por Felipe Hirsch, com criação da Sutil Companhia2, observa-se uma intensi� cação do real, a partir da in-tensi� cação da palavra e da presença física do ator, Guilherme Weber, que permanece em cena três horas, ouvindo e discursan-do sobre trilhas sonoras dos anos 80 e 90. O texto, também narrativo, não se propõe a estabelecer uma situação dramática ipsis litteris, o que se passa no palco é uma cena construída a partir de uma situação que se

2 O espetáculo foi o resultado de um processo de pesquisa sobre as histórias de Thurs-ton Moore, Kim Gordon, Lee Ranaldo, Steve Shelley, Dean Wareham, Dan Graham, John Zorn, Jim O` Rourke, Elizabeth Peyton, Arthur Jones, Jason Bitner, Rob Shef� eld, Raymond Pettitbon, Greil Marcus, David Shields, Lou Reed, Giles Smith, entre outras.

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repete exaustivamente sobre ela mesma, mesclando palavras com músicas que estão afetivamente ligadas à vida do interprete. À diferença do espetáculo de DS, “Trilhas sonoras de amores perdidos” não se pro-põe a atenuar o real, e sim a intensi� cá-lo, usando da teatralidade, para sublinhar o que o real tem de obsessivo, repetitivo, ver-borrágico e instantâneo. O real é também aqui desviado pelo jogo instável entre te-atralidade e performatividade, alcançando essa dimensão sedutora que nos instiga a pensar o contemporâneo.

Levando em conta o pressuposto de que ambos os espetáculos, em suas dife-rentes textualidades, nos ajudam a com-preender aquilo que denominamos como realismo sedutor, que, por sua vez, é enten-dido aqui como uma possível tendência de teatralidade observada nas práticas cênicas contemporâneas; nestes dois exemplos des-tacados do teatro brasileiro, nos cabe ain-da descrever o modo como cada um deles opera em simultaneidade o real e o artifí-cio. Isto é, na interrupção do modo de pro-dução do dramático, esses dois espetáculos operam um tratamento crítico ou estético do real, que os desviam da lógica represen-tacional, sem darem as costas à ilusão, ao mistério, ao teatro, embriagando-se com elementos de performatividade. Ambos os espetáculos se situam longe da negação obsessiva da representação, do discurso ou da narrativa, ainda que estejam embriaga-dos pelos gestos de autorrepresentação do performer.

Em “Preferiria não?”, a performer Stoklos se põe a tarefa de narrar um epi-sódio da vida de uma � gura anônima e insigni� cante, o escriturário Bartleby, um homem-fantasma sem grandes ambições ou con� itos existências. Não se pode dizer que há uma situação dramática, o único motor da narrativa é a inusitada resposta negativa do homenzinho à tarefa diária de copiar: “preferiria não”, diz o homen-zinho sem maiores explicações. A simples recusa da tarefa por Bartleby muda a rea-lidade desta � gura insigni� cante, que ga-nha importância dramática na narrativa

de Stoklos, que o apresenta a partir do es-tranhamento provocado pela inesperada negação de sua rotina diária. Se antes era invisível, a partir do estranhamento pro-vocado pelo seu “preferiria não”, Bartle-by ganha uma existência � ccional onde é possível especular algo sobre ele, isto é, ele ganha a possibilidade de ter uma história, que pode ser inventada ou não, não impor-ta. O que é importante é que Bartleby para sair do anonimato e da invisibilidade, pre-cisa ser construído, � ccionalizado, pois só teatralizado, representado, é que Bartleby pode existir em cena, ter uma realidade, e nos causar algum efeito.

O que se intensi� ca na construção da narrativa por Stoklos é a própria � cciona-lização de Bartleby que se confunde com os gestos autorrepresentativos de seu nar-rador. Trata-se em primeiro lugar da apre-sentação e constituição do personagem no palco, na cena, por meio dos gestos e do discurso re� exivo e autorre� exivo da per-former, que se apresenta ao mesmo tempo como autor, ator, performer, espectador e encenador. O texto apresentado por DS não é uma peça e sim um texto no sentido que destacamos neste artigo: “Preferiria não?” se conforma no ato consciente do performer que opera o real produzindo ou-tra realidade – um espaço de teatralidade; ou como quer Pavis, postulando um trata-mento estético sobre o real; sem esquecer que a operação realizada por DS não se quer prisioneira de uma estrutura narrati-va e representacional, pois seu texto realiza um jogo entre as estruturas de � ccionaliza-ção e os � uxos energéticos – vocais e ges-tuais – do ato performativo. Bartleby não é um personagem e DS não é a interprete de uma peça teatral, ambos se confundem e se mesclam numa perspectiva sedutora que nos impede de traçar uma nítida separa-ção entre teatralidade e performatividade, entre � cção e movimentos autobiográ� cos performativos, conformando aquilo que denominamos conceitualmente como rea-lismo sedutor.

Em “Trilhas sonoras de amor perdi-das”, que está bem mais próxima de uma

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estrutura teatral, no sentido de que se co-munica por uma espacialidade � ccional mais elaborada e estrati� cada – cenário, � gurino, interprete, encenador -, veri� ca-se a tentativa do teatro em orientar suas ações a partir de � uxos energéticos pró-prios à performatividade, promovendo assim a interrupção da lógica representa-cional, da síntese dramática, devedora da necessidade e verossimilhança. A verbor-ragia sem pausas do texto, orientado pelos � uxos energéticos das trilhas sonoras, sua temporalidade estendida, repetindo ob-sessivamente a situação sobre ela mesma, de forma autista, sem obter uma solução, promovem � uxos de pensamento, desejo e memória, que incidem na teatralidade, sem rompê-la de� nitivamente, mas que enfati-zam no texto seu caráter de performativi-dade. Ou seja, desprezando, ou deixando em segundo plano, o valor racional da síntese dramática, a partir desta intensi� -cação do real na cena teatral, o espetáculo da Sutil Companhia experimenta no teatral o instantâneo e o não repetível das expe-riências sensoriais e energéticas. Como já destacado por Josette Féral, este tipo de espetáculo, que se deixa embriagar pela arte da performance, recebeu a nomencla-tura de “teatro performativo”. Porém o que nos instiga a pensar esses espetáculos é a possibilidade de abertura de uma via de confronto ao desencanto produzido pelas tentativas de apagamento da teatralidade, que, por uma estética do choque, da reali-zação do real, ou pela obsessão de autono-mia antimimética da obra, eliminou tanto o que havia de mistério no mundo, como eliminou a comunicação, o sentido, a tro-ca simbólica: instituindo o que Baudrillard vai chamar de “apagamento do real”.

Nos dois espetáculos analisados aqui, nos propomos a reconhecê-los como exem-plos, no caso brasileiro, de diferentes tex-tualidades, e modos de tratamento do real, que propõe um pensamento na arte a par-tir de um retorno do real na cena contem-porânea, na conformação de um realismo mais afetivo. Pensar o real a partir de sua � ccionalização é a condição para o retor-

no do real na cena contemporânea, em sua con� guração sedutora, terreno instável do entrecruzamento entre o real e artifício, entre o teatral e a performatividade. O re-alismo sedutor nos embriaga de realidade, nos desviando do choque obsceno e sem encanto do real, nos seduzindo por aquilo que ele esconde, ou teatraliza. A cena do realismo sedutor reage contra toda forma imediata, sem distância, sem encanto, ele é a antítese da cena obscena. Para concluir-mos, sem nos alongarmos demais, numa tentativa de tornar um pouco mais clara a perspectiva do realismo sedutor, convo-camos o � lósofo Baudrillard que no livro “Senhas” (2001) analisa a sedução enquan-to uma operação oposta a toda tentativa de positivar o mundo e as coisas. Como a� rma o pensador, pela sedução não que-remos dominar ou expor a verdade, que-remos coloca-la em jogo. Cobrir o real com um véu, a� rma, é dar a ver sua potência. Para o � lósofo, o questionamento radical da realidade pelo projeto antimimético modernista, “expulsando do real a ilusão e a utopia”, teve como consequência a “desa-parição do real” (Baudrillard, 1997, p. 92). Este “assassinato do real”, engendrado por uma espécie de sobre-exposição do real, aniquiladora de todo mistério, enigma, ilu-são e alteridade, é assim de� nido por Bau-drillard: “o espetáculo tem ligação com a cena. Em compensação, quando se está na obscenidade, não há mais cena, jogo, o dis-tanciamento do olhar se extingue. [...] a de-� nição de obscenidade seria, pois, a de tor-nar real, absolutamente real, alguma coisa que até então era metafórica ou tinha uma dimensão metafórica” (2001, p. 29). A ten-tativa de eliminar a teatralidade, em prol de uma acentuação super-realista do real, eliminando a cena, o teatro, constituindo a experiência da presença pura, ocasionou aquilo que Baudrillard vai chamar de si-mulação desencantada. O pornô ou o obs-ceno é aquilo que descarta todo jogo, toda alteridade, todo segredo, em prol de uma realização.

Essa maximização da realidade elimi-na todo discurso que envolve o real e nos

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apresenta objetos e � guras sem referên-cias, sem fundo, instituindo a presença, a pura aparência, nos intoxicando com um excesso de realidade, que, ao contrário de aprisionar o real, o faz desaparecer. Num mundo onde tudo é “imediatamente exis-tente como realidade concreta [...] há, não uma comunicação, e sim uma “contamina-ção de tipo virótico, tudo passa de um para o outro de maneira imediata” - isto é, sem mediação, sem encanto, sem troca -; e con-tinua o pensador: “Há, por um lado, uma arte capaz de inventar uma outra cena, que não a real, uma outra regra do jogo e, por outro lado, uma arte realista, que caiu em uma espécie de obscenidade, tornando-se descritiva, objetiva ou simples re� exo da decomposição – da fractalização do mun-do” (2001, p. 31). A sedução, segundo Bau-drillard, “é um desa� o, uma forma que ten-de sempre a perturbar as pessoas no que se refere à sua identidade, ao sentido que esta pode assumir para elas. Elas aí reen-contram a possibilidade de uma alteridade radical” (2001, p. 25).

Baudrillard corrobora com nosso pensamento, ao sustentar que: “no desfa-lecimento súbito da realidade e na verti-gem de nela perder-se” (1997, p. 17) é que acontece o milagre. O milagre, momento em que o real se mostra, é quando o teatro assume uma posição intermediária, entre: onde o real e o convencional, a realidade e o artifício se encontram; um lugar de fron-teira entre as margens do real e da fantasia. É nesse desvio do artefato, do signo puro, que o real pode retornar; é na sedução, no véu que encobre o real e que não o deixa aparecer demais, que ele se mostra em todo seu esplendor.

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REFERÊNCIAS

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TASSINARI, Alberto. O Espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify editores, 2001.

Resumo

Análise dos jogos lingüísticos e da metalinguagem implicados no tema da mentira e da manipulação na comédia O Programa de

Televisão/ L’Emission de télévision de Michel Vinaver (1927), através da noção grega de metis (a inteligência astuta na Grécia mítica) e

das noções de simulacro e simulação de Jean Baudrillard.

Palavras-chave: metis - Vinaver - metalinguagem - simulacro e simulação

Abstract

Analyse of langage games, and metalangage, which built the theme of lie and the manipulation of the comedy L’Emission de

Télévision/The Television Program (1990) by Michel Vinaver (1927), through the Greg notion of “métis” (the smart intelligence in the

mythical Grece) and the notions of pretense and simulation by Jean Baudrillard.

Keywords: métis - Vinaver - metalinguagem - pretense and simulation

1 Conferência apresentada originalmente em francês nas Journées d’Etudes sur la Manipulation dirigidas por Jean-Charles Margotton, na Universidade Lumière Lyon 2, França, em 30/06/2007.

2 Professora Dra Associada no PPGAC-UFBA, ex-profa do Dep. de Artes Cênicas, da Imagem e da Tela, do Instituto de Letras, Ciências da Linguagem e Arte, da Universidade Lumière Lyon 2 (2004 a 2006), doutora e pós-doutora pela USP (1989 e 1991), publicou traduções e estudos sobre o teatro de Michel Vinaver (EDUSP, 2007), tem prontas a publicar mais traduções com estudos desse autor, feitos em pós-doutorado no Institut d’Etudes Théâtrales, da Universidade Sorbonne Nouvelle Paris-3 e IMEC-Abadia de Ardennes (2010-2011). Publicou ainda Para Ler Gaston Bachelard- ciência e arte (Edufba, 2010) e Metalinguagem e teatro -a dramaturgia de Jorge Andrade (Perspectiva, 2012).

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Metis grega e simulacro em O Programa de Televisão (1990), de Michel Vinaver

Catarina Sant´Anna2

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O tema da mentira na comédia O Pro-grama de televisão (1990) de Michel Vinaver revela-se complexo, pois integra o fenôme-no mais geral da manipulação, que é in-dissociável de outros elementos tais como sedução, disfarce e condicionamento – ou descondicionamento – de um comporta-mento. Nesse sentido, o texto dramático constitui um domínio privilegiado de aná-lise, porque no teatro falar é agir – e agir justamente sobre outrem, como atesta a função conativa da linguagem (Jakobson), geralmente dominante no discurso dos personagens teatrais. Acresce que o tea-tro é igualmente theatron, “lugar de onde se vê” e um lugar de fantasmas (Pavis) ou de sombras coletivas (Duvignaud), onde a sociedade se vê re� etida e onde podem ressoar mitos antigos. Quais seriam, então, as estratégias discursivas e dramatúrgicas postas em cena e quais seriam seus efeitos poéticos e ideológicos os mais notáveis no tratamento da televisão pelo teatro nesta peça de 1990?

Da metis à manipulação: implicações míticas e sociais

Michel Vinaver diz não pretender “de-nunciar” o sistema, mas tão somente “des-montá-lo” por meio de seu teatro3 - um “teatro da palavra” onde o lugar ocupado pelas relações entre personagens por meio de diálogos plenos de ardis ganha impor-tância fundamental. A peça O Programa de Televisão, por exemplo, é prenhe de mano-bras verbais de todo tipo, que visam a tecer uma espécie de teia de aranha onde se en-redam todos os personagens. Trata-se aqui de uma inteligência tática dentro de um quadro de competição generalizada pela conquista de espaço, quando não há espa-ço para todo mundo: trata-se do universo do trabalho para os que já ultrapassaram

3 Peças de Vinaver: Os Coreanos (1956), Coros para Antígona (1956), Les Huis-siers/ Os Ajudantes de ordens (1958), Iphigénie Hôtel (1960), Par-dessous bord/ Além dos limites (1972), Pedido de emprego (1972), Dissidente (1978), Nina, é outra coisa (1978), Les travaux et les jours/ Os Trabalhos e os dias (1979), Á la renverse/ Na Contramão (1980), L’Ordinaire/ O Cor-riqueiro (1982), Les voisins / Os Vizinhos (1986), Portrait d’une Femme/ Retrato de uma Mulher (1986), O Programa de Televisão (1990), Le Der-nier sursaut/ O Último susto (1990), King (1998), L’Objecteur/ O Objetor de consciência (2001), 11 Septembre 2001/ 11 September 2001 (2002), Les Troyennes/ As Troianas (2003).

a idade dos cinqüenta anos; e do mundo do jornalismo escrito ou televisivo em bus-ca de novidades; ou da ascensão dentro da carreira judiciária; ou da concorrência no comércio, na indústria, nas relações amo-rosas ou familiares. Tudo isto repercutindo no tecido social que se vê � nalmente ame-açado de desagregação e de caos no plano de suas instituições.

Antes de tudo, porém, é importante observar conceitualmente que os domínios da astúcia e da manipulação (bem como o da simulação) ainda que se cruzem na prá-tica social, não devem, por de� nição, con-fundir-se. Para começar, é no plano mítico que se deve procurar referências para um gênero de inteligência astuciosa e prática que os antigos gregos denominavam metis (Detienne, 2004, p.10-13, 25-28, 48-55, 271-298) e cuja presença na sociedade encontra-se atestada por documentos pertencentes aos domínios da caça e da pesca, da tece-lagem e outras atividades artesanais, bem como na área da navegação, da guerra na-val, na política e na medicina, na epopéia, na retórica e na � loso� a. Trata-se de vencer pela astúcia um adversário mais poderoso, seja este um animal, um homem, uma força natural, uma doença, um discurso. A metis constituía uma operação intelectual, uma atitude do espírito, uma forma pensada que se utilizaria de manobras, de estrata-gemas e de habilidades bem precisas como “o faro, a sagacidade, a previsão, a � exi-bilidade de espírito, o � ngimento, o de-sembaraço, a atenção vigilante, o senso de oportunidade, habilidades diversas, uma experiência longamente conquistada” (De-tienne, 2004, p. 10); como também a dupli-cidade, a ambigüidade, a capacidade de se mostrar diferente do que se é realmente, de preparar emboscadas e não deixar nunca escapar boas ocasiões, momentos propícios e instantâneos (Kairós) para agir e vencer.

Esse tipo de comportamento astucioso tem lugar em realidades mutantes, fugazes, desencorajadoras e ambíguas, múltiplas e ondulantes, polimorfas e polivalentes, imprevisíveis, plenas de indeterminação e onde pode jogar o acaso. Em suma, trata-se

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do enfrentamento de situações em que for-ças hostis são por demais poderosas para serem atacadas diretamente. Daí a necessi-dade de nos adaptarmos a tais realidades e nos mostrarmos mais � exíveis, mais rápi-dos, mais móveis, mais ardilosos, polimor-fos e inatingíveis que as próprias situações, e agir de viés para podermos nos sair bem. Trata-se de confrontar um mundo instável em que a astúcia pode vencer a força e até o mérito verdadeiro.

Ora, esse tipo de comportamento pro-duziu um tipo de personagem popular, enganador e dotado de mil expedientes, nas muitas diferentes culturas e literaturas, como o herói picaresco ibérico, ou o tricks-ter anglo-saxônico, cujas origens remon-tam a Homero a aos mitos antigos, como os que, por exemplo, têm Hermes como protagonista. Mas é Zeus (Detienne, 2004, p. 292-293) que, engolindo sua primeira es-posa, a deusa Metis justamente, tornou-se poderoso o bastante para conseguir con-trolar as desordens entre os deuses e po-der instalar uma ordem imutável graças a uma distribuição equilibrada e limitada de saberes e de poderes entre todos, a � m de assegurar a própria soberania sem maiores incidentes de importância. Todavia essa vertente curiosa do pensamento grego foi negligenciada pelos � lósofos do VI século AC e, mais tarde, também pelos historia-dores do pensamento antigo, e isto foi feito em proveito do conhecimento racional e da lógica identitária, pautados pelo verdadei-ro, o mensurável e o exato (Detienne, 2004, p. 10-12; 56; 295-298; 305-306), fenômeno este que marcou o pensamento ocidental.

Mantendo-se valorizada no domínio da estratégia militar, a metis vê se produ-zir a partir do século XVI expressões para a astúcia da guerra, como “manigances” (tramóias) e “manoeuvres” (manobras), e que progressivamente passam a conotar impostura, mentira, ilusão, até o surgimen-to de um novo uso para o vocábulo “ma-nipulação”, que no século XVIII extrapola o domínio da química e passa a conotar a “manipulação de uma pessoa” – e isto jus-tamente nesse século em que surgiu a ins-

tituição do contrato social que objetivava por um � m ao uso das violências na resolu-ção dos con� itos, para instaurar uma esta-bilidade social que favoreceria o comércio e a propriedade, quando “o compromisso no diálogo substitui a opressão pela força” (D’Almeida, 2005, p. 26). Um sistema jurí-dico estabelece-se então para garantir que se cumpram os compromissos, pela sub-missão a leis especí� cas e procedimentos precisos de julgamento. Em conseqüência, a Verdade se desloca, em nome da obje-tividade e da justiça, “da questão das es-sências à [questão] dos comportamentos” (D’Almeida, 2005, p. 26), uma vez que é preciso crer em uma “correspondência direta entre atos visíveis e pensamentos imperceptíveis”. Neste contexto, a astúcia perde teoricamente sua razão de ser, em nome da transparência e da cessação dos abusos. Mas o homem, entretanto, tornado vítima da usurpação pelo sistema econô-mico que o coisi� ca, se vê instrumentaliza-do e manipulado no seio de uma sociedade massi� cada que o faz interiorizar normas e condicionamentos alienantes. Todo esse excesso de manipulação pelo sistema aca-ba por produzir uma desrealização da re-alidade e, conseqüentemente, por criar si-mulacros de real, como bem postulou Jean Baudrillard, quando então as questões da mentira e da verdade já não têm mais sen-tido, pois perderam sua razão de ser.

Pressa, agon, metis e manipulação na selva vinaveriana.

Em O Programa de Televisão, tempo é literalmente dinheiro. É preciso agir e re-agir rápido, sabendo capturar o momento propício (Kairós). Os meios de comunica-ção parecem impor sua urgência enquanto usinas de produção de informação para o consumo bulímico da sociedade: uma jor-nalista free-lancer, Jacky, faz compreender ao jovem juiz de instrução, Phélypeaux, que o caso do assassinato de um ex-de-sempregado de mais de cinqüenta anos se arrasta sem solução; as jornalistas de tele-visão, Adèle e Beatriz, diante da perda de audiência atestada por um instituto de son-

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dagem, são obrigadas a produzir um pro-grama de televisão sem falhas sobre a feli-cidade de se sair do estado de desemprego; e dois ex-desempregados de longa data e idosos com mais de cinqüenta anos dispu-tam a sorte de aparecer na televisão, sendo ambos incentivados por suas respectivas esposas; policiais se lançam numa única pista para resolver o mistério do assassina-to estampado nas manchetes; uma grande loja, em conivência com um canal de tele-visão, e por interesse comercial, emprega um desempregado de longa data e de mais de cinqüenta anos; um jovem do tipo vina-veriano “dissidente do sistema”, pintor e marginal, encarna o estraga-prazeres, mas acaba sendo devorado pela engrenagem do sistema. Na corrida contra o tempo, entra em jogo o agon - uma competição genera-lizada- e toda espécie de expedientes para vencer em detrimento de outrem, num rei-no de trapaças.

Enquanto os personagens são dotados de qualidades animais para caça e pesca, os animais surgem humanizados, velhos, do-entes, dependentes e mais sensíveis que os humanos: é o caso do gato de Jackie, que ela prefere à própria família; ou a cadela cega, Azur, pertencente aos Blache, a úni-ca a perceber a morte de seu dono. O po-der de mirar sua presa e de se lançar para abocanhá-la caracteriza as três jornalistas como aves de rapina, como nessa passa-gem de um duo cínico: “Adèle. Um pouco de sorte um pouco de faro/ Béatrice. Ante-nas/ Adèle. Necessário saber planar/ Béa-trice. O acaso /Adèle. A arte de utilizá-lo/ Béatrice. Manejar o vento/ Adèle. Amar as pessoas/ Béatrice. É importante/ Adèle. Do alto do céu/ Béatrice. As asas abertas/ Adèle. A providência ajudando/ Béatrice. Mergulhar/ Sra.Delile. Como os anjos?/ Risos./ Adèle. É sua pro� ssão amar. Silên-cio” (p. 12). Certamente são elas os “pássa-ros que faziam um barulho ensurdecedor” em torno do juiz, nos sonhos premoni-tórios da escrevente Srta Belot. Como se vangloria Adèle: “A gente fareja, aspira/ Detecta”, “Você não ía largar o osso/ Eu me lancei”. Quanto ao personagem Ja-cky, ela “é mais rápida que o vento”, ela

“tem nariz”, ela “fareja”, é “tenaz”, capta a hora certa: “o destino me acenou”, “pre-ciso acionar o destino de novo”; “preciso furar uma brecha”. Já o ex-desempregado Sr. Blache identi� ca-as como pertencente à “equipe de batedores de caça” de Vicent Bonnemalle, o diretor do programa de te-levisão em questão e cujo nome indica um personagem polimetis dos mais poderosos, furta-cor, bom e mau ao mesmo tempo. Os policiais, segundo o juiz, “se engal� nham” numa pista “como uma horda de javalis”, enquanto que ele próprio, como juiz, se joga sobre o desempregado Delile e sobre a viúva Blache com uma rede envolvente de perguntas-armadilha.

Quanto aos termos usados, a voraci-dade do juiz e das jornalistas fá-los com-partilhar o adjetivo “suculento” para ava-liar suas presas e, tal como Jacky, “gatinha esfaimada”, eles necessitam de “algo para por entre os dentes”, evidenciando uma disposição para canibalizar o outro. Não é por acaso que uma das pinturas de Paul apresenta um homem de três cabeças, asas de morcego e bocas onde “ele mói com os dentes”. Quanto às vítimas, o léxico não é menos expressivo: segundo Jacky, o Sr. De-lile “foi � sgado de harpão por uma cadeia de televisão” e ela própria “pegou um pas-sarinho ferido” (o jovem Paul). Para o juiz, o Sr. Delile é um “pássaro cativante” que se debate de “asas abertas”, “se debate como um lobo na armadilha”, sendo um negócio realmente “suculento” que ele “agita em todas as direções” e sente “que está pres-tes a jorrar”; enquanto que Delile descon-� a: “Talvez seja a sua técnica de tentar me desacorçoar”. Aliás, Delile tem sempre a impressão paranóica, mas bem compreen-sível, de ser “um animal” que tem que se esconder do olhar de outrem.

Em síntese, todos os personagens se repreendem uns aos outros por terem “tra-paceado, mentido, traído”, e usam a ex-pressão “dever tudo a alguém” nessas si-tuações. A manipulação ocorre sob a forma de contratos e de alianças ilícitas ou fora de normas. O desempregado Blache pro-põe trabalhar sem salário, para reerguer a pequena indústria onde Delile ocupa uma

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função de direção, e acaba por tomar seu lugar. Já a jornalista Adele trama às costas de Beatriz, para se fazer indispensável aos olhos do patrão Bonnemalle, pois haverá corte nos efetivos. O próprio Delile tinha progredido dentro da indústria porque era “um fuçador inventivo”: “Eu metia o nariz em tudo e levava boas idéias para fazer cair o preço de revenda/ Me nomearam chefe do serviço e depois diretor”. Jacky exige do juiz um acordo “toma lá dá cá”: a pro-messa de exclusividade para noticiar a sen-tença na imprensa, em troca da revelação de pistas do crime. Mas a televisão exige o mesmo, insinuando que destruiria o juiz (Bonnemalle evoca ser amigo do ministro da justiça e evoca também a opinião pú-blica - milhões de telespectadores sob seus caprichos). Enquanto que Delile descon� a de seu novo patrão e de sua rede hierár-quica de dimensões continentais, que lhe tornaria fácil descumprir um contrato de trabalho. Bonnemalle por sua vez toma de-cisões de maneira bem obscura na direção do programa de televisão. E até as relações amorosas entre Paul et Jacky nascem sob o signo de armadilhas e descon� ança re-cíproca, quando manipulação joga com sedução, mentira, disfarces e tentativas de condicionamento do comportamento do outro para dobrá-lo a interesses pessoais.

Manipulação dramatúrgica: código vinaveriano versus código televisivo

Michel Vinaver põe no centro da peça uma longa discussão sobre dramaturgia, na qual está na berlinda o pretenso gosto do espectador e os meios a mobilizar para satisfazê-lo, assim como discussões ou ob-servações isoladas sobre a performance pessoal para alguém se tornar convincen-te na vida social. Estaria em jogo o tropo barroco do “theatrum mundi”, se não se tratasse ali de um processo de simulação de tal forma maximizado do real, que faz a dicotomia aparência/essência, ou men-tira/verdade perder o sentido e a razão de ser. O disfarce é largamente praticado, pois é preciso simular ser o que não se é absolutamente, ou não se é o bastante para

poder convencer outrem a agir à revelia de seus próprios interesses. A produção de imagens pessoais ou institucionais está em jogo todo o tempo, seja para mascarar uma realidade indesejável ou inconsisten-te, seja para tornar uma realidade ainda mais credível através de um superávit de real: a escrevente Srta Belot diz a propósi-to da viúva Blache: “Todas sempre se crê-em obrigadas a encenar seu pesar mesmo quando este é real”. A jornalista Beatriz pressiona e condiciona o Sr. Delile a crer re-almente na virada de sua vida, pois toda a encenação elaborada pelo programa pode não se revelar su� cientemente convincente para a massa dos telespectadores: “Para o programa é absolutamente necessário que todo mundo veja que o senhor acredita nis-to”. Ironicamente, é citado um programa que abordava “o retorno da fé”, mas que apresentara cenas do suicídio coletivo dos membros de uma seita religiosa na Guiana. Já Blache, o outro desempregado, de tem-peramento otimista e fã de televisão, ao ser entrevistado por Adèle sobre como havia saído do desemprego, já leva bem amarra-da sua história de soerguimento pela fé e evoca o mito literário do naufragado Ro-binson Crusoé. A ironia vinaveriana faz com que este personagem, a� nal escolhido como o herói do programa, apareça morto misteriosamente às vésperas da gravação e que seja posto em seu lugar justamente o pessimista e descon� ado Delile, o qual será condicionado a aparentar um estado visu-almente credível de felicidade, por meio da via da simulação: “Con� e na dinâmica do programa/ Se foi escolhido para encarnar a esperança/ Alguma coisa vai se produzir no senhor, Sr. Delile”.

Uma importante premissa do có-digo vinaveriano, e tomada emprestada a Goethe, a� rma que não se deve procurar nada sob as superfícies porque são elas justamente o segredo. Daí a inexistência do não-dito, posto que, segundo Vinaver, tudo é dito e não é necessário cavar uma profundidade, nem mesmo psicológica, uma vez que não há nada nem antes, nem após, mas tão somente o presente imedia-

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to, urgente, dos personagens. Tal imagem sem avesso, sem referente, que tem valor em si mesma, poderia ela remeter ao do-mínio do puro simulacro, como postulado por Baudrillard ?

Quais são então os instrumentos dra-matúrgicos em jogo por Vinaver? Para vi-sar quais efeitos? Como um bom mestre tecelão, o autor empresta ao seu texto o aspecto de uma estrutura desmantelada, a � m de obter um certo efeito de fragmenta-ção do real, tal como ocorre no quotidiano e tal como se produz na televisão, Aliás, já a primeira didascália de O Programa de Televisão recomenda uma encenação num só movimento: “Um pouco como se o es-pectador, munido de um controle remoto, zapeasse face ao espaço do jogo”. Segue-se o arranjo das cenas, ou melhor, dos 20 “pe-daços” (morceax), que embaralham presen-te e passado até o pedaço nº 14, após o qual os acontecimentos se encadeiam, ou me-lhor, se justapõem num tempo presente até o � nal. São � ashs da vida quotidiana, da re-alidade mutante capturada na fulgurância de seus instantes, que surgem conectados, mas não subordinados – o que desautori-za os termos tradicionais “cenas” e “atos”. Esta fragmentação se repete no plano dos diálogos escritos sem pontuação (salvo o ponto de interrogação) e desprovidos de didascálias externas: as falas se cruzam, se dispersam, ou � cam sem respostas, e mis-turam de repente referentes disparatados, ou exibem um laconismo espesso feito de informação e de suspense, e se estancam no ar, reaparecendo mais tarde misturadas a outros dados. Tudo parece amarrado para impedir o encadeamento nítido de causas e de conseqüências da dramaturgia conven-cional – as “peças-máquinas”, no jargão de Vinaver- e evitar também um ponto de vista globalizador ou a redução do texto a uma moral ou mensagem hegemônica, já que todos os pontos de vista são válidos, sem hierarquizações nem julgamento, nes-sa “peça-paisagem” (termo do autor), em que tudo vem exposto de forma a evitar classi� cações maniqueístas opondo culpa-dos a inocentes.

Desse modo, a representação teatral em O Programa de Televisão tenta resgatar a complexidade de um certo real ao qual não podem ser aplicadas as noções de ver-dadeiro e de falso, uma vez que este real teria se tornado ele próprio pura imagem, ao � nal de um excesso de manipulações operado notadamente pela mídia. Disso resulta um “hiper-real” (Baudrillard) fabri-cado para substituir um mundo vazio de todo sentido e de toda autenticidade.

A dissolução do real: um quadro de indeterminação generalizada

Duas diferentes visões de dramaturgia televisiva opõem as duas jornalistas, Adè-le e Béatrice: uma requer a estruturação do programa em polos nítidos – sombra e luz, bem e mal, felicidade e infelicidade-, a outra defende um efeito dégradé entre tais polos. Os diálogos nos informam que a nova tendência das cadeias televisivas re-cai justamente sobre um quadro nítido de valores bem opostos, o que nos parece sin-tomático de um movimento de ação sobre um real que já não existe, justamente para reabilitá-lo por meio de um acréscimo de real. Dito de outra forma, trata-se de fazer crer, através da telinha das tevês nos lares, que ainda existe real, donde o esforço bas-tante minucioso de simulação empreen-dido pelo programa, cujas técnicas objeti-vam antes fabricar o real, do que realmente “representá-lo”. O resultado � nal, apesar de tudo, é entrevisto pela Sra Delile toda deslumbrada: “Não é verdade é um conto de fadas”. Ora, o iconoclasmo do código vinaveriano de representação vai no senti-do inverso desta idolatria das imagens, jus-tamente para lhes demonstrar o oco.

Para sintetizar, a dissolução do real implica uma desconstrução dos dramas do real vivido, a depreensão de seus signos e o rearranjamento desses na construção de um outro real já expurgado do perigo de toda instabilidade e de toda espontaneida-de própria à verdadeira dinâmica social. Ora, uma tal desconstrução só pode ocor-rer por meio de uma rei� cação do homem e de seus valores, para que o processo de

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manipulação aconteça de modo e� caz. As-sim, a notícia súbita da morte de Blache, es-colhido para ser o herói do programa, não produz mais que gargalhadas por parte das jornalistas em jogo: “Basta dizer a Vin-cent que a máquina continua a andar tem-se um pneu de recarga”. Alias, a Sra Blache já tinha mencionado a desconstrução do marido: “Eu o via dissolver-se sob minhas vistas eu nada podia fazer”. Ou comen-tando o olhar de outrem sobre eles como sendo lançado sobre “alguém que derrete”. E cabe a esta Sra Delile, por sua vez, pe-dir ao seu marido que ligue “a tevê para o boletim das 20 horas”, para que possam ser informados sobre a morte do amigo (e vizinho!!) Sr. Blache. Este, tal como Delile � nalmente, não passava de um objeto de dissecação com vistas a suas possibilida-des semióticas para uso em benefício do programa. Como a� rma Béatrice, “Blache é uma abstração […] é um ponto e não uma superfície os espectadores não serão tolos qual nada Vicente quer nos fazer crer que este cara existe? Ele o fabricou em estúdio/ Delile […] a gente adere é verdade”. Con-cernente aos pensamentos suicidas, tudo se torna cômico na enumeração apressada da Sra Delile às jornalistas, num esforço para vender o trágico do casal: “Ele entrava em detalhes técnicos ía fazer isto ou aquilo por uma corda no pescoço ou na viga do sótão ou prender uma pedra ao pescoço ou por fogo na casa cada vez pensando em tudo o fogo na casa era o que lhe vinha com mais freqüência precisava dizer-lhe se eu queria ou não re� ita Rose eu não te obrigo”.

A própria instituição do trabalho apresenta-se sob o signo do simulacro: “é muito bonito”, se diz Delile, descon� an-do de sua sorte; tratava-se antes de “uma ocupação fajuta inventada para a circuns-tância”, fruto de uma tramóia entre seu patrão e a televisão. Esse imaginário do complô e do golpe montado remete à falta de con� ança em face de um real que já não convence mais. De outro lado, a máquina judiciária, na pessoa do juiz Phélipeaux, reinventa o vivido a partir da manipulação dos indícios colhidos dos testemunhos da

viúva Blache e de Delile, como também dos rumores levados por Jacky -a jornalista ar-rivista- para incriminar Delile sem provas. Esse juiz revela-se, porém, bem consciente da fragilidade de sua própria montagem: “Sabe, no deserto as miragens/ Vai-se vê-se crê-se e depois nada/ A areia” (p. 71). O procedimento jurídico de assinatura de um texto de con� ssão pelo acusado, a despeito da falta de provas e de álibis, é válido para a condenação de alguém, conforme explica Phélypeaux, considerando-se ele próprio como sendo parte de uma engrenagem que anda por si só: “Mas a decisão ele não a to-mou ela foi tomada por ela mesma como uma � or que se abre/ O pensamento apa-ga-se diante de alguma coisa que é de uma outra ordem/ Vem o momento em que as hipóteses disparam os dados valsam os fa-tos partem em todas as direções/ depois/ Mais nada se move/ Nada é jogado e tudo é jogado” (p. 89).

As fronteiras entre as diferentes ins-tituições não são nítidas devido a todas as alianças e contratos obscuros entre elas – o que reforça a porosidade do real tornado miragem. Essa confusão de territórios faz com que a expressão “passer para o outro lado da tela” perca todo o seu sentido, em razão da circularidade entre o real vivido e o real visto na tevê. O cúmulo da alienação advém do fato de que os desempregados são atores e dramaturgos da encenação te-levisiva de uma realidade que paradoxal-mente vem negar ou mascarar a existência do próprio desemprego. Esse estado de in-diferenciação generalizada que dissolve o real à força de um excesso sistemático de manipulação, reduzindo-o ao caos, se re-veste curiosamente de um aspecto viscoso, como atestam o termo “magouille” (tra-móia) e uma referência à imagem do tubo catódico dos aparelhos de tevê da época. O termo “magouille” era corrente na Fran-ça ao � m dos anos 1980 e inícios dos anos 1990 – data da peça- e resultava, por con-tração, de “mare de grenouilles” (pântano de rãs), para signi� car “os procedimentos tramados no segredo da lama por perso-nagens viscosos” (D’Almeida, 2005, p. 80).

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Quanto à outra imagem, encontra-se numa pintura do jovem Paul, e retrata um pesa-delo premonitório deste sobre o destino de Blache e de Delile: “Lembranças dos dois amigos que caem nos braços um do outro e que se fundem um no outro depois de se terem perdido de vista [...] um cilindro cheio de uma espuma viscosa se esparra-ma por tudo não se vê mais vestígio nem de um nem do outro”. Parece-nos claro que se trata de uma referência ao tubo ca-tódico dos aparelhos de tevê que produzia imagem por meio de uma película viscosa em seu interior antes de reenviá-las à tela – uma tecnologia ultrapassada a partir dos anos 2000.

Conclusão

Por que é tão difícil depreender a men-tira nesse texto de Vinaver? Como discer-nir o verdadeiro do falso e atribuir aos personagens e situações quali� cativos níti-dos como “bom” ou “mau”, “culpado” ou “inocente”? Por que uma jornalista de tevê a� rma que a verdade da tevê se encontra no dégradé entre dois pólos?

Ora, o código vinaveriano, como apre-sentado aqui, evita o maniqueísmo e rejeita a hegemonia de um sentido privilegiado ou oculto sob a superfície do que é dito; o autor desencoraja a busca da profundi-dade psicológica ou outra, como também o encadeamento de causas e seus efeitos e prega o trabalho com “migalhas de senti-do”, ao “rés da linguagem”, assim como a validade de todos os pontos de vista. Esse “teatro da palavra”, “teatro da fala” evita centrar-se em tema ou mensagem privile-giada, para fazer raiar uma multiplicida-de de sentidos a partir dos entrechoques inesperados dos “objetos de fala” (pala-vras, frases, réplicas) que pretendem fazer jorrar centelhas de ironia. Por outro lado, o termo “molecular” constitui outra chave no código de Vinaver. É no plano do mais pequeno que o autor escolhe construir seus textos e propor até mesmo um método de análise textual: “a leitura ralentada de um fragmento basta para revelar essencial-mente o modo de funcionamento da obra

inteira”; como na geologia ou na biologia, opera-se “por amostragens observadas no microscópio”(Vinaver, 1993, p. 11). E esse modo de “funcionamento dramatúrgico se revela por uma exploração da superfície da fala”; “Que não se procure nada por trás das superfícies, são elas que são o segredo (Goethe)” (Vinaver, 2005, p. 11).

Tal como os personagens Srta Belot ou Paul, com seus sonhos e pinturas, respecti-vamente, o autor trabalha, em O programa de Televisão, com índices, sintomas, signos esparsos do real, menos para submetê-los a uma verdade única que para compor pedaços de paisagens ricas de sugestões e ambigüidades. Mas se trata ainda do real? As “migalhas de sentido” vinaverianas não seriam, nessa peça de 1990, da mes-ma categoria dos “restos” postulados por Baudrillard? Posto que, de fato, à força de tantas manipulações pelo sistema, o real já estaria desrealizado, teria já perdido sua consistência, sua espontaneidade, sua sei-va vital, sua capacidade de surpreender, e se veria substituído então por uma outra coisa, por um “hiper-real”, como quer Bau-drillard.4

Ora, este real é da ordem do puro sig-no, da imagem auto-su� ciente, desprovida de toda referencialidade externa a ela, ou seja, não é mais nem uma imitação, nem uma representação do real, mas se con-funde com o próprio real, ou melhor, ele ocupa o lugar do próprio real enquanto seu simulacro, tornando derrisórias e obsoletas as categorias do falso e do verdadeiro. En-quanto “restos”, as “migalhas de sentido” vinaverianas parecem, em O Programa de Televisão, ter a função de resgatar o real de-saparecido e, desse modo, testemunhar o esforço do autor para forjar um real em seu teatro, utilizando-se dos mesmos procedi-mentos do sistema que ele deseja desmon-

4 Michel Vinaver, em carta a Catarina Sant’Anna, datada de Paris, 18/02/2008, julga frutuoso “o ângulo de ataque” da metis, e nosso artigo “um estudo denso e esclare-cedor”, “um belo exemplo de pesquisa no domínio do teatro”, mas discute a aproxima-ção entre suas “migalhas de sentido” e os “restos” de Jean Baudrillard. Para Vinaver: “Bem sumariamente, eu diria que Paul e Jacky ganham o real amando-se, que Rose e Delile não o perdem complemente malgrado sua submissão, que há resquícios dele em Béatrice, que ele � ca inteiro na sonhadora Bellot; e que em revanche os Blache, Adèle, Phéyipeaux estão no simulacro”. (citação autorizada em entrevista à autora, em 03/09/2010, em Paris).

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tar. Estaria aí o grande jogo desse teatro, desfazer o jogo do sistema com as armas do próprio sistema? Um pouco como se o au-tor agisse como aprendiz de feiticeiro, do-tado de uma “inteligência astuciosa” (me-tis) ao lançar armadilhas contra o próprio meio de onde elas provieram. Uma vez que o efeito de real construído de migalhas de real quotidiano por Vinaver não visaria ab-solutamente à conservação da ordem esta-belecida, mas, muito pelo contrário, visaria a inquietar e a incomodar o público, já que o autor não crê que o teatro possa consti-tuir um instrumento revolucionário de fato, justamente pela situação privilegiada do público que freqüenta os teatros.

Parece-nos, então, que O Programa de Televisão deva ser considerado canônico da dramaturgia do autor, por seu meca-nismo de construção e fundo iconoclasta. Mas para levar até o � m esta ordem de questionamentos tecidos aqui, poder-se-ía interrogar � nalmente sobre os reais efei-tos pretensamente incômodos desse teatro, uma vez que, como a� rma Baudrillard, o sistema tem necessidade desses tipos de denúncias justamente para poder reforçar ainda mais o efeito de real fabricado por ele, ou seja, para nos fazer crer que existe ainda real sob o oco da imagem fabricada do hiper-real. De todo modo, fazendo-nos visitar esses “porões aonde ninguém ja-mais desce” (para citar aqui as palavras do jovem marginal e “dissidente” Paul), esse teatro cumpriria ao menos a missão de nos tirar toda pretensão de inocência.

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SANT’ANNA, Catarina: Para desmontar o sistema: a atualidade no teatro de Michel Vi-naver, in Ouvirouver (N. 5, 54-60), Uberlândia-MG, UFU, 2009.

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VINAVER, Michel. L’Émission de télévision. Arles, Actes Sud-Papiers, 1990.

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151DRAMATURGIA DO INVISÍVEL, DRAMATURGIA DO POSSÍVEL, DRAMATURGIA DA IMANÊNCIA

Resumo

O presente texto discute a produção da palavra e do texto escrito em processos de criação performativos a partir da

noção de palavra não como signo arbitrário e decalque, mas como atualização-em- potência dentro de mapas de linguagem

construídos nos planos especí� cos de composição de cada programa performativo.

Palavras chave: dramaturgia; invisibilidade; corpo; memória; texto

Abstract

This paper discusses the production of word and written text in performative creation processes based on the notion of word not as an arbitrary sign and decal, but as an uptade-in-power inside

the maps of language that are built in which speci� c performative program´s plan of composition.

Keywords: dramaturgy; invisibility; body; memory; text

1 Desenvolve sua pesquisa de pós-doutorado vinculada ao Projeto Temático “Memória(s) e Pequenas Percepções” com o grupo LUME, na Unicamp (Campinas, SP). Tem doutorado em Artes pela Universidade de São Paulo (2008). Em 2000, estudou treinamento expressivo com o Grupo Odin Teatret (Holstebro, Dinamarca), objeto central de sua pesquisa pro� ssional desde então. É atriz e professora. Sua experiência é na área de Artes Cênicas, com ênfase em Interpretação Teatral, atuando principalmente nos seguintes temas: ator, teatro, interpretação, memória, movimento, criação, improvisação, dança, teatro e circo.

2 Tem doutorado (2004) em Multimeios pela Unicamp. É ator-pesquisador e atualmente Coordenador do LUME - Núcleo interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP onde atua teórica/praticamente em todas as linhas de pesquisa do núcleo desde o ano de 1993. É professor e orientador no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena Hoje coordena o Projeto Temático Fapesp “Memória(s) e Micropercepção” e é Bolsista de Produtividade do CNPQ. Possui três livros publicados: “A Arte de Não Interpretar como Poesia Corpórea do Ator” (Editora da Unicamp e FAPESP - 2001), “Café com Queijo: Corpos em Criação” (Hucitec e Fapesp - 2006) e “Corpos em Fuga, Corpos em Arte - ORG” (Hucitec e Fapesp - 2006).

Dramaturgia do invisível, dramaturgia do possível, dramaturgia da imanência: apontamento

para uma potente dramaturgia microscópicaPatricia Leonardelli1

Renato Ferracini2

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A pesquisa avançada sobre drama-turgia se desenvolve, atualmente, mais ou menos alinhada a um ou outro dos dois principais eixos de tradição crítica: a alemã e a francesa. Eixos que, é sabido, se provocam e alimentam, movimentando o debate sobre um território onde a pletora de produções exige o esforço permanente de conceituação/contenção das experiên-cias a � m de que a própria disciplina não se esvazie pela falta de fronteiras e de tradução. É, em grande parte, pela inter-locução entre as duas vertentes de estu-do que vem se estruturando algumas po-tentes matrizes teórico-conceituais para uma possível ontologia da dramaturgia contemporânea (se não for ambicioso de-mais conjecturar tal campo), sustentada pela análise da evolução da disciplina desde 1880. Tal debate serve-nos, parti-cularmente, pelo esforço em � xar, com consistência e rigor, seu âmbito e suas singularidades dinâmicas, com o qual as demais fronteiras de pensamento sobre a ação teatral podem dialogar.

Em um platô de re� exão, está a tradi-ção alemã, cuja orientação se substancia-liza com as produções (teórico-pedagógi-cas) de Brecht e (teórica) de Peter Szondi, mas profundamente tributária, quanto a seus desenhos � losó� cos, da teoria ador-niana, e que se atualiza, na contempora-neidade, pelo estatuto do pós-dramático de Hans Thies-Lehmann. Evidentemente, não se trata de um pensamento sucessivo (ainda que notoriamente Lehmann tenha sido aluno de Szondi), mas da estrutura-ção de uma perspectiva dialética de auto-superação da dramaturgia como força de produção, que teria experimentado com as inovadoras operações do teatro épico de Brecht o instante aglutinador/revo-lucionário de síntese máxima diante da crise do drama, que já se anunciava nas primeiras décadas do século passado.

A partir de Brecht, conforme Szondi e Lehmann, irrompe-se mais radicalmente o campo de experimentação quanto à ex-ploração das possibilidades de criação de texto e cena para além dos enunciados do

drama, que resultaria na enorme diver-sidade de produções e processos atuais, as quais Lehmann reúne sob o guarda-chuva conceitual do pós-dramático. Não obstante, salientemos, se for ainda ne-cessário, que tal irrupção resulta menos de um possível hedonismo estético pelo exercício formal historicamente localiza-do, e mais da crise global das artes e, em grande parte, também das humanidades em geral, de reconhecimento do sujeito histórico e de suas macro e micro rela-ções na modernidade. Diante do suposto “eu desintegrado” moderno, a lógica uni-� cante e sintética do projeto dramático já não forneceria estruturas/ferramentas de tradução que comportassem a multipli-cidade de vozes, planos, olhares, deslo-camentos desse homem em fragmentos, alienado da natureza e apartado de seus semelhantes e de Deus.

O teatro pós-dramático se apresenta, assim, como um paradoxo gênero/não-gênero, que abarcaria todo teatro que escapa ao primado da ação-imitação, da ilusão de reprodução do real, e a conse-quente construção de um texto e de uma cena cuja mimese busca a totalidade e o fechamento de sentidos, bem como de seus modelos de produção. Na análise de Lehmann, o discurso dramático, por sua tendência unívoca, entre outros compo-nentes, fora, irremediavelmente, captu-rado pela indústria cultural, e trabalha, hoje, a favor exclusivamente de seus in-teresses. Portanto, por sua raiz original épica, da qual derivariam as demais rup-turas historicamente subsequentes, o tea-tro pós-dramático carregaria per se, pela simples refutação aos esquemas dramáti-cos, um realinhamento político (logo, for-mal, posto que desde Barthes não se pode pensar em outra ação política para o tea-tro senão por uma que perpasse sua cons-trução estética) de resistência e oposição à apropriação da forma dramática pela cultura de massa, e sua servidão, como linguagem, aos discursos da maquinaria que lhe investe, independentemente da con� guração que assumisse.

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Em lugar distinto, se localiza a crítica francesa, representada, em nossa seleção, pelos trabalhos, já bastantes difundidos, do Grupo de Pesquisas sobre a Poética do Drama Moderno e Contemporâneo, coordenado por Jean-Pierre Sarrazac. Es-colhemos tal coletivo, fundamentalmen-te, porque suas investigações assumem a crise do drama como apresentada por Szondi (em sua obra de referência Teoria do drama moderno, 1954), mas se propõem a re� etir sobre essa crise não só por ou-tros referenciais teórico-� losó� cos, mas com um outro “espírito”, por assim di-zer; qual seja, de evitar, ou ao menos re-cuar, na anulação-superação imediata a que o gênero dramático está condenado na análise dialética do pós-dramático.

Tal crítica reconhece todo impacto do trabalho de Brecht na evolução da drama-turgia universal, e não exclui a in� uência de sua produção em toda cena ulterior. Porém, não compreende o movimento do teatro moderno numa perspectiva, de cer-ta forma, teleológica, em que a forma pós-dramática seria uma síntese/superação do drama alavancada pelo épico, como sugere a obra de Lehmann. Para Sarra-zac e sua equipe, as questões levantadas pela crise do drama foram sendo respon-didas simultaneamente por uma série de dramaturgos (Ibsen, Strindberg, Tchekov, Adamov, Maeterlink) em suas obras, que novamente levantam uma nuvem proble-mática, numa crise sem � m (contraria-mente a Lehmann que veria a história das poéticas teatrais como o progresso de uma forma para a outra, resultantes da resolu-ção parcial da crise do drama).

O teatro e a teatralidade se instauram nessa crise que esvazia incessantemente o estatuto anterior do teatro em si, e abre espaço para novas dramaturgias, proces-sos e teatralidades especí� cas. A resolu-ção fundaria um novo teatro, ou imporia uma progressão do teatro, premissa de que Sarrazac descon� a, preferindo in-vestir na noção de dramaturgia como, precisamente, o produto não dado e em permanente construção pelas demandas

do contemporâneo. Como se o teatro (e sua crise) operasse mais numa dinâmica multilinear de respostas para as questões da crise do drama do que no caminho de uma única solução. Trata-se de um cam-po de sínteses múltiplas, que se conta-minam, e cujas novas formas não fazem outra coisa senão preencher para imedia-tamente esvaziar o quer poderia se tornar a essência de um novo teatro para além do drama. Assim, o drama não precisa ser abandonado, pois não funciona mais como uma categoria desgastada, uma roupa velha à qual tentam, forçosamente, embutir um corpo novo. Ele se recon� gu-ra como um espaço de ampla recriação, cujos desdobramentos formais só fazem revelar as possibilidades transgressoras e atuais que o gênero ainda contém.

Dessa forma, como já apontamos, a crítica francesa abarca e partilha dos mes-mos princípios de identi� cação da crise do drama levantados pelos teóricos alemães (a separação do homem de seus agregado-res identitários, solidão e polifonia exis-tencial, apartamento do divino, etc. que demandariam outro tipo de relato dramá-tico), mas busca na observação mais am-pla das respostas artísticas oferecidas pela produção histórica dos dramaturgos em seus projetos singulares os encaminha-mentos teóricos para tais questões.

Nessa perspectiva, um conceito espe-cí� co emerge de forma particularmente potente. Em seu pequeno texto O Jogo dos Possíveis3, Sarrazac introduz o termo dra-maturgia dos possíveis, em um contexto de re� exão que nos parece particularmente ampliado sobre a criação dramatúrgi-ca. Ao passo que postula a dramaturgia como um território em crise permanente, crise de soluções provisórias que inaugu-ram novas crises que abrem novos espa-ços de solução, que não são outras senão as próprias produções dramatúrgicas e toda diversidade como reconhecemos na cena contemporânea, o pensamento Sar-razac nos oferece a possibilidade de pen-

3 Jean-Pierre Sarrazac, “O Jogo dos Possíveis”, in: A Invenção da Teatralidade, p. 81-83, trad. Alexandra Moreira da Silva. Porto: Deriva, 2009.

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sar cada experiência dramatúrgica como um referencial em si. Um referencial que pode se criar para além do enquadramen-to exterior entre gêneros e ser produzido mediante as linhas de força intrínsecas ao processo de criação (livres, da demanda apriorística de se localizar no campo do dramático, do pós-dramático, do lírico, etc).

Assim, interessa menos tentar rede-� nir as fronteiras de um novo gênero, buscando � xar possíveis elementos co-muns de reconhecimento que permiti-riam identi� car tais experiências, do que assumir a diversidade não mais como “pletora”, mas como “território de multi-plicidades”. Não refutamos a potência, o rigor e alcance da crítica de Lehmann, es-pecialmente quando detalha os procedi-mentos de apropriação das operações do drama pela máquina da cultura de mas-sa. Porém, nos parece um pouco forçoso considerar que apenas a forma dramáti-ca foi trans� gurada pelos agenciamentos nefastos da sociedade das mercadorias, e que, escapando do drama, o teatro em-preenderia, per se, uma atitude de resis-tência política. A revolução está em outro lugar, um lugar que já existe, e que, para-doxalmente, está por construir.

Voltemos a uma noção mais geral de dramaturgia. Há uma imagem considera-velmente comum e amplamente aceita de dramaturgia na teoria da cena contempo-rânea, que vem fundamentalmente, e Bar-ba e da Antropologia Teatral: a de uma tessitura. Essa imagem metafórica apre-senta a dramaturgia como o entrelaça-mento dos elementos cênicos macroscó-picos (música, atores, cenários, � gurinos, texto, mídias, disposição do público, etc) que por meio de seus encontros geram tensões, relaxamentos, buracos, saltos, desvios e assim proporcionam um TECI-DO, uma TESSITURA em multiplicidade complexa. Esse tecido (ou tecidos) dinâ-mico � utuante gerado por tais linhas-cê-nicas, deitadas sobre o tecido complexo do espaço-tempo (que também pode ser agenciado como uma linha de opção dra-

matúrgica) gera o que podemos chamar de dramaturgia cênica. Podemos dizer que optar por uma dramaturgia-tecido pensada dessa forma abre espaço para novos encontros e posturas em relação ao próprio fazer cênico:

Concretude do material: as linhas, cada uma delas, oferecem uma matéria concreta de atuação, e cada qual também possui a complexidade e multiplicidade semântica e sígnica � utuante já bastante potente em si. Por exemplo, o corpo do ator – enquanto linha de tessitura – já possui em si mesmo – uma multiplicida-de complexa de afetos e signos � utuantes com sua técnica e trabalho corporal es-pecí� co. O mesmo se pode dizer da po-tência plástica do � gurino com as cores e formas que possuem. O encontro con-creto – somente como exemplo – do ator com o � gurino já gera – somente nessas duas linhas – tensões e potências in� nitas de agenciamentos.

Liberdade de opção de material: há uma liberdade criativa na escolha das li-nhas que farão parte da ação cênica (seja ela teatro, dança, performance ou qual-quer outra). Não há uma linha necessária ou su� ciente para realizar a trama. Cada linha do tecido cênico pode ser suprimi-da ou mesmo linhas outras podem ser incluídas abrindo-se aí um leque de po-tencialidade criativa cênica praticamente in� nita.

Isonomia necessária de material: en-quanto tecido (formado pela ação ativa do tecer das linhas-cênicas) descarta-se qualquer centro hierárquico, ou seja, não pode haver dentre as opções qualquer li-nha que venha a ser a principal do teci-do, mesmo que essa linha “optada” pelo criador cênico venha a ser de uma cor ou textura diferenciada. Todo o conjunto de linhas agrupadas enquanto opção são igualmente importantes para a ação do tecer, ou do fazer o tecido dramatúrgico.

A concretude, liberdade de opção e isonomia do material-linha a ser tecido na dramaturgia contemporânea maximizam em muito as formas de experimentação

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cênica e, de certa forma, proporcionam uma grande dor de cabeça nos conserva-dores do purismo de linguagem. Pode-se criar uma dramaturgia sem texto, mas também sem atores - alguns espetácu-los dadaístas não possuíam atores. Sem espaço físico - vários são os espetáculos realizados na internet com atores de pa-íses diferentes que fazem personagens diferentes; estes substituem o espaço fí-sico por um espaço virtual. Sem público - Grotowski no � nal de sua vida abdicou da audiência para realizar experimenta-ções práticas com atores e atrizes em um espaço fechado localizado em Pontedera-Itália. Pina Bauch inclui o texto na dan-ça e tece outra potência hoje chamada de dança-teatro, além de se fazer muito comum hoje pensar em uma dramatur-gia da dança que – quando pensada em termos de tessitura – se faz bastante co-erente e potente enquanto novo lócus de investigação. Muitos seriam os exemplos atuais e recentes dessa postura dramatúr-gica em tessitura mas paro por aqui.

O tecido em dramaturgia também proporciona hibridismos, fusões, inva-sões e toques de linhas que delimitam as várias linguagens e áreas artísticas. Esse movimento explode e implode as lingua-gens e assim gera outras formas de cria-ção, o que amplia em muito o que Dickie (1976) chama de “O Mundo da Arte”.

Mas podemos e devemos ir um pou-co além do tecido e da tessitura mesmo veri� cando o quanto de potência posi-tiva e bons encontros essa nova postura “dramatúrgica em tessitura” provocou e proporcionou no mundo da arte cênica até agora. Acreditamos que a dramatur-gia em tessitura ainda propõe – enquan-to conceito, imagem, metáfora e teoria – uma imagem por demais organizada. Um “tecido dramatúrgico” pode ser também visto como uma organização extremada de � os que se moldam com uma � nalida-de especí� ca. Isso pode levar à ideia que de existe uma certa maneira especí� ca de organização desse tecido dramatúrgico e mesmo uma certa teleologia de fundo ou

mesmo intencionalidade objetiva, mes-mo que as liberdades criativas que essa ideia proporciona seja bastante potente. Para além disso, as linhas organizadas do tecido podem – erroneamente - se-rem vistas como linhas macroscópicas: uma “matéria simples”, objetivada. Ora, sabemos que a presença – mesmo com-plexa – ou mesmo a simples organização dessas linhas em nada garante a qualida-de e a potência do tecido dramatúrgico contemporâneo enquanto força estética. Não é pelo simples mesclar ou inventar novas linhas ou ainda o fato de gerar no-vas formas de compilação desse tecido organizativo que essa potência estética se garanta; ou seja, não é tendo “brilhantes ideias” de supressões de linhas ou “puras intuições” de inclusões, ou “grandes ex-perimentações” de organização do tecido dramatúrgico que a potência estética es-teja garantida.

A matéria e a concretude dessas li-nhas não podem somente serem pen-sadas como um “material objetivo”. A materialidade contemporânea supõe, ou deveria supor, que a concretude passa não somente pela objetividade da maté-ria, mas principalmente pelas forças que agem sobre ela. Essas forças, apesar de não serem “matéria” possuem, certamen-te, uma certa concretude e materialidade. A forma estética – ou no nosso caso espe-cí� co desse estudo – a dramaturgia - gera o que José Gil chama de “formas de for-ça” (Gil) e não simplesmente uma forma objetivada. Ao buscar “jogar” e agenciar o tecido dramatúrgico com essas forças podemos gerar então uma TEXTURA dramatúrgica (Ramos, 2009)4. A textura dramatúrgica seria então, o tecido dra-matúrgico atravessado pelas forças que sua concretude gera. Enquanto a tessitu-ra pressupõe organização e mesmo uma teleologia a textura propõe uma certa ta-tilidade (Ferral) como matéria-material concreto que vaza da organização linhas-

4 A imagem de Textura Dramatúrgica me foi apresentada pela primeira vez pelo pesqui-sador e amigo Prof. Dr. Luis Fernando Ramos da USP, em uma palestra proferida na III Jornada Latinoamericana de Teatro – Florianópolis – em 2009.

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força da dramaturgia. A dramaturgia se-creta texturas. Mas o que seria essa ma-terialidade das linhas-força que não se reduz a matéria, mas forma uma textura dramatúrgica?

O próprio fundador da Poética nos alerta em sua obra de fundação: não é ofí-cio do poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer, o que é possível segundo a ve-rossimilhança e a necessidade. O possí-vel, como categoria que acolhe pelo dito, o não-dito, imediatamente. A palavra não mais como unidade que encerra o sentido, mas como atualização que carrega em po-tência todo um campo de possíveis signi-� cações. Às palavras de Sarrazac:

Se ainda for permitido <sonhar com o que está para vir>, eu avançaria a hipótese de que o teatro é o lugar da invenção dos possíveis; de que os possíveis representam o horizonte utópico no qual se desenham as dra-maturgias de nossos dias. [...] Sem pretender abrir o debate filosófico so-bre esta categoria do possível, note-mos que o possível ao qual nos referi-mos não é um possível pré-existente, um possível idealista os normativo, que ele não está contido neste “armá-rio dos possíveis”, de que se ri Ber-gson. Para nós, como para Bergson, <é o real que faz o possível, e não o possível que se torna real>. Através do jogo teatral dos possíveis, tentar-se-á surpreender não tanto um mun-do fixo, preso a uma aritmética rígi-da dos possíveis, mas muito mais a <originalidade instável das coisas> e o <jacto efectivo da novidade impre-visível>. Mais, do que ao possível, o jogo que nós vamos tentar evocar está ligado ao virtual, no sentido que lhe dá Artaud quando fala do teatro como <realidade virtual>.[...] Des-de logo, o acto teatral não consistirá tanto em selecionar possíveis previa-mente existentes, mas muito mais em multiplicar e fazer fugir à sua frente, sob efeito de uma constante diferen-ciação, estes <possíveis virtuais> que ele cria constantemente. (Sarrazac, 2009, p. 76-77).

A potência do texto extrapola e se emancipa radicalmente do enunciado. Não pensamos mais em termos da “ambi-guidade” ou “sugestão” de um texto que, buscando uma abertura de sentidos pelos mais diversos estratagemas formais, pos-sa suscitar movimentos vários na ima-ginação do espectador, mas de conceber todo um estatuto para a invisibilidade da palavra, e quais condições de produção de� nem a singularidade da atualização como apresentada por Sarrazac no pará-grafo acima. Conforme intui o pesquisa-dor, compreender a invisibilidade da pa-lavra como instância de signi� cação tão real e potente do texto quanto sua arti-culação visível, requer que nos apoiemos em todo um entorno teórico que sustente tamanha especulação, pois de outra for-ma não é possível sequer imaginar tais movimentos.

Nessa perspectiva, a dramaturgia mi-gra, necessariamente, do plano da semió-tica clássica para aquele da composição, conforme de� nido por Deleuze. O texto ganha sentido pela atualização possível, mas também desejável, no jogo de alinha-mento das forças envolvidas em cada for-ma de produção; para, imediatamente, desdobrar um campo singular de virtuais para novos trânsitos, sucessivamente. A palavra ou texto como pontos possíveis de materialização de sentidos que não se abrem para outros sentidos especí� cos, por denotação, conotação, o ou que ou-tra operação desejarmos, mas para toda a multiplicidade como “errância”, cuja plasticidade dos agenciamentos não se encaixa mais nas estruturas linguísticas já mapeadas.

Cada produção dramatúrgica, atual-mente, inaugura todo um campo especí-� co da disciplina em si. Se até mais ou menos o período da crise do drama, cuja data referenciada pelos teóricos aqui le-vantados, para efeito de estudo, se locali-za em volta de 1880, o trabalho autônomo do dramaturgo e as escolas e tradições ao qual se � liava permitiam identi� car um território estético comum de experimen-

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tação, a partir de Brecht e dos mecanis-mos do teatro épico, e nisso concordamos com ambos os autores, inaugura-se outra forma de escrita para cena, que supera (numa perspectiva não-teleológica) os gêneros e subgêneros clássicos. Um pa-norama que exige que se pense a drama-turgia para além da dramaturgia nos seus limites disciplinares, e que passe, funda-mentalmente, nos parece, por uma análi-se outra sobre a invisibilidade da palavra.

Toda palavra carrega em si uma es-pécie de conteúdo selvagem, pré-pós-lin-guagem, que torna o texto tão mais rico quanto melhor compreende essa instân-cia como linha de fuga da molaridade “texto”. Jogando com a “selvageria dos sentidos”, e tomando tais atravessamen-tos não como desvios de linguagem, mas como parte fundamental da natureza da palavra, o texto surge como território da crise, e não da resolução, campo de deba-te das humanidades possíveis, múltiplas, por inventar. Toda crítica, tão recorrente na obra de Artaud, sobre a arbitrarieda-de da palavra (como terreno preferencial do logos) se desfaz por esta nova compre-ensão do verbo-texto-fala como uma das atualizações possíveis, mas cujo “poder de ordem” se esvazia no re� uxo da virtua-lização, e na assunção de todo conjunto não-dado de sentidos passíveis de serem levantados nessa dinâmica de interfaces multi-projecionais de linguagem. A ma-téria do texto não é mais um � m, um pro-duto (ou o melhor produto), um recep-táculo, uma voz uníssona, um discurso fechado, um local � xo de trabalho. Ela é o desenho especí� co, provisório, dinâmico, vivo, e somente vivo porque em trânsito criativo ininterrupto com todas as lingua-gens possíveis no campo virtual múltiplo do plano de composição.

Uma pequena mudança de olhar, mas que talvez carregue em si um deslo-camento perceptivo interessante para o trabalho do dramaturgo. Compreender o texto como a ponta de um iceberg para alem das associações consciente-incons-ciente; que não existe dramaturgia-pro-

duto e dramaturgia-processo, posto que toda dramaturgia devém do jogo possí-vel de cada processo, e escolhendo falar de alguns assuntos, fala ainda mais alto de tudo o que não diz. Cada processo de criação especi� ca e singulariza as linhas de força e densidades que de� nem uma forma de atualização de linguagem dra-matúrgica e não outra, e é pela análise precisamente de tais especi� cidades que a dramaturgia como campo disciplinar de trabalho pode ser melhor pensada na contemporaneidade. Como um platô dos possíveis, que, escapando velozmente dos limites que con� guram essa possibilida-de, desdobra devires poderosos, pelos quais permanece possível, precisamente, o ato contínuo da criação.

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REFERÊNCIAS

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LEHMANN, Hans-Thies.Teatro Pós Dramático. Trad: Pedro Sussekind. São Paulo: Cosac & Naïf, 2007.

SARRAZAC, Jean-Pierre. A Invenção da Teatralidade. Porto: Deriva, 2009.

_____. Léxico do Drama Moderno e Contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

_____. O Futuro do Drama. Porto: Campo das Letras, 2002.

SZONDI, Peter. Teoria do Drama Moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

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Resumo

Este artigo debate alguns procedimentos e características da escrita dramatúrgica das peças radiofônicas formatadas como radionovelas, cuja ocorrência se registra a partir da década de

1930 em países da America Latina, tais como Cuba e Brasil. Suas origens literárias, a de� nição do formato, os procedimentos de

escrita do texto dramatúrgico aplicado ao ambiente radiofônico, e o desenvolvimento desse gênero a partir da décadas de 1930, serão

alguns dos pontos aqui trabalhados.

Palavras-chave: Dramaturgia, radionovela, procedimentos artísticos.

Abstract

This article discusses some procedures and characteristics of dramaturgical writing radio plays formatted as soap operas, who-se occurrence is recorded from the 1930s in Latin American coun-tries such as Cuba and Brazil. Its literary origins, the de� nition of the format, procedures written text dramaturgical applied to the radio environment, and the development of this genre from the

1930’s, here are some of the points worked.

Keywords: Drama, radio drama, artistic procedures.

1 Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Teatro (PPGT – CEART/UDESC). Bolsista CAPES/CNPq, Desenvolve pes-quisa intitulada “O AMBIENTE DA CENA NO RADIOTEATRO – Procedimentos artísticos de radioatores, radiotécnicos e radiodramatur-gos”.

2 Doutora em História Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora e pesquisadora do PPGT – CEART/UDESC.

Incêndio da almaA Dramaturgia das Radionovelas

Leon de Paulo1

Vera Regina Martins Collaço2

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A década de 1920 foi marcada pelo surgimento da primeira emissora de rá-dio, com transmissão regular (a KDKA, de Pittsburg, EUA). Deste período até os nossos dias, o rádio sofreu constan-tes modi� cações acerca de suas qualida-des comunicativas. Em janeiro de 1924, a British Broadcasting Corporation (BBC) de Londres transmitiu, ao vivo, aquela que é considerada a primeira peça transmitida no meio radiofônico: Danger, de Richard Hughes. A obra provocou comoção entre os ouvintes, ao irradiar a história de três indivíduos que, supostamente, estariam soterrados numa mina3. A partir da trans-missão dessa história ao vivo, que apre-sentava elementos � ccionais como reali-dade, descobriu-se – ao mesmo tempo em que se con� rmou – o potencial dramático do nascente meio de comunicação, através da exibição de um texto dramatúrgico que combinava a atmosfera de suspense alia-da à característica de instantaneidade do rádio, localizando o ouvinte como se esti-vesse “no centro dos acontecimentos”.

Durante as décadas de 1930 e 1940, o incremento da aparelhagem técnica de transmissão e recepção das ondas de rá-dio, bem como da captação e do registro de sons, permitiram que as peças radiofô-nicas assumissem um status distinto da-quele observado na década de 1920. Na América latina, as peças radiofônicas ad-quiriram um formato conhecido como ra-dionovela, e alavancaram a audiência das emissoras de rádios, que alcançaram atra-vés desse gênero grande popularidade.

As histórias narradas a partir de ar-gumentos simples, mas contundentes, en-contraram no meio radiofônico o ambiente necessário que lhes permitia serem trans-mitidas em capítulos, e as colocava numa dimensão até então não conhecida, a res-peito do fenômeno de popularização. As adaptações elaboradas pelos dramaturgos, a � m de que o texto fosse levado da lingua-gem literária para a radiofônica, resulta-ram em obras que desenvolveram diversos

3 Conforme informações contidas no sítio <http://www.dw.de/1922-transmiss%C3%A3o-da-primeira-pe%C3%A7a-radiof%C3%B4nica/a-880259>, no qual recomendamos a leitura do breve artigo. Acesso em 21 fev 2013, 17:50h.

aspectos da linguagem no meio radiofôni-co em sua qualidade de mass media.

Os caminhos para a radionovela

A radionovela tem suas raízes em duas outras formas de arte, oriundas de meios artísticos distintos: o melodrama (advindo do meio teatral) e o folhetim (elaborado no meio jornalístico). Tan-to um quanto o outro se desenvolveram como gêneros especí� cos em suas respec-tivas linguagens durante o transcurso do século XIX.

Historicamente, o melodrama se � r-ma como gênero teatral com a ascensão da burguesia ao poder, a partir da Revo-lução desencadeada em 1789, na França. Houve, a partir deste fato, uma profun-da mudança a respeito do que era levado aos palcos daquele país, tanto no tocante às temáticas que davam suporte às nar-rativas quanto às próprias apresentações dos espetáculos. As peças originalmente destinadas à nobreza palaciana francesa foram submetidas à adaptações feitas pri-meiramente pelos atores, de modo a se-rem aproximadas de outro tipo de público que começava a ter acesso àquela manifes-tação cultural, no contexto da Revolução Francesa. O teatro recebeu a função – se-gundo os preceitos daquela Modernidade – de representar a moral exemplar, com o propósito de divertir e emocionar.

Em 1800, foi levada aos palcos pari-sienses o espetáculo Coelina, ou L’Enfant du Mystère (Celina, ou A Filha do mis-tério), de René-Charles Guilbert de Pi-xerécourt (1733-1844), tido como a obra inaugural do melodrama. Considerado capaz de atrair plateias – e discipliná-las, corrigindo os vícios morais nas distintas classes da sociedade – tamanho o poder de fascínio que causava, este gênero tea-tral era destinado não só ao mero entre-tenimento, como também à educação das sensibilidades dos espectadores daquele período histórico4. Os espectadores que

4 Segundo Patrice Pavis – no verbete destinado ao Melodrama, de seu Dicionário de Teatro – é possível identi� car nas tragédias familiares de Eurípides traços pertinentes ao melodrama. Mas o surgimento deste gênero teatral ocorre somente, e de fato, no século XIX.

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a� uíam às casas de espetáculos naque-le período não eram mais os nobres de outrora: os burgueses chegavam às pla-teias, interessados em assistir histórias que apresentassem uma mescla de ações trágicas e cômicas, sublimes e grotescas, nas quais os espectadores facilmente se reconhecessem e nelas identi� cassem sua própria dinâmica de vida.

A dramaturgia melodramática é mar-cada por um ritmo espetacular intenso, ao propor uma acelerada alternância en-tre as situações de boa e de má fortuna (tanto de vilões quanto de heróis, num idealizado mundo binário). Os chamados “golpes de teatro”, característicos do gê-nero, possibilitam repentinas mudanças entre uma situação e outra dentro da nar-rativa (estas são características das quais, no meio radiofônico, a radionovela se apropria do melodrama). As histórias – anteriormente pautadas na declamação e no classicismo – foram retrabalhadas pelos atores, para atender aos interesses do espectador burguês que passava a fre-quentar a plateia dos teatros. Este públi-co especí� co e numeroso não tinha o gos-to – ao contrário do que tinha a nobreza palaciana francesa, por exemplo – para as lentas ações e os longos monólogos de-clamados pelos atores das tragédias de Jean Baptiste Racine (1639-1699) ou de Pierre Corneille (1606-1684)5.

Por sua vez, também durante o sé-culo XIX, o folhetim jornalístico passou a existir, literalmente, à margem das pági-nas dos grandes acontecimentos. Com o objetivo de atender a diferentes consumi-dores de informações, os editores apro-veitavam os espaços ociosos existentes ao pé das páginas dos jornais para publicar, dentre outras coisas, trechos de histórias que eram apresentadas em capítulos cur-tos, num determinado período. Segun-do a pesquisadora Yasmin Jamil Nadaf (2009, p.120),

5 Dados que constam de anotações pessoais feitas a partir do contato com Neyde Ve-neziano, quando dirigiu o espetáculo “...e o Céu Uniu Dois Corações.”, produzido pela Cia. Teatro, Sim... Por Quê Não?!!!, de Florianópolis, entre fevereiro e abril de 2005.

A imprensa francesa do século XIX re-servava o rodapé da página do seu jor-nal, geralmente a primeira, a escritos de entretenimento – artigos de crítica, crônicas e resenhas de teatro, de lite-ratura, de artes plásticas, comentários de acontecimentos mundanos, piadas, receitas de beleza e de cozinha, bole-tins de moda, entre outros assuntos. Esse espaço a quem davam o nome de Feuilleton, que para nós traduz-se em Folhetim, nasceu da necessidade de gerar prazer e bem-estar aos leitores ou ouvintes de jornais [grifo nosso], cansados de verem os enfadonhos re-clames o� ciais ocuparem as páginas dos periódicos. Isto, em decorrência da autoritária medida de Napoleão I de restabelecer a censura à imprensa e aos livros que se haviam acostumado a respirar livremente durante a revo-lução Francesa [...].

Essas histórias eram concebidas de modo a provocar no leitor do jornal um interesse baseado na curiosidade em sa-ber qual fato futuro da história responde-ria àquele que era lido naquela ocasião. A radionovela – segundo o cubano Reynal-do González, ensaísta e pesquisador do rádio naquele país – encontra no folhetim seu “ancestral ilustre”:

Os periódicos latino-americanos uti-lizavam traduções das mais impor-tantes obras da produção folhetinesca francesa do século XIX. Isso havia começado no final do mesmo século e, entre seus tradutores, apareceram nomes que logo seriam famosos para além da literatura hispânica, como José Martí. Já no século XX, as emis-soras de rádio, em linguagem que lhes era própria, retomaram as histó-rias folhetinescas com um poder não imaginado por Dumas, Feuillet ou Sue, para citar somente os escritores de folhetins mais radiofonizados e nada desprezíveis. (González In: Me-ditsch e Zuculoto, 2008, p.106)

O gênero folhetinesco propiciou não só o aparecimento de um tipo de leitor/ouvinte interessado na narrativa sequen-

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cial, como também de um autor espe-cialista em manter a curiosidade do seu público em torno da � cção proposta, à medida que os capítulos das histórias eram apresentados em períodos deter-minados, segundo a regularidade de cir-culação do jornal (essa característica do folhetim é bem apropriada, no meio ra-diofônico, pela radionovela). O fato de serem apresentadas em periódicos gerava ainda mais aproximação com a vida coti-diana do leitor, que também encontrava nessa leitura especí� ca contida no jornal um espaço para exercitar a construção de um mundo de fantasia e encantamento, a partir desse gênero de � cção. Ao lon-go do século XIX, essas publicações de folhetim jornalístico conquistaram pouco a pouco um status de categoria colecio-nável, sendo impressas em colunas e até mesmo em encartes próprios.

As temáticas do melodrama, alia-das a qualidade sequencial do folhetim, são características formadoras dessa dra-maturgia aberta, própria da radionovela. Ambos – o melodrama e o folhetim – apre-sentam um propósito bem de� nido, assim como o gênero radionovelesco em ques-tão: o de conquistar o espectador/leitor/ouvinte pela valorização de suas emoções, num processo de arrebatamento entre uma situação e outra que lhe seja apresen-tada. Diante do ouvinte da radionovela, o mundo lhe é trazido através dos crimes, das intrigas, das vinganças de honra, dos arrependimentos, dos reconhecimentos, das despedidas, dos reencontros, dos de-sejos inconfessáveis de todas as ordens, das redenções e da virtude, que triunfa sobre o vício moral e as injustiças sociais. A dramaturgia da radionovela será como um estopim, para que através dela sejam incendiadas as emoções dos ouvintes.

Distinção do formato

Com relação às peças radiofônicas, trataremos neste artigo sobre alguns for-matos, considerados a partir da quanti-dade de capítulos necessários para que a história seja completamente exibida: o ra-

dioteatro, a radionovela, a sainete e a mi-nissérie. Não há, entre os pro� ssionais do rádio e mesmo de teatro, um consenso ou mesmo uma norma técnica que delimite um formato de outro Essa delimitação, muitas vezes, se dá pelo entendimento da extensão da história a ser contada (se em capítulo único, ou em capítulos dispostos em sequência).

Observa-se que a prática do radiotea-tro tem na década de 1920 seus primeiros registros. Este formato é costumeiramen-te constituído da transmissão de uma his-tória exibida num único capítulo, não sen-do necessária divisão capitular para sua completa apresentação ao público ouvin-te6. Servem, como exemplos para o forma-to de radioteatro, os arquivos sonoros do programa Teatro Sérgio Viotti (produzidos no Rio de Janeiro pela Rádio MEC durante a década de 1970), e os textos escritos dos programas Encantamento e Falando ao Co-ração (produzidos em Florianópolis pela Rádio Diário da Manhã, durante a década de 1960), e que se encontram na Casa da Memória, de Florianópolis.

Entendida como uma variação do ra-dioteatro, o formato de radionovela se originou no ano de 1937 em Cuba e logo se expandiu por toda a América latina, segundo Reynaldo González. Este for-mato é con� gurado a partir de uma lon-ga história que, para ser apresentada no meio radiofônico, necessariamente tem de ser dividida em partes a serem exibi-das em determinados períodos. O pros-seguimento da narrativa – e a apreensão dela, por parte do espectador – depende do devido encadeamento sequencial e or-dinário, em capítulos. Assim, o capítulo presenciado pelo ouvinte no momento da sua transmissão apresenta uma rela-ção de dependência de ações com o que fora exibido anteriormente, bem como lança simultaneamente as chaves neces-sárias às ações que serão desenvolvidas

6 Para a audição do Teatro Sérgio Viotti, sugerimos o sítio <http://radiomec.com.br/novidades/?cat=82&tag=radioteatro-acervo>, bem como a leitura da pesquisa de Vivian de Camargo Coronato, intitulada O radioteatro na ilha - Programas “Encantamento” e “Falando ao Coração”: Uma análise dramatúrgica. Trabalho de Conclusão de Curso – UDESC, Centro de Artes, Curso de Licenciatura em Artes Cênicas, Florianópolis, 2005.

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nos capítulos seguintes. Aliás, é a conti-nuidade das ações e a retomada delas em saltos espaço-temporais durante a exibi-ção dos capítulos que tão bem caracteriza este formato de peça radiofônica (e o faz se aproximar do melodrama teatral e do folhetim jornalístico).

González – no artigo O avô ilustre da radionovela7, de sua autoria – destaca o es-critor cubano Félix B. Caignet como o ra-diodramaturgo8 responsável por uma sé-rie de inovações que contribuíram para o surgimento da radionovela. Dentre elas, Caignet introduziu um tipo de narrador que, simultaneamente, conduz toda a narrativa e expõe toda a trama ao ouvin-te (e, nessa exposição, mostra até mesmo os sentimentos das personagens que, elas próprias, ignoram possuir). A longa du-ração das radionovelas – como O Direito de Nascer, de autoria do próprio Félix – é também uma característica marcante des-te formato, bastante presente no imaginá-rio dos ouvintes. A propósito desta radio-novela em especial, a transmissão de cada capítulo durava aproximadamente 25 mi-nutos, e por mais de um ano permaneceu no ar, até que fosse completamente exibi-da. Segundo dados que constam da p. 2 da revista “Rádio-Teatro”, n.3, de 30 de janeiro de 1952, os capítulos de O Direito de Nascer – quando da sua radiofonização – eram transmitidos pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro às segundas, quartas e sextas-feiras, das 20h00 às 20h25. As-sim, deduz-se que foi necessário cerca de 1 ano e 8 meses para a completa trans-missão dos 267 capítulos, na adaptação realizada por Eurico Silva (o original de Félix Caignet possuía 317 capítulos). Isso incidia diretamente na logística de pro-dução das emissoras: a voz de cada ator – característica para cada personagem da trama – acompanharia o ouvinte por um longo período de tempo (o que exigia um elenco estável).

Com um número reduzido de ca-

7 Teorias do Rádio, v.2, Florianópolis: Insular, 2008, p. 106.

8 Termo adaptado do meio teatral para o meio radiofônico, que designa o escritor de peças dramatúrgicas radiofônicas.

pítulos em comparação às radionovelas de longa duração, as radionovelas no estilo de sainete9 apresentavam histórias com cerca de trinta, quarenta capítulos. Por uma questão de logística de produ-ção, as sainetes possibilitavam maior ro-tatividade de artistas que compunham os elencos das rádios, entre uma história e outra. Dessa maneira, as emissoras ofe-reciam como novidades em sua grade de programação uma maior rotatividade de histórias para o ouvinte durante todo o ano. O dramaturgo paulista Oduvaldo Viana (1892-1972) escreveu um grande número de radionovelas sainetes, sendo um exemplo dessa formatação a obra de sua autoria intitulada Herança do Ódio, composta por vinte e cinco capítulos, que foi transmitida de dezembro de 1951 a fevereiro de 195210. As sainetes, pelo seu reduzido número de capítulos, poderiam ser gravadas por completo antes de se-rem transmitidas11.

As minisséries eram também conside-radas radionovelas, só que de curtíssima duração (se comparadas aos exemplos anteriormente citados). Geralmente não passavam de quinze capítulos. Apon-tamos como exemplos desse formato o arquivo sonoro, em sete capítulos, de A Vida de Nosso Senhor de Jesus Cristo (que foi produzida por Giuseppe Ghiaroni na Rádio Nacional do Rio de Janeiro, em 1959)12; bem como o texto (datilografa-do e não publicado), em doze capítulos, de Destinos Desiguais (1949), escrita pelo radiodramaturgo catarinense Otávio Mu-nir Bacha (1924- ).

9 Segundo Pavis, o sainete é um estilo de peça de curta duração, menor que a peça de um ato. Neste artigo, apropriamo-nos deste termo oriundo do meio teatral para tra-çarmos uma distinção mais segura entre a radionovela de longa e a de curta duração.

10 O texto completo dessa radionovela sainete, que recomendamos a leitura, foi publica-do na íntegra pela Fundação Casa de Rui Barbosa, em 2007.

11 O processo de gravação de sons tem seu marco decisivo a partir da invenção do fonó-grafo, pelo americano Thomas Alva Edison (1847-1931). Porém, nas rádios brasileiras e em torno das radionovelas, observa-se que esse recurso técnico começa a ser utili-zado, com maior frequência, somente a partir da década de 1950 (data dos registros sonoros encontrados à disposição desta pesquisa).

12 Recomenda-se a audição desta obra, a partir do sítio <http://downloads.topgyn.com.br/radionovelas/radio_novela06/index.php>. Até o presente momento desta pesquisa, esse foi o único arquivo sonoro brasileiro de radionovela/minissérie encontrado por completo.

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Alguns procedimentos em torno da dramaturgia radiofônica13

Considerando a especi� cidade estrita do meio (que se utiliza somente de maté-ria sonora em sua expressão), a escrita do texto dramatúrgico aplicado ao ambiente radiofônico obedece a certos princípios técnicos, sendo um deles (talvez, o mais imperativo) o tempo-limite de escuta concentrada que o ouvinte disponibiliza em torno da história apresentada. Tec-nicamente, gerar a condição dessa espe-cial qualidade de escuta é preponderante para que a peça radiofônica obtenha (ou não) seu êxito junto à audiência. Na es-crita dramatúrgica para o rádio, os pro-cedimentos observados com maior re-corrência (e que aqui destacamos) dizem respeito à reescritura de textos de dife-rentes meios artísticos; aos títulos das ra-dionovelas; ao uso das redundâncias de expressões e falas das personagens; aos “ganchos” das ações; e à presença do nar-rador numa qualidade onisciente, oni-presente e onipotente.

Para a obtenção do almejado sucesso de público, era comum que os radiodra-maturgos14 realizassem adaptações para o meio radiofônico de textos teatrais e ro-mances que gozavam de comprovada po-pularidade. A adaptação e reescritura de textos, de um meio para outro, é um pro-cedimento que possibilita relativa segu-rança de escrita para os radiodramatur-gos, que utilizavam o texto original como um guia (ou roteiro) e o incrementavam com situações que possibilitassem maior desenvolvimento da trama. Um exem-plo disso pode ser observado em A Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo. Observa-se, neste caso especí� co, que várias persona-gens (como Herodes, por exemplo, logo no primeiro capítulo), ganham falas que são encontradas somente no arquivo so-noro, e não no texto bíblico que serviu

13 Não foram encontradas, até o presente momento da pesquisa, fontes que tratassem exclusivamente dos procedimentos da dramaturgia no meio radiofônico, especialmente sobre as radionovelas latinoamericanas. Este artigo apresenta as primeiras análises da pesquisa, ainda em fase de elaboração.

14 Essa denominação faz menção ao pro� ssional do teatro responsável pela escrita da peça, adaptado ao meio radiofônico.

como referência para a minissérie. Em histórias muito longas, faz-se necessário ter um bom roteiro prévio, de maneira a manter a coerência das ações das per-sonagens com vistas a um gran � nale (no qual os principais con� itos apresentados durante a trama fossem devidamente so-lucionados).

Boa parte dos radiodramaturgos ela-bora os títulos das radionovelas como grandes reveladores do enredo. Esse procedimento tem um duplo objetivo: oferecer ao público uma informação se-gura, que o permita se posicionar em re-lação ao drama apresentado; e ao mesmo tempo apresenta, muitas vezes, o motivo gerador constante de toda a trama, de-sencadeador das ações das personagens. Na radionovela Em Busca da Felicidade15 as personagens tinham como � rme pro-pósito a “busca da felicidade”, atraves-sando um pélago sem � m de tormentos de todas as ordens. Quando a sorte está prestes a lhes sorrir – coroando, en� m, seus intentos – algum fato acontece e, inexoravelmente, o destino os afasta da concretização de seus objetivos. Podemos destacar outros exemplos desse procedi-mento, a partir dos títulos das radionove-las: O Direito de Nascer, Lírios que Nascem do Lodo, Presídio de Mulheres, Destinos De-siguais etc.

Outro procedimento adotado pelos radiodramaturgos gira em torno da re-dundância de certas informações ofereci-das à audiência, com o intuito de constan-temente reavivar a memória do ouvinte para guiá-lo com segurança pelas peripé-cias apresentadas no desenrolar da histó-ria. As repetições dos nomes, jargões, ou mesmo de situações de chegadas e saídas características das personagens à cena são recursos utilizados com frequência nos textos escritos para essas produções radiofônicas.

A elaboração, por parte do radiodra-

15 De autoria do escritor espanhol (que se radicou em Cuba) Leandro Blanco (19__-?), segundo o sítio <http://www.cubarte.cult.cu/periodico/opinion/lasa-2009-homenaje-a-felix-b-caignet-y-a-el-derecho-de-nacer/8305.html>, acesso em 28 abr 2013, às 21:11h. A transmissão desta peça radiofônica pela Rádio Nacional do Rio de Janeiro ocorreu de 1941 a 1943.

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maturgo, dos chamados “ganchos” de con-tinuidade da história têm relação ao domí-nio/manejo do tempo da ação dramática para o devido encadeamento dos capítu-los, considerando o � uxo e a interrupção das ações da história para mobilização da atenção do ouvinte no momento clímax no qual estivesse prestes a surgir dali um novo fato que pudesse mudar o rumo dos acontecimentos. Segundo David Ball,

[...] as peças contêm antecipações para manter-nos na expectativa de momento a momento; e antecipações importantes, que lidam com a ação total da peça. A peça, implicitamen-te, faz promessas, mais cedo ou mais tarde as forças antagônicas terão de defrontar-se. [...] a promessa de um confronto fundamental deve ser utili-zada com o fim de despertar a ansie-dade do público. [...] Mas o público deve ser conduzido, persuadido, se-duzido a desejar ser testemunha. Nis-so reside a tensão de uma encenação. (1999, pp. 82-83)

Lançar mão desse procedimento é importante para o escritor, na tentativa de gerar expectativas com vistas a garan-tir a manutenção de uma audiência viva em torno de sua obra. Referente a isso, podemos apresentar como exemplo des-se procedimento o “trailer” de apresen-tação de Herança do Ódio, de Oduvaldo Viana, que contém vários trechos desta sainete, anteriormente gravados, e que fo-ram apresentados ao público, dando uma pequena mostra do que seria posterior-mente exibido.

A � gura do narrador onisciente, oni-presente e onipotente – introduzido em 1937, por Félix Caignet – redimensionou a dinâmica das radionovelas, e a relação estabelecida com o público. Nas radiono-velas que o contém, o narrador desempe-nha um papel importante na condução da trama perante os ouvintes, que são guiados por ele a � m de perceberem os diferentes movimentos decorrentes das ações das personagens frente aos con-� itos que lhes surgem. Ele se con� gura

como um recurso de aproximação do ou-vinte (situado, via de regra, num ponto considerado ‘seguro” para o acompanha-mento da história) com o íntimo das per-sonagens (que apresentam paixões com intensidade tal muitas vezes maiores do que as que são observadas na vida real). O narrador conhece muito bem e traz ao ouvinte o mais profundo recôndito da alma das personagens (coisas, aliás, que nem elas mesmas conhecem sobre si pró-prias). Além disso, é o responsável por preparar os ânimos do público para as ações futuras que serão realizadas pelas personagens e os desdobramentos possí-veis da história, ao mesmo tempo em que reforça (ou arremata) as ações por elas perpetradas, colocando o ouvinte numa condição de con� dente testemunha dos fatos. Para Renata Pallottini (1983, p.59),

[...] O mundo “está fora” do narrador, que o descreve, e o descreve a alguém. O narrador quer “comunicar” sua vi-são do mundo exterior a alguém, e esta visão é objetiva e, de certa forma, serena. O narrador, portanto, não des-creve os seus próprios estados de alma e não � nge estar fundido com suas personagens. Quando muito, � nge ter sido testemunha de tudo. Mas a boa testemunha “está fora”.

O narrador – característico do gênero épico – está acima do bem e do mal que atinge a trajetória das personagens, não sendo abalado por nada que aconteça na história contada.

Considerações finais

Ao retomar temas e procedimentos típicos do melodrama teatral e do fo-lhetim jornalístico, a radionovela poten-cializou certos artifícios narrativos em torno do ato de contar e ouvir histórias em conformidade com o meio radiofô-nico. O texto dramatúrgico aplicado ao ambiente radiofônico – tanto quanto no teatro – serve como suporte para o desen-volvimento das ações dos demais pro� s-sionais envolvidos na exibição da radio-

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novela: não somente os atores e atrizes emprestam seu material humano – so-bretudo vocal – para o surgimento das personagens, como os sonoplastas e con-trarregras criam um mundo sonoro que possibilite a verossimilhança da história, muitas vezes solucionando problemas de coerência advindos da própria escri-ta dramatúrgica. Para o autor brasileiro Amaral Gurgel (19__-?), “um autor pode deixar de colocar observações de ruídos, como o arrastar de cadeiras, um tilintar de cristais e centenas de outros. O con-trarregra artista, estuda, e procura, e co-labora com o autor”16. O bom sonoplasta é aquele que identi� ca a presença sonora de situações que, por alguma razão, o ra-diodramaturgo não vislumbrou.

O processo de apropriação do tex-to pelos demais criadores do ambiente radiofônico está baseado em sua trans-criação que, sem a qual, ele não se apli-ca a sua � nalidade em ser radiofonizado. Nesse sentido, há uma similaridade entre o texto dramatúrgico aplicado ao meio teatral e ao meio radiofônico, na qual o texto depende da criação conjunta dos demais pro� ssionais para que alcance sua plenitude (no caso do rádio, com vis-tas a atingir uma plenitude sonora veros-símil).

A proposição do cubano Félix Caig-net, na recondução do narrador em sua qualidade onisciente, onipresente e oni-potente do drama como condutor abso-luto da história, remonta às origens das artes cênicas. Tal como o ator-rapsodo, o narrador lança mão de uma série de ar-tifícios para a boa condução da história, e através dele os gêneros épico e dramá-tico se aproximam e se reforçam mutu-amente, quase se fundindo um ao outro (fenômeno observável nas radionovelas). É através do narrador que o radiodrama-turgo provoca a mobilização do ouvinte, de maneira que a história tome por com-pleto a atenção do ouvinte. O narrador na radionovela estabelece um vínculo de in-timidade com uma platéia heterogênea,

16 Segredos do Radioteatro, 1964, p.9.

própria a toda audiência dos meios de comunicação de massas. O reforço desse vínculo leva o ouvinte a crer que sua inte-ligência foi valorizada, porque ele acaba, em muitos momentos, prevendo as ações das personagens, antes mesmo que elas próprias se apercebam do que acontecerá. Essa particularidade – inerente ao melo-drama teatral, e potencializada sobrema-neira nas radionovelas – vai ao encontro de uma raiz popular de comunicação, em que o público participa, se emociona e compartilha sua sensibilidade como um bem cultural. A dramaturgia no rádio in-cendeia a alma, e alcança a emoção dos ouvintes.

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REFERÊNCIAS

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Entrevistas e Resenha

Calada Estranha (2012). ATORES: Beatriz Crippaldi, Marco Antônio de Oliveiira, Hanna Luiza Feltrin

e Luuanda Wilk. FOTO: André Carrreira

Quais são os impulsos cênicos e/ou so-ciais que possuem mais impacto em seu trabalho enquanto dramaturgo?

Talvez por não ser diretor, alguém que trabalhe diretamente com o ator e os equi-pamentos teatrais, o meu maior impulso cênico sempre foi o palco vazio. A imagem de um palco vazio sempre me pareceu es-tímulo cênico su� ciente e me impulsionou a buscar formas de preenchê-lo, de estabe-lecer relações possíveis entre ele e a pla-teia. Até hoje um palco vazio é para mim um mistério e exerce um grande fascínio. Algo desse palco vai em direção à plateia, às pessoas. Há algo a ser revelado, alguma coisa de grande importância tem de ser partilhada, um segredo que é impossível de ser guardado, e o local é esse, o palco. Esse é, em geral, meu primeiro impulso, diria o impulso gerado pela linguagem. Os impulsos sociais são fundamentos comple-mentares e não menos importantes. Poder, opressão, a morte e o pequeno ser humano enredado nesses mecanismos me fascinam e atraem.

Qual é a função da palavra e do texto teatral em suas montagens (ou dispositivos cênicos)?

Gosto das palavras, principalmente de sua eloquência poética, de sua capacidade de envolvimento, mas no teatro sua função é sempre complementar e acessória. Nesse sentido, interessa-me mais sua função me-

1 Luís Alberto de Abreu (São Bernardo do Campo SP 1952). Autor, roteirista de cinema e TV, professor, consultor de dramaturgia e roteiro. […] Luís Alberto de Abreu escreve em estreita colaboração com companhias de teatro, porém sua dramaturgia alcança autonomia literária. Fonte: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_te-atro/index.cfm?fuseaction=personalidades_biogra� a&cd_verbete=254. Acesso: 30 jun 2013.

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ENTREVISTAS E RESENHA

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Entevista com Luis Alberto de Abreu1

Por Stephan Baumgärtel2

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diadora, de transmissão e expressão dos con� itos humanos. Interessa-me principal-mente a experiência humana, toda (a tola, a trágica, a � losó� ca), e as palavras me in-teressam enquanto intermediárias entre as ações da experiência humana e as pessoas.

Qual é a função e a importância da tradição dramática em seu processo dra-matúrgico?

Para mim, a função e a importância da tradição dramática são muitos grandes. A tradição dramática tem sido muito questio-nada nos dias de hoje e é bom que assim seja. Ela é limitada, como de resto qual-quer linguagem igualmente o é. Nenhu-ma dá conta total da complexidade do ser e da sociedade, por isso o atual momento é muito estimulante no que diz respeito à revisão da e� cácia de cada uma delas e no-vas conformações delas nas obras. No en-tanto, tenho muita resistência em abando-nar a tradição dramática, primeiro porque são ainda formas e� cientes de organização cênica e comunicação. Segundo porque re-conheço na tradição dramática elementos constitutivos da própria linguagem teatral. São esses elementos que organizam a lin-guagem que me interessam, não os artifí-cios do gênero. É nesse sentido que resisto em abandoná-los

Do seu ponto de vista, quais são as

barreiras e riscos mais iminentes que a dramaturgia brasileira contemporânea precisa enfrentar?

A principal barreira, em minha opi-nião, é o público. E o que chamo de pú-

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blico não é o público restrito, pagador de ingressos. Público para mim são todos. Às vezes tenho a impressão que o teatro se restringe a um gueto e não gosto de guetos. O problema fundamental é como conversar com o público de um lado e , de outro, como partilhar questões fundamen-tais e comuns. Há toda uma pesquisa teó-rica e � losó� ca que precisa transformar-se em cena e� ciente. Se de um lado há uma pesquisa contundente por outro vejo o te-atro muito confortável, sem contradições humanas e sociais profundas. O mundo está estilhaçado em inúmeras fraturas e o teatro está bem posto e confortável. Ima-gino sempre que estamos perdendo con-tato com o público, me questiono sempre se o que mostro é importante para o públi-co. Não gostaria de ver no teatro o mesmo destino da ópera que ainda sobrevive dos grandes autores do século XIX.

Como você vê a importância das o� ci-nas de dramaturgia as quais você adminis-trou e como você vê os resultados concre-tos delas?

É muito difícil avaliar os resultados concretos delas, isso o tempo vai apontar. O que sei é que dramaturgia era um termo praticamente desconhecido e os drama-turgos atuantes cabiam na palma de uma mão. Hoje o estudo da dramaturgia faz parte do dia a dia do teatro e praticamen-te não existe um grupo que não pratique a própria dramaturgia ou não inter� ra no processo de sua construção. Nesse sentido alguma coisa mudou no teatro e essa coi-sa foi importante. Creio que contribui um pouco para que isso acontecesse.

Como você vê o papel do Estado no processo de construir e consolidar uma Dramaturgia Brasileira Contemporânea?

Há que se dividir o papel que o Esta-do desempenha e a função dele. O Estado brasileiro continua ainda grosseiro e � listi-no. É desalentador ver o Estado assumir os mesmos valores da iniciativa privada: mer-

cado e público pagante, arte como produto mercadológico. Essa é a mentalidade geral. Com exceção de medidas pontuais aqui e ali, nada mudou, em substância, no papel do Estado desde os séculos anteriores. O papel do Estado sempre esteve aquém do necessário e não vejo muitas possibilida-des de mudança a curto e médio prazo. A exemplo de uma empresa, o Estado con-tinua uma outra forma de fazer negócios, ponto!

Tem algo que você considera impor-tante para complementar estas questões?

Acredito que todo ser humano tem uma função social. Reconheço que isso é uma forma de crença laica, uma forma de enfrentar a maior questão � losó� ca do ser humano que é “o que signi� ca viver?” Es-tou sempre me perguntando qual é a fun-ção do artista porque creio que vá além do divertimento do público ou de ocupar seu lugar no mercado. Transformar o mistério do mundo em uma relação de troca mone-tária é amesquinhar o ser humano, o artis-ta, o mundo. Talvez esse impulso seja bus-ca de um éden ateu, de uma idade do ouro mítica. Mas não importam as de� nições, penso que somos impelidos a isso.

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Daniel Veronese é um dos principais nomes do teatro contemporâneo. Nascido em Buenos Aires, começou sua carreira como ator e mímico. Na

década de 1980, aproximou-se do teatro de objetos e em 1989, criou com Ana Alvarado e Emílio Garcia o grupo El Periférico de Ob-jetos. Deixando a atuação de lado, Veronese embrenha-se de forma profícua na drama-turgia e na direção, alcançando reconheci-mento internacional tanto de crítica quanto de público. Nesta entrevista, Veronese fala do começo de sua carreira como mímico, de sua opção por deixar a atuação e o teatro de objetos para se voltar à dramaturgia com atores. Outro ponto abordado na entrevista é sobre a sua passagem pelo Brasil, onde di-rigiu a peça Gorda, bem como a sua relação com o teatro brasileiro e com o teatro argen-tino contemporâneo.

No começo de sua carreira você traba-lhou no Teatro San Martín como ator mí-mico. Como se deu essa transição do mími-co para o ator e depois para o dramaturgo e para o diretor?

A mímica foi a primeira coisa que eu � z. Foi como uma entrada ao teatro sem palavras. Logo, começou o trabalho com os títeres no Teatro Sant Martín. E logo, a dramaturgia. E, depois, a direção. Esse foi o caminho orgânico. Acho que saí de uma

1 Marco Vasques é poeta, crítico de teatro e mestrando em teatro no Programa de Pós-Graduação da UDESC, onde desenvolve pesquisa sobre as ideias teatrais de Flávio de Carvalho.

2 Rubens da Cunha é poeta, crítico de teatro e doutorando no Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, onde estuda a dramaturgia de Hilda Hilst.

expressão mais limitada. Limitada já que na mímica não há utilização de linguagem; nos títeres não há utilização do corpo. Não há como se esconder atrás do objeto com o qual nos expressamos. Para mim, o pro-cesso orgânico de escritura se deu na colo-cação de palavras e na retirada do corpo. E a direção é o escalão mais alto. Eu acho que subi uma escada, partindo de um lugar mais escondido para um lugar totalmente exposto, que é a direção. Quando dirijo, sinto que ninguém � ca atrás de mim. Sou totalmente responsável por tudo o que está acontecendo à minha volta.

Em que medida a experiência com os títeres e com os objetos se relaciona com a sua dramaturgia para atores?

Na verdade, não sei. De que maneira os títeres se relacionam com minha dramatur-gia? Não acredito que exista relação. Quem sabe, em um primeiro momento, minha

Daniel Veronese, suas sendas estéticas e polêmicas

Por Marco Vasques1 e Rubens da Cunha2, Buenos Aires, 2012

Daniel Veronese e Marco Vasques Foto de: Mariano Pensotti

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primeira dramaturgia foi muito formal e sintética. Algo relacionado ao trabalho com os títeres. O trabalho com eles é totalmente visual. Está mais próximo do teatro visual do que da lógica das palavras. Além dis-so, o títere pede síntese. Não se pode dizer muitas coisas, porque a textualidade tem que ser muito precisa. Sim, posso dizer que minha dramaturgia era sintética e formal.

Você estudou com Ariel Bufano, Ade-laida Mangani e Mauricio Kartun. Pode fa-lar um pouco sobre a importância dessas pessoas na sua trajetória?

Kartun e Bufano foram meus profes-sores, mais do que qualquer outra coisa. Adelaida Mangani foi minha diretora no elenco de títeres. Kartun é uma pessoa muito criativa na dramaturgia, que me deu permissão para também ser criativo. É uma pessoa que habilita o aluno para que ele seja criativo. É alguém que pre-mia a criatividade. Ele é muito criativo. E também promove coisas que não têm re-lação com seu trabalho. Ele pode, de al-guma maneira, avaliar trabalhos que não se parecem à sua criação. Poucos profes-sores são assim. Bufano foi meu primeiro professor quando entrei no teatro de títe-res; deu-me uma disciplina cênica muito potente chamada “Ética sobre o trabalho”, sobretudo para nós que vínhamos dos tí-teres. Na verdade, os títeres são tomados como um irmão menor do teatro. Bufano conferiu uma hierarquia a essa disciplina. Aprendi sua ética de trabalho, como me comportar no cenário, como ver o teatro.

Atualmente você tem se dedicado mais à direção e à dramaturgia. Você pensa em retornar ao palco como ator?

Não.

Por quê?

Porque não me produz a mesma satis-fação.

Existe algum texto que você queria

montar e não montou como ator?

Minha carreira como ator não foi muito substancial, quase inexistente. Não há mui-to o que falar sobre isso. Nos momentos em que trabalhei como ator, sempre senti algum incômodo. Não tive a contundência que tenho como diretor ou como autor.

Você dirigiu Gorda na Argentina, no México e no Brasil. Como é a experiência de dirigir a mesma peça em lugares com culturas tão distintas?

Olha, quando dirijo peças não me per-gunto em que país eu estou. Monto a obra em qualquer lugar da minha maneira. E os atores, em geral, correspondem da mesma forma. Ainda que sejam diferentes previ-sões teatrais, chega o momento em que o ator quer é se encontrar com novas experi-ências e poder demonstrar sua capacidade. Isso acontece em todo lugar.

No Brasil, em relação à sua montagem de Gorda, houve alguma di� culdade com a linguagem ou tudo correu bem?

Foi tudo muito tranquilo. Encontrei pes-soas com muita predisposição ao trabalho.

O realismo no teatro tem perdido mui-to espaço para as hibridações, para o gro-tesco, para o absurdo e para o surrealismo. E você fez uma adaptação de Tio Vânia de Chekhov. O que você procurava no texto de Tio Vânia para adaptação? O que o in-comoda ou o provoca nesse texto?

Não sei o que posso falar. Quando faço teatro, tento me encontrar com o que hoje, em geral, é o cenário, algo novo para mim. Entrar em lugares que não visitei antes, que me mostrem um panorama mais amplo que a obra. Radicalizar um pouco a obra. Ser mais radical que o próprio ator. O que vai acontecer com essa obra e com o espec-tador, eu não sei. Posso trabalhar coisas di-ferentes. Posso provocar fascinação, tédio, ódio, amor, porque todos os espectadores

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são diferentes. E, de� nitivamente, eles po-dem ter vivido circunstâncias no mesmo dia com o teatro, circunstâncias muito dife-rentes que façam com que eles aproveitem ou odeiem o trabalho que veem. Isso acon-tece com todo mundo. Então, o que provo-ca as pessoas? Eu posso dizer a partir de coisas que as pessoas me dizem. São coisas muito diferentes. Mas está fora do meu co-nhecimento saber isso.

Entendes o que eu te digo?

Sim, mas gostaríamos de reformular a pergunta. O que o texto de Chekhov pro-voca em você para que você o adapte?

Bom. Acho que Chekhov é um autor que escreveu para seu povo. Escreveu para o povo russo e para a humanidade, em ge-ral, não só para pessoas do seu tempo. É um visionário que conseguiu descobrir a essência das relações humanas e plasmá-las ao teatro. Suas personagens parecem estar vivas porque estão muito conectadas com a vida. Para mim, como diretor, me ex-cita e me faz ter vontade de fazer teatro, de montar isso no teatro. Isso não ocorre com muitos autores.

A Argentina, sob o nosso ponto de vis-ta, passa por um bom momento em sua produção, sobretudo, na dramaturgia. Há novos e bons autores escrevendo drama-turgia. Como você avalia esse momento da dramaturgia argentina?

Quando eu comecei a escrever, no iní-cio dos anos 1990, não havia muito drama-turgos. Fui de uma geração de teatristas que começaram a escrever, a dirigir e a atu-ar. É como se a voz do autor fosse um pou-co pervertida em relação ao teatro anterior. Isso originou a possibilidade de que todo mundo tivesse permissão para escrever. Antes você tinha que ser um escritor para escrever. Apareceram muitos dramatur-gos. Bons ou maus, medíocres, extraordi-nários, de tudo. Acho que a quantidade faz com que seja boa. Da mesma maneira que

no Brasil há duzentos milhões de pessoas jogando bola. Bom, obviamente, isso faz com que haja novas oportunidades de apa-recerem gênios. Isso acontece aqui. Acho que existe muita produção, dando possibi-lidade para que se experimente, se prove e se tente novas formas. Isso está continua-mente colocando essa geração em primeiro plano.

Sua produção dramatúrgica é muito vasta. E não é somente grande em quanti-dade. Como você faz para não cair numa fórmula, para em cada texto trazer uma nova força?

Eu me fascino pela mudança das coi-sas. Em minha vida pessoal também, não só teatral. Por isso uma de minhas marcas é ter importantes axiomas. Eu gosto de du-vidar do que é a arte, de seu signi� cado. Se uma pessoa diz “isso é assim, se escreve de tal maneira, isso funciona, isso está bem feito”, olho e tento fazer ao contrário. Des-de que comecei a escrever, tenho esse tipo de posicionamento. Minha forma de traba-lhar é essa: romper com o que de alguma maneira eu havia conseguido antes. Desde o El Periférico de Objetos é assim, são doze ou treze trabalhos. Todos são diferentes e inovadores.

Em que medida o teatro experimental que El Periférico de Objetos propunha re-� ete em sua produção atual?

Eu estou muito afastado do trabalho com os objetos. Sinto que essa foi uma grande mudança. Abandonar essa forma que funcionava me deu muita satisfação para começar a pesquisar algo totalmente diferente, que é teatral, mas é o trabalho com os atores. Obviamente, os dois, tea-tro de objetos e teatro de atores, são feitos por mim. Há condições que se repetem, mas são duas coisas muito diferentes. É como dizer que antes você dirigia carroças ou motos e agora você dirige carros, sem dar mais peso a uma em relação à outra. Mas, naturalmente, sinto-me mais cômo-

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do trabalhando agora com atores que com objetos. Obviamente, alguma visão formal que tinha com os objetos estará no meu trabalho atual com os atores. Mas eu não conceitualizo meu trabalho. Não necessito conceitualizá-lo.

Como o El Periférico de Objetos, que obteve muito sucesso, tanto na Argentina quanto no exterior, se dissolveu? Em que momento você, Ana Alvarado e Emilio García perceberam que houve uma ne-cessidade de percorrer novos caminhos? Parece-nos que há três percursos distintos após o El Periférico de Objetos. Cada um de vocês caminha por sua própria trilha, completamente diferente uma da outra. Quando o grupo discutiu a sua dissolução?

Não discutimos nada. Não o quere-mos deixar morrer. Mas não matamos, só o deixamos aí. Às vezes nos encontramos para falar sobre o que estamos produzin-do. Custa-nos muito fazer um espetáculo. Então nos demos conta de que nossas ne-cessidades eram muito individuais e dife-rentes. Emilio parece seguir com vibrações mais parecidas ao El Periférico. Está fazen-do outra coisa, mas há algo parecido; ain-da está “tirando proveito”. Eu não. Segui direções diferentes em relação aos meus colegas, mas também estou num outro ca-minho. Sou o que está mais distante do te-atro de objetos, já que o meu teatro não usa objetos; o que faço é usar a síntese do tea-tro de objetos com os atores. Naturalmente, percebemos que já nos custava muito fazer o trabalho em conjunto. Percebi que havia outra vida que eu poderia experimentar, que é o trabalho com os atores.

A repercussão alcançada por El Perifé-rico de Objetos contribui para a sua proje-ção como dramaturgo?

Não. Obviamente sou a mesma pessoa, mas não aproveito nada disso para esse momento atual. É um caminho diferen-te. Eu não renego o passado, mas não há nada que se pareça ao El Periférico. O que é certo é que o meu trabalho não tem nada a ver com isso. Faço uma coisa muito dife-

rente. Quem sabe eu tenho mais projeção com esse meu novo trabalho do que com o El Periférico. O trabalho com esse grupo foi muito bom, mas com o atual acho que a projeção foi superada.

Você é um autor bastante montado no Brasil. Em nosso teatro, por exemplo, An-dré Carreira montou o El líquido táctil e Woman’s… Qual a sua relação com o tea-tro brasileiro?

Só conheço o André Carreira. André é um amigo. É uma pessoa que eu estimo. Eu o conheci há quase 20 anos. Ele veio mui-to para a Argentina. Propôs-me traduzir e montar as obras. Fui a muitos festivais no Brasil, porque tem muitos festivais. No en-tanto o teatro brasileiro não vem para cá. Geralmente vejo pouco teatro brasileiro. Conheço Antunes Filho e Nelson Rodri-gues. Segui um pouco a trajetória do Gru-po Corpo. Mas, em geral, vi muito pouco teatro brasileiro.

Jorge Dubatti diz que o termo “teatris-ta” vem para conceituar um novo modelo de homem no teatro argentino. Um homem que escreve, que atua e que dirige. Como você vê essa multiplicidade de funções? Você não acha perigoso um diretor ser ator do próprio espetáculo que dirige?

Sim. Mas não é o meu caso. Eu dirijo e escrevo. Escrevo quando dirijo e termi-no de escrever quando estou dirigindo. Acho que em muitos casos, quando uma pessoa se dirige a si mesma perde o mais importante que é a visão de fora. Não so-mos completamente conscientes do que es-tamos fazendo. Não creio que dirigir e es-crever sejam práticas incompatíveis. Para mim, são a mesma coisa.

E como você vê essa multiplicidade de funções? Essas mudanças nas funções no termo de Dubatti sobre o novo homem do teatro. Há muitos anos era muito estrati� -cado. Como você vê essas hibridações?

Apareceu a nova dramaturgia com

esse novo sistema. Para mim, foi muito bom porque desmisti� cou o trabalho do autor. Antes seu trabalho era semi-sagra-do. O autor escrevia e chegava com os pa-péis e, muitas vezes, dizia aos atores como o personagem tinha que ser interpretado. E tudo isso foi quebrado. Transformou-se em uma coisa mais viva e menos solidi� cada. Eu também respeito alguém que escreva, e nada mais. Tudo depende do resultado. Se uma pessoa dirige, escreve e atua e a obra é maravilhosa, que bom! No entanto, temos que admitir que a possibilidade do erro é maior.

Jorge Dubatti ainda a� rma que grande parte dos dramaturgos argentinos da nova geração são herdeiros, de algum modo, do professor Mauricio Kartun. Desse modo, quais dramaturgos de sua geração você destacaria?

Mariano Pensotti, é um jovem drama-turgo argentino que destaco.

O espetáculo Zooedipous foi escrito e dirigido por você, Ana e Emilio. Você pode falar um pouco sobre essa construção e di-reção de um texto por três pessoas?

Isso estava relacionado com a estrutura do grupo. Era realmente um grupo em que todos nós opinávamos. As funções serviam para desenvolver algo e não para estabele-cer hierarquias. Quando montávamos um espetáculo, fazíamos a partir das ideias dos três. Então, por isso a autoria era dos três. Não foi assim: sentávamos e tínhamos três máquinas para escrever. Fomos debatendo, decidindo os detalhes, qual linha seguir, qual é a mais importante. Assim quem sabe é mais fácil entender a tripartite na direção e na autoria. Cada um contribuía partindo de um lugar diferente. E completávamos um o pensamento do outro, até alcançar-mos uma harmonia, um conceito norteador das nossas ações.

Jorge Dubatti a� rma que sua drama-turgia tem uma conexão com a teatralida-

de de Griselda Gambaro e Eduardo Pavlo-vsky. Como você vê essa a� rmação?

Em geral, o que os pesquisadores di-zem, às vezes, me surpreendem. E às vezes não. Mas muitas vezes o criador é um bus-cador de conexões, de explicações que o autor não necessita. Na maioria dos casos, me surpreende lê-lo diretamente. Não no caso de Jorge, mas às vezes me explicam na hora e encontram signi� cados na obra que eu mesmo desconhecia. Todo trabalho pos-terior à criação tem um perigo, que é de se converter em uma nova criação. Perigo em um bom sentido. Agora, nesse caso espe-cí� co de Eduardo Pavlovsky e de Griselda Gambaro, têm relação sim porque eu a li muito quando comecei a escrever. E Eduar-do também. São dois dramaturgos que eu admiro. E é provável que inclusive minha dramaturgia tenha uma maior relação com Gambaro. Eu tentava plagiá-la e escrever como ela.

Você disse em entrevista em 1994 que…

Eu era muito jovem.

… “si, yo me creía en mi foro íntimo que con mis obras puedo modi� car algo. Si no, no haría teatro”. Você ainda pensa as-sim? E o que o teatro pode mudar?

Sim, continuo pensando isso. Conti-nuo pensando que todo artista que produz algo, ainda que dentro de sua casa e não o mostre, o faz pela necessidade de modi� -car o mundo ou de modi� car-se no mun-do. Parece-me ser o motor mais importante da criação. A modi� cação do externo. Por outro lado, no teatro, a modi� cação pode ser muito pequena se compararmos com a televisão. Não se pode fazer muita coi-sa. A televisão modi� ca mentes, banaliza o pensamento, porque lamentavelmente é assim. A televisão está mais relacionada com o comércio do que com uma entidade comunicativa. Mas o alcance que o teatro tem é muito pequeno. São cem, quinhen-

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tas pessoas. Para que uma mudança seja efetiva, ela deve ser profunda. Ou mostrar uma verdade ou chegar a pensar o mundo de outra maneira. E não é fácil fazer isso no teatro.

Você tem uma sessão chamada Altos mandamentos no � nal do seu livro. Dois deles me despertaram uma curiosidade por sua explanação. Você diz no manda-mento 2: “promover un principio de situ-ación, de sustitución de actores vivos por objetos. Un cambio íntimo y privado con el � n de lograr una dimensión que no tenga referencialidad en nuestra vida cotidiana”. Você pode falar um pouco sobre essa rela-ção entre ator e objeto, já que você traba-lhou muito tempo com essa estética?

Sim, eu escrevi isso em pleno auge do El Periférico de Objetos. Nesse momento, eu precisava ver de que maneira o objeto poderia substituir o ator. Eu estava envol-vido neste caminho e me parecia o mais in-teressante. Acho que tornei esse caminho bonito, o esgotei e me satis� z com ele. E agora, bom, disse: “quero fazer outra coi-sa”. Se eu posso fazer com que um bone-co projete as emoções e as vicissitudes da vida cotidiana… É um passo importante na criação, que as pessoas possam ver o ob-jeto como ele é, que o vejam re� etido, se projetem nele. Logo, no decorrer dos anos, comecei a estudar mais a alma humana di-retamente através do ator. O objeto, então, se tornou desnecessário, pois é muito efeti-vo, mas também é limitado.

Hoje em dia você acredita que seja pos-sível a substituição do objeto pelo ator?

É possível, mas eu já o � z. Não necessi-to voltar a fazer isso.

Falávamos sobre televisão e teatro co-mercial. Existem pessoas que o acusam de ter enveredado por um teatro comercial?

As pessoas falam demais, inclusive da-quilo que desconhecem. Cada criador sabe

de suas necessidades. Eu não estou acu-sando ninguém de nada e não me importo com as acusações a mim impostas. Todo teatro alternativo, no seu íntimo, tem o de-sejo de ser visto, apreciado. E há algum mal nisso? Claro que não. Eu faço o meu teatro; estas pessoas que tratem de fazer o teatro delas do jeito que lhes convém. Se pensar-mos profundamente sobre o assunto se verá que existe um grande espaço comer-cial para o teatro dito experimental. Um co-mércio imenso; tem muita gente ganhando dinheiro com o que se chama uma estética experimental. Bem, vejamos, esse circuito vive muito bem e quase sempre às expen-sas de dinheiro público. Nada contra, como já disse. Tenho plena consciência dos cami-nhos por onde passo.

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Imagine a seguinte cena. No palco, pessoas elegantemente vestidas es-tão mascaradas com cabeças de ani-mais – porcos, bois, cavalos. Toca

uma música. No meio do espaço, um ho-mem, nu e sem máscara, faz uma dança desajeitada e particular. Os mascarados riem dele.

Uma cena sobre a singularidade. Uma cena sobre a estupidez da homoge-neidade.

E, porque foi criada por quem atua, talvez não faça diferença perceber que o homem sem máscara, o homem que dan-ça e que está nu... tem síndrome de down.

José Tonezzi começa seu livro com um aviso direto ao leitor: não procure aqui o discurso da inclusão social. Seu objeto, o teatro que incorpora na lingua-gem os distúrbios do corpo e da mente, não se move pelo bom-mocismo.

Na primeira parte, o livro faz um le-vantamento das teorias e práticas volta-das às disfunções ao longo da história: passa por Gumbrecht, que detecta o co-lapso da bipolaridade sujeito/objeto; por Foucault e o conceito de “continuidade irre� etida”, identi� cando a permanência de um texto invisível sob o discurso cons-ciente; por Deleuze, a partir da relação entre manifestação/designação/signi� -cação. Sob o sugestivo título de Nome-

1 Professora adjunta do Departamento de Direção Teatral e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, dedica-se a pes-quisa teórica e laboratorial sobre dramaturgia cênica junto a coletivos teatrais. Atua como dramaturgista na Cia Marginal e integra o conselho editorial da revista Cavalo Louco.

ar e Punir, o primeiro capítulo trata do “monstro”, nomeação que designa aquilo que insiste em se rebelar contra a com-preensão do olhar.

Em seguida, Tonezzi aborda as rea-ções diversas diante dos diversos desvios: o sarcasmo, a compaixão e o constrangi-mento – relacionados à transformação da cultura ocidental nos últimos séculos. In-forma-nos que na Grécia, em Roma e na Idade Média, o monstro era considerado um ajudante do diabo ou o mensageiro da ira de Deus – como os leprosos e os ce-gos, retratados por Bruegel ou os loucos escorraçados na rua e exibidos nos hos-pícios mediante ingresso. Victor Hugo, Mikhail Bakhtin e Miceas Eliade, autores que abordam o grotesco na cultura popu-lar são suas fontes de referência.

A segunda parte do livro trata da exibição das deformidades do corpo em manifestações estéticas inteiramente di-versas: do uso das anomalias para � ns espetaculares, muitas vezes visando a so-brevivência (como o homem-tronco, que sustentou dez � lhos exibindo sua ausên-cia de membros superiores e inferiores) à body art, que promovia a exposição dos � uidos e promovia alterações e automu-tilações. Sob o prisma de J.J.Courtine, o autor distingue o monstro (o objeto) e o monstruoso (a representação). No início do século XX, o pouco avanço da ciência ainda permitia aos apresentadores dos freaks shows inventar que suas criaturas vinham do passado, de algum lugar mis-terioso ou de outro planeta. Tonezzi de-

Singular indissolúvelResenha de “A cena contaminada”, de José

Tonezzi. São Paulo, Perspectiva, 2011"

Rosyane Trotta1

fende a idéia de que a partir do séc. XIX as anomalias passam a ser exibidas e que no século XX há um crescimento do atra-tivo dessas � guras, que chegam a se dife-renciar pelas categorias born freaks, made freaks e novelty freaks. Figuras ímpares, como as gêmeas siamesas que se apre-sentam tocando sax desde crianças, ocu-pam o “teatro de monstros” e o “museu natural”, levando lucro aos proprietários e se tornando grandes negócios. Apenas entre os anos de 1960 e 1970 começa um movimento de integração social e discus-são ética, movido por dois fatores princi-pais – a ciência genética e as mutilações proporcionadas pelas guerras.

A partir do � nal da década de 1970, os desvios ganham espaço junto a com-panhias teatrais estáveis. A Compagnie de l’Oiseau Mouche – cuja sede inclui um teatro para 120 pessoas, sala de ensaio e outras instalações equipadas – abre espa-ço para os atores com distúrbio mental. No Théâtre du Cristal, os diretores pro-curam novas possibilidades estéticas, di-ferentes daquelas aceitas e praticadas no teatro convencional, assim como buscam falar a outro público. Tonezzi descreve aspectos de algumas produções das com-panhias para con� rmar seu enquadra-mento no teatro de encenação, com valo-rização de cenários, luz, sonorizações. No entanto, segundo o autor, o que sobressai nesse teatro, de maneira geral, é o espetá-culo e não as peculiaridades naturais dos atores. Embora inicialmente as compa-nhias façam um movimento em direção àquilo que o autor chama “contaminação cênica”, tais encenações não a promovem efetivamente, uma vez que a estrutura do texto e dos diálogos, assim como da pró-pria linguagem teatral, é preservada, em nome do modelo dominante. O efeito de ilusão teatral, que induz a imaginação do espectador para que ele veja além do que a cena mostra, permanece inalterado.

Só então o autor chega ao ponto: as estéticas que, apropriando-se dos distúr-bios disponíveis no corpo dos criadores, tanto quanto de seu comportamento e

de sua forma de se relacionar, se deixam contaminar por eles. O encenador mais notório nessa vertente é Robert Wilson, cujo trabalho com crianças da Byrd Ho-ffman Foundation o despertou para as possibilidades teatrais que seriam o cer-ne de sua investigação e criação cênica: a descontinuidade narrativa, a repetição e a simultaneidade, o tempo esgarçado e a justaposição de eventos. A representação sai dos eixos, a atenção se torna � utuan-te, não há � uidez narrativa.

Mas é o italiano Pippo Delbono que encarna, para o autor, a síntese da idéia de uma cena contaminada, abolin-do as fronteiras entre arte e vida, entre ator e não ator. Ex-integrante do grupo Farfa, dirigido por Iben Nagel Rasmus-sen, Delbono começou, a partir de 1997, a integrar � guras singulares em sua com-panhia. Na época, o grupo ensaiava em um hospital psiquiátrico e havia inter-nos que chegavam cedo para assistir os ensaios – entre eles, Bobó, microcéfalo e surdo-mudo. Ao que parece, Pippo não procurou deliberadamente pessoas com limitação física ou mental – ele se encan-tou pela singularidade e tomou-a como fonte de criação cênica e dramatúrgica. Em seu discurso, o encenador lembra que a arte frequentemente nasce de uma de� -ciência, de uma falta – e a� rma que o que transforma aqueles atores em artistas não é a lacuna, mas a disposição de estabele-cer com ela uma relação direta e livre. Ele supõe que se Bobó tivesse se dedicado a um “teatro para de� cientes” sua veia ar-tística não poderia se manifestar.

Os críticos de Delbono o acusam de pretender apenas o efeito do bizarro. To-nezzi coloca em evidência o debate. A cena contaminada não teria interesse em enfocar o sofrimento de seus atores por sua condição, não visaria a piedade, mas a estranheza – e o possível encantamento – que seus gestos, ações e palavras pro-vocam.

Entre os elementos mais constan-tes de seus espetáculos estão a poesia, a música, o travestimento, a colagem e

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a recontextualização de gestos. “Eu não quero entrar no sentido e eu pre� ro criar imagens, porque elas contam mais que o sentido” (p.141), diz o diretor, que orien-ta seus atores a não pensar em seu perso-nagem, e sim em sua própria pessoa, que para ele tem mais força. Sua pedagogia consiste em extrair dos atores o que eles são e não uma idéia construída sobre o personagem de � cção. Segundo Tonezzi,

O resultado é geralmente uma reação vigorosa por parte do público, num estado de aparente exasperação. Tal-vez renovado, talvez perplexo. Ou, simplesmente, perturbado. Em sua principal acepção, o teatro de Pippo Delbono trata da ruptura, do inacaba-mento e, sobretudo, da finitude das coisas, incluídos aí o corpo e a vida. (p.141)

No espetáculo Gente di plástica, os atores, um a um, ocupam o palco, com-pondo lentamente a pantomima de uma família-padrão em torno da mesa, in-cluindo agregados. Depois de completa a imagem, a família lentamente se des-constitui, por meio da sordidez e do sar-casmo, evidenciando o que está por trás da normalidade e o que arti� cialmente a sustenta. A cena descrita no início desse texto, é executada por Gianluca Ballarè que, em outro momento da encenação, diverte-se em fazer rolar uma bolinha pelo palco, deixar que caia na platéia, es-perar até que seja devolvida – e repetir toda a sequência.

Como parte de sua investigação, José Tonezzi dirige o espetáculo Lautrec, cria-do e desempenhado por Katia Fonseca que, assim como o pintor Toulouse-Lau-trec, sofre de nanismo (atro� a dos mem-bros inferiores e superiores). No � nal do livro, o autor descreve o percurso de cria-ção e a estética da montagem, em que, mais do que uma história que se conta ou que se mostra, o espectador acompanha o trajeto cênico de Katia Fonseca por um cenário projetado para ser manipulado e percorrido pela atriz, enquanto descreve,

exibe, recorta aspectos da vida e da obra do pintor.

Provocar o espectador ainda é pos-sível – parece ser a convicção norteadora do artista-pesquisador José Tonezzi. O li-vro A cena contaminada pode ser conside-rado a metáfora de uma proposição mais ampla sobre a necessidade e os possíveis caminhos de quebra da homogeneidade.

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ENSAIO FOTOGRÁFICO DE ESPETÁCULOS

ESPETÁCULO: Calada Estranha (2012). ATORES: Marco Antônio Oliveira e Luanda Wilk. FOTO: Le� cia Zanchi.

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CALADA ESTRANHA

SINOPSE

A montagem é uma adaptação feita por Luiz Otten da peça Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues. Na

versão de Otten, a trama principal do texto se mantém, mas muda o local – a ação ocorre em Florianópolis. A

história gira em torno do segredo da família de Dr. Ildo, que é acusado de ter assassinado uma prostituta dezenove anos antes. O noivo da � lha de Ildo se aproxima da família

para vingar a morte de sua mãe, que é a prostituta que Ildo matou.

FICHA TÉCNICA:

ATORES 1• Ildo – Marco Antonio de Oliveira ou Renato Grecchi• D. Eduarda – Beatriz Cripaldi ou Chaiany Gracietti• Avó – Ana Luiza Koerich ou Tânia Farinon• Noivo – Lucas Heymanns ou Marcos Laporta• Augusta – Tainá Froner ou Hanna Luiza Feltrin• Paulinho – Carlos Longo ou Leandro Lunelli• Dona – Néia Longen ou Paula Maba• Prostituta – Luanda Wilk• Vizinhos – Joyce de Andrade e Wagner Monteiro

TEXTO: Nelson RodriguesAdaptação: Luiz OttenIluminação: Ivo GodoisMúsica: Fernando IazzettaFigurinos: Anna Carolina Porto, Juliane Biz, Letícia Marcondes e Luísa LettiMonitoria: Bárbara Telles CardosoDireção: André Carreira

Estreia: 18 de setembro de 2012 – Centro de Artes – UDESC.

COMENTÁRIOS:

Calada Estranha ou Senhora dos Afogados é uma experiência cênica baseada em uma interpretação

minimalista, que tem como foco a proximidade e a intensidade das relações estabelecidas entre os atores. O

processo criativo teve como premissa o uso de um espaço cênico no qual os atores e atrizes jogaram explorando

os vínculos entre os diferentes personagens. “Com esse trabalho os alunos tem uma experiência de atuação como em um projeto pro� ssional sob direção de um professor. Essa é uma prática fundamental no processo de formação

dos novos artistas” (André Carreira).

Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira.ATRIZ: Luanda Wilk. FOTO: Le� cia Zanchi.

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Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira. ATRIZ: Luanda Wilk. FOTO: Le� cia Zanchi.

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Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira. ATORES: Marco Antônio de Oliveira e Luanda Wilk . FOTO: Le� cia Zanchi.

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Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira. FOTO: André Carreira.

Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira. ATORES: Carlos Longo e Tainá Froner. FOTO: Le� cia Zanchi.

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Calada Estranha (2012). Direção de André Carreira. ATORES: Chaiany Gracie� e Renato Grecchi. FOTO: André Carreira.

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Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira.

ATORES: Luanda Wilk. FOTO: Le� cia Zanchi.

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Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira. ATORES: Luanda Wilk e Marco Antônio de Oliveira. FOTO: Le� cia Zanchi.

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Caladda Estranha (22012).

DIREÇÇÃO: André Caarreira.

ATRIZ: Néia Longgen e Hannna Luiza Felttrin.

FOTOO: André Carreira.

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Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira. ATRIZ: Paula Maba. FOTO: Le� cia Zanchi.

Calada Estranha

(2012).

DIREÇÃO de André Carreira.

ATORES: Luanda Wilk

e Marco Antônio de

Oliveira.

FOTO: Le� cia

Zanchi.

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Calada Estranha (2012). DIREÇÃO de André Carreira. ATORES: Carlos Longo e Tainá Froner. FOTO: Le� cia Zanchi.

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Calada Estranha (2012). Direção de André Carreira. ATORES: Renato Grecchi e Hanna Luiza Feltrin. FOTO: André Carreira.

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Calada Estranha (2012). Direção de André Carreira. Atriz: Luanda Wilk. Foto: Le� cia Zanchi.

Calada Estranha (2012).

DIREÇÃO de André Carreira.

ATRIZ: Lunada Wilk.

FOTO: Le� cia Zanchi

Ubu Rei (2012). DIREÇÃO de Paulo Balardim. ATORES: Rachel Chula e Márcio Cardoso. FOTO: Renato Grecchi.

UBU REI

FICHA TÉCNICA:

DIREÇÃO: Paulo Balardim

ELENCO: Sônia Velloso, Rachel Chula, Elaine Silveira, Nina Medeiros, Rafael Reüs, Márcio Cardoso, Thayná Rodrigues, Marina Soares.

PREPARAÇÃO CORPORAL: Rachel ChulaCOORDENAÇÃO E CONFECÇÃO DE MÁSCARAS: Rafael Reüs

CENOGRAFIA E ILUMINAÇÃO: Sônia Velloso ARTE GRÁFICA: Rafael Reüs CENOTÉCNICA: Familia Ubu

FIGURINOS: Karina Coehn e Sônia Velloso

ESTREIA: 26 de setembro de 2012 – Centro de Artes – UDESC.

COMENTÁRIOS:

A montagem trabalha com diferentes linguagens artísticas, principalmente o grotesco. A ideia mobilizadora de nosso processo criativo está centrada no

grotesco e no animalesco que o texto de Jarry propõe.

Ubu Rei (2012). DIREÇÃO de Paulo Balardim. FOTO: Renato Grecchi.

Ubu Rei (2012).

ATRIZES: Sônia Velloso e Thayná Rodrigues.

FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012). ATRIZES: Nina Medeiros e Elaine Silveira. FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012). DIREÇÃO de Paulo Balardim. FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012). ATORES: Marina Soares, Rafael Reüs e Márcio Cardoso. FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012). DIREÇÃO de Paulo Balardim. FOTO: Renato Grecchi.

Ubu Rei (2012). ATORES: Sônia Velloso, Marcio Cardoso e Elaine Silveira. FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012). ATORES: Rafael Reüs e Raquel Chula. FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012).

ATRIZES: Elaine Silveira e Nina Medeiros.

FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012). ATOR: Marcio Cardoso. FOTO: Renato Grecchi.

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Ubu Rei (2012).

ATRIZ: Marina

Soares.

FOTO: Renato

Grecchi.

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UBU 13Corrompida

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Ubu Rei (2012). ATRIZ: Nina Medeiros. FOTO: Renato Grecchi.

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UBU 15Corrompida

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Ubu Rei (2012). ATOR: Rafael Reüs. FOTO: Renato Grecchi.

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